Ivan Alves

Capa do livro De Oscar a Niemeyer, de Ivan Alves Filho

Ivan e Niemeyer: a beleza arquitetônica de uma amizade

Eduardo Rocha*

“A sabedoria se torna loucura, prazer e dor”.

 Gueorgi Plekhanov

“(...) a práxis como atividade material do homem transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano”.

Adolfo Sanches Vasques

Acabei de ler prazerosamente o recente livro do historiador e jornalista Ivan Alves Filho, intitulado De Oscar a Niemeyer: meu convívio com o maior arquiteto contemporâneo. Este meu pobre, modesto e curto texto não cobre, não expressa, com certeza, a grandiosidade humana do texto escrito por este intelectual da mais fina, sensível e bela flor vermelha pecebista - que é autor de vários livros que desnudam alguns e decisivos episódios da realidade histórica brasileira.

Intelectual este com quem tive o prazer de ladeá-lo na mesa durante as comemorações dos gloriosos 100 Anos do PCB, organizadas pelo Cidadania (sucessor legítimo do PCB-PPS) e pela Fundação Astrojildo Pereira, e feitas no clima-calor agradável de 25 de março de 2022 na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, berço físico-político-histórico do PCB – portanto, comemorações estas realizadas na mesma data do primeiro congresso do PCB, onde então estiveram presentes apenas nove delegados representando 73 comunistas de todo Brasil.

Lembro que em 2002 visitei onde fora a “sede” do local onde fora fundado o PCB em 25 de março de 1922 – era, em 1922, uma casa que pertencia à família de Astrojildo Pereira. Foi ali onde se realizou o Primeiro Congresso do PCB. Passaram-se décadas e aquele “espaço” tinha se transformado, lá em Niterói, num estacionamento. Que fim levou este patrimônio histórico!

Mas compreendamos: a vida do PCB nunca foi fácil. Era o ano de 2002. E estávamos, na cidade de Niterói, lançando então a chapa PPS-PDT, composta por Ciro Gomes (presidente) e Leonel Brizola (vice-presidente) para as eleições presidenciais de então.

Lembro que tinha uma placa no muro frente ao estacionamento (e aí tiramos uma foto) que dizia que ali fora fundado o PCB. Tirei até uma foto frente a esta placa ao lado de Salomão Malina, Francisco Inácio Almeida, Roberto Percinoto, Paulo Eliziário, Luzia Ferreira e George Gurgel.

Não sei onde está esta foto.

Deve estar perdida por aí.

Mas está em minha memória. Aproveitando a estadia em Niterói, outros camaradas, após o término da convenção eleitoral, também visitaram a “sede congressual” e também tiraram fotos.

Desta mesa das comemorações dos 100 Anos do PCB, da qual o Cidadania generosamente me convidou a compô-la, estava também, para minha alegria pessoal e também contribuindo para o enriquecimento intelectual-cultural-político do evento, a meu lado e ao lado de Ivan Alves Filho, outro intelectual da matriz de 1922, o camarada Martin Cesar Feijó, autor da biografia do fundador do PCB, intitulada O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. Assinale-se que Martin Cezar Feijó tem também larga e multifacetada produção bibliográfica.

Eu era o expositor menor, o mais simples.

Falei sobre a trajetória da Juventude Comunista na história do PCB.

Foi a tarefa que me incumbiram.

Minha fala foi uma modesta e curta.

Ivan Alves Filho e Martin Cesar Feijó deram um show de história partidária e de reflexões sobre política cultural.

Voltando ao livro.

Em seu mais recente trabalho, narrando sua amizade com Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho (1907-2012), Ivan Alves Filho, transferindo o seu intelecto memorial às letras, expressa muito mais que política, expressa muito mais que as artes da arquitetura, expressa muito mais que as moléculas comprometedoras e decisivas da história brasileira e mundial, expressa muito mais que memórias humano-geográficas diversas e inapagáveis que ele presenciou: expressa, isto sim, uma amizade sincera, carinhosa, leal, afetuosa e de camaradagem (dentro da maravilhosa tradição solidário-humana do Partidão que eu vivi) e relatada com fraternidade, precisão, honestidade e sinceridade num texto extremamente agradável.

A verdade é sempre concreta (ela nunca é abstrata – um elefante não voa, não bate asas!), mas precisará sempre de uma aliada imprescindível para posicionar-se dignamente perante o mundo e vencer a mentira, que roda o mundo mesmo antes da verdade calçar as sua sandálias: a consciência honesta. E a verdade Ivan Alves Filho a tem como companheira desde o berço. Cada letra sua nesta sua obra está assentada materialmente pela verdade histórica realmente vivida por ele.

Seu recente trabalho histórico expressa a beleza e o carinho da arquitetura memorial social-intelectual-humana de uma sólida amizade entre dois seres humanos histórica, inequívoca e irrevogavelmente vinculados à raiz do legado histórico de 1922 – cada um, claro, entrando no PCB a seu tempo, a seu modo, a seu motivo e cada um cumprindo seu papel histórico diante das turbulências vividas pelo PCB.

E ambos (Oscar e Ivan) cumpriram bem seus papeis históricos.

Ivan, por ser mais jovem, ainda tem mais a dar à inteligência histórica brasileira.

É jovem!

