José Eduardo Faria

Presidenciáveis: Debate, revigoramento da democracia e o futuro do país

Discussão de temas fundamentais poderia ajudar a revigorar a democracia brasileira

José Eduardo Faria / Blog Horizontes Democráticos

Não fosse o candidato que disputará a reeleição, em 2022, conhecido por sua ignorância, pela compulsão à mentira, pelo desprezo ao diálogo construtivo e pela obsessão em desqualificar adversários, os debates entre os candidatos à presidência da República poderiam recolocar na ordem do dia alguns temas esquecidos, como, por exemplo, os relativos à capacidade organizadora, indutora e administrativa do Estado. Como esses temas são fundamentais para o futuro do País, sua discussão poderia ajudar a revigorar a democracia após a deterioração e a polarização do debate público que marcaram a vida política após o pleito de 2018.

Um dos temas mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.

Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.  

Para reverter esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa híper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele que for eleito em 2022.  

Outro tema não menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal.

Planejamento é atividade essencial na esfera pública

Nas duas ou três últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos meios e instrumentos públicos.

Por causa desse desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo, enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.

Esses governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são intrínsecas do poder público – e, portanto, não intransferíveis, das funções governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a perspectiva particular.

Associado aos demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação propiciaram as decisões em tempo real, tomadas on-line, e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos Estados.

O domínio dos mercados financeiros é global

A história recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da economia, a ponto de influenciar e – até de capturar – o braço monetário dos Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de rentabilidade e atratividade dos investimentos.

Por operar basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade, não sendo mais resultantes – ainda que indiretamente – de escolhas coletivas por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente comprometida.

Este é um dos dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia, propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de educação e saúde – condições necessárias, ainda que não suficientes, para propiciar inclusão socioeconômica.

Um último tema, entre outros não menos importante, diz respeito à formulação de uma política externa em um mundo de incertezas globais – algo que foi desprezado por um governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais. Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia, vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em desenvolvimento,  enquanto países tecnologicamente menos avançados e com baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.

A produção chinesa impacta o mundo

A excessiva dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial. Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram sua vulnerabilidade quando a Covid atingiu a China e o governo destinou sua produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações, apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses nacionais.  

Ao lado de questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar, comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve, igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos, que podem abrir caminho para tensões internacionais.       

Esses são alguns temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com seu círculo de assessores primatas, civis e militares, esse debate poderá não ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente, correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da Alegria.

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 24 de outubro de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jose-eduardo-faria-debates-democracia/)

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-debate-entre-presidenciaveis-o-revigoramento-da-democracia-e-o-futuro-do-pais/


A crise, as instituições e os "diálogos institucionais"

Jair Bolsonaro afronta reiteradamente as instituições do Estado democrático de Direito, disseminando insegurança jurídica

José Eduardo Faria / Horizontes Democráticos / O Estado de S. Paulo

Autocrata, ignaro e incapaz de agir politicamente dentro das regras democráticas estabelecidas pela Constituição, como está sendo evidenciado neste feriado de 7 de setembro, desde que ascendeu ao poder o presidente Jair Bolsonaro afronta reiteradamente as instituições do Estado democrático de Direito, disseminando insegurança jurídica, levando a economia a se deteriorar e deflagrando uma crise de governabilidade permanente.

Em seu primeiro ano de gestão, ele afirmou que devia lealdade apenas ao “povo brasileiro”, desprezando a mediação parlamentar e, por conse’quência, o perfil liberal da democracia brasileira. Já no segundo ano, ao participar de agressões dominicais ao Supremo Tribunal Federal, defendendo o uso da violência contra alguns de seus ministros, passou a testar os limites da Constituição. E agora, em seu terceiro ano de mandato, quando praticamente todas as iniciativas de seu governo tiveram sua constitucionalidade questionada na corte, o presidente da República se apropriou dos festejos da Independência para promover uma manifestação por ele classificada como um “ultimato” a dois ministros. Ele se esquece — ou melhor, não aceita — que a Constituição promulgada após a redemocratização do País tenha conferido ao STF o poder de rever a constitucionalidade dos atos dos demais poderes.

Diante dessa escalada, dois fatos passaram a ocupar as manchetes dos jornais nos últimos tempos. De um lado, lideranças políticas, governadores e entidades empresariais começaram a propor sucessivos diálogos entre os presidentes dos três Poderes, e até um pacto interinstitucional, com o objetivo de preservar a ordem jurídica e a democracia. De outro lado, em decorrência das diatribes autoritárias presidenciais e de projetos de lei e propostas de emenda constitucional sem mínima consistência jurídica, bem como da aprovação pelo Legislativo de várias leis economicamente insensatas, a vida política do país tornou-se cada vez mais dependente das posições da cúpula do Poder Judiciário.

Esses dois fatos dão a medida da profunda crise institucional que o País atravessa. No primeiro caso, como a judicialização da vida política ocorreu somente porque o Executivo não soube e/ou não quis formar uma coalização majoritária para governar e porque as lideranças do Legislativo necessitaram de uma arbitragem externa por não conseguir resolver seus impasses internos, o que uma corte suprema pode oferecer nesses diálogos a não ser fazer cumprir o que a Constituição determina?

Mas não é só. O STF é um órgão colegiado e seu presidente tem uma ação basicamente administrativa. Nos julgamentos, pode sugerir ou orientar seus pares nos julgamentos. Contudo, não pode não impor sua vontade. Desse modo, como firmar um pacto com o chefe do Executivo, comprometendo-se em nome da corte e se responsabilizando por seus resultados? Ao agir assim, não estaria entregando a outros Poderes a última palavra quanto a certas matérias decididas por uma corte suprema? Em suma, de que modo o STF pode abrir mão de sua atribuição funcional de julgar como inconstitucional uma iniciativa do inquilino do Palácio do Planalto só porque ela foi politicamente negociada em troca de uma promessa do presidente da República de que passará a respeitar o Judiciário? Além de paradoxal, esse cenário seria a negação da democracia, sob a justificativa de preservá-la.

Já o segundo fato aponta uma outra importante faceta da crise institucional. Ainda que Bolsonaro e seu entorno militar insistam em afirmar que a Constituição não os deixa governar, eles se esquecem de que, se há de uma trava constitucional limitando a discricionaridade dos governantes na gestão pública, ela é uma decorrência da ditadura militar que até hoje justificam, defendem e canonizam. Ainda que Bolsonaro e seu entorno militar insinuem que a Constituição de 1988 não os deixa governar, eles se esquecem de que, se há uma trava constitucional, ela se justifica historicamente, ainda que de maneira indireta, como proteção contra práticas tornadas rotineiras na ditadura militar que até hoje eles justificam, defendem e canonizam.

Os abusos e absurdos cometidos pelos militares entre março de 1964 e 14 de março de 1985 foram tantos que não restou aos constituintes de 1988 outra saída a não ser incluir no texto constitucional – e assegurar sua preservação por meio da figura jurídica das cláusulas pétreas, em alguns casos — uma série de dispositivos não só no campo das liberdades fundamentais e das garantias públicas, mas, igualmente, em matérias econômicas e sociais. A ordem constitucional daí resultante foi de caráter aspiracional, não só no sentido de assegurar direitos básicos, mas, também, de caminhar rumo a uma sociedade menos desigual e iníqua e mais justa e igualitária.

