José Augusto Guilhon Albuquerque

José Augusto Guilhon Albuquerque: Uma ideia é uma ideia, é uma ideia...

As do pacote de reforma do Estado parecem boas. Mas daí a serem uma revolução...

O mundo seria muito diferente se uma ideia fosse mais do que uma ideia. O novo pacote de reforma do Estado pode-se dizer que é cheio de boas ideias. Mas, convenhamos, ideias não se realizam por vontade própria, nem mesmo por mérito. Assim sendo, compartilho a opinião de que as ideias do pacote levado ao Congresso parecem boas. Mas daí a serem consideradas uma revolução...

A reforma da Previdência já foi longe e, uma vez proclamada, terá efeitos legais, apesar de esses efeitos terem sido castrados pela metade entre a ideia inicial de R$ 1,3 trilhão e os cálculos do Instituto Financeiro Independente, de R$ 600 bilhões. Mas é forçoso reconhecer que esta reforma Guedes/Bolsonaro não é mais do que uma nova versão das reformas igualmente incompletas de Fernando Henrique e Lula. Afinal, só terá resultados plenos em dez anos, quando o crescimento do déficit previdenciário provavelmente já terá sido acrescido de novos dispositivos para favorecer, ainda mais, os já mais favorecidos.

Não podemos esquecer que nenhuma emenda foi aprovada para melhorar o soneto dos menos aquinhoados, mas, ao contrário, para manter, e mesmo aumentar, as desigualdades já existentes. Nada nos garante, tampouco, que a caneta criativa do atual presidente não tente reescrever a Constituição por via de decretos, como tem sido feito na regulamentação de legislação de seu interesse pessoal, familiar ou político.

Não esqueçamos que o capítulo da Previdência ainda está sujeito a novas investidas corporativas e regionalistas via PEC paralela e na tramitação do próprio pacote agora apresentado. Afinal, por que diabos esse pacote ainda mais audacioso escaparia à desfiguração habitual? Sejamos otimistas, mas contentando-nos com pouco. Afinal, as ideias da “reforma do Estado” são razoavelmente boas, como foi boa a ideia da reforma da Previdência, que já chegou castrada no papel. Quando chegar a ser aplicada, sabe Deus...

Também foram ótimas as ideias do megaleilão do pré-sal. Já a execução, um fracasso. Pode-se culpar o Lula, que tentou reestatizar a exploração do petróleo com a obrigação da partilha e com o semimonopólio da Petrobrás. Nem por isso deixaria de ser um fracasso, e a granada sem grampo da incompetência vai para o colo do capitão Jair e de sua tropa de escolhidos.

Ademais, desfiar o emaranhado da política brasileira, do funcionamento das instituições, e dominar a arte de transformar ideias em políticas concretas e viáveis, as políticas em planos e os planos em ação, tudo isso exige mais conhecimento e experiência do que para desarmar um artefato. Assim sendo, creio que seja dever do observador, que se baseia em conhecimentos bem estabelecidos e em fatos comprovados, avaliar as ideias em função de sua viabilidade.

A viabilidade de passar legislação para adotar políticas públicas depende dos recursos de poder político a serem efetivamente empregados pelos atores individuais, organizacionais e institucionais, de acordo com seus respectivos interesses. Tais interesses, por sua vez, vistos na ótica da racionalidade limitada, não refletem um cálculo objetivo de custo-benefício, mas sim a autopercepção do valor desses interesses e do ganho/perda que a decisão de adotar ou vetar essa política implica para esses atores.

Minha hipótese é que existe, na Presidência Bolsonaro, incompatibilidade de gênios entre a missão e os missionários. E, por conseguinte, uma incompatibilidade de fato entre o arco de interesses prontos a engrossar a missão de realizar a reforma do Estado e o arco de interesses efetivamente manejáveis pelo governo Bolsonaro.

Independentemente do conteúdo da reforma ser bom ou mau, útil ou inútil, necessário ou irrelevante para os destinos do País, quais as opções de política econômica e de gestão pública incluídas no pacote?

