José Álvaro Moisés

José Álvaro Moisés: "PSDB jogou fora oportunidade”

Para cientista político, quem vencer prévia tucana vai ter que disputar com Moro e Ciro

Cristian Klein / Valor Econômico

Rio - A crise gerada pelas prévias do PSDB expõe um partido dividido que terá um trabalho redobrado para retomar o protagonismo da disputa presidencial, afirma o cientista político José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP). O que já era difícil, para um partido que obteve 4,7% dos votos ao Planalto em 2018 e tem pré-candidatos com baixa pontuação nas pesquisas para 2022, se tornou “um panorama extremamente complexo”, diz Moisés, ex-secretário no Ministério da Cultura nos dois mandatos do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Tanto o governador de São Paulo, João Doria, quanto o do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que disputam as prévias do PSDB com o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio, poderiam se beneficiar do grande holofote que a disputa interna ganhou para se cacifarem nacionalmente. Mas o fiasco tecnológico e as brigas de caciques que vieram à tona geram descrédito sobre a capacidade de os tucanos liderarem a terceira via. “O PSDB jogou fora essa oportunidade, pelo menos até agora. Poderia ter dado visibilidade ao grande legado do partido durante as prévias”, diz o cientista político.

Para Moisés, os pré-candidatos do PSDB figuram numa espécie de terceiro pelotão da corrida presidencial, já bastante polarizada com a dianteira do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que reúne cerca de 40% das intenções de voto, e do atual, Jair Bolsonaro, que amealha por volta de 25% das preferências. Sobram 35% para a fragmentada terceira via, calcula.

No segundo pelotão, já não está fácil o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) crescer pela centro-esquerda, pois “Lula está muito estabilizado”, afirma. Por outro lado, também não está fácil para o ex-juiz Sérgio Moro (Podemos) atrair parte do eleitorado bolsonarista. “Outra figura da terceira via vai encontrar situação muito difícil, precisando disputar com Moro o voto de Bolsonaro e com Ciro o eleitorado de Lula. Difícil prever que quem quer que vença as prévias vá superar esses obstáculos”, diz Moisés.

Seja Doria ou Leite, os favoritos na disputa tucana, o grande desafio, em primeiro lugar, será o de unificar o partido, rachado pelo próprio acirramento das prévias e pelas correntes bolsonarista e oposicionista. A construção de uma candidatura ao Planalto minimamente competitiva passa pelo que Arthur Virgílio chamou de processo de “desbolsonarização do PSDB”, aponta Moisés.

“Ainda assim, quem vencer vai ter que disputar com dois nomes [Moro e Ciro] que já estão mais bem estabelecidos, com 10%, 11% das intenções de voto”, afirma o coordenador do Grupo de Pesquisa sobre a Qualidade da Democracia, no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

Pesquisa Genial/Quaest divulgada há duas semanas mostra dois cenários em que Lula oscila entre 47% e 48%, contra 21% de Bolsonaro. Moro registra 8%, Ciro varia entre 6% e 7%, enquanto Doria surge num cenário com 2% e Leite no outro com apenas 1%.

Candidatura Doria seria mais competitiva, pela maior estrutura partidária do PSDB em São Paulo, avalia Moisés. Foto: PSDB/Divulgação

Para Moisés, a candidatura Doria seria mais competitiva, pela maior estrutura partidária do PSDB em São Paulo. “Agora, quem, de alguma maneira, acenou com possibilidades mais amplas de negociação, durante alguns debates das prévias, foi o Eduardo Leite. Então é difícil discriminar inteiramente quem dos dois vai desempenhar melhor o papel de unificação do partido e ao mesmo tempo de negociar com outras forças para se chegar a um nome de consenso”, afirma.

Professor aposentado da USP, Moisés diz que será muito difícil se chegar a esse nome de consenso da terceira via entre Moro, Ciro e o PSDB. “Chegar a um consenso entre esses três significaria transpor barreiras muito complicadas, políticas, ideológicas e mesmo regionais, que não estão tão visíveis” diz. “Mas é muito difícil. Até agora não se vislumbrou essa possibilidade. E no caso do PSDB, que de alguma maneira, estava querendo, digamos, montar o cavalo nesta direção, mancou e perdeu uma perna. E agora está tentando se reconstituir. Não vai ser fácil, mas está tentando”, conclui.