Resultante de uma circunstância histórica, essa ordem constitucional foi concebida de modo deliberadamente abrangente, transferindo questões do campo da política para o âmbito do direito positivo. Foi uma estratégia pensada para tentar impedir que, nas eleições futuras, as novas configurações do Legislativo revogassem esses direitos e essas orientações programáticas.

Ato de promulgação da Constituição Federal de 1988. Foto: Reprodução

Dessa maneira, conforme lembra o historiador J. Reinaldo de Lima Lopes, como nem mesmo as propostas de emendas constitucionais poderiam reduzi-los, a saída que restou aos governos das chamada Nova República foi recorrer à judicialização e à hermenêutica jurídica. Mais precisamente, à tentativa de fazer com que o STF, devidamente demandado por ações de controle de constitucionalidade, interpretasse os dispositivos da Carta conforme as respectivas agendas de cada governo. Isso ocorreu em todas as gestões presidenciais após a redemocratização, desde a primeira eleição de Fernando Collor pelo voto direto, em 1989, até a de Bolsonaro, em 2018, o que levou as ações de constitucionalidade a judiciais a se multiplicarem no STF. Só nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, por exemplo, foram propostas perante o STF mais de 4 mil Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Na mesma corte, o número de novos processos por exercício passou de 18,5 mil em 1990, para 160,4 mil em 2002, segundo as estatísticas do Conselho Nacional de Justiça.

Foi a partir daí que surgiu um conceito equivocado, o de ativismo judicial, utilizado por quem tinha a expectativa de que os ministros da corte alterassem o alcance dos direitos e das orientações programáticas da Constituição por vias hermenêuticas. Também foi a partir daí que começaram as pressões contra os magistrados “ativistas” — o que se exacerbou quando o atual governo autocrata, assessorado por advogados públicos medíocres e por juristas oportunistas, passou a afrontar o Supremo e a convocar manifestações de protesto sob a justificativa de dar “um ultimato” a dois de seus onze ministros.

Com isso, o círculo se fecha. Caso ceda às pressões, aceitando as propostas de um diálogo entre os três Poderes e de um pacto interinstitucional, ou, então, curvando-se a manifestações populares organizadas com explícito viés golpista, os ministros do STF perderão sua independência, que está na essência de sua razão de existir. Por consequência, teriam sua credibilidade e legitimidade comprometidas, na medida em que estariam negando a Constituição que juraram cumprir. Resistir às diferentes estratégias antidemocráticas, é claro, tem um custo. Mas ele nunca será mais alto do que o preço a ser pago por aquele que, entre os onze ministros da corte, acabar com sua imagem enxovalhada pela subserviência, deixando-se dobrar à ofensiva antidemocrática bolsonarista.

Fonte: Estado da Arte, 07 de setembro de 2021 / Blogo Horizontes Democráticos
https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-07-setembro-dialogos-stf/
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-crise-as-instituicoes-e-os-dialogos-institucionais/


José Eduardo Faria: A “sinalização do povo”

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.

*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).


José Eduardo Faria: A "sinalização do povo"

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Bolsonaro em manifestação de cunho golpista em Brasília. Foto: PR

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Bolsonaro fala a apoiadores na saída do Palácio. Foto: PR

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Carl Schmitt, à direita, na Paris ocupada, 1941. Foto: Reprodução

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.


José Eduardo Faria: Qual o rumo da democracia brasileira

Entre os diferentes modos de compreender o que é a democracia, em termos funcionais, destaca-se o que a encara como um regime de dispersão e neutralização de confrontos que podem colocar em risco as estruturas sociais. Nessa perspectiva, a democracia é vista como um entrechoque entre interpretações e aspirações, entre alternativas e opções, percepções e convicções, que se desenvolve em espaços públicos sujeitos a extravasamento de paixões, aspirações, reivindicações, promessas, dissimulações, maniqueísmos, agressões morais e mentiras.

Para neutralizar os riscos de corrosão do pacto social daí decorrentes e viabilizar a construção de decisões coletivas com base em diálogos construtivos, evitando o retrocesso do Estado civil para o estado da natureza, a democracia desenvolveu um sistema de freios e contrapesos — ou seja, regras e procedimentos, como o voto universal, eleições livres e o princípio da maioria, que canalizam reivindicações e desarmam insatisfações, ao mesmo tempo em que permitem construção de acordos coletivos e de deliberações públicas.

Se em vários momentos na segunda metade do século XX a democracia foi marcada por embates ideológicos profundos e acirrados, ainda que por vezes sem que os líderes políticos e partidários se desqualificassem reciprocamente no plano moral, nas duas primeiras décadas do século XXI isso mudou. Em decorrência dos avanços das tecnologias de comunicação e de informação, os partidos se fragmentaram, as linhas de demarcação que separam responsabilidades e delimitam as diferentes zonas de poder se tornam mais porosas e novos espaços políticos surgiram, intercruzando-se e se justapondo, enfraquecendo com isso a mediação parlamentar.  No mesmo sentido, a imprensa tradicional, as novas mídias e os antigos e novos espaços políticos justapostos foram sendo progressivamente envolvidos por atitudes cada vez mais polarizadas e por retóricas cada vez mais agressivas de políticos cuja identidade é forjada mais pelo que negam e agridem do que pelas ideias que defendem. Em vez de uma convivência democrática entre adversários, ao destilar o ódio e recorrer a agressões morais e à mentira sistemática uma corrente entre os novos atores converteu a política não em disputa ou competição, mas numa guerra, em cuja dinâmica quem não é amigo é inimigo e como tal tem de ser liquidado.

Foi o que se viu, por exemplo, nas atitudes do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán logo após sua reeleição, em 2014, descrevendo o futuro de seu país na perspectiva de um Estado autocrático, que não rejeitaria os valores da democracia liberal, mas não os adotaria como elemento estruturante da organização das instituições húngaras. Foi o que também se viu no final do governo Trump, com o triste espetáculo da invasão do Capitólio, em janeiro.

Também foi o que se viu entre nós, com a escolha de ministros civis e militares medíocres, mas que se ajustam à maneira de agir, às opiniões xenofóbicas e racistas e aos objetivos ditatoriais de Bolsonaro. É, igualmente, o que se tem visto com as sucessivas afrontas promovidas por ele e sua falange autocrática aos Poderes constituídos, com a construção de inimigos fantasiosos — como um Paulo Freire ou a TV Globo, por exemplo — para que possam radicalizar o debate político e com o progressivo aparelhamento dos mecanismos constitucionais de controle do Executivo, levando-os a fazer vistas grossas para os crimes de responsabilidade e os crimes comuns praticados pelo inquilino do Planalto. É o que se tem visto, ainda, com a militarização das várias áreas de políticas públicas e as facilidades legais para o crescente armamento do que o presidente chama de “cidadãos de bem”, mas que na prática nada mais são do que suas milícias. Tudo isso com o apoio de parlamentares abjetos oriundos da área da segurança pública que, lembrando a “dialética da malandragem” — termo cunhado por Antônio Cândido em ensaio clássico sobre Memórias de um Sargento de Milícia — não conseguem diferenciar as fronteiras entre a moralidade e a imoralidade.

