josé gomes temporão

Podcast discute impacto da pandemia no futuro do Brasil

Ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão é o convidado da semana no programa Rádio FAP

O Brasil se aproxima da triste marca de 400 mil mortes por Covid-19. Já são cerca de 15 milhões de casos registrados da doença no país e os números não param de crescer. Para analisar o pior momento da pandemia no Brasil, o podcast Rádio FAP recebe o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão.






A importância do Sistema Único de Saúde (SUS), a condução do governo federal na pandemia e a perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global são alguns dos temas desta edição. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, da TV Globo, e perguntas conduzidas durante entrevista para a Revista Política Democrática nº 30.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz, gerente de Comunicação da FAP.

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'Governo federal cooptou Centrão para impedir impeachment', diz Temporão

Em entrevista exclusiva à Revista Política Democrática Online de abril, ex-ministro da Saúde critica inércia do presidente na pandemia

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão afirma que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem como principal aliado o aparato do Centrão para engavetar diversos pedidos de impeachment recebidos pelo Congresso, em meio à pandemia da Covid-19. “O governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem”, diz.

Confira a Edição 30 da Revista Política Democrática Online

A declaração ocorreu em entrevista exclusiva publicada na edição do mês de abril da Revista Política Democrática Online, lançada neste sábado (17/4). A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

Temporão foi empossado como ministro da Saúde, em março de 2007, e sucedido em 1º de janeiro de 2011. Ocupou o posto em boa parte do segundo mandato do governo Lula. Atualmente, é diretor executivo do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde (ISAGS).

Pedidos engavetados

Jair Bolsonaro já foi alvo de 111 pedidos de impeachment, média de um por semana no mandato. “Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República”, ressalta Temporão, na entrevista à 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Além disso, conforme lembra o ex-ministro, também há representação de ex-ministros da saúde, juristas e advogados apresentada ao Tribunal de Haia contra Bolsonaro. “O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis”, destaca.

No entanto, a grande aliança de Bolsonaro com o Centrão impede o avanço dos processos. “Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer”, assinala.

Barreiras

Na entrevista à revista mensal da FAP, o ex-ministro lembra que ainda não se conseguiu transformar o conjunto de denúncias, inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União (AGU) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si.

“Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Arthur Lira”, lamenta Temporão.

Na avaliação dele, o Ministério Público também tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas, já que não tem se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação. 

“Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí”, assevera o ex-ministro.

Responsabilização de culpados

Por outro lado, acredita Temporão, cedo ou tarde, haverá responsabilização dos culpados. “E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação”, pontua.

A crise agravada pela pandemia, recebida com negacionismo de Bolsonaro, fez velhos problemas voltarem a assombrar o país. “A fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população”, destaca.

A edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem análises de política nacional, política externa, cultura, entre outros, além de reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos durante a pandemia.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

Serviço

Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição)
Lançamento: 17/4/2021
Acesso gratuito no site da Fundação Astrojildo Pereira

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RPD || Entrevista Especial - José Gomes Temporão: ‘Pandemia terá impacto central no futuro da Nação’

Ausência de medidas e negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribuíram drasticamente para a situação crítica que o país enfrenta atualmente no combate à pandemia do novo coronavírus, acredita Temporão

Por Caetano Araújo, Luiz Santini e Renato Ferraz

O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira em relação ao combate contra a pandemia do novo coronavírus são inúmeros, incontáveis, avalia o ex-ministro da Saúde  José Gomes Temporão, entrevistado especial desta 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Temporão aponta três medidas que deveriam ter sido feitas pelo Governo Bolsonaro para evitar a situação em que o país se encontra atualmente: 1) Deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. 2) Optou apenas pelo número mínimo de doses do mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, que é de 10% da população. O Brasil vai receber, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. País tinha direito de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   3) Se tivesse fechado acordos compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás, teríamos tido vacinas a partir de janeiro e já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas.

“A sociedade brasileira, o povo brasileiro, foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandemia”, critica Temporão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Revista Política Democrática Online.  

Revista Política Democrática Online (RPD): A pandemia está tendo o impacto de uma tragédia social, sanitária, emocional. Mas pode ter favorecido o reconhecimento da importância do Sistema Único de Saúde para a saúde dos brasileiros por parte de toda a sociedade, independentemente de níveis sócioeconômicos, tanto quanto a percepção da relevância do papel da ciência e da qualidade dos pesquisadores e cientistas nacionais na condução das graves questões sanitárias que vêm ameaçando o país. Como valorizar esses sentimentos de forma permanente?  

