Jair Bolsonaro

João Domingos: Tensão permanente

Qualquer coisa que atinja os filhos do presidente respingará no governo

Pela composição da chapa presidencial, pelo resultado da eleição para a Câmara e para o Senado, e pela escolha de alguns ministros que tendem a se pautar pela ideologia ou mesmo pela fé religiosa, é bastante provável que o governo de Jair Bolsonaro venha a ter no mínimo três focos permanentes de tensão.

O principal deles, e desse não há como escapar, está na família do presidente eleito. Pela primeira vez na história recente do País, e é possível que em todo o período republicano, um presidente da República terá três filhos com mandato parlamentar: Eduardo, deputado, Flávio, senador, estes dois pelo PSL, e Carlos, vereador no Rio de Janeiro pelo PSC. Todos eles conselheiros do pai, ativos politicamente, e muito atuantes pelas redes sociais.

Qualquer opinião deles a respeito de seja lá o que for, qualquer articulação que fizerem, qualquer coisa que os atinja, respingará no governo e será notícia com destaque. Natural que seja assim, porque não há como desvincular o pai dos filhos sabendo-se que são tão unidos e que têm o pensamento praticamente igual.

Exemplos da grande repercussão de tudo o que envolve os filhos já há aos montes. Em abril o deputado Wadih Damous (PT-RJ) xingou o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, e disse que a solução para a Corte seria o seu fechamento, transformando-a em tribunal constitucional. O deputado Eduardo Bolsonaro disse em julho, numa palestra, no Paraná, que bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. O choque maior foi causado pela fala de Bolsonaro, pois ele vive a expectativa do poder. Damous já o perdeu.

Quando a disputa pelas presidências da Câmara e do Senado começar, qualquer coisa que Flávio Bolsonaro fizer no Senado, ou o irmão fizer na Câmara, será visto como um ato consentido do pai, o presidente da República, mesmo que nada tenha a ver com ele. Se por um lado Jair Bolsonaro pode dizer, como tem dito, que é um pai feliz por ter três filhos em cargos eletivos, por outro ele terá de aceitar que, pelas circunstâncias que envolvem o poder, os filhos são também um peso.

O segundo possível foco de tensão do governo de Bolsonaro estará no recém-criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em primeiro lugar, porque é um ministério que atuará em áreas sensíveis da sociedade, envolvendo índios, minorias, direito das mulheres, comunidade LGBT e as novas siglas que a ela vão se interligando e direitos humanos. O ministério será um ímã para atrair a atenção dos grupos sociais mais organizados e engajados do País, levando-se em conta as opiniões conhecidas da futura ministra da pasta, a advogada e pastora Damares Alves.

Ela já se disse contrária ao aborto, que ninguém nasce gay, que não é a política, mas a igreja evangélica que vai mudar a Nação, e que as feministas promovem uma guerra entre homens e mulheres. Não há dúvidas de que a polêmica vai se instalar nessa área. Para piorar, o Ministério Público abriu ação civil pública contra uma ONG de Damares por “dano moral coletivo decorrente de suas manifestações de caráter discriminatório à comunidade indígena” por causa da divulgação de um filme sobre infanticídio indígena feito pela organização. Os procuradores pedem que a ONG seja condenada a pagar R$ 1 milhão.

O terceiro possível foco de tensão no governo de Bolsonaro está no vice-presidente, o general Hamilton Mourão. Acostumado a falar o que pensa sobre tudo e sobre todos, da política externa à política trabalhista, da necessidade de aprovação da reforma da Previdência à privatização de estatais, o vice causa barulho. Mesmo que diga que perdem tempo os que acham que vão intrigá-lo com Bolsonaro, suas declarações sempre vão causar impacto.

 


William Waack: A escolinha de Brasília

Um choque da política como ela é aguarda os recém-eleitos

Alguns deputados federais recém-eleitos vão para o banco de uma escolinha de política antes de assumirem as cadeiras em Brasília. Conversei informalmente nesta semana numa reunião com quatro desses jovens representantes do povo, que tiveram boa votação por partidos diferentes como PSB, PDT e Novo em Pernambuco, Rio, Minas e São Paulo. Esses quatro novatos na Câmara (João Campos, Tabata Amaral, Paulo Gamine e Tiago Mitraud) pareciam desenvoltos, seguros, articulados e bem falantes – e com claras diferenças políticas entre si.

Em comum, dizem que vão votar pela própria consciência. “Sem caciques?”, veio a pergunta. “Sem caciques”, responderam. “Política como era”, adiantou um deles, “não vai mais ter”. É exatamente o que Jair Bolsonaro disse na terça-feira, no primeiro encontro do presidente eleito com uma bancada partidária, a do MDB. Na saída, o líder do MDB na Câmara, Baleia Rossi (SP), disse que seu partido (a expressão consumada da velha política) não vai pedir cargos no novo governo. Todo mundo fingiu que acreditou.

Está decretado o fim do toma lá, dá cá, do presidencialismo de coalizão? Um presidente popular, cavalgando uma onda fortíssima de transformação política, vai conseguir governar sem ter de distribuir cargos, favores, ministérios “porta fechada” a políticos em troca de votos no Congresso? Acho dificílimo beirando o improvável. Por mais que se reconheça o impacto do voto de outubro, o sistema de governo está montado assim.

A renovação da Câmara para 2019 está um pouco acima dos padrões habituais, mas o que interessa sobretudo é a qualidade da renovação – e aqui há tanto boas surpresas quanto muito a desejar. Caciques apanharam, legendas tradicionais foram surradas, mas, paradoxalmente, o novo governo vai sentir falta de operadores capazes de fazer as coisas funcionarem. Afinal, não estamos falando de um ajuntamento de políticos reunidos como se fossem participantes de uma assembleia que só vota sim ou não. O Legislativo é uma instituição não só com muitos poderes, mas também com um acentuado espírito de corpo. Não é à toa que mesmo os recém-eleitos já falam da escolha de um presidente da Casa que não seja “pau-mandado do governo”.

O “fator Lava Jato” (leia-se Sérgio Moro) funcionará como sinal amarelo/vermelho para balizar o comportamento de parlamentares, mas o decisivo será entender que o Congresso continuará funcionando nas comissões técnicas e nas mesas diretoras através de partidos. As tais bancadas suprapartidárias são um ponto de partida, mas não têm a mesma consistência, organização e comando para dar segurança a quem precisa contar com um grande número de votos em matérias complexas. E nesse ponto é que se aguarda, respiração em suspenso, quais lideranças parlamentares surgirão, e como o governo vai lidar com elas.

Os quatro recém-eleitos acima descrevem felizes o fato de não terem dependido de cabos políticos tradicionais, como prefeitos e vereadores – portanto, estão “livres” para votar como quiserem. Mas não é assim com a imensa maioria de Vossas Excelências, que precisam da famosa emenda parlamentar para sustentar a base eleitoral.