Em contextos como esses, o que esperar da democracia? A corrosão democrática tende a se acelerar, fundada em um discurso do ódio de gente incapaz de saber que, sem coexistência, divergências e competição não há vida política nem uma sociedade aberta? Ou as instituições democráticas resistirão? Apesar das sucessivas tensões institucionais causadas pela estratégia bolsonarista de ir testando o grau de resiliência das instituições e das liberdades públicas, talvez seja possível, com a devida prudência, apontar dois cenários possíveis.

O primeiro cenário envolve esse risco de conversão da democracia liberal em uma democracia iliberal — conceito desenvolvido por Fareed Zakaria em artigo publicado na Foreign Affairs, no ano de 1997. Os problemas por ele suscitados foram aprofundados mais recentemente por Adam Przeworski, em um importante livro sobre as crises democracia, editado em 2019. Também chamada de “democracia de baixa intensidade” ou de “autoritarismo furtivo” e entendida como processo de “desconsolidação da democracia liberal”, a democracia iliberal é um sistema de governo em que, os cidadãos votam, mas suas garantias vão sendo progressivamente esvaziadas e eles não exercem controle sobre as atividades daqueles que detêm o poder efetivo.

A democracia iliberal encontra as condições para crescer quando a economia passa por períodos de estagnação, a circulação de riquezas diminui, as receitas fiscais caem e a desigualdade aumenta. Programas sociais não atingem toda população desvalida e sem representação. Políticas públicas são canceladas em nome da austeridade fiscal e a situação de incerteza e insegurança sociais daí decorrentes abre caminho, pelo voto, para o surgimento de concepções regressivas de ordem pública e para a degradação do debate político. A progressiva ascensão de um populismo nacionalista e autoritário desenfreado menospreza a pluralidade inerente a uma sociedade democrática, desqualifica o diálogo como meio de resolução de divergências e mobiliza a população contra inimigos reais ou inventados.

Desse modo, quando votam em candidatos populistas, nacionalistas e autoritários, o eleitorado acaba, paradoxalmente, restringindo seu direito de determinar o rumo de seu país, ao mesmo tempo em que endossa propostas de resolução pela força bruta, em detrimento da segurança do direito. A democracia iliberal é, assim, um regime no qual regras e procedimentos democráticos são utilizados por grupos autoritários com o objetivo de reduzir as mediações institucionais, minar garantias fundamentais, inviabilizar juridicamente eventuais resistências e de alterar as regras democráticas com base nas quais seus candidatos se elegeram. Se de um lado a democracia iliberal recorre a instrumentos do regime democrático em busca de uma pretensa tintura de legitimidade, de outro não esconde a propensão por uma concepção de poder fundada em técnicas ardilosas de transgressão da ordem constitucional.

Em linha oposta, o segundo cenário parte das premissas de que a “desconsolidação” da democracia seria mais mito do que fato e de que a democracia liberal — uma construção política que experimenta avanços e retrocessos que variam nos graus de representatividade, liberdade e possibilidade de alternância no poder – é mais estável do que parece com relação àqueles que propagam o ódio. Aqui, a referência intelectual é o filósofo basco Daniel Innerarity, que tem discutido se a fragilidade da democracia é um fato ou apenas um mito. Doutorado na Alemanha, professor do Instituto Universitário Europeu, em Florença, e diretor do Instituto de Governança Democrática, na Espanha, ele é autor de importantes ensaios e livros sobre democracia na perspectiva da teoria dos sistemas.  “Vivemos numa época em que há muito ódio, mas pouca violência. Convém não confundir as duas coisas. Este grau de hostilidade intensa do qual padecemos hoje em nossas democracias nada tem a ver com a violência armada organizada. O ódio não é a antessala da violência, mas algo que a substitui. Não nos permitimos odiar tanto porque sabemos que — pela solidez de nossas instituições, pelo Estado de Direito ou pela ameaça ao castigo da lei — é muito improvável que esse desprezo mútuo desemboque em violência”, diz ele.

Tomando por base a democracia americana e a europeia, Innerarity afirma que um regime democrático não cai necessariamente por meio de um golpe do Estado e que eleições acirradas, agressões verbais, paralisia decisória e agressividade retórica fazem parte do jogo político. A seu ver, o que de fato vem desarranjando a democracia são formas mais sutis de degradação, como descontentamento popular, negativismo dos eleitores, oportunismo dos políticos profissionais e deslocamento dos espaços tradicionais de decisão para espaços novos — muitos deles transterritroriais – não controlados democraticamente. Por isso, personagens que ameaçam a vida democrática — como um Trump ou um Bolsonaro, por ele não nominados expressamente — são mais oportunistas do que propriamente golpistas. Se por um lado recorrem à retórica violenta para atrair atenção, por outro não sabem nem têm condições de exercer um poder expandido ou forte no âmbito de países dotado de um mínimo de complexidade.

Se a debilidade da democracia liberal decorre mais do enfraquecimento de uma cultura política baseada no sentimento de pertencimento a uma comunidade unida, diversa e aberta do que a ameaça de políticos populistas autoritários, diz Innerarity, sua força tende a aumentar à medida que forem construídas instituições que não sejam demasiadamente condicionadas por aqueles que eventualmente as dirijam. Mais precisamente, em que as regras prevaleçam sobre o voluntarismo dos dirigentes.

Em um período de aceleração do tempo, de deslocamento da produção jurídica para instâncias não legislativas, de integração dos espaços nacionais pelos meios de comunicação, de transferência da titularidade dos Legislativos para organismos intergovernamentais, a chave de resistência democrática está na criação de estruturas institucionais bem mais complexas do que as forjadas nos séculos XIX e XX, que moldaram uma democracia mais simples,  eficaz para a época, mas lenta nos períodos de crise econômica, e com jurisdição limitada às fronteiras dos Estados.

A situação hoje é outra. Em decorrência da internacionalização da decisão econômica, do advento de tecnologias mais integradas, de novas formas de comunicação e de informação, da tendência da sociedade contemporânea de subdividir em subsistemas funcionalmente diferenciados, são necessárias instituições capazes de trabalhar com sistemas mais complexos e inteligentes — o que não ocorria quando a democracia liberal emergiu no mundo moderno. Também é necessário articular robotização, automatização e digitalização com princípios de autogoverno, que constituem o núcleo normativo das estruturas democráticas, diz o autor. Essas mudanças configurariam estruturas, processos e regras que proporcionariam à democracia contemporânea um alto grau de inteligência sistêmica — uma inteligência que não está nas pessoas, mas nos componentes constitutivos de um sistema institucional mais flexível e capaz se adaptar a mudanças e inovações.