Para Moisés, a recuperação do eleitorado perdido pelos tucanos depende de o PSDB “trazer uma versão inteiramente nova e um compromisso com a social-democracia, não a keynesiana clássica”. “Mas é preciso redefinir o pacto do partido, numa combinação do enfrentamento das desigualdades sociais com a defesa da economia de mercado”, diz, lembrando que essa tese também tem sido pregada por Arthur Virgílio.

O ex-prefeito de Manaus, ao lado de Doria, tem sido um crítico duro da atuação do deputado federal e ex-senador mineiro Aécio Neves, apoiador de Leite. Aécio é apontado como líder da ala bolsonarista do partido, que resiste a adotar um tom oposicionista de olho em emendas e cargos oferecidos pelo governo federal. A expectativa é que uma vitória de Doria nas prévias possa provocar a desfiliação de tucanos simpatizantes de Bolsonaro. Por outro lado, se Leite vencer, o PSDB estaria mais propenso a abrir mão de candidatura própria, o que nunca aconteceu desde a redemocratização, nas últimas oito eleições presidenciais.

Indagado sobre o destino em disputa do partido, se mantém a vocação ao Executivo federal ou se converte-se numa típica legenda fisiológica, Moisés afirma que “as duas hipóteses estão colocadas”. Um dos problemas, ressalta, é que deputados do PSDB têm demonstrado a preocupação com o volume de recursos do fundo eleitoral que uma campanha à Presidência irá drenar, em vez de abastecer as campanhas dos parlamentares.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/11/26/partido-jogou-fora-oportunidade.ghtml


Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'

As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022

Por Caetano Araújo e Vinicius Müller

O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:

Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?  

José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.  

A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.  

RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?  

JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT.  Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.  

"O bolsonarismo entrou em uma crise que tem a ver com o fato de que ele não tem conteúdo nenhum, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, de uma mentalidade autoritária, de uma visão exagerada em relação à questão da segurança"

À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.

RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?  

JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.  

Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.  

Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.  

Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.  

Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.  

"O grande desafio que eu vejo é se o setor democrático progressista, a esquerda democrática, de alguma maneira não perceber, nós não podemos cair no risco de jogar eventualmente o DEM para o lado do Bolsonaro"

O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.  

RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda -  como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?  

JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.  

RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?  

JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.  

Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.  

"Um dos aspectos do desafio de se constituir ou não essa frente é se a esquerda, inclusive a nova esquerda, insistir na ideia de que pode necessariamente sair sozinha"

Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.  

RPD:  Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?  

JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.  

Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.    

"Ainda não vi, na personalidade destas lideranças que estão aí, nenhum elemento capaz de criar esse consenso que nós tanto necessitamos para enfrentar o bolsonarismo"

RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?  

JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.

No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.    


José Álvaro Moisés: Constituição admite reação a agressões contra a democracia

Não há surpresa na prisão dos responsáveis pelo ataque com fogos de artifício contra o STF, diz professor de Ciência Política da USP

As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e os inquéritos conduzidos pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal em relação às fake news, ataques contra instituições republicanas e contra pessoas são parte normal e importante do sistema democrático. Na democracia, todos estão submetidos às leis e, se há descumprimento das mesmas, investigações e processos são o caminho previsto para determinar se cabem punições.

Não há surpresa, portanto, na reação adotada pelas instituições de controle decretando a prisão dos responsáveis pelo ataque com fogos de artifício contra o STF. A ação contempla o que está previsto no funcionamento de um regime baseado no império da lei. Estranho seria se não houvesse resposta dos organismos de controle em face desses ataques que têm se sucedido e, às vezes, com apoio de autoridades do governo. A legitimidade da reação está na Constituição Federal.

A democracia vem estando em risco no país se se levar em conta as mobilizações de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que atacam instituições fundamentais, estimulados a agirem assim como se se tratasse apenas do direito de expressão ou manifestação. E a participação de autoridades do governo nesses atos é como se o presidente não tivesse em conta o princípio de separação dos poderes republicanos e a sua estrutura tripartite, que assegura a independência e a autonomia de cada um. Por essa razão, não faz nenhum sentido que o chefe de qualquer um deles considere absurda uma decisão da corte constitucional.