Em parte, o governo é refém da promessa de acabar de um golpe só com o fisiologismo. Na ausência de uma profunda e ampla reforma política é temerário acreditar que isso aconteça por súbita “conversão” dos parlamentares (ou pela pressão articulada através de redes sociais). A política tal como ela é, com seus compromissos, negociações, troca de favores e influências – nada disso precisa ser imoral ou ilícito –, é a verdadeira escolinha que aguarda os recém-eleitos.


Bruno Boghossian: Guerra ideológica de Bolsonaro incomoda até políticos conservadores

Não foram poucas as ocasiões em que Jair Bolsonaro disse que "a questão ideológica é tão ou mais grave que a corrupção". Parecia um exagero retórico para alimentar o antipetismo que o empurrou para a vitória nas urnas. Passada a campanha, aliados do presidente eleito ainda levam a máxima ao pé da letra.

Eduardo Bolsonaro acha razoável prender até 100 mil pessoas ligadas a movimentos sociais. Defende substituições em massa no corpo diplomático para se livrar do "marxismo" do Itamaraty. Também considera importante aprovar uma lei que torne crime o comunismo.

O tom que o filho do presidente eleito adotou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo incomodou até políticos conservadores. Dirigentes de partidos dispostos a apoiar as pautas do próximo governo temem que a equipe de Bolsonaro perca tempo e gaste energia à toa com sua guerra ideológica.

Embora a agenda de direita tenha aderência no Congresso que tomará posse em 2019, as tintas usadas por personagens como Eduardo costumam aborrecer potenciais aliados.

Para esses caciques, a eleição de Bolsonaro é uma oportunidade para aprovar a redução da maioridade penal e a flexibilização da posse de armas, por exemplo. Levar para a cadeia quem usa boné do MST, jogar o PC do B na ilegalidade e caçar embaixadores prestigiados está longe de ser uma prioridade.

O principal receio é que a overdose conservadora atrapalhe as articulações em torno da pauta econômica. Bolsonaro encontrará um Congresso menos refratário ao corte de despesas e à reforma da Previdência. Ruídos em outras áreas podem criar um congestionamento indesejado.

Líderes partidários dizem que a cruzada de Eduardo e companhia é só marketing, mas ele parece disposto a tentar vender seu produto. "Um dos papéis dos parlamentares é [...] usar sua posição de destaque, de ser um representante de parcela da sociedade, para falar dos perigos do comunismo. Assim como falo do câncer de próstata", declarou.


José Casado: Agora, a vida real vai começar

Futuro presidente e governadores precisam construir uma aliança parlamentar sólida e majoritária a partir de fragmentos políticos

Hoje, a realidade bate à porta de Jair Bolsonaro e dos 14 governadores estaduais eleitos ontem. Eles vão descobrir que o eleitorado entregou o governo, mas sonegou-lhes o poder. São coisas diferentes, interdependentes. Agora, precisam batalhar para conquistá-lo.

Para começar, precisam negociar maiorias no Legislativo, porque sem elas não governam. E o problema é que o eleitorado usou o voto para implodir o sistema partidário. Levou 30 partidos para a Câmara, plantou 21 no Senado e 31 nas assembleias estaduais.

O resultado foi o fracionamento do poder político. Exemplo: é do PT a maior bancada na Câmara, com 56 deputados que detêm apenas 11% dos votos num plenário de 513 parlamentares. No Senado, o MDB ganhou a primazia com 12 vagas, o equivalente a 15% do 81senadores.

Essa lógica se reproduziu nos estados e no Distrito Federal, onde foram eleitos 1.059 deputados. Os resultados dos partidos, individualmente, são modestos.

O MDB ficou com o maior agrupamento parlamentar estadual: 93 deputados, ou 8,7% do total — sua maior bancada está Santa Catarina (22,5% do plenário).

Já o PT ficou em segundo lugar na disputa pelos legislativos estaduais, com 85 deputados, ou 8% do total nacional. Seu melhor desempenho foi na Bahia, onde conseguiu uma fatia de 16% da assembleia.

Sem construir uma aliança parlamentar sólida e majoritária a partir desses fragmentos políticos, o futuro presidente e os governadores se arriscam a uma rápida erosão da legitimidade alentada nas urnas.

Bolsonaro, ontem, deixou entrever sua inquietação: “Todos os compromissos assumidos serão cumpridos com as mais variadas bancadas” — fez questão de dizer no primeiro discurso da vitória. Ele saiu das urnas com 57,6 milhões de votos a favor. Foi rejeitado por 46,8 milhões de eleitores.

Como os governadores, o futuro presidente terá de encontrar formas inovadoras para acertos com esse universo partidário em desencanto, ou em decomposição, porque o modo convencional de composição de interesses conduziu a essa eleição balizada pela desconfiança, na qual predominou o voto de exclusão.

Sem isso, será impossível governar, aprovar leis e administrar orçamentos que, na média, preveem R$ 130 em despesas fixas para cada R$ 100 de receita.

A partir de 1º de janeiro, presidente e governadores estarão diante de outra fase da vida real, mais dura, porque apoio eleitoral não é perene e precisa ser revalidado acada decisão.

Ao governante que perder o rumo, principalmente na recuperação da economia, só restará a alternativa de um telefonema aos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, para perguntar: “Onde foi que vocês erraram?”


Luiz Carlos Azedo: A esperança mudou de lado

“Pela primeira vez desde a redemocratização, teremos um militar na Presidência da República, eleito pelo voto direto, secreto e universal”

Toda eleição é uma esperança de mudança. Durante muitos anos, as duas palavras estiveram associadas ao PT, como um mantra para chegar ao poder. A vitória veio para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. A passagem pelo governo federal, porém, associou a esquerda à corrupção e à incompetência administrativa. Isso já havia ocorrido em muitas cidades e alguns estados administrados pela legenda, mas se generalizou em boa parte do país por causa do fracasso econômico do governo Dilma Rousseff e da condenação de Lula pela Operação Lava-Jato. Resultado: a esperança mudou de lado.

Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente da República com aproximadamente 55% dos votos válidos, contra 45% de Fernando Haddad (PT). Depois da facada que levou em Juiz de Fora, teve a imagem humanizada e fez campanha praticamente sem sair de casa, pelas redes sociais. Na reta final, venceu o medo disseminado pelos adversários de que implantaria um governo despótico, muito em razão de suas atitudes e declarações de viés autoritário e à imagem de homofóbico e misógino, construída como deputado federal em incidentes na Câmara e com a imprensa. Pela primeira vez desde a redemocratização, teremos um militar na Presidência da República, eleito pelo voto direto, secreto e universal.