E pode ainda mais ajudar a todos os que creem na verdade científico-concreta a sairmos do reino da ignorância-religiosa e entramos na República do conhecimento-científico libertador da humanidade do reino da necessidade.

Não posso deixar de parabenizar Ivan Alves Filho por sua obra, que fala de um inigualável do nosso Partido de origem, o PCB, Oscar Niemeyer e, também, de um inigualável ser humano em todo o mundo.

Não é todo dia que nasce, se forja e se apresenta ao mundo um ser humano com esses atributos humano-intelectuais e, justo dizer, revolucionários: Oscar Niemeyer.

Como nos informa Ivan Alves Filho, Niemeyer sempre, juntamente com sua arte, levantou sua voz a favor dos oprimidos, dos pobres, dos miseráveis, dos explorados, dos excluídos e sempre se posicionou a favor dos que sofrem no regime capitalista.

Niemeyer nunca vacilou.

Sempre teve um lado.

Digno defensor da paz, da democracia e do socialismo.

Defensor da dignidade humana.

A beleza arquitetônica concretizada, objetivada, realmente existente, realiza na prática (desde a arquitetura chinesa, passando pela greco-romana e muito antes os desenhos rupestres de aproximadamente 40.000 anos atrás) a beleza criativa da inteligência humana e proporciona a beleza da contemplação-cognitiva conquistada e apreciada pela humanidade.

A inteligência humana criou belezas arquitetônicas, a exemplo do que fizeram os persas, fenícios, egípcios, hititas, celtas, hebreus, cartagineses e os povos originários da América (sejam os povos da Norte, da Central, do Caribe ou do Sul) , como os incas, astecas, maias, guaranis, tupinambás, apaches, shawees, navajos e, assim como os povos africanos e asiáticos.

A beleza emancipacionista-libertária do espírito rebelde-crítico de Niemeyer, a riqueza de sua alma criativa da beleza humano-arquitetônica, de sua solidariedade ao PCB, de seu domínio da ciência da arte do desenho humano e da natureza, tudo isso é revelado pelas letras conscientes de Ivan Alves Filho, em tão poucas e ricas e nutritivas linhas históricas.

Com seu texto, Ivan Alves Filho não nos fala da fria arquitetura do concreto, não nos fala das fórmulas matemáticas complexas que a presidem (o que, em si, é também uma beleza, desde Pitágoras), e que proporcionaram a construção de grandes obras que a inteligência humana criou nos últimos milênios.

Não!

Ivan Alves Filho, com o seu De Oscar a Niemeyer, não nos leva à frieza e certeira das chamadas ciências duras (física, química, biologia, geologia, astronomia e botânica).

Oscar tanto Niemeyer e quanto Ivan Alves Filho sempre estiveram do mesmo do lado: a favor de todo o multifacético progresso social do ser humano. Por isso, não causa espanto Ivan Alves Filho descrever a beleza da arquitetura humana calorosa de Oscar Niemeyer pela vida, pelo justo, pelo bem, pela amizade sincera, pela solidariedade internacional dos povos.

Oscar Niemeyer projetou arquitetonicamente muitas obras que foram concretamente realizadas, mas seu pensamento concreto foi o de contribuir para a arquitetura humana de uma humanidade pacífica, democrática, harmoniosa, economicamente desenvolvida, ambientalmente humano-sustentável, justa socialmente, culturalmente avançada e universal, cientificamente desenvolvida, humanamente solidária, livre de preconceitos, autoritarismos, ignorâncias, misticismos e obscurantismo.

Seu texto claro, suave, calmo, memorial e sincero nos brinda com informações que expressam não apenas a sua amizade político-histórica-pessoal-familiar vivida com Oscar Niemeyer (um privilégio para poucos), mas revela também momentos cruciais e decisivos da vida nacional brasileira e internacional – e porque também não dizer, de um lado, dos momentos difíceis vividos pela vida real-concreta pelo próprio autor (que sofreu com os dentes e hálitos horrorosos da hiena da ditatura de 64) e, de outro, de momentos que as circunstâncias históricas compensaram  todo o seu sofrimento pessoal – pela sua coerência política, ética e ideológica.

Muitas informações passadas pelo seu livro eu mesmo as desconhecia. O conhecimento não se apreende de supetão, de imediato.  Foi Lenin quem disse que a apreensão da realidade se dá por longas e tortuosas aproximações sucessivas, progressivas à realidade concreta e, partir daí, originam-se interpretações e posições para as ações concretas.  

Não é fácil apreender o real.

Nem todo intelecto ao interpretar a realidade resulta numa posição progressista, pois os interesses de classe, em ultima instância, determinam a consciência e sua relação com o ser social.

Temos nos herdeiros de 1922 (PCB-PPS-Cidadania), uma missão: temos de colaborar para extirpar pela raiz as bases sociais, econômicas, culturais e ideológicas que levam parcelas do povo brasileiro em crerem em “mitos”, sejam eles quais forem – tragédias essas que vitaminam o nazi-fascismo tupiniquim.

E o lulopetismo também não é solução para os gigantes desafios histórico-estruturais que devem ser enfrentados e superados pela democracia brasileira - o lulopetismo é o atraso inverso do bolsonarismo. 

O Brasil precisa de forças democráticas que operem democraticamente transformações estrutural-democráticas dentro da democracia e da República a favor da maioria do nosso povo brasileiro.