É lamentável que alguns cidadãos brasileiros entendam que, para expressar suas críticas a decisões de instituições democráticas, façam ataques dessa natureza. A Constituição e o sistema legal preveem os remédios adequados para quando existe discordância com ações de instituições como o Supremo ou o Congresso. Esses mecanismos podem ser acionados por cidadãos comuns que queiram reclamar. Mas nada disso autoriza agressões à democracia e aos princípios de liberdade e igualdade que ela garante aos brasileiros.

  • Professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP)

José Álvaro Moisés: Por que Mandetta e Teich abandonaram o barco do governo?

Bolsonaro em nenhum momento deu ouvidos aos seus ministros sobre a necessidade de isolamento social como meio de impedir o colapso do sistema de saúde

Nelson Teich não é mais ministro da Saúde. Sua entrevista não deu pistas claras sobre as razões que levaram o governo a perder dois auxiliares em área estratégica de políticas públicas em pouco mais de um mês. A perda ocorre quando o número de mortes causadas pelo coronavírus está perto de ultrapassar 15 mil e o de contaminados da mais grave pandemia experimentada pelo país – e talvez pela humanidade – está quase superando 220 mil casos. O que levou dois colaboradores tidos como competentes a abandonarem o barco em tão curto espaço de tempo, e em meio a um auge da crise?

A primeira resposta é conhecida: Bolsonaro em nenhum momento deu ouvidos aos seus ministros sobre a necessidade de isolamento social como meio de impedir o colapso do sistema de saúde. Em alguns momentos, foi mais longe e humilhou seus auxiliares em público. Nos últimos dias, contudo, os indícios apontaram em outra direção: sem que haja qualquer comprovação científica de sua eficácia, o presidente pressionou os ministros a adotarem o uso da cloroquina. Mandetta já tinha feito ressalvas a isso em protocolo que irritou o presidente, e Teich, ao ser supostamente forçado, não aceitou manchar a sua carreira. O governo, então, ficou acéfalo na área da saúde.

O foco são políticas públicas fundamentais, que deveriam envolver decisões e procedimentos transparentes, em especial diante da ameaça à vida das pessoas. Na ausência, não é de estranhar que em alguns meios surjam perguntas duras: a quem interessa a adoção desse medicamento sem a certificação devida? Que laboratórios produzem ou têm interesse na sua adoção? São questões de evidente interesse público que aguardam esclarecimento.

  • Professor de ciência política da USP

José Álvaro Moisés: Em defesa da democracia representativa

Democratas têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas bolsonaristas

Eleito com grande maioria de votos, o presidente Jair Bolsonaro tem a responsabilidade de pacificar a Nação, apesar de seus arroubos autoritários, pois, desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o Brasil está completamente dividido e polarizado política e ideologicamente, o que afeta as relações do governo com a sociedade. A legitimidade eleitoral conquistada nas eleições, porém, não o autoriza a abandonar a obrigação de governar para todos os brasileiros, e não apenas para os seus apoiadores. O próprio presidente assegurou ao País que faria isso ao jurar respeito à Constituição da República.

Em seu primeiro ano de mandato, no entanto, Bolsonaro alimentou muitas dúvidas sobre a racionalidade de suas ações e o compromisso de cumprir a Constituição. Recusando-se a formar uma maioria governativa no Congresso Nacional, como requerido pelo sistema político, não assumiu a liderança do partido que o elegeu nem coordenou as forças que o apoiam. Diante de novo protagonismo do Congresso, optou pela ausência de diálogo com as forças políticas e envolveu-se em seguidos conflitos com o Poder Legislativo, que, não obstante, tem aprovado suas propostas, a exemplo da reforma da Previdência e, agora, o seu veto no caso do orçamento impositivo. Quanto às questões tributária e administrativa, o governo hesita e não define os seus projetos.