José Gomes Temporão (JGT): Que bom começarmos a conversa falando de coisas boas também. A situação difícil, dramática e trágica que nosso país vive nesse último ano tem e seguirá tendo impacto central no futuro da nação. Importa destacar, no entanto, que, ao longo desse período pandêmico, o SUS ganhou novo contexto, um novo olhar da sociedade. Está lá na Constituição de 1988, no Artigo 196: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, alcançando através de políticas econômicas e sociais”. Quer dizer, uma visão bastante abrangente da questão da saúde. Nós também sabemos que, no curso dessas três décadas, se de um lado o SUS conseguiu se estruturar, ampliou cobertura, reduziu desigualdades entre classes sociais e regiões e teve um impacto nos indicadores sanitários extremamente importante, por outro lado se fragilizou do ponto de vista do financiamento, da gestão, do modelo assistencial. E através de uma política deliberada de subsídio ao mercado, o que nós assistimos foi um crescimento proporcional muito importante do percentual da população brasileira que dispõe de um plano seguro de saúde para o atendimento de suas necessidades corriqueiras de exames, consultas e internações – maior parte, provida pelo empregador. Ou seja, é uma cobertura privada financiada majoritariamente pelo empregador e ligada, portanto, ao vínculo laboral. Então essa visão do SUS ao longo dessas décadas sofreu, digamos assim, algumas fragilizações.   

A primeira para a qual eu queria chamar a atenção é uma certa visão que se consolidou na sociedade do SUS como muito importante para as pessoas pobres, para os mais pobres. Trata-se de um desvio, uma visão equivocada. Porque, na verdade, o SUS prescrito na Constituição reflete a visão da construção de um sistema universal para todos os brasileiros.   

A segunda, que também se difundiu de maneira muito forte na sociedade, é essa visão de que ter um plano de saúde faz parte do processo de ascensão social, e de que a medicina privada, portanto, terá um padrão de qualidade superior à da medicina pública – o que, aliás, não se sustenta em nenhum ponto de vista analítico. Temos hospitais, instituições, programas e políticas de excepcional qualidade no SUS e no setor privado. Temos problemas dramáticos de qualidade no SUS e no setor privado. A discussão está equivocada, porque, quando a pandemia começa e o impacto dela na sociedade se expressa dessa maneira tão pungente, real e concreta, uma série de setores da sociedade que, antes via o SUS um pouco assim à distância – como “uma coisa que não faz parte do meu cotidiano, do meu dia a dia, talvez tenha muito peso para os meus empregados, ou para as pessoas que trabalham na minha casa” – passou a avaliá-lo em uma dimensão distinta. Basta imaginar, como mera hipótese, o que seria dos praticamente 50 milhões de brasileiros que não têm nenhum tipo de proteção social estruturada, subempregados, que trabalham por conta própria, e os 15, 16 milhões de desempregados, portanto a grande maioria da população brasileira, sem o SUS?   

"TIVEMOS UMA FRAGMENTAÇÃO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA. O GOVERNO FEDERAL, NA VERDADE, SE TRANSFORMOU EM UM POLO DE RESISTÊNCIA ÀS MEDIDAS PRESCRITAS PELA CIÊNCIA E PELA SAÚDE PÚBLICA"

Felizmente, essa avaliação de senso comum da sociedade se expressou também na grande mídia. Nunca se falou tanto nos jornalões, nas TVs abertas e nos programas de TV fechada sobre o SUS, sobre suas dificuldades, suas qualidades, um reconhecimento do trabalho importantíssimo dos profissionais que ali labutam todos os dias. Atingiu inclusive setores com uma visão desenvolvimentista, progressista, mas que viam também o SUS um pouco distante. Registrou-se todo um movimento da área da ciência brasileira de aproximação com o SUS. Multiplicaram-se as experiências de articulação, integração e de reflexão conjuntas entre instituições e entidades do campo da saúde pública, da medicina, da ciência brasileiras no sentido de buscar orientar a população, esclarecer a sociedade, reivindicar, criticar o governo.   

Estou seguro, assim, de que, apesar das dificuldades estruturais que o SUS enfrenta, ganhamos espaço político e temos de saber como aproveitar isso para fortalecê-lo no futuro. Essa questão do SUS e do que eu chamo da construção de uma consciência política, de uma consciência coletiva, de uma consciência social do valor dos sistemas universais e do SUS, é uma questão central da nossa agenda nos próximos tempos.   

Isso vem junto com a questão da ciência. Em maio do ano passado, já ressaltávamos em debates que só conseguiríamos sair dessa situação quando tivéssemos uma ou mais vacinas que funcionassem. Mas ouvíamos: “vacina?, esquece. Vacina, só em 2021, 2022. É coisa para um ano e meio, dois anos”. Citava-se o caso anterior do período mais curto de desenvolvimento de uma vacina, a da caxumba, que levou quatro anos para chegar ao mercado. E a ciência nos colocou não uma, mas várias vacinas antes de um ano do início da pandemia.   