O discurso político de Bolsonaro em relação ao seu governo tem matriz positivista, típica da cultura sedimentada nas casernas desde a Escola Militar da Praia Vermelha, o berço do tenentismo, e que está vivíssima no lema da bandeira nacional: Ordem e Progresso. Seu projeto político sempre foi conservador, nacionalista, autoritário, mas sinalizou um choque liberal na economia que está em contradição com essa formação político-ideológica. Para a grande maioria dos brasileiros, porém, mirou a agenda prioritária: o combate à corrupção, ao crime organizado e ao desemprego. As pautas identitárias, que funcionam como uma espécie de gazua do PT para se rearticular nos movimentos sociais e não discutir o próprio fracasso no governo, ficaram em segundo plano para a maioria dos eleitores. Serviram muito mais como um instrumento de chantagem para mobilizar o voto antibolsonaro junto ao chamado “centro democrático”. Essa pauta, porém, alimentou o medo.

Por que Haddad perdeu as eleições? Com Lula na prisão, o PT tem muitas dificuldades para responder. Somente uma autocrítica profunda poderia fazê-lo. Mas não é isso que acontecerá. O partido é prisioneiro de uma narrativa construída para varrer seus erros para debaixo do tapete. Passará à oposição com um discurso antifascista. Outro equívoco: a eleição de Bolsonaro não representa uma mudança de regime; não se pode chamar 57,8 milhões de eleitores de fascistas. Entretanto, não faltarão comparações com a República de Weimar e a chegada de Hitler ao poder.

Precisamos aprender com o Chile, palco da ditadura mais sanguinária da América do Sul. Desde a vitória do “No” no histórico plebiscito convocado pelo general Augusto Pinochet, em 1990, liberais, socialistas e conservadores se revezam no poder, em sucessivas eleições, sem nenhum retrocesso de ordem institucional. A alternância de poder é um pilar da democracia, assim como o direito ao dissenso da minoria oposicionista. Pela primeira vez, desde a eleição de Tancredo Neves, teremos um governo assumidamente de direita. A esquerda, que banalizou o termo, terá de aprender a conviver com isso. Nosso Estado democrático de direito já deu demonstrações de grande resiliência, uma delas foi sobreviver ao maior assalto aos cofres públicos de que se tem conhecimento, o escândalo do petrolão.

Compromissos
Em suas “21 lições sobre o século 21”, Yuval Harari destaca que o gênero humano constitui agora uma única civilização. “Problemas como guerra nuclear, colapso ecológico e disrupção tecnológica só podem ser resolvidos em nível global. Por outro lado, nacionalismo e religião dividem nossa civilização em campos diferentes e às vezes hostis.” Não estamos fora desse processo, cujo epicentro é a crise da União Europeia. A crise venezuelana é um alerta para a América Latina. Bolsonaro sinaliza escolhas nas quais o nacionalismo e a religião têm papel relevante; ao mesmo tempo, se depara com um país divido em três pedaços: um terço votou nulo (2,15%), branco (7,43%) ou se absteve (21,29%. A eleição também traduz a permanência de injustiças e desigualdades regionais seculares no Brasil setentrional.

“Faço de vocês minhas testemunhas de que esse governo será um defensor da Constituição, da democracia e da liberdade. Isso é uma promessa, não de um partido, não é a palavra vã de um homem, é um juramento a Deus”, disse Bolsonaro logo após a eleição. “Nosso governo vai quebrar paradigmas, vamos confiar nas pessoas, vamos desburocratizar, simplificar e permitir que o cidadão, o empreendedor, tenha mais liberdade e construir o seu futuro. Vamos desamarrar o Brasil”, declarou. “Como defensor da liberdade, vou guiar um governo que defenda e proteja os direitos do cidadão que cumpre seus deveres e respeita as leis. Elas são para todos porque assim será o nosso governo: constitucional e democrático”, reiterou. Oxalá seja mesmo verdade.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-esperanca-mudou-de-lado/


José de Souza Martins: Macunaíma vai às urnas

Nestes dias, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, se prepara para a escolha do cacique que governará a taba chamada Brasil. Passa cuspe no pente para ajeitar o cabelo com que fingirá a boniteza de que carecem os que vão cortejar a urna donzela. Espera encontrar ali a muiraquitã mítica e sagrada para enfeitar-se ainda mais e iludir-se quanto ao que é e pode.

Na incerteza, talvez não encontre nem a si mesmo, perdido na extensão do território e na identidade fragmentada, moqueada desde o seu estranho nascimento para não degradar-se. Não nasceu, foi desovado, de repente, no meio da tiguera de uma roça antiga. Despencou, preto, de dentro do ventre de uma mãe sacrificial e se tornou branco à luz do dia tropical.

Seres de metamorfoses, continuamos sendo assim, macunaímicos, à procura da muiraquitã de nós mesmos. Serão dois os candidatos: Macunaíma e Macunaíma, espelho um do outro, que se fizeram reciprocamente, negando-se na intolerância que é a mesma em nome de causas opostas. Coisa da dialética da mesmice, do mudar sem sair do lugar, do caminhar cada vez mais para ficar cada vez mais longe do destino, como descobriu a macunaímica Alice do País das Maravilhas, inventada por Lewis Carroll, clérigo e matemático. É que Macunaíma não é apenas o herói local de nosso patriotismo difuso. Ele é universal. Ele ou ela? Sabe lá, Deus.

Macunaíma é criativo. Muito religioso, não tem religião. Foi batizado três vezes: numa pia batismal da Igreja Católica, nas águas do rio Jordão, lá na Terra Santa, por um pastor neopentecostal, e no tanque batismal por outro pastor neopentecostal, aqui na terra não tão santa. Qual batismo vale? Sacramento também macunaímico? Muda de água, muda de cor.

Ou que, em outra igreja, comunga para ser visto, pois é mais importante parecer do que ser. Coisa do duplo e contraditório que Macunaíma é. Já para não falar que um desses Macunaímas foi visitar um cardeal e assinar uma declaração de amor a valores conservadores e pré-modernos de família e de escola. Tem firmeza a promessa de quem não tem firmeza no batismo? Não faltou nem mesmo, diante de uma imagem de Cristo, o gesto no dedo no gatilho por parte de funcionárias da Cúria. Que Deus é esse, santo Deus?

Uma coisa é certa, apesar do Macunaíma que somos, Deus é mais ou menos brasileiro. Mostrou isso no primeiro turno das eleições, nos muitos banimentos do castigo eleitoral. Foi injusto em alguns casos, mas não em todos. De propósito, escolheu o Estado que leva o nome de uma das pessoas da Santíssima Trindade, o Espírito Santo. Um senador da província, pastor neopentecostal, apóstolo do endireitamento do Brasil, quase candidato a vice-presidente, preferiu tentar a reeleição. Esqueceu-se de que Deus atua também no varejo, não só no atacado do poder. Gosta mais de simples eleitores do que de ambiciosos candidatos.

O senador foi derrotado por um opositor gay, da Rede, de Marina Silva, partido de esquerda, tudo oposto ao que o derrotado é e quer que os outros sejam. Deus castiga. Desinverte o mundo invertido. Põe ordem no que a intolerância e o autoritarismo, adversos à democracia, viraram de cabeça para baixo. Na suposição falsa de que o mundo subvertido pelo uso em vão do nome sagrado é o verdadeiro mundo de Deus. Nesse processo, o magno saiu mínimo.