É isso que tornaria o regime democrático funcionalmente mais eficiente e resistente, frente a falhas de atores individuais, fraquezas de partidos políticos e más intenções de aventureiros populistas. Sem relativizar a importância da autorização popular que está por trás de suas decisões, a democracia só sobrevive se a própria inteligência do sistema institucional for capaz de compensar a mediocridade, a inépcia e a até má fé e a maldade dos atores políticos — conclui o autor de Una teoria de la democracia compleja – gobernar en el siglo XXI (Barcelona, Galaxia-Gutemberg).

Em princípio, esses cenários não são animadores. Diante do cenário da tendência à democracia iliberal, por meio de medidas astuciosas, porém nem sempre ilegais, e o cenário da afirmação da força de uma democracia baseada em sistemas inteligentes, é difícil apontar qual é o mais viável. A verdade é que, quanto mais nos enveredamos na análise de cada um deles, mais voltamos ao paradoxo socrático da ignorância, à medida que sabemos do quanto não sabemos qual será o destino da democracia entre nós.

*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

(Esse artigo foi originalmente publicado em Estado da Arte, revista eletrônica vinculada ao jornal O Estado de São Paulo, em 20/02/2021)


José Eduardo Faria: Redes sociais e democracia

Que a internet transformou os padrões comportamentais seguido pela sociedade, isso não é novidade. O problema é saber se o impacto dessas transformações na vida política foi bom, aprofundando a democracia, ou mal, corroendo-a. Quando a internet surgiu, a organização horizontal e descentralizada das redes sociais foi vista como um avanço rumo a uma democracia direta digital, com base em consultas populares eletrônicas. O tempo, contudo, deixou claro que as redes sociais têm corroído a democracia representativa baseada no sufrágio universal e no mandato eletivo, levando à perda da capacidade dos governos sobre os processos sociais. Em que medida o poder das tecnologias digitais está se sobrepondo à ação política e qual é a legitimidade desse poder?

A questão surgiu no contexto das transformações ocorridas nas décadas finais do século 20. Uma foi a revolução econômica, que ampliou a autonomia do capital com relação aos poderes políticos. Outra foi a revolução sociológica, pois os novos métodos de produção desestruturaram o mundo do trabalho e, por consequência, a composição social do operariado e da burguesia. Uma terceira revolução foi a tecnológica, que propiciou comunicação em tempo real e a formação de redes sociais. A quarta foi a política, com o enfraquecimento de muitos Estados nacionais frente à hegemonia de poderes transnacionais. A quinta revolução foi a cultural, que reconfigurou os horizontes de vida dos cidadãos e gerou conflitos de identidade, radicalizando disputas e tornando determinados conflitos não negociáveis.

Nesse contexto, as possibilidades democratizadoras das redes sociais foram recebidas como uma forma de superar os vícios da representação política. Décadas depois, o otimismo cedeu vez ao pessimismo, à medida que foi ficando claro o potencial disruptivo das novas tecnologias de informação. A comunicação em tempo real introduziu uma lógica de curto prazo e substituiu a formulação de políticas públicas por agitação, marketing e improviso. Ideias, promessas, projetos e alianças passaram a ser corroídas rapidamente. Em vez de ajudar a moldar o futuro, as redes sociais propiciaram movimentos de adaptação constante. Em vez de viabilizar a formação de um consenso em torno de um projeto de nação, reduziram as discussões a um moralismo fundado em pautas simplificadoras para julgar cidadãos.

Na sociedade digitalizada, tudo funciona a partir de mensagens e discursos que acenam com uma rejeição generalizada ao estado de coisas, prometendo soluções e redenções pela descontinuidade e ruptura. A mobilização por meio de redes sociais possibilita vetos e protestos. Mas não o labor argumentativo nem a construção de acordos com base num debate livre e crítico e a consecução de compromissos cívicos. O que é absurdo na democracia representativa, como ameaças de retaliação a anunciantes nos meios de comunicação, na democracia digital torna-se algo normal ou comum.

Apesar do contínuo fluxo de informações sem filtros na chamada ciberesfera, poucos são os cidadãos capazes de processá-las com precisão. Sem informações verazes sobre o que políticos estão fazendo, torna-se difícil para os cidadãos exercer com responsabilidade o direito de voto. Com isso, em vez de se ter na vida política uma diversidade de fatores que esclareçam os acontecimentos e permitam situar partidos e eleitos diante de suas respectivas responsabilidades, o jogo político é reduzido à busca de culpados e às explosões verbais de populistas, moralistas e aventureiros, cujo desprezo às instituições tende a crescer quanto maior é a receptividade de suas falas na opinião pública.

Por causa da disseminação massiva de intrigas, mentiras, insultos e difamações, esse jogo acaba sendo instrumentalizado por quem faz do discurso antissistema uma forma perversa de ação política. Por consequência, quanto menos representatividade têm os atores tradicionais, como partidos, sindicatos e imprensa convencional, maior é a assimetria de conhecimento e poder. Mais vulnerável a fica a sociedade a toda forma de inconsequência e insensatez. E maior é o espaço deixado a demagogos, militantes ideológicos e bonapartistas, o que abre caminho para rumos perigosos.

A política é um modo de obter, pelo diálogo, as condições mínimas de articulação de regras e procedimentos que, além de orientar de modo coerente o cotidiano da máquina pública, permite a definição de objetivos, o estabelecimento de prioridades e a elaboração de estratégias. É pela política que um Estado democrático pode ter, em momentos distintos, distintas funções adequadas a distintos objetivos. E, por sua natureza, essa negociação é complexa e lenta¬ – portanto, incompatível com a fluidez e a volatilidade inerentes ao tempo real da era digital. Por isso, é impossível entender a política fora de um quadro de referências normativas instituído pelo Estado. Além de ser um mecanismo de entendimento que acomoda divergências e compõe soluções, a democracia pressupõe a delimitação de direitos e deveres.

Por isso, também, é difícil estimar como suportará a tensão entre interesse público de médio e longo prazo, definido por mediações democráticas, e interesses privados imediatistas, que mudam ao sabor dos ventos. Ainda que seja difícil saber o que vai acontecer com a política, uma coisa é certa: ao propiciar fluxos contínuos de todo tipo de informações, sem que ninguém se apresente como responsável por muitas delas, transformações na tecnologia de comunicações configuram um processo que a democracia representativa não tem conseguido controlar. O que coloca em risco a liberdade à medida que avançam, em velocidade digital, a demagogia e o autoritarismo.

*José Eduardo Faria é jornalista, professor titular da Faculdade de Direito da USP e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP.


José Eduardo Faria: Democracia e resiliência constitucional

Está a nossa democracia consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas?

Acusada desde sua promulgação de conter altíssimo número de artigos, a Constituição brasileira não é extensa por incúria de seus autores. Escrita depois de 20 anos de uma ditadura militar, é compreensível que ela fosse bastante generosa em matéria de direitos individuais e sociais, a ponto de um ministro do STF ter afirmado que a Carta “só não traz a pessoa amada em três dias; fora isso, quase tudo está lá”.