Seu texto revela detalhes da solidariedade militante concreta de sua vida pessoal e com o seu internacionalismo impregnado/gestado desde criança por seu pai (Ivan Alves) – não apenas do autor, que se mantém honesta e dignamente na sua posição histórica diante das cruciais curvaturas da vida nacional - mas do nosso maior arquiteto a todos os que se dispuseram a revolucionar democraticamente o Brasil e o mundo; suas linhas escritas expressam a convivência humanista de vida e ideais revolucionários não só entre dois fraternos amigos, mas, complementarmente, entre dois responsáveis camaradas cúmplices de sonhos, lutas, inteligências, articulações, convicções e esperanças empenhadas na construção de um Brasil e de um mundo melhor.

Ivan Alves Filho rememora personagens históricos que projetaram e construíram o concreto teórico-ideológico-político-organizacional material-concreto do PCB e outras forças democráticas que deram corajosa substância humana à conquista da democracia, sepultando assim as trevas inauguradas em 1964, e relembra mesmo personagens – que se tornaram seus amigos - que são caros à conquista da independência da Argélia frente à França, por exemplo.

Ivan Alves Filho, em seu livro, faz uma referência justa e honesta para o imprescindível Francisco Inácio Almeida, secretário de Luís Carlos Prestes em Moscou, na então União Soviética, e um dos mais destacados e competentes dirigentes do PCB-PPS-Cidadania.

Ele diz: “Talvez, em toda a minha vida, eu só tenha convivido com uma outra pessoa com as mesma generosidade de Oscar, o meu querido amigo Francisco Inácio de Almeida, figura fundamental na história das lutas sociais do Brasil, cearense de Baturité”.

Francisco Inácio Almeida é um ser humano solidário que eleva o espírito humano a torna-se universalmente humano-solidário.

O autor revela também seu aprendizado político-humanista recebido pelo artista-humanista de Brasília e da arquitetura do humanismo universal (parece Ivan colocar-se sempre humildemente como um jovem permanente aprendiz diante de um generoso sábio Oscar Niemeyer).

Nas suas linhas descreve os momentos que lhe marcaram pessoalmente – momentos material-políticos difíceis que o autor vivenciou no Brasil e no exílio durante os anos do regime ditatorial vindo às trevas em 1964 até momentos de sofisticação intelectual proporcionado não só pelo amigo, mas pelas suas andanças políticas, culturais e acadêmicas pelos países que conheceu, pelas universidades que cursou, pelos livros que leu, pelos livros que escreveu, pelos acontecimentos que assistiu e com as pessoas das mais diversas matrizes teórico-ideológicas com que conviveu e apreendeu, professou e moldaram sua consciência generosamente humana.

Muitos já escreveram sobre Oscar Niemeyer, um Singular magistralmente Universal, devido sua Particularidade criativa. Esta obra de Ivan Alves Filho não navega nas frias, matematizadas e inanimadas curvas arquitetônicas do concreto projetadas e construídas no Brasil e mundo afora, com o suor de operários, que sempre mereceram seu carinho, amor, e solidariedade militante.

O que encontraremos nesta obra são curvas, linhas, projeções, ângulos, significados imaginário-humanos que Niemeyer objetivou, concretizou, materializou em sua universal subjetividade impregnada da modernidade suave e da beleza da inteligência humanista que ele sempre portou.

As curvas literárias trabalhadas por Ivan Alves Filho são as curvas humano-históricas da vida humana em sua multifacetada beleza e crueldade em momentos difíceis pelos seres humanos que lutaram pela humanidade\ – a contradição da vida, sempre presente até mesmo numa curva, que é a negação da reta!

Marx diz que o gênero humano, agindo sobre a natureza exterior à sua consciência natural-humana e modificando-a materialmente, muda sua própria natureza humana, isto é, ele muda sua natureza física e intelectual e, com  isso, seu próprio mundo social.

A consciência humana, aprendi isso, não age apenas sobre a natureza inorgânica e orgânica – uma necessidade histórica inegociável à preservação da vida humana, há que produzir comida e as condições mínimas para a existência humana -, mas age também sobre a sua própria natureza sócio intelectual, age sobre si mesma, num processo doloroso de luta pela sobrevivência material-intelectual da vida concreta, na luta pelo conhecimento humano-universal contra a ignorância múltipla (repleta de ignorância místico-religiosa) e sedenta de sabedoria científica-libertadora das trevas, que deve enfrentar o ser social material e realmente existente, esta galáxia de pensamentos nada inocentes, pois revelam o grau desigual atingido de consciência social pela humanidade.

Recomendo a leitura de De Oscar a Niemeyer: meu convívio com o maior arquiteto contemporâneo, de  Ivan Alves Filho.

É um belíssimo trabalho que deve ser lido e nutrir as novas gerações que a vida democrática e pluralista vale a pena, que a solidariedade humana vale a pena, que a inteligência científico-criativa vale a pena, que lutar pela transformação do mundo para sair do reino da ignorância e do reino da necessidade para o reino da liberdade vale a pena.

E por fim, para não me alongar e tomar mais o tempo do leitor, a obra de Ivan mostra que a amizade verdadeira, leal, sincera, honesta e real deve ser sempre vivida, lembrada, valorizada e eternizada.