O trono republicano já está quase vago, à espera do traseiro que o ocupará. O que Macunaíma nele fará? Não se governa um país cheio de surpresas, como este, com o traseiro. Nem com grunhidos. A incerteza macunaímica nos sugere que é melhor rezar. Reler a Constituição também ajuda. Ficar de olho nos transgressores, cuidar para que as instituições sejam mantidas e respeitadas, doa a quem doer. O poder depende do cérebro. Já tivemos governantes de cérebro pequeno, em que cabia pouca coisa mais do que frases feitas, truques publicitários, lugares-comuns, inquietações prosaicas, expressões de uma pobre ideia de pátria, impatriótica. Nada muito diferente de conversa de botequim em fim de dia.

Macunaíma é, culturalmente, expressão do Brasil, mas não tenho certeza de que em sua incerteza constitutiva possa de fato personificar a pátria. A terra da muiraquitã dos nossos desejos, mas não necessariamente de nossas esperanças. São coisas diferentes.

O desejo é humano, a esperança é sobre-humana, pede humildade e renúncia, competência e coerência, respeito, sobretudo para compreender as enormes contradições de Macunaíma e nelas introduzir a gratuidade da luz do conhecimento e do discernimento. Esse é o mundo do espírito, avesso à coisificação e à precificação que o desfigura e trai. O espírito não é a mercadoria nem o dinheiro que escravizam. Antes é sua negação, a negação que liberta.

* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).


Paulo Roberto Pires: Diante do fascismo

“Vocês vão dizer que estou tentando assustar vocês com esses paralelos”, pondera Stanley. “E, quer saber? Estou mesmo.”

“Intelectual”, escreveu Millôr Fernandes, “é um cara capaz de chamar a galinha em meia dúzia de línguas diferentes, mas pensa que quem põe ovo é o galo.” Foi o debate da galinha que nos últimos meses mobilizou intelectuais e comentaristas empenhados, sabe-se lá com que fins, em destacar a impropriedade de definir como “fascista” a teoria e a prática de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Preferiu-se discutir se marola é tsunami a organizar uma eventual fuga para as montanhas. Hoje, cheios de razão, estão prestes a morrer afogados.

E tome Hannah Arendt, Norberto Bobbio, George Orwell e mal disfarçada Wikipédia para explicar por que seria exagero, tergiversação ou ignorância associar fascismo à peculiar concepção de sociedade que se traduz nos atos e planos do capitão, sua família, seu economista, seus generais e recrutas. Provou-se, por evidente, que Bolsonaro não é Stálin, Hitler ou Mussolini. Agora, com a besta à solta, quando se intimida, agride e mata em nome do que o rigor não deixa dizer, os zeladores do léxico político balbuciam, em tom moral, paráfrases de Pedro e o lobo: tanto se gritou — em vão, insistem — contra o fascismo que diante da ameaça real corre-se o risco de ninguém acudir.

Na Itália de 1975, Pier Paolo Pasolini levava bordoada da esquerda e da direita pela suposta impropriedade política e ideológica de apontar o ressurgimento do fascismo. Gay e comunista, o cineasta não delirava, é claro, com uma volta dos camisas-negras, mas denunciava sem rodeios como o fascismo era normalizado. Toda homogeneização, do consumismo ao racismo, visava, segundo ele, “à reorganização e à normalização brutalmente totalitárias do mundo”. Fazia do fascismo uma palavra de combate, perfeitamente inteligível, e temia ser vítima do que denunciava. Foi massacrado por um garoto de programa poucas horas depois de dar uma entrevista que, quando publicada no La Stampa, ganhou do repórter Furio Colombo o título que o próprio Pasolini recomendara: “Estamos todos em perigo”.

Jason Stanley nasceu em 1969, é especializado em filosofia da linguagem e dá aulas em Yale. Nos últimos dez anos, tem estudado propaganda política e acaba de lançar
How fascism works (Como funciona o fascismo), livro curto e elucidativo que mostra como e por que o discurso de Donald Trump é comparável, e não só retoricamente, a alguns dos mais notórios líderes fascistas da história — que por sua vez inspiram movimentos espalhados pelo mundo. Num vídeo para o New York Times, Stanley enumera essas ocorrências à medida que contornos de mapas piscam na tela — o do Brasil é o terceiro a aparecer.

No Tinder ideológico, Bolsonaro dá match no perfil de liderança fascista traçado por Stanley. Na base de tudo, a mitificação do passado e seu uso para controlar o presente: a ditadura é a ordem perdida a ser recuperada. A política é oculta sob imperativos morais: “Campanhas anticorrupção estão frequentemente no cerne de movimentos políticos fascistas” e os conduzem ao poder por eleições. O antiintelectualismo garante o discurso da nação, “atacando e desvalorizando” a universidade e todo tipo de educação que não leve ao reforço de ideias dominantes — estudos de gênero, por exemplo, são duplamente indesejáveis, pois questionam a família patriarcal e geram a “ansiedade sexual” manifesta no preconceito.

Na política fascista, o debate público é substituído por manifestação de raiva e imposição de medo, criando uma “irrealidade” facilmente controlável. Exalta-se uma hierarquia “natural” de fortes sobre fracos, homens sobre mulheres, brancos sobre negros, héteros sobre gays — qualquer abalo dessa ordem implica a vitimização do dominador. O fascista, lembra Stanley, nem sempre quer conquistar o mundo ou organizar o extermínio. Seu objetivo é naturalizar, como democrático, o autoritarismo.

O risco não está, portanto, só naquilo que um fascista eleito possa fazer, mas no que ele autoriza. Advertiu-se muito sobre o ovo da serpente, mas no Brasil o estrago foi feito enquanto se esperava o ovo do galo.

*Paulo Roberto Pires é jornalista e professor de comunicação na UFRJ


Rogério Furquim Werneck: Choques de realidade

O candidato Jair Bolsonaro desfaz rumores de que passara a ser adepto do liberalismo econômico

A dez dias do segundo turno, o desfecho da eleição presidencial parece cada vez mais nítido. Grosso modo, as pesquisas eleitorais mostram que Fernando Haddad tem quase o dobro dos votos válidos de seu adversário no Nordeste, e cerca de metade dos votos de Jair Bolsonaro nas demais regiões. O que o deixa com cerca de 70% dos votos válidos de Bolsonaro no país como um todo. É improvável que, a menos de erros muito graves do candidato do PSL, diferença tão grande possa vir a ser eliminada até o dia 28.

Na campanha do primeiro turno, o PT fez o que pôde para poupar o capitão. Concentrou seus ataques nos candidatos de centro. E deixou mais do que claro que preferia ter Bolsonaro como adversário no segundo turno. Acalentava a ideia de que as forças políticas de centro não teriam alternativa a não ser lhe dar apoio no embate que seria travado contra a extrema direita.