A repulsa à ditadura também explica por que os constituintes recorreram à figura jurídica das cláusulas pétreas, para preservar liberdades públicas contra a aprovação de emendas constitucionais que tentassem limitá-las. Mas com isso impuseram suas concepções de poder às gerações futuras, suprimindo-lhes a prerrogativa de definir os direitos e o regime político que poderiam considerar adequados. Pelo mesmo motivo, os constituintes consagraram, ainda, um modelo de Estado e um padrão de regulação econômica que havia sido adotado em larga escala nas décadas seguintes ao pós-guerra.

Na época da Constituinte, porém, esse modelo e esse padrão já estavam em declínio, por causa da transterritorialização dos mercados, que privou os Estados de parte de suas funções legislativas e levou a um crescente policentrismo decisório no plano mundial. Para se adaptarem a essas mudanças, entre 1989 e 1999 dois terços dos países vinculados à ONU reformaram suas Constituições.

Com isso, o Brasil acabou ficando com um padrão de governabilidade travado, quando comparado com o padrão de outros países emergentes. Quanto mais extensa é uma Constituição, mais reduzidas são as esferas de decisão das maiorias parlamentares e da discricionariedade dos dirigentes do Executivo e maior é a tendência de judicialização das políticas públicas.

Sob a justificativa de deter a judicialização e destravar a governabilidade, a Constituição tem sido objeto de várias propostas de enxugamento, mediante a transferência de matérias por ela regulada para a legislação ordinária. Durante a campanha eleitoral, o vice do candidato eleito chegou a propor uma Carta escrita por “notáveis” e submetida a um plebiscito. Tolices à parte, as críticas suscitam questões importantes.

Uma diz respeito ao número de normas constitucionais que vão além da definição das regras do jogo, tratando, por exemplo, de políticas púbicas. Discutida por Cláudio Couto e Rogério Arantes em instigante artigo, a questão merece destaque porque, como uma proposta de emenda constitucional exige duas votações na Câmara e outras duas no Senado, com a aprovação de três quintos dos parlamentares em cada votação, os constituintes acabaram amarrando as gerações futuras a decisões não propriamente constitucionais, mas de interesse de parlamentares e corporações.

No caso específico da implementação e execução de políticas públicas, esse quórum é elevado e o processo de emendamento é lento ante a velocidade em que hoje se se sucedem os acontecimentos econômicos num mundo em que decisões são tomadas em tempo real. Além do mais, esse processo exige do Executivo capacidade de articulação parlamentar e eleva os custos políticos para a construção de coalizões, o que leva a concessões espúrias e irracionais.

Nas contas de Couto e Arantes, o número de artigos da Constituição que tratam de políticas públicas chega a 30,7% do total de dispositivos – é a maior proporção de todas as Constituições brasileiras. Quando uma Constituição contém muitos dispositivos sobre políticas públicas, ela “atrai para si a política governamental e a política cotidiana, já que seus dispositivos terão grande sobreposição com as questões que são objeto da disputa política entre os partidos, entre o governo e a oposição e entre os diversos grupos de interesse presentes na sociedade e no Estado”, afirmam eles.

Outra questão diz respeito aos efeitos de uma reforma constitucional. Evidentemente, toda Constituição tem, em face das transformações econômicas, sociais e culturais, de estar aberta a revisões. A ideia de que seja modificável não colide com sua vocação para a estabilidade – ao contrário, é condição para que o texto constitucional possa durar, sem perder efetividade.

Quando uma Carta não consegue combinar estabilidade e flexibilidade, ela tende a enrijecer, desconectando-se da realidade, ou a ser excessivamente flexível, gerando insegurança jurídica. Em 30 anos a Carta foi emendada 105 vezes. Desse total, 54,5% das emendas incorporaram novas normas à Constituição e só 2,6% revogaram normas originais. Ou seja, quase dois terços das emendas ampliaram um texto que já nasceu extenso.

Mais importante ainda, esse crescimento se deu basicamente nas matérias que envolvem políticas públicas, e não nas matérias relativas às instituições e funções de garantia do Estado. A dúvida levantada por Couto e Arantes em seu artigo, escrito antes das eleições, era saber se o candidato Jair Bolsonaro, com seu discurso flagrantemente antissistema, tinha noção do que falava sobre reforma constitucional.

Ou seja, a dúvida era saber se seu discurso reformista se circunscrevia apenas às políticas públicas constitucionalizadas, propondo sua revogação para assegurar agilidade à gestão governamental, ou se também envolvia alterações nas regras do jogo político e supressão de direitos. A literatura comparada revela que Constituições extensas e bastante modificadas por emendas tendem a durar. Também mostra que sua extensão tem que ver mais com questões institucionais do que de políticas públicas.

Pelo que disse antes das eleições, classificando certos dispositivos constitucionais como “amarras ideológicas”, o novo presidente parece que não se contentará apenas com reformas nos dispositivos relativos a políticas públicas. Por isso o importante não é somente saber se a Constituição continuará mantendo a resiliência demonstrada em 30 anos de vigência, mas, também, se a democracia brasileira está consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas


O Estado de S. Paulo: “Há uma mudança no conceito de prova, de processo e de delito”, diz José Eduardo Faria

Professor de Direito da USP e FGV analisa as tensões entre duas "arquiteturas jurídicas" em choque no Brasil da Lava Jato

Estado da Arte

O ex-presidente Lula foi condenado sem provas pelo TRF-4. O Supremo Tribunal Federal protege a classe política. Os procuradores da Lava Jata criaram seu próprio Direito. Essas são afirmações muito comuns, ouvidas nos mais diversos espectros da política partidária e da vida nacional. Elas mostram como as tensões da política e da justiça estão entrelaçadas no Brasil atual, apresentando aos que querem entender o país questões muito complexas. Em entrevista ao Estado da Arte, o professor José Eduardo Faria tentou esclarecer as atuais tensões jurídicas e políticas do país analisando os novos paradigmas globais do direito penal econômico, sua assimilação na vida jurídica brasileira, e também o modo como processos emblemáticos como o Mensalão e a Lava Jato impõem novos entendimentos e procedimentos nas relações entre as instituições políticas e as instituições da Justiça. 

Igualmente bem sucedido em suas carreiras como jornalista e como jurista, Faria iniciou sua vida profissional no Jornal da Tarde em 1967, tendo trabalhado também no Estado da São Paulo, onde atualmente é editorialista. Na mesma época, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde seguiu carreira acadêmica, tornando-se em 1998 professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do DireitoProfessor visitante na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas desde 2004, se dedica particularmente à pesquisa de temas como a relação entre direito e economia; ensino jurídico no Brasil; poder, legitimidade, discurso político e crise de governabilidade, e é autor de vários livros, dentre eles O direito na economia globalizada (1997), e Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social (1984). Para Faria, a atualização do direito econômico penal brasileiro, especialmente no que diz respeito à lavagem de dinheiro, à corrupção e ao crime organizado,  tem contribuído para “uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito.” Confira abaixo a íntegra da entrevista. 

 

O senhor tem afirmado que há uma tensão entre visões distintas do direito em jogo nos processos de combate à corrupção no Brasil atualmente. Que tensão é essa?