Durante 2019, o presidente sustentou uma retórica de confronto com seus críticos e adversários, grosseira em muitos episódios, e ofensiva ao decoro do cargo pelo grau de desrespeito a importantes segmentos da sociedade, como as mulheres, os negros e os indígenas, cujos direitos ameaçou ou tentou retirar em alguns casos. Quis ainda controlar a liberdade de ação da sociedade civil e, adotando uma política ambientalista desastrosa, voltada para desconstruir o que havia sido feito em governos anteriores, atritou-se com chefes de Estado estrangeiros focados na preservação da Amazônia, esvaziando o papel do Brasil nessa área.

A estratégia do presidente se choca com a estabilidade institucional requerida pela doutrina da separação de Poderes e busca o tempo todo desviar a atenção da estagnação econômica, que permanece, apesar de uns poucos sinais de recuperação, e de suas supostas ligações com milicianos. Ademais, hostilizou governadores de oposição com acusações descabidas e desafiou a maioria deles a diminuir impostos sem, contudo, dialogar ou apresentar propostas consistentes a esse respeito. Nem a gravíssima crise de segurança do Ceará fez o presidente desautorizar o desrespeito às leis por policiais militares revoltosos.

Mas mais grave é o seu indisfarçável apoio à manifestação convocada por bolsonaristas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Agredindo jornalistas como Vera Magalhães pelo desmentido disso, como tinha feito com Patrícia Campos Mello, Jair Bolsonaro tenta se livrar da responsabilidade por ações que juristas e políticos consideram que tipificam crime de responsabilidade, mas sabe perfeitamente que manifestações pedindo o fechamento do Parlamento e da Corte Suprema atentam contra a democracia - e, como cumpridor da Constituição, Bolsonaro deveria desautorizá-las.

Trata-se de uma sinalização perigosa de descompromisso com a democracia, que precisa ter resposta firme da sociedade brasileira. A situação abre uma extraordinária janela de oportunidade para que os defensores da democracia representativa mobilizem as suas bases, por meio de seus partidos, associações, sindicatos e grupos religiosos, para reafirmar os valores fundamentais da democracia - a liberdade, a igualdade política e o império da lei -, mas também para debater as distorções das instituições de representação, que causam desconfiança e rejeição popular, especialmente os partidos e o Parlamento.

Nesse sentido, a inconsistência programática dos partidos, a sua falta de democracia interna, o abuso no uso de recursos para campanhas eleitorais, a desconexão entre representados e representantes e, principalmente, o sentimentos de muitos eleitores de não serem relevantes para instituições como o Congresso precisam ser enfrentados, não podem ser deixados apenas como argumentos dos inimigos da democracia.

O desafio é claro. Empresários, formadores de opinião, dirigentes partidários, chefes religiosos, sindicalistas, intelectuais - e, especialmente, os que querem assumir o papel de líderes da Nação - têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas dos bolsonaristas, apoiadas pelo governo, contra a democracia representativa e a liberdade. A melhor defesa do regime é enfrentar suas crises para aperfeiçoá-lo, mobilizar a população e pôr as propostas necessárias de reforma em debate. Os democratas precisam fazer isso antes que seja tarde demais.

*Professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), é autor do livro ‘Crises da Democracia - o papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos’ (2019)


José Álvaro Moisés: Bolsonaro trocou combate à corrupção por defesa de sua família

Presidente foi eleito com o compromisso de combater a corrupção, mas o que se assistiu de 1º de janeiro para cá foi um lento processo de abandono desse combate pelo governo

Esta operação envolvendo a família do presidente Jair Bolsonaro sinaliza a importância política que teve a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitindo que informações dos órgãos de controle – como a receita federal ou o antigo Coaf - possam ser acessadas para instruir inquéritos criminais. Foi a partir dessa decisão, por exemplo, que o Ministério Público do Rio retomou as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro.

Ainda não se apuraram completamente as responsabilidades desse caso. As pessoas podem especular a respeito, baseadas no que a mídia tem publicado, mas não temos ainda um inquérito concluído. Portanto, é preciso cautela. Mas caso se verifique o envolvimento das pessoas citadas no caso, como o senador Flávio Bolsonaro e o seu ex-assessor Fabrício Queiroz, isso poderá ter grande impacto sobre a posição do governo e a proposta da Aliança Pelo Brasil de combater a corrupção.