Uma lista de opões, que é insuficiente, mas basta para o raciocínio, poderia ser: 1) o Estado tem por missão servir primordialmente ao povo, e não aos servidores públicos; 2) as entidades públicas devem ser dirigidas por representantes políticos do povo e pelas partes interessadas da sociedade, e não apenas por membros de sua corporação interna; 3) a política econômica deve ser conduzida com austeridade, e não por critérios demagógicos, sob pressão de interesses especiais; 4) o orçamento público deve dar prioridade a investimentos e à melhoria do atendimento de seu público e de sua atividade-fim, e não ao bem-estar de seus servidores; 5) o sistema fiscal deve poupar relativamente mais os mais pobres e taxar mais os mais ricos; 6) a máquina estatal, em todos os níveis, precisa ser redimensionada, tornando-se menos custosa e mais eficiente.

Minha hipótese é que, se alguém concorda com a maioria dessas opções, ou não votou em Bolsonaro ou votou porque não tinha alternativa, não apoia as condutas do presidente nem as decisões de seu governo, não está satisfeito com os rumos do País nem acha que Bolsonaro é a pessoa mais indicada para liderar uma mudança positiva de rumo. Quanto a Bolsonaro, suas palavras e obras tendem a mostrar que ele ou se declara contra, mas é obrigado a seguir algumas dessas opções, ou intervém abertamente contra elas.

O núcleo duro de sua base de fiéis – vigilantes da lei e da ordem e cruzados da revolução moral e civilizatória – é ou de indiferentes ou de abertamente contrários à maioria das políticas incluídas na reforma. Dentro do seu governo, a ala não fundamentalista, composta por uma parcela dos militares e alguns ministérios técnicos, ainda que no âmago possa apoiar políticas moderadas, não tem peso para interferir contra a vontade do chefe. Até os autores do pacote já aderiram ao mantra presidencial: já fiz a minha parte, agora é com o Congresso.

Não é não, o Congresso só reage sob intensa pressão.

Então, mãos à obra.

* José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular da USP


José Augusto Guilhon Albuquerque: O povo é o eterno culpado

O eleitor não determina o resultado da eleição, só reage a um cenário que lhe é imposto

O previsível resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2018 tem sido atribuído, no Brasil e no exterior, a um crescimento avassalador do conservadorismo do eleitor brasileiro. Esse diagnóstico implica acusar o povo brasileiro de ser incapaz de votar racionalmente, e só se explica como efeito do que chamarei de vitimologia eleitoral.

Criada para traçar um perfil das vítimas como instrumento para explicar a motivação de um crime e o comportamento de criminosos, a técnica da vitimologia tem sido empregada na análise do comportamento político, quando se trata de explicar um resultado eleitoral inesperado: prendam-se os suspeitos de sempre.

Ora, não é razoável acusar o eleitorado pelo resultado das eleições, porque o voto não é uma escolha de livre-arbítrio do eleitor, mas, sim, uma opção limitada por uma agenda que lhe é imposta pelo sistema eleitoral, pelo sistema partidário que dele decorre e pelas cúpulas partidárias, pressionadas mais pelos interesses da classe dirigente do que pelo clamor popular. A liberdade política do cidadão brasileiro pode ser considerada uma liberdade condicionada.

O voto popular limita-se a responder a uma agenda compulsória, construída de cima para baixo, não é uma livre escolha. A pesquisa sobre comportamento eleitoral tem foco na descrição estatística, ou na interpretação “qualitativa” de variáveis presentes nas respostas dos eleitores, mas nada ensina sobre o processo político que criou o leque de escolhas que lhe são impostas. É como um experimento em que se consideram as respostas, ignorando inteiramente os estímulos que lhes deram origem.

Parte-se sempre do perfil do eleitor, pressupondo que o povo é o único fator que determina o resultado das urnas. O processo eleitoral envolve, porém, uma interação complexa entre dimensões mais ou menos independentes entre si. Entre outras, elas incluem variáveis relativas à história política, à percepção desse contexto político pelos atores envolvidos e atitudes, expectativas e reações que daí resultam, diante das candidaturas em jogo.