Eu acredito que há aqui uma questão importante para verificarmos a mudança das gerações principalmente no campo do Direito Penal e no campo do Direito Econômico, mudança decorrente de uma atuação cada vez mais sofisticada do crime organizado e das organizações terroristas na Europa. Os países europeus que vinham estudando nos anos 1980 a possibilidade de formar uma União Europeia, saindo da mera zona econômica e constituindo uma comunidade integrada, perceberam que seria necessário dar um passo semelhante na área do Direito Penal, o qual deveria ser globalizado. Esse processo foi pensado a partir da premissa de que ao invés de reprimir o crime organizado nas suas consequências seria melhor asfixiá-lo financeiramente – o mesmo valeu para o terrorismo.

Com esse propósito, em 1989 foi constituído em Paris um grupo chamado GAFI [Grupo de Ação Financeira, Financial Action Task Force em inglês] para operar na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que formará uma minuta de uma legislação penal econômica para todos os países membros da OCDE. A ideia seria trabalhar com o princípio da globalização econômica, o que exigiria, com o tempo, também a globalização de partes do Direito – não de todo ele, evidentemente.

E como isso repercutiu no Brasil?

A minuta foi adotada pelos países membros da OCDE e, a partir daí, alguns países que não pertencem à OCDE, como é o caso do Brasil, foram convidados a adotar essa legislação em troca de uma série de vantagens, como acesso a mercados, novas tecnologias, linhas de financiamento com juros favorecidos…

Quando se deu a entrada do Brasil? 

Essas negociações se deram entre 1998 e 2000, e o país passa a ser membro go GAFI em 2000. Nesse momento, o Brasil começa a trocar sua arquitetura jurídica no que diz respeito ao direito econômico penal. É a partir dessa mudança que se torna possível identificar nas novas gerações de graduandos e pós-graduandos de nossas faculdades de Direito – e com o tempo, esses novos quadros serão juízes, promotores e advogados – a consciência de que quem quisesse se especializar nessa área do Direito teria de estudar fora. E isso por uma razão muito simples: não houve uma renovação do pensamento penal brasileiro nas universidades, que ficaram encasteladas e presas a doutrinas superadas, com um viés que nós podemos chamar de romano-germânico – bastante litúrgico, cheio de entraves burocráticos, cheio de sistemas de prazos e recursos que permitiam aos advogados discutir não grandes questões factuais mas sim teses, pleitear vícios, aguardar que tais pleitos fossem julgados lentamente e, assim, obter a prescrição dos crimes dos seus clientes.

E o que mudou com as gerações mais recentes que buscaram no exterior essa formação na área?   

Esses alunos vão estudar fundamentalmente em universidades americanas e inglesas (e italianas, em menor escala). O resultado dessa formação foi uma renovação da mentalidade na Justiça brasileira, especialmente na primeira instância da Justiça Federal e no Ministério Público de um modo geral. Foi essa renovação que, a meu ver, ocasionou os conflitos geracionais, em particular nessa esfera do direito penal a que eu venho me referindo.

A partir de que momento podemos enxergar esse conflito? Com a Lava Jato?

Antes, com o julgamento do Mensalão. Nesse julgamento, os personagens envolvidos contrataram os grandes criminalistas brasileiros, inclusive com a articulação do falecido ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Esse pessoal sofreu uma derrota, especialmente nos votos do relator, Joaquim Barbosa, que já tinha uma visão mais americana, mais voltada a esse direito penal que vai direto ao foco, que trabalha com a identificação de atos que fogem a determinados padrões. Em geral, essa nova visão do direito penal é, de fato, sustentada por pessoas e equipes que entendem de contabilidade, que usam bem a tecnologia, que têm formação interdisciplinar, que sabem identificar procedimentos de ocultação de propriedades e de patrimônio. É uma turma capaz de descobrir os rastros deixados por documentos em vastas cadeias utilizadas para ocultar patrimônio ou dinheiro sujo.

Isso parece ter se traduzido também no trabalho integrado e internacional de organismos como polícias, procuradores e órgãos supranacionais.

Sim, de certo modo esse processo gerou, por exemplo, a ENCCLA (Estratégia Nacional para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), criada em 2003. Mas o que quero mostrar é que o que está acontecendo hoje é consequência de algo que começou a ser percebido já a partir do processo do Mensalão e cujas origens remontam à década de 1980. É essa a história do conflito geracional e das visões do Direito que nós estamos vendo hoje, e são poucas as faculdades de Direito hoje com professores preocupados em mostrar aos alunos esse confronto entre duas arquiteturas jurídicas – uma romano-germância, tradicional; outra de corte anglo-saxão, atrelada aos mecanismos de controle de uma economia globalizada.

Polícia Federal encontra 51 milhões de reais em bunker de Gedel Vieira Lima. Foto: PF

É esse conflito de visões do Direito que sustenta a argumentação daqueles que dizem, no caso da recente condenação do ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, que “não há provas”?

Quando alguém diz que não há provas, quer isto dizer que não haveria provas do ponto de vista de uma leitura germano-românica do direito penal econômico. O que se procurou mostrar, tanto no caso do juiz Sérgio Moro quanto no caso dos desembargadores da 8a turma do TRF-4, é que, independente da inexistência de um título de propriedade ou do chamado “ato de ofício”, o que se tem é o desmonte de uma cadeia de documentos que identificam o crime e que justificam a condenação. Ou seja, é uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito. No Brasil, isso é novo. Mas não, frise-se, a arquitetura jurídica que essa novidade expressa: a mudança no paradigma do direito penal econômico já tem aproximadamente 30 anos. O que é novo, repito, é a ascensão desse modelo no Brasil.

Que existam essas visões divergentes e esse conflito de gerações que o senhor identifica não é algo que possa justificar a alegação daqueles que se sentem prejudicados em seu direito de defesa? O próprio ex-presidente Lula alegou cerceamento desse direito por variadas razões… 

Acredito que não. Eu sou um sociólogo do Direito, estou acompanhando tudo isso a partir da dinâmica desse processo e não vejo razões para isso. Há um dado nesta pergunta que merece ser visto com mais atenção com respeito à defesa. Tome-se o caso da Lava Jato. Muitos dos advogados de empreiteiras envolvidas no processo foram meus alunos, alguns foram meus orientandos, ex-alunos que mantiveram contato comigo – como seu ex-professor, seu ex-orientador de mestrado ou doutorado. Por outro lado, a minha geração é a dos velhos advogados. Uma coisa que tenho percebido é que houve por parte das grandes empresas, em um primeiro momento, a preferência pelos advogados da velha tradição. Posteriormente, quando essas empresas se deram conta de que estratégia de defesa era ruim – pois girava em torno do garantismo –, perceberam que, pela nova legislação e pelo novo entendimento do direito penal (com destaque para a delação premiada e para os acordos de leniência), o custo financeiro das condenações seria muito alto. Muitas das grandes empreiteiras envolvidas na Lava Jato trocaram seus advogados. Há um momento em que vários advogados na faixa de 40, 45 anos de idade passam a atuar nos acordos de delação premiada das empreiteiras. Na avaliação delas, o impacto financeiro foi menor quando elas assumiram as culpas e assinaram os acordos de delação premiada do que se tivessem insistido na estratégia do garantismo, com altos gastos de defesa aos quais se somariam prováveis pesadas condenações.

O ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva, acompanhado por militantes e lideranças do Partido dos Trabalhadores, chega a Curitiba para o seu primeiro depoimento na 13ª Vara Federal, conduzida pelo Juiz Sergio Moro.

 

A delação premiada e os acordos de leniência são parte dessa renovação da compreensão do direito penal brasileiro?

Também, e do ponto de vista do direito penal econômico, são desdobramentos de casos como os [do escândalo financeiro] da Enrom, que levou a um aperto no combate a crimes do sistema financeiro, e, posteriormente, do que ocorreu com os bancos na crise de 2007 e 2008. Pela legislação americana, uma empresa daquele país cujas franquias ou subsidiárias em qualquer parte do mundo se envolvam em casos ilegais pode ter a matriz condenada nos Estados Unidos. Assim, empresas com matriz nos Estados Unidos, ou que queiram operar por lá, passaram a se orientar pela legislação americana e a adotar normas de compliance nesse sentido.

O estatuto da delação premiada, sobre o qual muito se tem debatido no Brasil, sofreu um grande baque com o episódio envolvendo os irmãos Batista e o caso mal-sucedido de delação protagonizado, entre outros, pelo ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Qual foi o tamanho do estrago sofrido até agora?

Há aí um problema de erro e acerto. A vida do Direito não é lógica, é experiência. E não sou eu que digo isso: essa é a tradição do realismo americano, liderado, entre outros, por [Oliver] Wendell Holmes. Você pode ter uma legislação muito boa nas mãos de quem não sabe aplicar; ou uma legislação nova nas mãos de quem ainda não tem a habilidade necessária para lidar com ela. Mas isso não invalida a legislação. Claro, abre espaço para que ela seja atacada, como tem sido, o que pode levar, no futuro, à sua revogação, ou à aprovação de uma legislação que tipifique o chamado “crime de interpretação” do juiz. Isso pode tirar do Ministério Público a base que ele tem para agir no combate à corrupção.

Nesse caso, não se trata mais de uma tensão entre duas “arquiteturas jurídicas”, como o senhor denominou, mas sim de um conflito pesado da política propriamente, não? 

Aí é a política, é o jogo corporativo. Há uma evidente união dos partidos quanto a isso. Isso se mostrou claramente nas recentes declarações da ministra Carmem Lúcia, na abertura do ano do Supremo Tribunal Federal, em discurso no qual defende a Justiça de ataques, que podem ser tanto aqueles deferidos por pessoas vinculadas ao ex-presidente Lula na semana de sua condenação pelo TRF-4, como os de alguém como o Ministro do governo Temer Carlos Marun (PMDB – MS), criando, por inabilidade, mais uma crise para o governo. Há um ponto de convergência de todas as forças políticas envolvidas nos escândalos de corrupção no ataque ao seu inimigo comum, o que leva o judiciário a tentar se manter coeso, especialmente quando, mais recentemente, passou a ser atacado em virtude da remuneração acima do teto. Isso é o que a sociologia americana chama de “guerras palacianas”, as guerras de corporações.

Já que falamos em delação premiada, o mesmo parece ter ocorrido com a chamada condução coercitiva, considerada por muitos um abuso, mas comum no Direito de países como Estados Unidos, Inglaterra, França…

De novo, erro e acerto, erro e acerto. E bom senso. Assim como houve a condução coercitiva do ex-presidente Lula, frequentemente apontada como um abuso, nós já tivemos também a prisão de um ex-prefeito de São Paulo constrangido de pijamas [Celso Pitta, durante a operação Satiagraha], ou, agora mesmo, a transferência do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, com algemas nas mãos e nos pés. Aí é falta de bom senso – e, claro, um pouco da lógica das guerras palacianas de que eu falava. Veja o caso do novo diretor da Polícia Federal, Fernando Segóvia e suas declarações, como foi o caso recentemente do programa da Mirian Leitão na Globo News. Segóvia foi indicado pelo presidente Michel Temer, e a justificativa apresentada para a saída de Leandro Daiello foi a de que ele estava cansado, já havia postergado sua aposentadoria e vinha sofrendo pressões da família para encerrar suas atividades. De bastidores, sabe-se que havia fortes movimentos para removê-lo da direção da Polícia Federal porque ele não cedia a pressões políticas, e Segóvia era um delegado com carreira no Maranhão e indicado pelo ex-presidente José Sarney. Agora considere o seguinte: sempre houve um tipo de rivalidade corporativa entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal em matéria de prestígio, de controle dos inquéritos. Do ponto de vista da Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba, houve um trabalho muito sincronizado e sem essa rivalidade, o que tornou possível o avanço e a celeridade dos processos na primeira instância no Paraná. Com a entrada de Segóvia, isso muda: com suas declarações provocativas sobre a mala de dinheiro, ele vive endereçando farpas à Procuradoria e ao MP. Qual é a lógica disso? Claramente é estimular tensões corporativas que abram brechas para os advogados de defesa atuarem pela impugnação das ações do Ministério Público ou da própria Polícia Federal. Olhando do ponto de vista da sociologia do Direito, acompanhando essa dinâmica, o comportamento dele é tal que abre o leque de possibilidades de argumentos de defesa para os réus da Lava Jato. E a ser correta essa análise, esse é o tipo de comportamento que precisa ser visto com mais cuidado e cautela pela sociedade.

A sociedade brasileira tem razão em esperar que surja desse conflito de visões do Direito uma nova visão de país, menos disposta aos arranjos que garantem a impunidade a políticos e poderosos em geral?

Essa é uma questão muito ampla e complexa. Vou tentar responder de forma precisa. Tradicionalmente – e essa discussão vem dos anos 1980 –, há uma interpretação do Direito que favorece uma certa confusão, sugerindo que a dignidade da Justiça estaria nos seus ritos, no seu formalismo, na sua linguagem pomposa, nos argumentos prolixos. Isso sempre fomentou correntes críticas do Direito engajadas na tarefa de desnudar esses mecanismos. Se nós olharmos para a forma como os desembargadores da 8a Turma do TRF-4 embasaram seus votos – não estou entrando no conteúdo, aqui, mas na forma –, percebe-se que eles procuraram jogar a discussão no chão, com uma linguagem clara e um propósito absolutamente pedagógico. Quebraram, com isso, aquela ideia do “juridiquês” como o latim das missas.

Quer dizer, em um contexto em que se tem TV Senado, sociólogos e filósofos do Direito analisando esses temas abertamente, novos operadores do Direito fugindo do formalismo, tudo isso somado a condenações expressivas como as de grandes empreiteiras, as de dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados, a do ex-presidente Lula, forma-se na sociedade, pouco a pouco, um sentimento de igualdade perante a lei.

É um sentimento difuso, ainda sem grande penetração nas camadas populares, mas é um processo novo e importante.