A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus; cinco dessas vacinas, que já estão no mercado, foram testadas na população brasileira, em que foram realizados ensaios clínicos. Nós sabemos que, para fazer ensaio clínico, você tem de ter uma estrutura de ciência e de hospitais de ensino e pesquisa; uma estrutura regulatória – nós temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, a ANVISA. E os brasileiros publicaram inúmeros artigos, e participaram de inúmeras iniciativas no campo da ciência extremamente importantes no enfrentamento dessa doença.   

Outra dimensão que tem muito a ver com ciência, embora não se limite a ela, na verdade a transcende, é a questão do desenvolvimento tecnológico que depende da ciência e que entrou de novo na agenda. Todos nos lembramos do que aconteceu em março do ano passado: não tínhamos testes, não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção individual, e a nação perplexa chegou à seguinte conclusão: a gente compra tudo da China. Ora, por que não fazemos aqui? Existiriam barreiras tecnológicas ou de conhecimento intransponíveis? De maneira alguma. Isso é reflexo de décadas de uma visão totalmente equivocada do que deva ser o processo de desenvolvimento brasileiro, o que se repetiu no início deste ano, quando se tentou justificar a falta de vacinas pela dependência da importação da China dos princípios ativos para produzi-las.   


"Temos hospitais, instituições, programas e
políticas de excepcional qualidade no SUS e no
setor privado. Temos problemas dramáticos de
qualidade no SUS e no setor privado"

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde. Quando eu estava no ministério, entre 2007 e 2010, implementamos, de maneira pioneira, durante o segundo mandato do presidente Lula, uma política voltada exatamente para essa prioridade: como internalizar e aumentar a capacidade brasileira de produzir aqui tecnologias que até então importávamos. Fizemos isso no campo das vacinas, de medicamentos para transplante, de medicamentos para distúrbios psíquicos, de medicamentos para doenças reumatológicas, de testes para diagnóstico. Chegamos a desenvolver cerca de 80 projetos de parcerias entre laboratórios de capital nacional, multinacionais e laboratórios públicos. Mas, a partir de 2016, tudo se interrompeu, e agora no governo Bolsonaro, simplesmente não temos a menor perspectiva de que esse projeto possa seguir adiante. Em resumo: SUS na agenda, ciência na agenda e a redução da vulnerabilidade tecnológica da saúde brasileira na agenda dos próximos anos.   

RPD: Para quem não é da área, é grande a influência das versões difundidas pela imprensa e redes sociais, essencialmente que estamos em uma situação catastrófica e que vamos bater todas as marcas negativas em relação a essa pandemia. É procedente essa visão? Como chegamos a esse quadro? Onde erramos? Onde o governo federal, os governos subnacionais, a sociedade civil, enfim, erraram? E o que fazer para superar isso no curto prazo, para, senão superar, pelo menos minimizar os estragos que se anunciam?  

JGT: Havia, no início do ano passado, uma expectativa nacional e internacional sobre o desempenho do Brasil no contexto da pandemia, que eu qualificaria de positiva. Baseava-se na existência do SUS, um sistema universal que ampliou muito o acesso da população aos serviços – claro, com todas as dificuldades que conhecemos. Incorporava, também, a percepção internacional, construída ao longo de muitas décadas, da liderança que o Brasil exercera em alguns foros multilaterais, na área da saúde global. A Organização Panamericana da Saúde foi dirigida ao longo de décadas por brasileiros. O primeiro diretor geral da Organização Mundial da Saúde foi brasileiro, o Marcolino Candau, que ficou lá mais de dez anos. O Brasil teve papel importantíssimo na aprovação da legislação de TRIPs, na OMC, que regula a proteção patentária em medicamentos e produtos de saúde. O Brasil foi líder na aprovação da Convenção-quadro para o controle do tabagismo, o primeiro tratado de saúde pública internacional. Ou seja, o Brasil era visto como país dotado das ferramentas e as condições necessárias para enfrentar a pandemia.  

Faltou nessa análise, porém, considerar um componente que terminaria por evidenciar a grande vulnerabilidade brasileira. É bem distinto mobilizar o sistema de saúde, mobilizar a ciência e ter um governo que enfrente uma situação como essa de maneira competente ouvindo a ciência e saúde públicas se você tem uma grande homogeneidade social – caso da Europa. Mas, em um país estruturalmente desigual, como o Brasil, a complexidade das ações requeridas é bem maior. Teríamos de ter tido algumas iniciativas, decisões, o que não ocorreu.   

"O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis"

Por exemplo: desde o início, uma política econômica a serviço da saúde e a serviço da defesa da vida. Contamos, na verdade, única e exclusivamente com o benefício emergencial de R$ 600, graças ao Congresso Nacional, e que foi interrompido em dezembro. Isso foi pouco. Houve muitas iniciativas da sociedade civil, organizações não governamentais, movimentos culturais, movimentos de mulheres, população negra e jovens, para tentar enfrentar de alguma maneira, minimizar o impacto dramático dessa doença e, inclusive, de viabilizar que esses estratos mais vulneráveis da população pudessem manter distanciamento e permanecer em casa. Mas foram claramente insuficientes. O setor privado também ensaiou um apoio, em situações localizadas, desestruturado, desorganizado.   