Jair Bolsonaro foi eleito presidente em um vácuo deixado pelas lideranças democráticas que, a meu juízo, não assumiram claramente o compromisso de combater a corrupção nas eleições de 2018. Bolsonaro ocupou o vácuo e se comprometeu a fazê-lo. Mas o que se assistiu de 1º de janeiro de 2019 para cá foi um lento processo de abandono desse combate pelo governo.

A questão pareceu se deslocar mais para a defesa de pessoas da família do presidente. É claro que denúncias nesse sentido ainda precisam ser verificadas. Ninguém pode afirmar, com certeza, que houve esse envolvimento. Mas as investigações avançam nessa direção, indicando que essa perspectiva é considerada por quem tem a responsabilidade de fazer as investigações.

Caso se confirme, sem falar da impressão de que o governo se afastou do combate à corrupção, isso afetará seriamente tanto a imagem do partido em processo de organização, como do próprio presidente. Todo o tempo ele parece mais preocupado em defender os seus do que tomar distância e garantir a autonomia e a independência que as investigações exigem.

Exemplos disso foram suas tentativas, meses atrás, de interferir em investigações em curso tanto no âmbito da receita como da Polícia Federal. Isso afeta a qualidade da democracia, pois o império da lei só é efetivo quando governos, quaisquer que sejam suas orientações ideológicas, aceitam se eximir de influir ou de controlar os organismos de fiscalização e monitoramento.

* É professor de Ciências Políticas da USP


O Estado de S. Paulo: 'Fala sobre AI-5 é gravíssima e incompatível com a Constituição', diz cientista político

Para José Álvaro Moisés, Brasil vive vácuo de lideranças políticas

Paulo Beraldo, de O Estado de S.Paulo

As declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sugerindo a possibilidade de volta de um AI-5 caso haja radicalização de movimentos da esquerda é incompatível com a Constituição Federal e gravíssima para um parlamentar eleito democraticamente. A avaliação é do cientista político José Álvaro Moisés, professor da Universidade de São Paulo e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da instituição.

Na entrevista, o pesquisador afirmou que cogitar alternativas assim é um reconhecimento implícito de que o governo não está indo bem. "Ao invés de adotar procedimentos próprios da democracia, como a busca de diálogo e entendimento com outras forças políticas, eles se voltam para políticas de exceção, como a hipótese de um golpe ou de uma radicalização dos conflitos políticos", afirmou Moisés, que lança o livro Crises da Democracia - O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos esta semana.

O cientista político afirmou ainda identificar no Brasil hoje um vácuo de lideranças capazes de interpretar o momento e os desafios do País, como a desigualdade de renda e a necessidade de crescimento econômico. "Há na sociedade um sentimento de que estamos sem alternativa, sem líderes capazes de interpretar o desafio do momento e oferecer perspectivas de futuro, que mostrem que podemos melhorar e recomeçar a construção de uma sociedade mais justa e solidária." Abaixo, a entrevista.

Como o senhor vê a declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro sugerindo a volta do AI-5 caso haja "radicalização da esquerda"?
Essa declaração é muito grave e suscita a necessidade de o Ministério Público Federal abrir um processo. Ele jurou compromisso com a Constituição. É uma declaração totalmente incompatível com a Constituição e uma coisa gravíssima que tem de ser objeto de ação da Justiça.

Não é a primeira vez que o núcleo próximo do presidente fala sobre a possibilidade de ruptura institucional. O senhor vê essa possibilidade?
É preciso ver esse cenário a partir de dois olhares. Por um lado, não creio que haja apoio social, nem mesmo nas Forças Armadas, para isso. Mas, por outro, o fato de pessoas próximas do presidente mencionarem essa possibilidade, em uma tentativa de identificar uma saída para os dilemas que o governo enfrenta e não consegue resolver, é preocupante.

Se o governo estivesse sendo bem-sucedido no enfrentamento das crises e desafios que o acometem - o fogo na Amazônia, o derramamento de óleo nas praias do Nordeste, o desemprego de milhões, a perda de renda da população - não seria necessário cogitar alternativas de exceção como essas.