Já no Supremo Tribunal Federal…

É perceptível que quando os processos saem dos Tribunais Regionais Federais e chegam ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal, a vulnerabilidade a uma pressão política é extremamente grande. Como sociólogo e filósofo do Direito eu não advogo, então estive poucas vezes nos tribunais superiores, e sempre como professor. Certa vez, no STJ, um ministro me disse: “Isso aqui é muito bonito, custou caro, foi feito pelo Niemeyer, mas não se esqueça, tem dono: um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama Antônio Carlos Magalhães; um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama Marco Maciel; um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama José Sarney; e o outro quarto é um ‘x-tudo’.” Quer dizer, ele chamava atenção justamente para essas injunções políticas. E essas injunções políticas podem ser ainda mais extremas no caso do Supremo. Basta ter em mente que, quando chegarem os recursos do ex-presidente Lula no Supremo daqui a alguns meses, o presidente da Casa será o ex-advogado do Partido dos Trabalhadores…

Quais seriam os antídotos para esse problema?

Eu já vi muita discussão sobre os critérios de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Confesso que temo profundamente que haja uma mudança no sentido de permitir algum tipo de interferência da OAB e do Ministério Público nas indicações para ministros do Supremo.

Por quê?

Porque pode ocorrer o que se deu com o CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Quando o CNJ começou a ter um representante do Senado, um representante da Câmara, um representante da sociedade civil e um representante da OAB, o resultado foi a imediata partidarização. Quando o ex-presidente Lula entrou com um pedido de habeas corpus no STJ, o relator foi o vice-presidente da corte, Humberto Martins, cujo filho era correspondente do escritório de defesa do ex-presidente Lula em Brasília. Quando nós olhamos a trajetória do Humberto Martins, vemos que é um advogado de Alagoas que foi, pelo Quinto Constitucional, membro do Tribunal de Justiça e, como membro dos tribunais, acabou indicado pelo Senado para a vaga no Supremo. Percebe-se desde a origem que sempre teve o apadrinhamento de uma figura política, no caso, pelo que li a respeito, do Senador Renan Calheiros (PMDB – AL).

No caso específico do Supremo, eu acredito que o critério atual é adequado. O que precisamos evitar é o abastardamento. Quer dizer, interferências de órgãos como a OAB, o Ministério Público, juízes federais, estaduais, trabalhistas, etc., cujo resultado será a extrema partidarização e um engessamento corporativo. E eu acredito que o Supremo deve ter uma visão de mundo mais aberta, mais cosmopolita, menos corporativa.

Eu tenho acompanhado uma produção acadêmica excelente de pesquisas que têm mostrado a mudança de perfil do Supremo ao longo do tempo, e uma das coisas interessantes que tem me chamado a atenção é o comportamento de alguns ministros que, indicados no tempo da ditadura militar (1964-1985), demonstraram tremenda independência e profunda coragem cívica, por exemplo, concedendo habeas corpus, contrariando os presidentes do regime que os indicaram. Não se encontra necessariamente essa coragem cívica nos períodos da democracia.

Renan Calheiros, presidente do Congresso durante o processo de Impeachment de Dilma Roussef, é observado pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, enquanto defende a posição (que acabou prevalecendo) de que a Presidente deveria ser condenada por improbidade administrativa sem pagar a pena de inabilitação para o exercício de função pública determinada pela Constituição .

E isso é um reflexo dessa partidarização?

Não apenas. Há um razoável consenso entre nós do meio jurídico que a atual configuração do Supremo é fraca. São magistrados sem formação doutrinária, ou sem pós-graduação, ou com cursos mais fracos, e, acima de tudo, são magistrados que não estão à altura do cargo. Tanto mais se comparados a alguns ministros do Supremo do passado que tiveram grande dignidade no cargo. Vamos dar dois nomes? Adauto Lúcio Cardoso e Aliomar Baleeiro, este último presidente do STF (1971-1973). Ambos tinham sólida formação jurídica, professores de Direito, eram conservadores da antiga União Democrática Nacional (UDN). Adauto Lúcio Cardoso, por exemplo, que já tinha votado em favor de habeas corpus para o líder estudantil Vladimir Palmeira e para o ex-chefe do Gabinete Civil de João Goulart, Darcy Ribeiro, em 1971. Foi o único voto pela inconstitucionalidade do decreto de Médici que instituía a censura prévia. Depois disso, como se diz, rasgou a toga e foi embora. Aliomar Baleeiro foi, igualmente, um crítico muito desperto do regime. Voltando à questão do mecanismo de indicações do STF, o mecanismo propriamente não é ruim – agora, não se pode aviltá-lo, colocando os interesses partidários acima da Justiça.

Isso não seria algo que tem menos relação com a normatização dos mecanismos de nomeação do que com a qualidade de nossa vida pública? Por exemplo, nos Estados Unidos é natural que um presidente Democrata ou Republicano indique para a Suprema Corte alguém alinhado com a visão de mundo que seu Partido e seu governo representam, mas jamais um advogado do partido, que jamais conseguiu ingressar na carreira pública…

Sim, advogado do partido, que foi reprovado duas vezes em concursos para a magistratura – você se refere ao Ministro Dias Toffolli. Ou, no caso do atual governo de Michel Temer, a indicação de Alexandre de Moraes, que tem no currículo uma reprovação para seu ingresso como professor da Faculdade de Direito da USP – no caso, uma reprovação minha.

Mas para ficar em sua comparação americana, quando eu comecei a dar aulas de Direito, ainda nos anos 1970, eu mostrava aos alunos como era possível compreender como votariam os juízes da Suprema Corte com base em seus escritos, em suas sabatinas, isto é, com base na coerência doutrinal de suas posições. No Brasil, os votos dos juízes do Supremo não chegam a formar essa coerência, pois não apenas os ministros muitas vezes votam de maneira contraditória com seu próprio histórico de entendimento de uma mesma matéria, como, para agravar ainda mais a situação, mesmo quando formam maioria, suas justificativas são frequentemente diferentes – quando não divergentes – entre si, o que impede a formulação de um entendimento claro sobre aquela matéria. Não se formam maiorias orgânicas: vence o “sim” ou “não” por mera contagem de votos. Veja o caso do ministro Gilmar Mendes, que após voto favorável à prisão após condenação em instância colegiada, deu a entender que poderia mudar o seu voto e, mais recentemente, afirmou que não era exatamente isso. Ora, isso gera insegurança jurídica, enfraquecendo a posição do Supremo.

Para encerrar. O senhor falou muito sobre as tensões entre essa nova geração do  Direito, formada ou influenciada pela tradição jurídica anglo-saxã e mais globalizada do ponto de vista do direito penal econômico, e a velha tradição romano-germânica. Se um julgamento como este do ex-presidente Lula se desse em um ambiente constitucional como o americano ou o inglês, em vez de um terreno em disputa, quais seriam as diferenças?

Em primeiro lugar, a defesa jamais poderia ter se comportado do jeito que se comportou. Em segundo lugar, ela teria se voltado fundamentalmente para o foco do problema, e não às questões periféricas de natureza meramente processual, como insistiram em fazer. Terceiro: quando se trata de direito penal econômico, a interação do legislador e do executivo com o funcionamento da economia é um dado claro. No Brasil, ainda há certa dificuldade para se entender essas questões, mas como procurei mostrar, isso está mudando.