Além disso, deveríamos ter tido, também desde o começo da pandemia, como implementei quando dirigi o ministério da saúde em 2009 e 2010 ante o surto do H1N1, a liderança do governo federal para coordenar e elaborar um plano de ação, elaborado por um comitê permanente onde o governo federal, os estados e os municípios juntos com a ciência e a saúde pública, construíssem as estratégias. O objetivo seria mobilizar a sociedade, com base em um projeto de comunicação pesado, para orientar, informar, educar, segundo as prescrições da saúde pública e da ciência, vale dizer: evitar aglomerações, manter o distanciamento, uso universal de máscaras, higiene das mãos, e agora as vacinas.   

E o que tivemos? Tivemos uma fragmentação da federação brasileira. O governo federal, na verdade, se transformou em um polo de resistência às medidas prescritas pela ciência e pela saúde pública. O presidente liderou esse processo criminoso repetidas vezes, como o atestam dezenas de exemplos, fatos, declarações e comportamentos públicos.  

Somente em dezembro último, o presidente aceitou, a contragosto, a inclusão da vacina do Butantan no PNI e nunca cessou de prescrever falsos tratamentos, estimulando as pessoas a um comportamento irresponsável. Minimizou a gravidade da pandemia e apostou na curta duração de seus efeitos, para fortalecer sua oposição ao isolamento social e abrir espaço à difusão de fake news. Debilitou o comando as operações do governo no campo da saúde pública ao militarizar o ministério da Saúde, comprometendo sua capacidade técnica, sua respeitabilidade e credibilidade. Deixou o país um ano à deriva, sem ministro e sem ministério. Construiu, na prática, uma autoridade sanitária paralela informal. Quebrou uma das pernas centrais da nossa capacidade de enfrentamento, ao debilitar o pacto federativo, jogando a responsabilidade sobre os governadores e prefeitos. Não orientou nem cobrou uma política econômica que estivesse em total sintonia com a política de saúde.   

Esse comportamento do presidente não deve ser julgado de maneira isolada. Juntam-se, cúmplices, o ministro da saúde, o ministro da economia e o conjunto do governo como um todo, que devem também solidariamente ser responsabilizados pela tragédia que nos levou a mais de 330 mil óbitos, em começos de abril (País superou a marca de 350 mil mortes em 12/04/2021). É o epílogo sangrento, dramático, pungente de um ano de negação, de mentiras, de quebra da federação, de ataque à ciência, à saúde pública e a Organização Mundial da Saúde.   

RPD: Como vê o horizonte da vacinação no Brasil?  

JGT: Tivemos as primeiras vacinas chegando ao mercado internacional em dezembro do ano passado, e o Brasil tem dois dos maiores produtores de vacinas do mundo, resultado, inclusive, de décadas de investimento na Fundação Oswaldo Cruz e no Butantan. O Butantan por conta própria, e em uma luta incrível, insana, contra o presidente da República, fechou acordo com os chineses e desenvolveu sua vacina usando plataforma que o Butantan já domina há muito tempo, a mesma plataforma tecnológica da vacina da gripe que usamos todos os anos, a vacina da influenza. E a FIOCRUZ optou por algo mais ousado: fez um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford de uma plataforma tecnológica nova: é a primeira vacina no mundo que usa essa plataforma tecnológica, que usa o veículo adenovírus de chimpanzé, que coloca a proteína da espícula do vírus no nosso organismo, e, a partir daí, a gente desenvolve os anticorpos. Dispomos, assim, de duas grandes fábricas de vacinas, mas uma limitação: ainda dependemos da importação dos princípios ativos.   

"A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus"

Considerando esse contexto, o que deveríamos ter feito? Erramos onde não poderíamos ter errado, para além dos erros que já listei aqui, mas no campo das vacinas, especificamente. Sabedores de que tanto o Butantan como FIOCRUZ teriam dificuldades no início do ano de produzir em larga escala por essa dependência de insumos, e também porque o processo de transferência de tecnologia é complexo – é normal não se cumprirem prazos restritos do cronograma –, deveríamos ter feito três coisas que não fizemos:  

- Desde abril do ano passado, o PNI – considerado como um dos melhores do mundo, que vacinou, em 2010, 90 milhões de brasileiros contra o H1N1 em três meses – deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. Não só não fizemos isso, mas também rejeitamos a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses. Isso ocorreu no tempo em que o presidente atacava as vacinas o tempo todo.   