Além de não perceber o avassalador sentimento antipetista que teria de enfrentar no segundo turno, o PT fez de tudo para exacerbá-lo ao longo do primeiro. Esticou a corda da candidatura Lula até mais não poder, obrigou Fernando Haddad a aceitar um papel grotesco, de abjeta submissão ao ex-presidente, e apostou todas as fichas numa desonesta campanha ilusionista, focada nos segmentos mais carentes e menos informados do eleitorado. Levou ao limite do possível o discurso infantilizado de que Haddad era Lula e de que sua eleição permitiria ao “povo ser feliz de novo”.

Para cumprir à risca o que lhe foi determinado, Haddad teve de insistir na cega negação dos grandes erros do PT. Para enorme irritação de eleitores com um mínimo de discernimento, agarrou-se a uma narrativa mentirosa para tentar omitir do eleitorado menos instruído a parte crucial da história: o povo só deixou de ser feliz porque Lula permitiu que Dilma Rousseff lançasse o país no colossal atoleiro em que está metido, ao cometer o desatino de alçá-la à Presidência da República. Mas, por mentirosa que tenha sido, a artimanha funcionou. Foi o que bastou para levar Haddad ao segundo turno, no bojo de uma sólida votação no Nordeste.

No entanto, o que lhe servia para o primeiro turno passou a ser estorvo no segundo. E Haddad constata, agora, que não adianta cobrir o vermelho com verde-amarelo, trocar a camiseta com Lula Livre por terno e gravata, deixar de bradar que a Justiça brasileira desobedeceu à ONU e extirpar, às pressas, as propostas mais alopradas do seu programa de governo. De tal forma se apequenou e tanto exacerbou o sentimento antipetista, que não tem mais como angariar o respeito que seria requerido para aglutinar uma coalizão mais ampla que ainda possa barrar a eleição de Bolsonaro.

Já em boa parte alheio às insanáveis dificuldades da candidatura petista, o país aperta os cintos para se preparar para o impacto da eleição de Bolsonaro. O capitão não quis correr riscos desnecessários. Achou mais prudente desfazer desde já, ainda no segundo turno, rumores de que passara a ser adepto do liberalismo econômico e da responsabilidade fiscal.

Suas manifestações recentes, sobre um leque variado de questões relacionadas à política econômica, parecem ter sido inspiradas na sua preocupação com a necessidade de tranquilizar seu eleitorado mais tradicional, deixando claro que, ao arrepio do que andam alardeando por aí, são totalmente falsas as notícias de que o candidato teria sido inoculado, de forma irreversível, com um ideário econômico liberal ou com convicções inabaláveis sobre a importância da responsabilidade fiscal.

Muito pelo contrário. As manifestações ofereceram evidência cabal de que Bolsonaro resistiu com grande sucesso ao processo sistemático de inoculação dessas ideias a que foi submetido nos últimos meses. E mostraram, de forma inequívoca, que o candidato continua aferrado às mesmas convicções sobre questões econômicas que pautaram suas quase três décadas de atuação no Congresso Nacional.

Só o incorrigível apego ao autoengano explica que, a esta altura, ainda haja quem insista em descrer dessa evidência.


Ruy Fabiano: A gangorra do destino

Lula e Jair Bolsonaro, os dois fenômenos contemporâneos da política brasileira – um em declínio, outro em ascensão -, foram forjados por vias opostas, que, no entanto, os levaram a resultado equivalente: tornaram-se lideranças populares e populistas, quebrando convenções, protocolos e padrões de conduta do meio.

A semelhança finda aí. Lula teve, desde o início, ainda na década dos 70, trajetória marcada pela simpatia da mídia, dos artistas e intelectuais, que, em conjunto, compuseram um personagem romanesco: o retirante que vence barreiras sociais e, de líder operário, chega a chefe de partido e presidente da República.

Bolsonaro, capitão da reserva do Exército, protagonizou narrativa inversa, marcada por vaias, insultos e processos judiciais. O mesmo universo que incensou Lula depreciou-o num grau extremo, que o tornou uma espécie de anticristo da política brasileira.

Nazista, fascista, homofóbico, racista, machista são apenas alguns dos apodos com que foi brindado ao longo de sua carreira.

Nada indicava que tal trajetória desembocaria em popularidade. Desde sua matriz profissional, colecionou problemas. Em 1986, capitão do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, foi preso por quinze dias após publicar artigo na revista Veja, reclamando dos salários dos militares.

A mesma postulação o levaria, um ano depois, a se meter em outra encrenca, acusado de participar de ação subversiva que previa até o uso de bombas nos quartéis. Foi absolvido pelo STM, mas a agitação que provocou comprometeu sua carreira.

Estava mais para sindicalista que militar. Como sua categoria não é sindicalizável, migrou diretamente para a política em 1988, passando à reserva do Exército. Elegeu-se vereador no Rio de Janeiro – e, desde então, não mais cogitou em voltar ao quartel.

Jamais, porém, perdeu os vínculos com seus antigos companheiros de farda e deve em parte a eles as sucessivas reeleições à Câmara. Foi sempre o candidato da Vila Militar do Rio.

Aos 62 anos – é dez anos mais novo que Lula -, está no seu sexto mandato de deputado federal. Sua carreira parlamentar não foi mais tranquila que a militar. Pelo contrário, teve ali espaço para dar expansão a um temperamento impulsivo e explosivo, que não mede palavras, o que o levou a colecionar inimigos e processos.

É classificado ideologicamente como de direita; Lula como de esquerda. Mas ambos frequentemente violam as respectivas ortodoxias e escandalizam os próprios seguidores. Lula já elogiou o governo Médici, enquanto Bolsonaro certa vez elogiou Hugo Chávez.
Seus aliados, no entanto, absorvem essas heresias em nome de um culto que está para além do meramente racional.

As mutações do Brasil, a partir da Era PT, em 2003, inverteriam o destino de ambos. Lula encontrou-se com a vaia e a desonra, enquanto Bolsonaro passou a conhecer o aplauso e a admiração. A chave dessa mudança é uma palavra simples, historicamente corrente na política brasileira: corrupção.

No poder, Lula, que construiu sua ascensão a partir de um discurso fortemente moralista (Brizola chegou a chamá-lo de “a UDN de macacão”), associou-se a ela de tal modo que hoje, além de condenado em um processo, é réu em mais seis.

Tenta se defender acusando a Justiça de criminalizar a política, mas o que faz, na prática, é investir na politização do crime. “O que o PT fez é o que todos fazem”, disse certa vez, como se a vulgarização de um delito o revogasse. Como Sérgio Cabral, quer rebatizar a corrupção, chamando-a de “contribuição de campanha”.

Corre o risco de findar sua carreira na cadeia - e não só ele, mas correligionários e aliados, e até os que posavam de adversários, como o PSDB. Todos, em graus variados, estão hoje às voltas com a Lava Jato. E foi exatamente esse o universo político que se opôs desde o início a Bolsonaro e lhe esculpiu a imagem de pervertido.