Cogitar isso é um reconhecimento implícito de que o governo está fracassando e que, diante disso, ao invés de adotar procedimentos próprios da democracia, como a busca de diálogo e entendimento com outras forças políticas, eles se voltam para políticas de exceção, como a hipótese de um golpe ou de uma radicalização dos conflitos políticos.

Nesse contexto de radicalização, como vê a relação do presidente Jair Bolsonaro com a imprensa?
Líderes populistas no mundo inteiro não conseguem conviver bem com uma imprensa livre, crítica aos seus atos e decisões de governo. Bolsonaro não está fugindo desse perfil. Não consegue entender que a imprensa, e a mídia em geral, é um componente fundamental da democracia, mesmo quando essa venha a fazer críticas erradas, às quais governos democráticos sempre podem responder. Mas as suas reações à mídia não mostram tranquilidade para responder aos ataques que sofre. Ele reage destemperadamente a eles.

Qual sua avaliação da relação do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso Nacional?
O presidente adotou uma relação que não reconhece a importância de formação de uma coalizão de governo e nem de buscar a formação de uma maioria de apoio aos seus projetos. É uma escolha que não leva em consideração a natureza singular do sistema presidencialista que resultou da Constituição de 1988.

Esse sistema envolve em nosso caso uma assimetria entre as funções do Executivo e do Legislativo. O Executivo tem muito mais poder para definir a agenda política do Congresso e do País. Creio que isso é um déficit da qualidade da democracia no País, pois restringe o Congresso como representação da diversidade social, política e ideológica da sociedade brasileira. Essas características do presidencialismo de coalizão tendem a inibir parte das funções do Parlamento.

Quais as consequências de o presidente ter rompido essa lógica?
Como o presidente não entendeu essas circunstâncias por razões ideológicas, e também por sua concepção das relações entre Executivo e Legislativo, abriu-se espaço para maior protagonismo do Congresso, principalmente da Câmara dos Deputados. Isso é positivo, ao meu juízo, por estar estimulando o Congresso a definir alguns temas da agenda de reformas que o Executivo não conseguiu coordenar, mas que são de interesse público.

Ainda que o ministro Paulo Guedes fale em liberalização da economia, o fato é que tivemos um processo extremamente difícil de aprovação da reforma da Previdência. E outros temas ainda dependem de articulação do presidente, o que não está ocorrendo. Então, digamos que, por um caminho torto, o Congresso está ganhando maior protagonismo, o que pode melhorar a representação da sociedade e, de algum modo, responder às expectativas dos eleitores.

O senhor está lançando um livro que fala de crises da democracia. Por que crises no plural?
O livro Crises da Democracia - O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos se refere a questões que, no meu entendimento, são déficits e distorções do sistema político brasileiro, os quais acabam frequentemente gerando crises. Crises às vezes permanentes, às vezes momentâneas. Uma delas é relativa à qualidade da representação. O desempenho do Congresso Nacional é, em certo sentido, paradoxal, pois os parlamentares produzem muito, mas aproveitam pouco a sua própria produção.

Entre 1995 e 2010, em um período de 16 anos - segundo as pesquisas que coordenei -, os deputados brasileiros apresentaram cerca de 27 mil projetos de lei. Não é pouco, ao contrário, é um bom indicador de enorme capacidade de produção, de proposição de leis e de políticas públicas, por parte dos representantes do povo. 25% desses projetos se concentraram na área de direitos de cidadania, ampliação, confirmação, reexame dos direitos de cidadania. Também nas áreas de economia, segurança e saúde, o que significa, portanto, um desempenho nada ruim. Contudo, desses 27 mil projetos, pouco menos que 3% se transformaram em leis.

O Congresso não conseguiu aproveitar a sua própria produção e devolver para a sociedade um volume maior de propostas que pudessem atender aos anseios, reivindicações e aspirações dos eleitores. Isso compromete o seu desempenho. Agora, segundo tudo indica, sob o impacto da mudança de relação entre o Executivo e o Legislativo neste ano, a Câmara parece que está enfrentando esse dilema. Mas ainda temos outros déficits a serem enfrentados.

Elas são 52% da população e cerca de 15% do Congresso. Alguns se perguntam se aumentando a presença feminina melhora a representação. Eu entendo que sim, pois abre a possibilidade de as mulheres apresentarem seus pontos de vista, não tanto quanto a uma estrita agenda feminista, mas quanto a temas que interessam a elas e ao País como um todo.

