jornal do brasil

Flávio Cordeiro: O Coringa em nós

Assisti Coringa neste final de semana. Há tempos não saía de uma sala de cinema tão incomodado. Creio ser essa uma das funções principais da arte: incomodar para acordar. O mecanismo dos pesadelos é, mais ou menos, o mesmo. O pesadelo nos faz despertar incomodados por uma questão que precisa ser encarada ou, do contrário, permanecerá nos assombrando noites a fio. A arte, por vezes, com beleza e emoção, incomoda pelo mesmo motivo: nos apresenta um tema indigesto com o qual, como sociedade, precisamos lidar. Coringa é certamente indigesto.

Coringa não fala de um louco; fala do processo de enlouquecimento que uma sociedade insana é capaz de produzir através do massacre cotidiano que impõe aos seus membros mais fragilizados. Portanto, fala de todos nós.

Curiosamente, no sábado pela manhã, antes de decidir comprar ingressos para o filme, reli, meio ao acaso, “A Política da Experiência”, de Ronald Laing, psiquiatra escocês que já citei num recente artigo AQUI. Este livro pode ser lido como uma espécie de making of do Coringa. Diz Laing, escrevendo em 1967: “Na Grã-Bretanha, no momento, existem cerca de 60.000 homens e mulheres internados em manicômios. Uma criança nascida hoje na Grã-Bretanha tem dez vezes mais oportunidades de ingressar num manicômio que numa universidade. Isso pode ser considerado um sinal de que estamos enlouquecendo nossos filhos com muito mais eficácia do que os estamos educando. Talvez seja nossa própria maneira de educá-los que os enlouqueça”. Enquanto assistia a dança do Coringa no cinema, essas palavras martelavam na minha cabeça, e eu me peguei pensando: quantos Coringas foram construídos nessas cinco décadas que separam os escritos de Laing dos dias atuais?

Enquanto a medicina e a ciência continuam buscando uma suposta origem orgânica para a loucura, Laing nos confronta com uma importante questão: até que ponto a loucura é um produto social? Descaso, desprezo, abusos, humilhação, pobreza endêmica, exposição contínua à violência; esses são todos aspectos sociais envolvidos no processo do enlouquecimento. São todos produtos de Gotham City.

Jung, que foi psiquiatra no maior hospital psiquiátrico da Suíça, num tempo em que o psiquiatra residia com a sua família no hospital, afirma que se nos dermos ao trabalho de escutar com cuidado e atenção àquela pessoa que se encontra mentalmente adoecida, o discurso que parece absurdo, adquire subitamente um sentido. Ao descobrir um sentido no sem-sentido, há uma aproximação mais humana daquela pessoa que sofre dos mesmos problemas humanos que nós, e, segundo Jung "nem de longe é uma máquina cerebral em desordem”; assim, continua ele: "Passamos a reconhecer na loucura apenas uma reação inusitada a problemas emocionais que pertencem a todos nós”.

O que infere-se a partir da visão de Jung é que há um Coringa muito mais próximo de nós do que supomos ou gostaríamos de admitir, simplesmente porque, sendo humanos, estamos todos expostos ao ambiente potencialmente enlouquecedor das Gotham Cities que criamos. Não estou me atendo às explosões de violência do personagem no filme, mas sim ao fato de que a realidade social massacrante é capaz de tornar a vida tão insuportável a ponto de tragar a integridade psicológica do indivíduo.

O filme mostra um indivíduo que revida com violência as mesmas violências e humilhações que sofre repetidamente. Mas, na vida real, os loucos quase nunca revidam, eles adoecem; seu delírio é a forma que encontram para lidar com o absurdo do cenário inumado de Gotham City. São, ao contrário, as pessoas ditas “normais" que mais violentam e que dão aval para a violência institucionalizada.

O psiquiatra argentino Alfredo Moffatt afirma que em 30 anos de trabalho em oficinas terapêuticas, com pacientes esquizofrênicos, jamais testemunhou um episódio de violência. Diz ele: “Os loucos são boa gente, são pacíficos”, o mesmo não podendo dizer dos "normais”. Sobre os ditos “normais", devolvo a palavra a Ronald Laing: “A pessoa ‘normalmente alienada’, em razão de agir mais ou menos como os demais, é considerada sã pois a sociedade valoriza altamente o homem normal. Homens normais mataram talvez 100.000.000 de seus semelhantes normais nos últimos cinquenta anos.”