O strip-tease moral dos adversários inverteu a equação, conferindo ao capitão da reserva – e pré-candidato à Presidência da República - foros de herói político. É, de fato, um dos raros parlamentares ficha limpa no atual Congresso, condição ressaltada até por gente que nenhuma afinidade ideológica tem com ele, como o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, ao tempo do Mensalão.

Bolsonaro hoje é saudado triunfalmente onde chega. Na quinta-feira, uma multidão paralisou o aeroporto de Manaus para recebê-lo. Tem sido uma rotina. Sua crescente popularidade, atestada em pesquisas, associa-se à sua origem militar e, segundo recente manifestação do general Mourão, é bem vista nos quartéis.

Honestidade, matéria escassa na vida pública, converteu-se em patrimônio político, capaz de compensar limitações e deficiências de outra ordem. Foi por essa via que Lula ascendeu - e, ao profaná-la, caiu. Na gangorra da política, está neste momento no chão, enquanto seu antípoda, Bolsonaro, o contempla do alto.

 

 

 

 

 


Hubert Alquéres: Pedras no caminho

“Mongezinho, Mongezinho, tens um duro caminho”. As palavras que Martinho Lutero ouviu de um frei amigo quando da sua peregrin ação para Worms caem como uma luva para o duro caminhar do governador Geraldo Alckmin para se tornar protagonista da sucessão presidencial.

Sua maratona começa no próximo fim de semana quando, por consenso, será sacramentado presidente do PSDB na convenção partidária. Com a Pax tucana do momento, procura saltar a primeira pedra no meio do caminho: a eterna divisão interna que tantos prejuízos trouxeram em outras campanhas.

Se a balcanização do tucanato não fosse temporariamente estancada seriam diminutas suas chances de inverter a centrifugação do campo político situado entre os extremos Lula-Bolsonaro. Por falta de um polo catalizador, o centro navega à deriva, com suas possíveis candidaturas sofrendo de raquitismo eleitoral como mostram os dados do último Datafolha.

Diz-se de Geraldo Alckmin ser um político bafejado pela fortuna. A sorte parece lhe sorrir de novo, uma semana após a desistência de Luciano Huck. A conclusão do voto do juiz relator do julgamento de Lula no Tribunal Regional Federal da Quarta Região é uma confirmação da informação de Lauro Jardim, segundo a qual este julgamento acontecerá em marços ou abril.

Nunca se sabe o que se passa em cabeça de juiz, mas nove entre dez analistas acreditam na condenação de Lula. Nem ele mesmo acredita na sua absolvição. Mesmo que seja um cabo eleitoral fortíssimo, uma coisa é a urna eletrônica com Lula, outra é sem ele.

No mínimo caciques do PMDB vão refrear seu ímpeto de embarcar na canoa do caudilho. Ora, Alckmin ganha tempo com isso. A sorte pode estar tirando outra baita pedra do seu caminho. Sem Lula, o fantasma Bolsonaro perde gás. Eleitores que estão em sua órbita por ser antilulista podem voltar o leito do centro democrático.

E mesmo nos números do Datafolha é possível ver frestas de luz onde só se enxerga breu.

Ainda que a recuperação da economia acelere o passo, o impacto sobre o humor dos brasileiros não se dará a ponto de tornar competitiva uma candidatura saída do ventre do governo, tipo Henrique Meirelles ou Rodrigo Maia.

Com Maia não se dispondo a entrar em aventuras e Meirelles comportando-se como um elefante em loja de louça, sua entrevista à Folha mostrou isso, é bem capaz de o tucano virar o candidato do centro por W.O, assim como foi ungido presidente do PSDB.

Ninguém se elege só com a sorte. Sem a virtude, ela é de pouca monta. O candidato tucano terá de provar a sua competência para superar os próximos vários obstáculos na corrida presidencial. Sem um projeto para o país ser uma nação desenvolvida e socialmente justa, o PSDB não irá muito longe.

Outra pedra é o chamado“desembarque elegante”, uma verdadeira esfinge. A qualquer hora pode surgir novo curto circuito na relação com o governo Temer. A dubiedade da bancada do PSDB na Câmara Federal para aprovar a reforma da previdência pode inviabilizar a estratégia do paulista de ficar com o bônus do tempo televisivo dos partidos governistas sem o ônus de ser governo.

Esta é a parte mais delicada da estraté gia de Alckmin. De um lado, tem de fazer gestos a Michel Temer e ao PMDB, de outro, não pode colar sua imagem à de um governo de popularidade baixíssima. Político que se preza não dá o beijo da morte com ninguém. E Temer é o próprio beijo da morte.

Sobretudo é preciso construir uma explicação para a sociedade, a essas alturas pouco tolerante com a ambiguidade do tucanato. Há que se arrumar uma explicação convincente para duas perguntas caraminholadas na cabeça do seu eleitorado tradicional: por que sair do governo só agora? E qual a razã o para sair?

Tudo será inócuo se não promover a reconciliação do PSDB com seus eleitores. Seu baixo índice de intenção de votos no Datafolha também é produto da mágoa dos 51 milhões de brasileiros que votaram em Aécio e, legitimamente, se sentem traídos. Para Alckmin é fundamental a aliança com os partidos tradicionais, mas só terá chances reais de vitória se incorporar os sentimentos de renovação da política e de valorização da ética.

Só assim não será punido pelos eleitores e terá um final bem mais feliz do que o de Lutero que, ao encerrar sua dura caminhada, se salvou da morte, mas foi excomungado e condenado ao silêncio pela Dieta de Worms.

* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo


El País: O discurso de ódio que está envenenando o Brasil

A caça às bruxas de grupos radicais contra artistas, professores, feministas e jornalistas se estende pelo país. Mas as pesquisas dizem que os brasileiros não são mais conservadores

Artistas e feministas fomentam a pedofilia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o bilionário norte-americano George Soros patrocinam o comunismo. As escolas públicas, a universidade e a maioria dos meios de comunicação estão dominados por uma “patrulha ideológica” de inspiração bolivariana. Até o nazismo foi invenção da esquerda. Bem-vindos ao Brasil, segunda década do século XXI, um país onde um candidato a presidente que faz com que Donald Trump até pareça moderado tem 20% das intenções de voto.

No Brasil de hoje mensagens assim martelam diariamente as redes sociais e mobilizam exaltados como os que tentaram agredir em São Paulo a filósofa feminista Judith Butler, ao grito de “queimem a bruxa”. Neste país sacudido pela corrupção e a crise política, que começa a sair da depressão econômica, é perfeitamente possível que a polícia se apresente em um museu para apreender uma obra. Ou que o curador de uma exposição espere a chegada da PF para conduzi-lo a depor forçado ante uma comissão parlamentar que investiga os maus-tratos à infância.