Minha hipótese é que o comportamento dos eleitores é determinado pela maneira como o povo percebe a evolução do processo político, isto é, para onde caminham as ameaças ao bem-estar e à liberdade do povo, em face da ganância e da paixão de poder dos Grandes (tal como as define Maquiavel). O eleitor comum escolhe entre quais candidatos, partidos, novas políticas adotadas ou revogadas são percebidos como ameaça ao bem-estar e à liberdade do cidadão – isto é, mantêm e ampliam os privilégios e a corrupção dos poderosos – e quais, ao contrário, são percebidos como barreiras contra a opressão e a exploração do cidadão comum pela classe dirigente. No presente caso, desde as revelação dos escândalos do mensalão a classe política como um todo tem encarnado, na percepção popular, toda a malignidade dessa ameaça à vida, à honra e aos parcos bens que garantem a sobrevivência da imensa maioria.

Essa percepção não é cristalina. É mediada pelos partidos e movimentos de opinião, e raramente se expressa numa imagem única – como, por exemplo, a percepção da inflação, do desemprego, do empobrecimento, da corrupção da máquina pública, da insegurança, da degradação moral. Essas “preferências” populares são tudo menos nítidas e unívocas. São, ao contrário, difusas e equívocas.

Com isso, as análises do processo eleitoral não captam o caráter único do caso presente. Não lhes vem à mente que há cinco longos e sofridos anos o povo brasileiro tem manifestado, reiteradamente, sua indignação quanto à maneira como tem sido governado.

Diante do desprezo cego, surdo e mudo dos governantes, e do silêncio envergonhado das candidaturas, continuam prometendo creches, hospitais, metrôs, que todos sabem que não serão construídos, se o forem, não vão funcionar, se funcionarem, não vão atender decentemente ao povo. Uma garantia de mudança da política e dos políticos, desde que minimamente crível, seria o único caminho para disputar a maioria do eleitorado indignado com tudo e com todos.

Defender a continuidade, embora com mais eficiência, experiência, ou vinho novo em velhas barricas foi, contudo, o caminho do suicídio dos partidos tradicionais. Nesse caminho, o PT foi mais longe, porque encarnou, como os demais, a continuidade da velha política, mas defendeu também o retrocesso, ressuscitando o velho programa radical, de 30 anos atrás, com que Lula perdeu três eleições seguidas. Seu fraco desempenho no primeiro turno não foi pior porque se beneficiou da polarização contra Bolsonaro.

Como o PT, Bolsonaro também se beneficiou da polarização e, como os políticos tradicionais, tampouco deu qualquer resposta concreta, mas foi o único a vociferar contra tudo e contra todos. Com isso, sua falta de rumo e de propostas permitiu que encarnasse a mudança a todo custo. Tornou-se um candidato-ônibus: oferece lugar para todos e vai em todas as direções. Sua candidatura pode, assim, acolher uma multidão de eleitores motivados por ameaças diversas, ignoradas ou desprezadas pelas lideranças tradicionais. Note-se, entre as ameaças percebidas por eleitores de Bolsonaro, o temor do patrulhamento que acompanhou políticas discriminatórias adotadas por governos petistas. Assim, parcela não desprezível de seus eleitores não se identifica necessariamente com ideologias extremas nem com a retórica de ódio dominante em sua campanha.

Em suma, o resultado da eleição não é determinado pelo eleitor, que apenas reage a um cenário que lhe é imposto. Tampouco o voto em um ou outro candidato cancela a indignação generalizada contra a política e os políticos e, portanto, não oferece um cheque em branco. O presidente a ser empossado no dia 1.° de janeiro não gozará uma lua de mel, mas um sursis, com curtíssimo prazo para cumprir, de mãos atadas, uma agenda tão extensa e multifacetada como suas promessas.

*José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de ciência política e relações internacionais da USP