Não se trata de glorificar a loucura, que é uma condição de sofrimento humano das mais graves, mas sim de relativizar a dita normalidade, dado que Gotham City e seus cidadãos “normais" produzem Coringas em série.

A agonizante transformação de Arthur Fleck em Coringa me fez lembrar de uma antiga frase do pensador indiano Jiddu Krishnamurti: “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”.

Enquanto o Coringa dança, Gotham City enlouquece.

* Psicólogo e Psicoterapeuta


Chico Alencar: Milícia, malícia e maldição

O capitalismo de compadrio do Brasil não se livrou do mandonismo escravocrata. A propalada “tradição pacífica” dos brasileiros é um mito, discurso enganoso em uma das sociedades mais desiguais do planeta. Nosso processo social é conflituoso, com relações violentas entre as classes, ao longo da história.

Em pleno século XX, a permanência de traços da dominação sangrenta e despótica é uma negação da República. As milícias, particularmente fortes no Rio de Janeiro, são expressão dessa barbárie: reproduzem controle e exploração manu militare. São a contrafação do tráfico armado de drogas, igualmente autoritário e cruel. Ambos com o êmulo do lucro, do deus Dinheiro.

Todas essas formas de imposição têm por base o controle territorial a poder de fogo. O Brasil colônia era uma unidade política apenas nominal: a força local (e “legal”!) era hegemônica e aterrorizante, a cargo dos capitães-do-mato, capatazes dos “donos de gado e gente”. Os seus chefes, depois coronéis da República Velha, eram valorizados na ordem vigente: “o ser senhor de engenho traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado por muitos”, relatou Antonil, em seu livro sobre as riquezas do Brasil, publicado em 1711.

As milícias diferem dos bandos de traficantes por seus elos com o poder institucional - e isso lhes dá muito mais poder. O crime do varejo de drogas ilícitas é desorganizado. O das milícias, não. Daí sua maior capacidade corrosiva.

O atual presidente Jair Bolsonaro defendeu esses grupos mafiosos: “em região onde tem milícia paga, não tem violência”, avalizou, ano passado, louvando os grupos paramilitares. Em dezembro de 2008, quando destaquei, na Câmara, o relatório final da CPI das Milícias (que Flávio Bolsonaro nunca apoiou), levado pelo deputado estadual Marcelo Freixo, seu grande artífice, Jair reagiu: “não é assim, elencar todos os milicianos como bandidos! (...) Como o PM ou o bombeiro ganha R$ 850 por mês, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com exploração de ‘gatonet’, venda de gás ou transporte alternativo. Esse relatório está cheio de policiais e bombeiros que não têm nada a ver. É um relatório covarde, feito em cima do disque-denúncia”.

É notória a admiração que o clã Bolsonaro tem por aquilo que já foi chamado de “polícia mineira”, e vários classificam como “autodefesa comunitária”. São os saudosistas do Brasil oligárquico, do poder coronelista e dos capangas que protegem suas atividades econômicas.

Essas relações perigosas bordejam a conivência ou cumplicidade com ações criminosas. Há vínculos suspeitos de Flávio Bolsonaro com as milícias, prestando homenagens oficiais na Alerj a figuras hoje presas ou foragidas e empregando mãe e mulher do “patrãozão”, ex-capitão do Bope. A promotora Simone Sibilio caracteriza Adriano Nóbrega (cuja “dedicação, brilhantismo e galhardia” o Bolsonaro 01 destacou) como “muito violento e temido até pelos seus comparsas, que exerce seu poder impondo o terror, e que precisa ser retirado rapidamente de circulação”. Jair o defendeu, quando acusado de homicídio, na tribuna da Câmara, além de comparecer ao seu julgamento.

Está sendo investigada também a ligação dos milicianos presos na recente operação conjunta do MP e da Polícia Civil com o chamado “Escritório do Crime”, quadrilha de assassinos suspeita da bárbara execução de Marielle e Anderson, que completará um ano em março.

A propósito, jamais ouvi de qualquer dos Bolsonaro uma palavra de repúdio ao crime hediondo, ao contrário da unânime condenação à estúpida facada que atingiu o atual presidente, em setembro. Desprezando qualquer sentimento humanitário elementar, seguidores de Bolsonaro quebraram placa de homenagem a Marielle, com aplausos de quem veio a ser eleito governador do Rio de Janeiro. Parcerias tenebrosas, tempos atrozes!

*Chico Alencar é professor da UFRJ e escritor.