- O mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, constituído por um pool de produtores, um fundo financiado por doações e com recursos de países desenvolvidos, foi de início rechaçado pelo Brasil. Quando o governo aderiu, optou apenas pelo número mínimo de doses, que é de 10% da população. Receberemos, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. Só que teríamos direito, e não exercemos, de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   

- Tivéssemos fechado acordos de compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás e garantido um volume de doses que se somariam a ainda incipiente capacidade brasileira do Butantan e FIOCRUZ, neste momento praticamente 10% da população brasileira receberiam a primeira dose, isto é, de 19 a 20 milhões de pessoas. Tivéssemos vacinas a partir de janeiro, já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas. E o impacto disso na redução da circulação do vírus, das pessoas infectadas, internadas, mortas teria sido dramática. Por isso, afirmo: a sociedade brasileira, o povo brasileiro foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandeia.  

RPD: Diante disso tudo, da má gestão política, sanitária, diplomática e econômica, como responsabilizar a quem de direito e evitar que esses crimes fiquem impunes?  

JGT: Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República, pedido que se adiciona a mais de uma centena de outros ora hibernando na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, para não mencionar a representação de ex-ministros da saúde, ex-juristas, juristas advogados, apresentada ao Tribunal de Haia contra o presidente Jair Bolsonaro. O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis.   

Mas o governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem. Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer. Não conseguimos até o momento transformar esse conjunto de denúncias inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União e ao Supremo, em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si. Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Artur Lira. O Ministério Público tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas não se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação.  

"Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde"

Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí. E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação; a fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população.  

RPD: É muito preocupante quando se fala da perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global. Mas também é possível dizer que o sistema global também está muito frágil, mesmo com as declarações quase diárias e emocionais, dramáticas, muitas vezes, do diretor geral da OMS. Falta uma coordenação global. Tudo indica que esta não será a última pandemia. Outras virão, no rastro de novos desastres sanitários e sociais, no rastro da questão da migração e do desrespeito à questão ambiental. Tudo isso prenuncia novas pandemias. Para que não sejam tão devastadores como o atual, será necessária uma coordenação sob uma liderança global. O que pensa a esse respeito?   

JPT: Essa é uma questão fundamental para nosso futuro. Começo com o que Brasil conseguiu fazer no exterior no cenário da saúde global. Estive há dois anos em Maputo, em Moçambique, e visitei um projeto desenvolvido pela FIOCRUZ, no âmbito de ações semelhantes lançadas para os países portugueses africanos lusófonos. Era o Instituto de Saúde Pública local, um prédio imponente, construído pelos Estados Unidos, cheio de equipamentos de última geração, fornecidos pela China, e operado por mestres, doutores e especialistas, treinados no Brasil. A importância do projeto refletia a diferença da abordagem da ajuda prestada pelos Estados Unidos e pelo Brasil na capacitação do sistema de saúde. Enquanto os Estados Unidos priorizaram doações para a montagem de programas verticais de combate a doenças escolhidas, como malária, chagas ou tuberculose, o Brasil privilegiava um olhar da cooperação em saúde estruturante, vale dizer, ajudando os países a organizar seu sistema de saúde, suas instituições permanentes de saúde.  

Isso foi alcançado pela associação entre o Ministério da Saúde, pelo menos de 2000 à gestão do ex-ministro Serra até 2016, e do Itamarati, por intermédio da ABC – Agência Brasileira de Cooperação. E nós perdemos tudo isso quando o Michel Temer entra, e principalmente agora com o Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores virou motivo de chacota nos corredores do Itamarati e acabou saindo, não sem antes contribuir para destruir a projeção visão internacional do Brasil, também no campo da saúde. Teríamos podido ajudar muito mais os países em desenvolvimento.  

Não devemos esquecer, por outro lado, que, a reboque da visão de Trump, Bolsonaro atacou frontalmente a OMS justo quando o mundo precisava de uma agência forte, nos planos técnico, financeiro e político. Falando em coordenação internacional, a OMS é absolutamente fundamental, haja vista a realidade nua e crua das vacinas. Atualmente, a questão da distribuição e consumo, a disponibilização de vacinas em termos globais, repete o mesmo padrão de desigualdade das outras tecnologias da saúde ao longo de décadas. Mais de 60% de todas as doses de vacinas destinam-se a atender cerca de 15 países, os países ricos.   

Tudo isso clama por uma OMS fortalecida. Fortalecida, inclusive para começar a discutir outros temas: a questão de patentes. A proteção patentária está na OMC, mas deveria estar na agenda de discussão e trabalho da OMS. Não há dúvida de que teremos situações de vulnerabilidade sanitária e outras pandemias no futuro. Impõe-se, portanto, uma OMS cada vez mais forte. E que o Brasil reocupe o papel tão importante que ocupou ao longo das últimas décadas, infelizmente, conspurcado, apagado pelo governo Bolsonaro.  

Saiba mais:

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*Caetano Araújo é consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.