É uma práxis (esta atividade humana intelectual-material) perante a realidade do ser social que cerca o gênero humano e o determina e o leva, sob determinadas circunstâncias, a transformar objetivamente este mundo num mundo que faça a humanidade feliz.

Fica o meu modesto registro de congratulações não só ao autor como também ao eterno camarada Oscar Niemeyer.

Eduardo Rocha, Guarulhos, SP, domingo, 30/07/2023

Referências Bibliográficas

  1. Alves Filho, Ivan. De Oscar a Niemeyer: meu convívio com o maior arquiteto contemporâneo / Ivan Alves Filho, -- 1º ed. – Tiradentes, Minas Gerais, Brasil: Aquarius, 2023. 86 p.

  • Feijó, Martim Cezar. O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. São Paulo. Editora Boitempo Editorial, 2022. 256 p.

Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie, pós-graduado com especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), articulista da Voz da Unidade, órgão oficial de imprensa do PCB, e secretário de Salomão Malina, último secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e dirigente Nacional do Partido Popular Socialista (PPS), sucessor do PCB.


PCB-PPS e a cultura brasileira: Apontamentos, de Ivan Alves Filho

O conteúdo do livro PCB-PPS e a cultura brasileira: Apontamentos, de Ivan Alves Filho, editado pela Fundação Astrojildo Pereira, em 2012, está sendo divulgado, na íntegra, pela Revista Espaço Acadêmico, da Universidade Estadual de Maringá. Trata-se de iniciativa das mais louváveis, que busca transmitir a importância exemplar que um partido político deu à cultura deste País e como alguns dos mais importantes intelectuais e artistas ligados ao PCB/PPS deram rica contribuição à política nacional.


Ivan Alves: O Brasil começa a virar a página da insensatez

A marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras progressistas iniciais e assume posicionamentos conservadores, se não reacionários. Após quase uma década e meia no poder central, foi o que a prática petista, cada vez mais autoritária, deu a entender. Nesse sentido, podemos até nos perguntar se o petismo e alguns aliados seus não podem ser encarados como uma variante do fascismo, movimento autoritário surgido na Itália no fim da Primeira Guerra Mundial. Ou será preciso recorrer uma vez mais à boa e velha noção de populismo latino-americano para entender a trajetória do Partido dos Trabalhadores? Tendemos a considerar que o bloco capitaneado pelo petismo estivesse pelo menos a um passo do fascismo, o que não exclui naturalmente que tenha tido entre seus componentes elementos do populismo.

Com efeito, chama a atenção o fato de que alguns dos componentes estruturais do fascismo estão presentes igualmente na cultura petista ou do chamado lulopetismo. Corporativismo, conluio criminoso com o grande capital, autoritarismo político, manipulação das massas pelos sentimentos e emoções, venda de ilusões, recurso à demagogia barata diante das demandas vindas dos setores populares, instrumentalização dos sindicatos, política de apelo nacionalista cada vez que uma dificuldade séria se apresenta, aparelhamento do Estado, linguagem incitando à violência, corrupção desenfreada e tentativas de estabelecer o chamado diálogo direto com as massas por intermédio de um chefe carismático — eis em que se assenta o petismo. E só para refrescar a memória, o grande ideólogo do fascismo, o italiano Benito Mussolini, o Duce, fez parte de sua carreira política na esquerda.

O petismo, historicamente, sempre defendeu um ideário autoritário, de exclusão do outro da política. É a tal postura do “nós contra eles”. Dos puros contra os impuros. Alguns dos dirigentes petistas mais proeminentes sempre acusaram os membros dos outros partidos de fazerem o que eles mesmos fizeram depois, surpreendendo a Nação. Durante várias campanhas eleitorais, petistas acusavam seus adversários de proporem a privatização da Petrobrás — e promoveram sem dúvida a pior das privatizações, ou seja, o assalto aos cofres da nossa maior empresa para atender aos interesses de uma entidade privada, como é o caso de um partido político. O juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, falou diretamente na existência de um “grupo criminoso estruturado e sofisticado” atuando no desvio de dinheiro público.

No tocante ao aparelhamento do Estado, a performance petista só é comparável, em termos de Brasil, ao Estado Novo de Vargas e à Ditadura de 64. Basta citar as dezenas de milhares de nomeações que promoveu país afora. Era uma tentativa de perpetuação no poder como em outras fases autoritárias da nossa História recente. E como lembrou com muita razão Cristovam Buarque, defender o Estado não significa colocá-lo a serviço dos “funcionários das estatais”, numa espécie de “estatização neoliberal”. Pelo contrário, implica ampliar sua capacidade de administração e intervenção públicas.

E o que dizer dos arroubos nacionalistas que volta e meia acometem o petismo? Toda vez que se confronta com uma dificuldade intransponível, essa corrente política grita por socorro: isto é, se escora no pré-sal, no golpe imperialista e por aí vamos, em um bolivarianismo primário (e talvez estejamos aqui cometendo um pleonasmo).