O senhor falou em luz amarela. Desde o início do mandato, críticos do governo afirmam que o presidente Jair Bolsonaro tem governado mais para o seu núcleo de apoio do que para todos os brasileiros, que não estaria assumindo as responsabilidades de representar o País como um todo. O que o senhor pensa disso?
Minha avaliação vai nessa direção. Ele não assumiu a responsabilidade de governar para o conjunto do País, para uma sociedade que tem enormes diversidades sociais, regionais, culturais e também ideológicas. Ele se distanciou desta diversidade complexa e plural que constitui a sociedade brasileira, se isolou, se relacionando quase que exclusivamente com pouco menos de um terço dos eleitores para tentar manter seu apoio. Nas eleições de 2018, Bolsonaro foi eleito com 58 milhões de votos, Fernando Haddad teve 45 milhões, e outros 41 milhões foram votos brancos, nulos e ausentes. Então, temos quase dois terços de eleitores que não votaram nele. Qualquer governo deveria levar isso em consideração.

Mas Bolsonaro se dirige, fundamentalmente, para o pouco mais de um terço que o elegeu e que, agora, talvez até seja de um pouco menos. Ele não está mostrando ter vocação para ser o presidente que o País precisa em um contexto de grave crise como o que vivemos. Buscar se relacionar com o conjunto da diversidade de forças sociais e políticas que forma o País seria algo normal em qualquer época e com qualquer governo, mas não é o que temos.

Ao invés de apresentar um projeto claro de país, não temos hoje a menor noção do que nos espera a curto, médio e longo prazos, a não ser uma ou outra proposição na área da economia, mas mesmo assim isso ainda é incerto.

Mudando de assunto para a oposição agora. Qual avaliação o senhor faz dos primeiros meses de Jair Bolsonaro e o papel da oposição?
O grande desafio da oposição é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. Isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

A oposição tem feito críticas a propostas do governo que fazem sentido, como as que ajudaram a melhorar a reforma da Previdência, mas isso é insuficiente.

Até agora ainda não surgiu uma liderança individualizada, algum partido, ou uma coligação de forças capaz de oferecer uma perspectiva nova e consistente para o conjunto de País.

Há na sociedade um sentimento de que o governo vai mal, faz coisas que não fazem muito sentido, mas quanto a isso estamos sem alternativa, sem líderes capazes de interpretar o desafio do momento e oferecer perspectivas de futuro, que mostrem, por exemplo, que podemos melhorar e recomeçar a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Nas eleições de 2018, as lideranças políticas tradicionais deixaram um vazio que não respondeu à insatisfação que emergiu nas manifestações de 2013, insatisfação quanto às políticas públicas, os partidos e as lideranças partidárias. Foi esse vazio que abriu espaço para que Bolsonaro fosse eleito, mas a oposição não se atualizou e ainda não apresentou uma alternativa a tudo que ele representa.

O senhor vê alguma figura emergindo? O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já foi chamado de primeiro-ministro pelo então líder do governo na Câmara, Delegado Waldir (PSL-GO), no início do mandato. A deputada Tábata Amaral (PDT-SP) afirmou que havia um vácuo na "questão social" e apresentou um pacote de medidas com apoio de Maia...
Rodrigo Maia, de fato, tem mencionado que não basta fazer as reformas e adotar medidas econômicas se não houver cuidado, um olhar especial, para a questão social. Isso é um sinal novo. Aliás, tanto no caso do Rodrigo Maia como de Tabata Amaral, e de algumas outras figuras que estão procurando definir uma nova perspectiva para o País, como o ex-governador Paulo Hartung, do Espírito Santo, poderá vir uma resposta para a crise de lideranças que eu mencionei. Luciano Huck também está dando sinais nessa direção. Ele foi mencionado como possível candidato no ano passado, o que não se concretizou, mas está ligado a movimentos de renovação política, e está se aprofundando no conhecimento de temas importantes para o País e se posicionando quanto a esses desafios. Essas figuras podem vir a ser uma resposta ao diagnóstico de crise de lideranças. Podem apontar para uma mudança.