  • ** Entrtevista realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD ||Luiz Santini e José Gomes Temporão: A falsa guerra contra o vírus da Covid

O negacionismo científico, o reducionismo preconceituoso e ideológico nas relações diplomáticas internacionais e a obsessão eleitoral do presidente Bolsonaro politizaram por completo o processo de combate ao vírus e produção de vacinas no Brasil

Estamos em meados de janeiro de 2021, e o número de vítimas da Covid-19 já ultrapassou a marca dos 210 mil óbitos. Para falar com propriedade sobre a pandemia do coronavírus no Brasil, é preciso datar, pois, a cada dia, surgem novidades, muitas delas ruins.

Mas, felizmente, já temos duas vacinas aprovadas pela Anvisa para uso na população: a da Oxford/Astrazeneca e a CoronaVac. Ambas serão produzidas no Brasil por duas instituições científicas centenárias e respeitadas internacionalmente: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan.

Nesse contexto, quais são os principais desafios que se apresentam?

O primeiro é dispor da matéria-prima na quantidade necessária para a produção de vacinas e o atendimento das necessidades da população, isso facilitará a redução de casos graves, a internação hospitalar, a mortalidade e, se possível, a transmissibilidade do vírus.

Aqui agigantam-se os riscos. O negacionismo científico, o reducionismo preconceituoso e ideológico nas relações diplomáticas internacionais e a obsessão eleitoral do Presidente Bolsonaro politizaram de tal modo o processo, que travaram as iniciativas de negociação, o que dificulta a aquisição dos insumos necessários à produção das vacinas.

A competição internacional por esses insumos farmacêuticos, em um mercado global em que são pouquíssimos os fornecedores, contribui ainda mais para aumentar a desigualdade no acesso a essa matéria-prima, relegando os países do hemisfério sul ao final da fila na distribuição dos recursos globais, como está sendo verificado. O mito da cooperação internacional está sendo desmistificado. Ocorre, na prática, uma competição desenfreada, com imenso volume de recursos públicos e privados aplicados no desenvolvimento dessas tecnologias pela indústria farmacêutica, seguindo o mesmo padrão desigual de comercialização, acesso e estabelecimento de preços, de outros medicamentos.

Apesar de o Brasil dispor de capacidade produtiva importante nessas duas instituições, ainda não dispomos de autossuficiência tecnológica que nos permita prescindir de buscar esses princípios ativos fora do Brasil. Temos duas vacinas testadas no país e aprovadas pela Anvisa, para uso emergencial, mas não dispomos ainda do número necessário de doses para poder desencadear campanha de vacinação em termos nacionais. Além disso, o plano nacional apresentado pelo Ministério da Saúde não detalha de modo suficiente os critérios para estabelecer a definição dos grupos prioritários a serem vacinados ao longo do tempo. Não se sabe até que ponto houve participação ativa das sociedades médicas e de especialistas em sua formulação, o que, ao longo das últimas décadas, sempre foi uma das marcas do PNI. Outro aspecto, já levantado pelo sanitarista Gonzalo Vecina, é que nosso plano foi copiado de países europeus e dos EUA, não levando em conta as características de desigualdade presentes em nossa sociedade, o que exigiria uma revisão dos grupos prioritários a serem vacinados.

Por outro lado, o Programa Nacional de Imunização (PNI) é mundialmente reconhecido como um dos melhores do mundo, e o SUS tem larga experiência em campanhas de vacinação em massa. Em 2010, por exemplo, em 3 meses, foram vacinadas 80 milhões de pessoas contra o H1N1. No entanto, neste momento, além da fragilidade técnica e gerencial da atual equipe instalada no Ministério da Saúde, o que coloca dúvidas sobre sua capacidade de coordenar e implementar uma campanha de vacinação, o próprio Ministério da Saúde se transformou na principal agência de disseminação de informações falsas e anticientíficas, defendendo tratamentos sem indicação médica, não reconhecidos, portanto, pela comunidade científica.

Assim, se o primeiro desafio era dispor da vacina, o segundo, é conseguir grande mobilização da sociedade para aderir a esse esforço nacional em defesa da vida. O que parece estar também em risco.

O SUS tem se mostrado resiliente, apesar da desastrosa estratégia conduzida pelo governo federal, mas é impossível escapar de desastres humanitários como o que está ocorrendo em Manaus, e que, infelizmente, pode se repetir em outros lugares, quando um processo de tamanha complexidade é conduzido de forma tão arrogante, primária, preconceituosa e incompetente.

Além de todas essas dificuldades conjunturais, há um grande equívoco do ponto de vista conceitual que impacta a estratégia de controle da doença a médio e longo prazos. Trata-se da evolução da história natural da doença no indivíduo e a evolução das epidemias na comunidade e na população. A retórica da guerra contra a Covid-19 talvez seja a mais danosa contribuição, ainda que involuntária, dada pelo discurso corrente, às atitudes negacionistas ou de desprezo pelos efeitos da pandemia para a saúde pública, para a sociedade e para as pessoas.