Sabemos que as atitudes racionais não estão muito em alta na política hoje. No plano das tiradas emocionais, o petismo tampouco trai sua dívida para com um certo autoritarismo. As declarações de alguns de seus dirigentes ao longo do processo de impeachment foram totalmente movidas a emoção, com insistentes lembranças por parte da ex-Presidente afastada Dilma Rousseff, por exemplo, da prisão que sofreu durante o regime militar ou mesmo da doença que teve de encarar, colocando-a frente a frente com a morte, segundo ela. O que aconteceu com a ex-Presidente Dilma Rousseff foi duro — mas não é preciso que seja lembrado a todo instante. Afinal, com todo o respeito, muitas outras pessoas também passaram — ou ainda passam — por situações duríssimas na vida. O discurso do ex-Presidente Lula da Silva na sede nacional do Partido dos Trabalhadores, em 25 de setembro de último, um dia após ser denunciado pelo Ministério Público Federal à Operação Lava Jato, foi na mesma direção emocional daquele da ex-Presidente Dilma Rousseff.

E aqui abordamos a questão do carisma pessoal, de que tão bem se vale o ex-Presidente Lula da Silva, com não menos insistentes referências à sua infância de menino pobre do Nordeste, de filho do povo. Alguém com a cara do Brasil atingia finalmente ao mais alto cargo da República, algo que nunca acontecera na História deste país. Isso foi apresentado a todos nós como se o povo tivesse finalmente alcançado o poder. O indivíduo era a massa — quase uma versão em sinal trocado do l´Etat c´est moi do Absolutismo. E a identificação do partido com o seu chefe passou a ser total, a ponto de podermos falar hoje em lulopetismo, conforme destacamos acima.

No decorrer do processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, chegou-se a justificar o recurso aos créditos suplementares — sem a devida autorização do Congresso, como determinava a Constituição Federal — em nome da manutenção do programa Bolsa Família, do auxílio aos pobres. Com um detalhe altamente significativo: um deputado revelou, com base nos próprios números divulgados pelo Governo Dilma, que essa verba representava apenas 3% do total dos recursos arrolados pela administração federal para justificar os tais créditos. O recurso aos pobres — algo de forte conotação religiosa, elevado aqui quase a um conceito de corte sociológico —, e não os trabalhadores, como até alguns petistas salientaram, foram se configurando como o alvo político preferencial do partido.

Se fôssemos nos pautar exclusivamente pela política latino-americana, talvez seja o caso de considerar que o modelo justicialista de Juan Domingo Perón e dos descamisados argentinos era aquele que mais se aproximava da prática do petismo. E se quisermos nos apoiar ainda no exemplo argentino, seria muito mais interessante para a nossa democracia beber na fonte da Unión Democrática, frente política que fazia oposição a esse mesmo peronismo, reunindo comunistas, socialistas, os radicais da UCR e os liberais em 1946.

A coerência em relação às práticas autoritárias tampouco nega fogo quando o assunto é corporativismo. Sindicalistas muitas vezes comprometidos com o projeto petista deflagraram greves cujo centro era o ganho salarial imediato para uma determinada categoria profissional, em detrimento do interesse mais geral da comunidade ou do conjunto dos trabalhadores. Muitos ainda devem se lembrar dos grevistas que ameaçaram desligar os aparelhos nas unidades de tratamento intensivo de alguns hospitais de Pernambuco, gritando slogans despropositados contra o Governo Arraes. Ou de um chefe sindical ameaçando invadir — diante da própria ex-Presidente Dilma Rousseff, no próprio Palácio do Planalto, em primeiro de abril de 2016 — residências e gabinetes de parlamentares.

Destacaríamos ainda que a ex-Presidente afastada tentou desqualificar o tempo todo o processo de impeachment, alegando que tivera 54 milhões de votos. Uma vez mais estamos diante de um grave equívoco, para dizer o mínimo. Por vários motivos. Primeiro, a ex-Presidente não obteve esses votos sozinha — Michel Temer compôs a chapa com ela; e não era nem de longe o candidato das oposições, ao que consta. E nunca é demais lembrar que o PMDB é o principal partido do país, com grande penetração mas pequenas e médias cidades, ajudando de forma significativa a eleger a então candidata do PT. Segundo: os congressistas que a afastaram do poder também foram eleitos pelo povo — e a ex-Presidente Dilma Rousseff, sabe-se lá por que motivo, parece ter se esquecido disso. Terceiro: a representatividade do Congresso é a mesma do Executivo, já que emana igualmente das normas eleitorais da Democracia brasileira. Quarto: curiosamente, como observou o jornalista Zuenir Ventura em artigo no jornal O Globo, a ex-Presidente afastada, que tanto criticou o suposto golpe de Estado promovido contra sua gestão, se esqueceu de rechaçar o “fatiamento” da votação do impeachment, o qual a possibilitaria manter seus direitos políticos intactos. Por uma questão de coerência, deveria recusado o tal “fatiamento”. Quinto: os juízes do impeachment julgaram apenas as ações que a ex-Presidente realizou no exercício do seu Governo — e as consideraram criminosas, por sinal. Em nenhum momento eles questionaram o número de votos que obteve ou sequer a forma como os obteve — uma atribuição do Tribunal Superior Eleitoral, que ainda vai julgar as contas da sua campanha de 2014. Somente no Absolutismo e nas ditaduras fascistas ou populistas é que o “príncipe” não é submetido ao império das leis.