“Isto era impensável até três anos atrás. Nem na ditadura aconteceu isto.” Depois de uma vida dedicada a organizar exposições artísticas, Gaudêncio Fidelis, de 53 anos, se viu estigmatizado quase como um delinquente. Seu crime foi organizar em Porto Alegre a exposição QueerMuseu, na qual artistas conhecidos apresentaram obras que convidavam à reflexão sobre o sexo. Nas redes sociais se organizou tal alvoroço durante dias, com o argumento de que era uma apologia à pedofilia e à zoofilia, que o patrocinador, o Banco Santander, ante a ameaça de um boicote de clientes, decidiu fechá-la. “Não conheço outro caso no mundo de uma exposição destas dimensões que tenha sido encerrada”, diz Fidelis.

O calvário do curador da QueerMuseu não terminou com a suspensão da mostra. O senador Magno Malta (PR-ES), pastor evangélico conhecido por suas reações espalhafatosas e posições extremistas, decidiu convocá-lo para depor na CPI que investiga os abusos contra criança. Gaudêncio se recusou em um primeiro momento e entrou com um pedido de habeas corpus no STF que foi parcialmente deferido. Magno Malta emitiu então à Polícia Federal um mandado de condução coercitiva do curador. Gaudêncio se mostrou disposto a comparecer, embora entendesse que, mais que como testemunha, pretendiam levá-lo ao Senado como investigado. Ao mesmo tempo, entrou com um novo pedido de habeas corpus no Supremo para frear o mandado de conduçãocoercitiva. A solicitação foi indeferida na sexta-feira passada pelo ministro Alexandre de Moraes. Portanto, a qualquer momento Gaudêncio espera a chegada da PF para levá-lo à força para Brasília.

“O senador Magno Malta recorre a expedientes típicos de terrorismo de Estado como meio de continuar criminalizando a produção artística e os artistas”, denuncia o curador. Ele também tem palavras muito duras para Alexandre de Moraes, até há alguns meses ministro da Justiça do Governo Michel Temer, por lhe negar o último pedido de habeas corpus: “A decisão do ministro consolida mais um ato autoritário de um estado de exceção que estamos vivendo e deve ser vista como um sinal de extrema gravidade”. Fidelis lembra que o próprio Ministério Público de Porto Alegre certificou que a exposição não continha nenhum elemento que incitasse à pedofilia e que até recomendou sua reabertura.

Entre as pessoas chamadas à CPI do Senado também estão o diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e o artista que protagonizou ali uma performance em que aparecia nu. Foi dias depois do fechamento do QueerMuseu e os grupos ultraconservadores voltaram a organizar um escândalo nas redes, difundindo as imagens de uma menina, que estava entre o público com sua mãe e que tocou no pé do artista. “Pedofilia”, bramaram de novo. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito e o próprio prefeito da cidade, João Doria (PSDB), se uniu às vozes escandalizadas.

Se não há nenhum fato da atualidade que justifique esse tipo de campanha, os guardiões da moral remontam a muitos anos atrás. Assim aconteceu com Caetano Veloso, de quem se desenterrou um velho episódio para recordar que havia começado um relacionamento com a que depois foi sua esposa, Paula Lavigne, quando ela ainda era menor de idade. “#CaetanoPedofilo” se tornou trending topic. Mas neste caso a Justiça amparou o músico baiano e ordenou que parassem com os ataques.

A atividade de grupos radicais evangélicos e de sua poderosa bancada parlamentar (198 deputados e 4 senadores, segundo o registro do próprio Congresso) para desencadear esse tipo de campanha já vem de muito tempo. São provavelmente os mesmos que fizeram pichações recentes no Rio de Janeiro com o slogan “Bíblia sim, Constituição, não”. Mas o verdadeiramente novo é o aparecimento de um “conservadorismo laico”, como o define Pablo Ortellado, filósofo e professor de Gestão de Políticas Públicas da USP. Porque os principais instigadores da campanha contra o Queermuseu não tinham nada a ver com a religião. O protagonismo, como em muitos outros casos, foi assumido por aquele grupo na faixa dos 20 anos que durante as maciças mobilizações para pedir a destituição da presidenta Dilma Rousseff conseguiu deslumbrar boa parte do país.

Com sua desenvoltura juvenil e seu ar pop, os rapazes do Movimento Brasil Livre(MBL) pareciam representar a cara de um país novo que rejeitava a corrupção e defendia o liberalismo econômico. Da noite para o dia se transformaram em figuras nacionais. Em pouco mais de um ano seu rosto mudou por completo. O que se apresentava como um movimento de regeneração democrática é agora um potente maquinário que explora sua habilidade nas redes para difundir campanhas contra artistas, hostilizar jornalistas e professores apontados como de extrema esquerda ou defender a venda de armas. No intervalo de poucos dias o MBL busca um alvo novo e o repisa sem parar. O mais recente é o jornalista Guga Chacra, da TV Globo, agora também  classificada de "extrema esquerda". O repórter é vítima de uma campanha por se atrever a desqualificar -em termos muito parecidos aos empregados pela maioria dos meios de comunicação de todo o mundo-, 20.000 ultradireitistas poloneses que há alguns dias se manifestaram na capital do pais exigindo uma “Europa branca e católica”.

Além de sua milícia de internautas, o MBL conta com alguns apoios de renome. Na política, os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., assim como o até há pouco ministro das Cidades, Bruno Araújo, os três do PSDB. No âmbito intelectual, filósofos que se consideram liberais, como Luiz Felipe Pondé. Entre os empresários, o dono da Riachuelo, Flávio Rocha, que se somou aos ataques contra os artistas com um artigo na Folha de S. Paulo no qual afirmava que esse tipo de exposição faz parte de um “plano urdido nas esferas mais sofisticadas do esquerdismo”. O objetivo seria conquistar a “hegemonia cultural como meio de chegar ao comunismo”, uma estratégia diante da qual “Lenin e companhia parecem um tanto ingênuos”, segundo escreveu Rocha em um artigo intitulado O comunista está nu.

“Não é algo específico do Brasil”, observa o professor Pablo Ortellado. “Este tipo de guerras culturais está ocorrendo em todo o mundo, sobretudo nos EUA, embora aqui tenha cores próprias”. Um desses elementos peculiares é que parte desses grupos, como o MBL, se alimentou das mobilizações pelo impeachment e agora “aproveita os canais de comunicação então criados, sobretudo no Facebook”, explica Ortellado. “A mobilização pelo impeachment foi transversal à sociedade brasileira, só a esquerda ficou à margem. Mas agora, surfando nessa onda, criou-se um novo movimento conservador com um discurso antiestablishment e muito oportunista, porque nem eles mesmos acreditam em muitas das coisas que dizem”. A pauta inicial, a luta contra a corrupção, foi abandonada “tendo em vista de que o atual governo é tão ou mais corrupto que o anterior”. Então se buscaram temas novos, desde a condenação do Estatuto do Desarmamento às campanhas morais, que estavam completamente ausentes no início de grupos como o MBL e que estão criando um clima envenenado no país. “É extremamente preocupante. Tenho 43 anos e nunca tinha vivido uma coisa assim”, confessa Ortellado. “Nem sequer no final da ditadura se produziu algo parecido. Naquele momento, o povo brasileiro estava unido.”