A metáfora da guerra, embora frequentemente utilizada pela medicina, oferece uma explicação simplista, de fácil compreensão, mas equivocada, pois não dá conta da complexidade envolvida no curso do processo saúde-doença.

Por definição, uma guerra busca a derrota do inimigo e, para tal, irá mobilizar grande quantidade de recursos que, em geral, levará a uma brutal desorganização econômica e social. E, pior do que tudo, pressupõe certo grau de efeitos colaterais aceitáveis em perda de vidas humanas.

A mutação é uma atividade constante do vírus na natureza. E o que leva esse vírus a alcançar toda a humanidade, sem proteção imunológica que barre sua disseminação, são mudanças não só em sua biologia, mas também nas condições ambientais propícias, o modo de vida das populações humanas e as condições econômicas e sociais. Ou seja, determinantes socioeconômicos e ambientais de saúde importam tanto quanto a biologia do vírus na disseminação de uma pandemia.

É claro que uma vez desencadeada uma pandemia, a sociedade deverá ser capaz de responder com a produção de vacinas, medicamentos, organização, infraestrutura e tudo o que estiver ao seu alcance para se desenvolver no plano de novos conhecimentos e tecnologias.

Mas também os governos e a sociedade devem responder com medidas abrangentes de contenção da disseminação da doença. No Brasil, a resistência a essas medidas de contenção, como o distanciamento social e a proteção pelo uso de máscaras, por exemplo, apoia-se na ideia do dano colateral aceitável, baseado numa interpretação equivocada na imunidade de rebanho.

Apesar da inédita alocação de recursos para a produção de vacinas que controlem a doença, continuaremos a contabilizar muitos casos, mortes e consequências ainda desconhecidas, se a epidemia não for controlada. E nada disso evita o risco de uma próxima pandemia, que será fruto desse mesmo desequilíbrio, se nada for feito.
A pandemia, por isso mesmo, é uma oportunidade de se perceber a desigualdade, inclusive no alcance das medidas propostas para prevenir, proteger e tratar das pessoas. As medidas de contenção, por exemplo, como a recomendação de permanência em casa, garantia de hábitos de higiene e o uso universal de máscaras, são incompatíveis com a situação de moradia e saneamento de uma imensa parte da população do Brasil, e de várias partes do mundo.

A pandemia desnudou de forma trágica as contradições do capitalismo contemporâneo, e as fragilidades dos sistemas de saúde em todo o mundo. A desigualdade na distribuição das vacinas, medicamentos e insumos tende a continuar. Já é hora de compreendermos que, sem um novo modelo de desenvolvimento centrado no fortalecimento da democracia, na busca da equidade e no fortalecimento dos sistemas de proteção social, não teremos futuro.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.


O Globo: 'O Brasil é dos únicos países que conseguem em um único dia vacinar 10 milhões', diz Temporão

Sanitarista José Gomes Temporão destaca papel do SUS para impedir uma situação ainda mais grave e diz que sociedade deve lutar por campanha de vacinação abrangente

Paula Ferreira, O Globo

BRASÍLIA — A esperança para se responder com eficiência à pandemia vem do Sistema Único de Saúde (SUS) e da ciência brasileira, impulsionada por instituições centenárias como a Fiocruz e o Instituto Butantan. A opinião é do ex-ministro da Saúde do governo Lula, o sanitarista José Gomes Temporão. À frente da pasta durante a pandemia de H1N1, em 2009, ele frisa que a saúde pública brasileira vem evitando uma catástrofe ainda maior no país.

A saída da crise, ele diz, depende de o governo federal "deixar os servidores da Saúde trabalharem". Temporão critica a falta de conhecimento do ministro Eduardo Pazuello, e afirma que, diante da falta de comando no Ministério da Saúde, criou-se uma "autoridade sanitária informal", constituída por especialistas e gestores de outras esferas, para dar conta da emergência sanitária.

— Se o governo federal finalmente chamar os sanitaristas, epidemiólogos, os técnicos e cientistas do Programa Nacional de Imunização (PNI) e entregar a eles a condução e a coordenação do esforço de vacinação, nós teremos sucesso. É um momento crítico, porque temos até agora praticamente 20 milhões de pessoas vacinadas no mundo e, no Brasil nenhuma.

O país tem 200 mil mortos e especialistas criticam as estratégias do Ministério da Saúde. O que tem evitado um cenário ainda pior?