O lulopetismo também cometeria graves equívocos no que tange a seu relacionamento com o grande capital financeiro. Segundo o próprio ex-Presidente Lula da Silva, nunca os bancos ganharam tanto dinheiro como nos seus dois governos (2003-2006 e 2007-2010). Isso, para não aludirmos aos desacertos que promoveram junto aos bilionários fundos de pensão (nos primeiros dias de setembro, os jornais divulgaram que o déficit atuarial atingia 46 bilhões de reais nos fundos da Caixa Econômica, dos Correios, do Banco do Brasil e da própria Petrobrás). E se formos entrar no terreno igualmente pantanoso do chamado mensalão — ou da compra de apoio parlamentar para a formação de uma base política dócil aos interesses do PT, compra essa que condenou à prisão membros destacados do Governo Lula, no primeiro grande escândalo da sua gestão —, constataremos que sua política subordinou sistematicamente o interesse coletivo ao privado, o Estado perdendo parte de sua dimensão pública. Patrimonialismo é isso aí — e em caráter quase puro. Não por acaso, a Lava Jato prendeu mais de cem pessoas em dois anos e meio de atuação, condenando mais de meia centena delas. E tudo indica que vem muito mais por aí até setembro de 2017,  novo prazo dado para suas averiguações. Seguindo os preceitos de Maquiavel, o PT imaginou que os fins justificavam os meios. Só que os fins se foram e ficaram apenas os meios — e esses eram em boa medida autoritários e marcados por práticas de corrupção. Shakespeare chegou a ser cruel quanto aos abusos que se fazem em torno da ética: “a honestidade é a forma mais refinada de empulhação”.

E aqui cabe uma observação de corte mais geral: determinadas práticas da política brasileira até lembram, pelo seu refinamento, o modus operandi de organizações mafiosas. Ocorre que os agrupamentos que possuem um pé no autoritarismo têm um inegável viés marginal, uma atração irresistível pelo crime e não é um mero acaso se tantos delinquentes se sentem atraídos por determinadas ações. Quem não respeita a lei geral costuma fazer a sua própria lei. A Alemanha do falecido Adolf Hitler chegou a ser pródiga nessa matéria e muitos chefes do Partido Nazista vieram do chamado lumpenproletariat. Os marginais não têm adversários: eles têm inimigos. E inimigo tem de ser liquidado. O confronto é tudo e o diálogo nada. A lógica da negociação e da conversa, esta sim, é que emana da prática política propriamente. Fato muito preocupante — e sem dúvida estimulado pelo clima reinante na política e na sociedade brasileiras — foi a irrupção, nas eleições municipais de 2016, do crime organizado na cena política, promovendo atentados que aterrorizaram algumas regiões do país e custaram a vida a muitos candidatos.

A lógica do autoritarismo é, portanto, aquela da terra arrasada. E os petistas, em particular, sempre tiveram dificuldades em entender ou assimilar as instituições da Democracia. Os fatos não desmentem isso, ao contrário. Quando da ida das oposições ao Colégio Eleitoral, em 1984, os petistas chegaram a expulsar de seus quadros os parlamentares que votaram com o oposicionista Tancredo Neves contra Paulo Maluf, candidato da base do regime ditatorial. Aparentemente, para uma grande parte ao menos dos petistas, era indiferente o país continuar ou não vivendo sob uma ditadura militar. Na visão de alguns, talvez porque o PT tenha sido legalizado por ela, contrariamente ao que ocorrera com o PCB, o PC do B e o PSB, que tiveram de aguardar a instalação do regime civil democrático para vislumbrar plenamente a luz do dia. Nesse sentido, os petistas não poderiam mesmo dar tanto valor assim a algo que receberam de bandeja do regime militar moribundo.

Seja como for, o porquê disso é, ainda hoje, motivo de grande controvérsia. Prosseguindo, convém recordar que a chamada Constituição Cidadã não foi bem absorvida pelo PT por ocasião da sua promulgação, em 1988, já que o partido se recusou a participar da sua homologação coletiva. Apesar de ter assinado formalmente a Carta Constitucional, o PT votou contra o texto, infelizmente. Em 2013, o próprio ex-Presidente Lula da Silva reconheceria que se “o Regimento (do PT) fosse aprovado, o país seria ingovernável”. Mais: quando Itamar Franco assumiu a Presidência da República, o petismo simplesmente lançaria a palavra de ordem “Fora, Itamar”, chegando a pedir seu impeachment assim como o de Fernando Henrique Cardoso mais adiante. Em 1993, quando do plebiscito sobre a forma (se regime republicano ou monarquista) e o sistema de Governo (se presidencialista ou parlamentarista), os petistas se posicionaram contrários ao parlamentarismo, apesar de ser esse modelo bem mais avançado do que o presidencialismo.

De outra parte, já que nos referimos mais acima à Alemanha no conturbado período entre guerras, nada mais parecido com a situação que o petismo nos legou do que a triste República de Weimar, que abriria a via ao nacional-socialismo.

Em outras palavras, o petismo abalou a esquerda brasileira. Concordemos ou não com suas propostas, os comunistas iam para a cadeia por subversão — conforme diziam em seu linguajar os defensores das diversas ditaduras que os perseguiram, daquela de Bernardes ao Estado de Novo de Vargas, do regime de Dutra à ditadura militar de 64. Infelizmente, altos dirigentes petistas foram encarcerados por suspeita de corrupção — algo que deixará marcas profundas na História do Brasil, muito tempo após o desaparecimento de cena do lulopetismo. E pensar que muitos desses dirigentes repetiram, durante anos, o slogan “ética na política” até a exaustão. Vai ver que alguns acreditavam mesmo que uma inverdade dita muitas vezes poderia virar a mais sincera das verdades. Como o fazem agora com a narrativa do “golpe”.