O estranho é que a intensidade desses escândalos está oferecendo uma imagem enganosa do que na realidade pensa o conjunto dos brasileiros. Porque, apesar desse ruído ensurdecedor, as pesquisas desmentem a impressão de que o país tenha sucumbido a uma onda de ultraconservadorismo. Um estudo do instituto Ideia Big Data, encomendado pelo Movimento Agora! e publicado pelo jornal Valor Econômico, revela que a maioria dos brasileiros, em cifras acima dos 60%, defendem os direitos humanos, inclusive para bandidos, o casamento gay com opção de adotar crianças e o aborto. “Em questões comportamentais, nada indica que os brasileiros tenham se tornado mais conservadores”, reafirma Mauro Paulino, diretor do Datafolha. Os dados de seu instituto também são claros: os brasileiros que apoiam os direitos dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%. Paulino explica que “sempre houve um setor da classe média em posições conservadoras” e que agora “se tornou mais barulhento”.

As pesquisas do Datafolha só detectaram um deslocamento para posições mais conservadoras em um aspecto: segurança. “Aí sim há uma tendência que se alimenta do medo crescente que se instalou em parte da sociedade”, afirma Paulino. Aos quase 60.000 assassinatos ao ano se somam 60% de pessoas que confessam viver em um território sob controle de alguma facção criminosa. Em quatro anos, os que defendem o direito à posse de armas cresceu de forma notória, de 30% a 43%. É esse medo o que impulsiona o sucesso de um candidato extremista como Jair Bolsonaro, que promete pulso firme sem contemplações contra a delinquência.

Causou muito impacto a revelação de que 60% dos potenciais eleitores de Bolsonaro têm menos de 34 anos, segundo os estudos do instituto de opinião. Apesar de que esse dado também deve ser ponderado: nessa mesma faixa etária, Lula continua sendo o preferido, inclusive com uma porcentagem maior (39%) do que a média da população (35%). “Os jovens de classe média apoiam Bolsonaro, e os pobres, Lula”, conclui Paulino. Diante da imagem de um país muito ideologizado, a maioria dos eleitores se move na verdade “pelo pragmatismo, seja apoiando os que lhe prometem segurança ou em alguém no que acreditam que lhes vai garantir que não perderão direitos sociais”.

Apesar de tudo, a ofensiva ultraconservadora está conseguindo mudar o clima do país e alguns setores se dizem intimidados. “O profundo avanço do fundamentalismo está criando um Brasil completamente diferente”, afirma Gaudêncio Fidelis. “Muita gente está assustada e impressionada.” Um clima muito carregado no qual, em um ano, os brasileiros deverão escolher novo presidente. O professor Ortellado teme que tudo piore “com uma campanha violenta em um país superpolarizado”.

 


Míriam Leitão: Candidatos e mercado

Nem um transplante salva o pensamento econômico de Jair Bolsonaro, e as ideias de Lula variam conforme o ambiente. Mercado financeiro não ganha eleição e agradá-lo, ou não, faz efeitos apenas na oscilação dos ativos. Bancos costumam convidar candidatos para encontros e eles vão como se isso fosse relevante. Jair Bolsonaro foi perguntado sobre o que pensa da dívida pública. Respondeu que chamaria os credores para conversar. Essa resposta é tão sem noção que deixou os interlocutores mudos.

É preciso desconhecer coisa demais para dar uma resposta dessas. Todos os brasileiros que aplicam em títulos da dívida são credores. Todos os bancos, empresas, órgãos governamentais, não governamentais, cotistas de fundos, compradores de Tesouro Direto, investidores estrangeiros e locais, grandes e pequenos são credores da dívida pública. Imagina o governo fazendo a convocação geral a tão grande multidão para uma reunião de rediscussão da dívida. Seria a senha para uma corrida bancária de dimensões apocalípticas.

O fato foi contado por quem fala seriamente sobre eleição no mercado financeiro, e mostra o grau de incerteza de 2018. Não bastará um economista liberal fazer um transplante de ideias no candidato. Ter um economista que se disponha a representar um candidato não é o mesmo que ter um programa econômico. Em outro contato, perguntado sobre retomada de crescimento, o deputado fez um longo discurso sobre o nióbio. É importante, tem aplicações diversas, o Brasil tem reservas estratégicas, mas o elemento representa apenas 0,7% das exportações brasileiras. Enéas era grande defensor do nióbio. Com ele não se movimenta uma economia complexa como a brasileira.

O candidato da extrema-direita pode ser aceito por corretores desavisados, mas nenhum analista sério se deixa convencer apenas pelo fato de que agora ele tem ao lado dele um economista que está falando em privatização. Suas verdadeiras crenças na economia são mais bem definidas como o nacional-estatismo dos governos militares. Isso põe o deputado próximo ao pensamento de raiz do PT.

Lula não foi eleito porque agradou o mercado com a Carta aos Brasileiros, mas porque prometeu defender a estabilidade monetária que havia sido conquistada oito anos antes. O temor era da volta da inflação. Esse compromisso de Lula foi parte da estratégia para conquistar os votos da classe média. Ela sim ganha eleição.

É muito cedo para os cenários eleitorais, mas essa é certamente a disputa presidencial mais difícil da redemocratização pelo nível impressionante de incertezas. A grande questão que permanece aberta é a situação jurídica de Lula. A Justiça está diante de uma falha no Direito brasileiro: um réu não pode ser presidente, mas pode ser eleito presidente. Contradição insanável. Lula sabiamente tem executado a estratégia de fazer campanha com a ideia de quanto maior for sua chance eleitoral mais difícil será o dilema da Justiça Eleitoral e do STF em relação a ele. O pensamento de Lula na economia é mutante, como se sabe. Ele defendeu na campanha de 2002 algo diferente do que implementou e que é diferente do que está dizendo agora. Lula defenderá qualquer proposta que achar mais conveniente para seus propósitos eleitorais e certamente terá mais de um ideário durante a campanha.

Esse é o quadro das propostas econômicas dos candidatos que estão na frente na disputa eleitoral. Lula já governou o Brasil e sabe-se que ele tem opiniões mutantes sobre economia e tudo o mais. Neste começo de campanha tenta reconstituir a aliança com suas bases e por isso volta ao velho discurso. Já Bolsonaro tem um entendimento raso sobre o tema. A avaliação de que ele possa defender um pensamento liberal porque teve quatro aulas com um economista com essa crença só pode ser feita por quem tenha uma capacidade de análise igualmente superficial.

Estamos a um ano das eleições num país em que os cenários eleitorais são voláteis, e há inúmeros casos de candidatos que pareciam viáveis até que perderam o pleito ou deixaram de estar na disputa. É cedo ainda. O ideal seria que os candidatos e suas equipes não formatassem ideias artificiais para receber elogios do mercado financeiro. É preciso muito mais do que isso para tirar o país da crise e levá-lo a um ciclo de crescimento sustentado.