A saúde pública do Brasil é muito respeitada, inclusive internacionalmente. Havia expectativa de que enfrentássemos a situação poupando o maior número de vidas possível. Mas, infelizmente, uma série de obstáculos e opções nos levaram a essa situação dramática de 200 mil mortes. O SUS, de um lado, tem uma fragilidade por conta dos últimos dez anos, de redução de políticas, estratégias e financiamento. Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 pelo Congresso, em 2016, houve uma redução real dos gastos federais. A pandemia, então, encontra o sistema numa situação de fragilidade, de desfinanciamento. Mas, por outro lado, ele se organizou, ao longo de 32 anos, em base habitacional, aumentou muito a cobertura. O SUS enfrenta esta crise sanitária entre uma fragilização mais conjuntural e uma fortaleza mais estrutural. Os 200 mil óbitos mostram que fomos derrotados por esse vírus, mas, sem o SUS, seria uma situação de barbárie social, o caos total. Isso é fato.

Por quê?

O SUS mostrou muita resiliência. A estratégia brasileira está centrada, de maneira equivocada, na organização do sistema hospitalar de atendimento. E esta é uma doença na qual o monitoramento, a testagem ampla, a detecção das pessoas sintomáticas e o seu isolamento reduzem a probabilidade de que se espalhe e haja muitas internações. Mas, desde o início não tivemos liderança. É a situação mais grave por que passa o Brasil em toda a sua História e não se pode enfrentá-la sem coordenação do governo federal e sem contar com a ciência e a saúde pública. O presidente rejeitou a ciência, ridicularizou as medidas de prevenção, criou uma falsa dicotomia entre saúde e economia. Não houve plano de comunicação para a sociedade. A crise foi enfrentada apesar do governo.

Como se deu o enfrentamento "apesar do governo"?

Com governadores, prefeitos, sanitaristas, infectologistas, imunologistas, instituições da área de saúde pública, da sociedade civil, parlamentares construindo o que eu chamaria de uma autoridade sanitária nacional informal. E o epílogo patético e constrangedor é a maneira trágica como o governo vem lidando com a vacinação. É nossa última oportunidade de tentar consertar todos os equívocos cometidos anteriormente, organizar uma campanha de vacinação nacional, liderada pelo PNI, visando atingir no prazo mais curto possível uma alta cobertura vacinal. E não temos plano, projeto, liderança, vacinas, seringas, nada.

Que medidas o senhor destaca dessa “autoridade sanitária informal”?

O governo federal abriu mão do único papel que tem, e que é extremamente importante, de coordenação, planejamento estratégico, suporte, assessoria, apoio a estados e municípios, diálogo, transparência e mobilização da a sociedade. Os governadores e prefeitos tiveram que se virar, adquirir respiradores, testar, organizar equipes, mobilizar profissionais de saúde. E não só sem apoio do governo federal como contra a postura anticientífica, desmobilizadora, de negação da realidade. Essa responsabilidade é intransferível. Eu, com 70 anos de idade e 45 de saúde pública, espero ver os verdadeiros culpados pagarem pelo que fizeram com a população.

E é preciso acrescentar a essa autoridade sanitária informal as instituições de ciência e tecnologia que, mesmo com expectativa de redução de mais 70% do orçamento, fazem com que o Brasil lidere os estudos clínicos de duas das mais importantes vacinas em termos globais, uma pelo Instituto Butantan e outra pela Fiocruz. São instituições centenárias, que conseguiram fazer isso porque têm autonomia. Só poderemos ter campanha de vacinação nos próximos meses por causa delas.

É possível confiar na experiência do PNI para imunizar os brasileiros?

Se o governo deixar de atrapalhar... O ministro da Saúde não entende nada, não é respeitado nessa área, foi posto no ministério como um interventor. Se o governo federal finalmente decidir chamar os sanitaristas, epidemiólogos, os técnicos e cientistas do PNI e entregar a eles a condução e a coordenação do esforço de vacinação, nós teremos sucesso. É um momento crítico, porque temos até agora praticamente 20 milhões de pessoas vacinadas no mundo e, no Brasil, nenhuma.

A omissão do governo federal pode levar estados a organiza suas campanhas de vacinação. Isso quebra uma das pernas do PNI, que é a centralidade. É preciso uma estratégia para vacinar toda a população brasileira ao mesmo tempo, é isso que reduzirá drasticamente a circulação do vírus. Em 2010 vacinamos 80 milhões de pessoas contra a H1N1 em três meses; em 2009, 40 milhões de adultos jovens contra rubéola e a síndrome da rubéola congênita. O Brasil é um dos únicos países do mundo que consegue, em um único dia, vacinar 10 milhões de crianças contra a poliomelite.

Como fazer a campanha?

É preciso uma estratégia de mobilização envolvendo empresariado, setor público e privado, igrejas, ONGs, partidos. Tudo vai depender da velocidade com que a gente faça a campanha de vacinação. Se conseguirmos atingir pelo menos a metade da população até o meio do ano, e é possível, será um sucesso. Os sinais de preocupação vêm da paralisia do governo federal, que está nos levando a um beco sem saída.