A marcha do petismo ilustra um daqueles casos típicos de transformismo, quando um partido ou agrupamento, uma vez no poder, abandona suas bandeiras iniciais e assume posições conservadoras, senão reacionárias. O problema não consiste tanto em saber de onde se vem —, mas para onde se vai.

Em 2016, diante da iminência da derrota de seu projeto de governo, uma resolução da direção do PT publicava um documento onde se podia ler:

Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.

Trata-se inegavelmente de um projeto autoritário, de corte bolivariano. Tão grave quanto essas tentativas, felizmente abortadas, foi o estrago causado pela corrupção em quase todos os setores da vida nacional. O historiador francês Marc Bloch, ao se debruçar sobre as razões pelas quais os franceses não resistiram à invasão hitlerista, em agosto de 1940, atribuiu o fato à desenfreada corrupção que se abateu sobre a França nos anos anteriores, abalando a autoestima do seu povo. Para os franceses daquela época, os políticos eram todos iguais, a nacionalidade importando pouco... Em tempo: Marc Bloch escreveu seu trabalho entre sua entrada na Resistência, verificada nesse mesmo ano de 1940, e o seu fuzilamento pelo ocupante nazista, dois anos mais tarde. Esse seu livro —  A estranha derrota — é muito rico em ensinamentos para todos nós.

A trajetória do PT dá o que pensar. Muitos jovens acreditaram sinceramente nesse projeto partidário e alguns se veem hoje desiludidos com a política. Afinal, como os jornais destacaram, a soma dos votos brancos, nulos e abstenções foi superior aos votos do candidato que ficou em primeiro lugar em nove capitais. Mas desanimar, daqui e dali, não significa desistir. E a esperança deve voltar. É de se lamentar que o PT tenha perdido a oportunidade histórica de mudar o Brasil. Paciência, ainda não foi dessa vez. Mas sociedade alguma vive sem esperança e tampouco sem política. Se o Brasil começa a virar a página da insensatez, podemos notar também que o petismo pode ganhar uma sobrevida por meio de outros movimentos que se põem a trilhar o mesmo caminho seu do início dos anos 80.  Corre-se, então, o risco de repetir os equívocos do PT em outras espaços políticos. Uma espécie de petismo sem PT, em suma. Um petismo dessa vez muito mais universitário, comportamental até, do que sindical.

Não foi fácil lidar com essas dificuldades durante todos esses anos. Para que uma outra prática se imponha, é preciso que o campo democrático se mantenha unido em torno de dois objetivos claros e imediatos, a saber: recuperação da economia e manutenção das regras constitucionais. Isso vai muito além das esquerdas. Isto é, superar a gravíssima crise econômica, gerar empregos e aprofundar a democracia representativa são tarefas fundamentais, nacionais. Tarefas árduas, sem dúvida, implicando reformas incontornáveis, tamanho o descalabro que grassa em várias esferas da vida brasileira, da educação à saúde, da segurança ao sistema de transporte. Antonio Gramsci escreveu certa feita que toda a luta da Humanidade implicava a criação de instituições cada vez mais democráticas e que satisfizessem as necessidades de cada um. Esse nos parece ser o caminho. E aqui cabe realçar o protagonismo dos liberais nas diversas frentes que derrotaram todos, mas absolutamente todos, os governos autoritários ou populistas entre nós, do Estado Novo de Vargas à ditadura dos generais e desta ao “Estado Novo do PT” (esta última expressão foi desenvolvida pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna, um dos maiores intelectuais brasileiros).

Sabemos todos da força histórica do populismo — e podemos citar a sua adoção na antiga Roma, com sua política de panem et circenses satirizada por Juvenal (o que aliás não impediu as revoltas populares, apesar de tudo, e menos ainda que a velha capital criasse a prática do voto secreto, há quase dois mil e duzentos anos...). Mas há razão para algum otimismo. A consolidação da Democracia em várias partes do mundo, as extraordinárias mutações que se processam no aparelho produtivo das sociedades e a expansão do conhecimento e das pesquisas apontam para o fato de que talvez estejamos às portas de um novo Renascimento. O trabalho por conta própria, o desejo de uma maior autonomia por parte das pessoas, as alterações nas formas de comportamento delas em seu cotidiano, tudo indica uma mudança profunda na nossa maneira de ver o mundo, de estar nesse mundo. Contudo, para que essa mudança se verifique de fato, é preciso também promover — conforme destacou Maquiavel, ao analisar a situação dominante na Itália do seu tempo, o estupendo Cinquecento — o encontro da virtù com a forza, pois até então os fortes não eram virtuosos e os virtuosos não eram fortes. Ontem como hoje, empoderar a virtude parece ser a única maneira de fazer triunfar os valores da Civilização — liberdade, igualdade e fraternidade.

Sim, a experiência histórica e o aprimoramento das ideias ensina e muito. Senão, vejamos. Jacob Boheme era um sapateiro nascido em 1575, na Alemanha. Era também um apaixonado pela filosofia e receberia séculos mais tarde elogios de Georg Hegel. Um filósofo popular, fato raro na Europa do Renascimento. Muito que bem. Um dia, o nosso sapateiro-filósofo percebeu, no seu ateliê, um magnífico raio de luz projetado sobre um fundo sombrio de uma chapa de estanho e concluiu que a luz precisava de obscuridade para resplandecer. Para Jacob Boheme, “uma coisa se opõe a outra não com a intenção de provocar uma hostilidade, mas para que tudo se mova e se manifeste”.

O que queremos dizer com tudo isso, em síntese? Que o Humanismo é uma força considerável do nosso tempo no plano internacional. E suas bases, como na época do seu florescimento, na Itália renascentista, estão assentadas em duas premissas. De um lado, se alicerça na crescente consciência que o indivíduo vai tomando sobre seu papel na sociedade e, de outro, se alimenta da sensação que esse mesmo indivíduo tem de que vive em um mundo extraordinário, passível de ser explorado ad infinitum. Em seu tempo, o filósofo e  estadista inglês Francis Bacon entendeu a importância da técnica para o pleno desenvolvimento da sociedade burguesa. E de fato a fábrica virou a unidade produtiva por excelência do modo capitalista. Da mesma forma, o pleno desenvolvimento do mundo atual pressupõe o recurso às tecnologias de ponta, cujo impacto sobre as forças produtivas não para de nos assombrar. É que não há democracia nem desenvolvimento sem o conhecimento.

Hoje, a luta pelo afastamento do homem do trabalho embrutecedor passa pelo incremento da robótica. No plano da base material, as condições estão muito mais maduras para o estabelecimento de uma sociedade sem classes do que em 1917, durante a Revolução Russa, quando não existia a automação. Só perdemos momentaneamente as condições políticas, fazendo-se necessário uma adequação entre a esfera produtiva e aquela da participação coletiva. Provavelmente um novo projeto político global está nascendo diante de nós, incorporando os nossos anseios de paz, de busca por um equilíbrio ambiental efetivo e também integrando propostas que deságuam no fim da exploração dos povos e da opressão de uma pessoa por outra. O grande desafio é saber exatamente qual a cara política que terá essa nova realidade alicerçada nas profundas transformações por que passa a base material da sociedade contemporânea.

Nas últimas décadas, ditaduras desmoronaram — basta pensar na Grécia, em Portugal, na Espanha e em grande parte da América Latina — e inúmeras guerras terminaram — no Vietnã, no Laos, no Camboja, e nas antigas colônias portuguesas da África e em Timor Leste. Evidentemente, persistem situações terríveis em países como Venezuela, Síria e Coreia do Norte. E há uma preocupação crescente com as atitudes aventureiras do líder russo Vladimir Putin. Mas a solidez da Democracia — materializada recentemente pelo avanço do Partido Democrata nas eleições presidenciais dos EUA, em detrimento da candidatura desse inacreditável Donald Trump — permite ainda um certo regozijo.

Tudo indica que a batalha da sociedade brasileira por mais transparência e exercício pleno da cidadania deve continuar se expandindo e se manifestando. A proposta que poderíamos chamar de hobbesiana de submissão do homem ao Estado está se esgotando rapidamente. A Revolução Burguesa — isto é, aquela que garante que todos sejam iguais perante a Lei — ganhou as ruas do Brasil em junho de 2013 e depois como que se completou com o apoio decisivo dessa notável operação Lava Jato e do próprio Congresso Nacional, ao consagrar o afastamento de Dilma Dousseff. Além disso, a vitória eleitoral das forças do campo democrático nas principais cidades do país, no final de 2016, também demonstram que o povo, em centenas de cidades, não deseja mais ser governado pelo sistema político do lulopetismo, derrotando as ameças autoritárias. Sopram ventos democráticos, apesar de alguns impasses, como no Rio de Janeiro (mesmo assim, os partidos mais identificados com o campo democrático, que infelizmente se apresentaram divididos, tiveram mais votos do que os dois primeiros colocados vistos separadamente).

Democracia como meio e fim, ampliação da autonomia e dos diretos individuais, transparência e gestão compartilhada das riquezas, inovações tecnológicas incidindo sobre o modo de vida aqui e agora, luta pela diminuição do fosso entre a ciência e a população, oportunidades iguais para todos estão entrando na ordem do dia entre nós. Já não era sem tempo.

Aprendemos com Armênio Guedes que o conceito de esquerda não é fixo e que o que era considerado esquerda lá atrás não o é mais hoje. Na verdade, ampliou-se talvez o espaço para uma política de novo tipo, ao mesmo tempo em que se verificou um certo cansaço em torno de posicionamentos demagógicos. As redes sociais hoje são praticamente um novo poder. Ernst Bloch chegava a falar em “escuridão do momento vivido”, ao tentar entender uma determinada conjuntura. Realmente, não é nada fácil.  Porém, é inegável que o cerco agora vai se fechando com uma tripla vitória das forças democráticas: política (impeachment), jurídica (Lava Jato) e eleitoral (com o grande passo dado nas eleições municipais de 2016, quando as forças que se juntaram para apoiar o impeachment de Dilma Rousseff foram as grandes vencedoras). Acabou o tempo das ilusões com propostas que quase nunca saíram do papel. Adeus, populismo — aos vencedores, a democracia.

Ivan Alves Filho é historiador.


Fonte: acessa.com