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Hélio Schwartsman: Com Bolsonaro e Araújo, Brasil corre risco de ficar sem aliados

Nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano

Há uma diferença importante entre o policial e o diplomata. Diante de crimes mais sérios, policiais não têm opção que não a de indiciar os suspeitos, independentemente do que achem da lei ou das circunstâncias que levaram ao delito.

Nas relações internacionais, as coisas são um pouco mais complicadas. Mesmo quando a diplomacia está diante de um crime gravíssimo e muito bem documentado, pode ver-se compelida a pegar leve com o autor. É o que acaba de fazer o presidente dos EUA, Joe Biden, ao deixar de responsabilizar o príncipe saudita Mohammed bin Salman pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi em 2018.

O problema de base é que, nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano. Sem uma autoridade central forte que a todos submeta, cada Estado é mais ou menos livre para agir como quiser. As principais limitações são a força de outros países, seguida de acordos e tratados internacionais, cuja imposição, entretanto, é fraca, e, no caso de democracias, da repercussão política que as ações possam ter para o público interno.

A resultante desses vetores em nível nacional costuma ser uma política externa pragmática, com algum tempero moral. Os EUA não podem dar-se ao luxo de romper com os sauditas, um de seus principais aliados na região, então Biden optou por pegar leve com o príncipe, mas sem deixar de sinalizar que reprova o homicídio e que poderá reagir de modo mais duro se violações desse tipo se repetirem.

Uma diplomacia totalmente pragmática, pautada exclusivamente por interesses, até pode funcionar para países autocráticos, onde o líder não deve satisfações a ninguém. Já uma diplomacia que se guie apenas por princípios acabaria rapidamente isolada, sem nenhum aliado.

O Brasil, com Bolsonaro e Ernesto Araújo no comando da política externa, corre o risco de terminar sem aliados e defendendo posições imorais.


Submissão aos EUA não combina com nação do tamanho do Brasil, diz Hussein Kalout

Em artigo na revista da FAP de dezembro, pesquisador de Harvard critica política externa do Estado brasileiro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O pesquisador da Universidade de Harvard e ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Hussein Kalout critica a subserviência do Brasil em relação aos Estados Unidos, no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não se coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil”, afirma ele, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. A submissão, segundo o pesquisador, é “francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos como em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses”.

Na avaliação de Kalout, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é uma política da destruição que substitui a racionalidade pela ideologia, o senso de realidade pela fantasmagoria, a luta por uma ordem baseada em regras por um desprezo do direito que flerta perigosamente com o caos. “O discurso fala em valores conservadores, liberdade e nacionalismo, mas a substância nos aproxima do precipício, isola o país e o condena à irrelevância”, afirma. “Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde tem encontro marcado com história”, diz.  

Kalout, que também é professor de Relações Internacionais e cientista político, também analisa os ataques do Brasil contra a China. “A desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial, que é a China, revela o nível obtuso dessa diplomacia”, critica. “Atacar os chineses, em um momento em que nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir a renda de muitos brasileiros, revela, enfim, o grau de irresponsabilidade dos formuladores dessa ‘política externa’. O atrito com Pequim não serve aos interesses nacionais do Brasil”, alerta.

O cientista político também diz que, sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam a “política externa” brasileira de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é. “Devemos trazer a política externa a seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal”, lembra.

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Marcelo Godoy: Com Bolsonaro, tropas brasileiras deixam as forças de paz da ONU após 21 anos

Brasil perde projeção do poder nacional e reforça isolamento diplomático do governo, que se compraz em ser pária internacional

Caro leitor,

Na manhã da quarta-feira, dia 2, quando o mestre da fragata Independência executar os toques de apito para o comandante da embarcação, em Beirute, no Líbano, a cerimônia de bordo da Marinha vai marcar o fim de uma era da diplomacia brasileira e de sua Defesa: pela primeira vez em 21 anos o Brasil ficará sem tropa em missões de paz das Nações Unidas.

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Navio fragata Independência, que começa sua viagem de volta ao Brasil no dia 2 Foto: MARINHA DO BRASIL

Desde 2011  o Brasil fazia parte da Unifil, a única força de paz marítima da ONU, responsável pelo patrulhamento das águas territoriais libanesas. A Marinha exercia o comando da missão, que, agora, deve passar para a Alemanha. A Independência foi a última fragata enviada ao Oriente Médio. Ela havia partido, em 8 de março, do Rio, para o Líbano, onde já havia estado em outras duas oportunidades, levando seu helicóptero Super Linx e um grupo de mergulhadores de combate (GruMeC), além de um destacamento de fuzileiros navais. Era o navio capitânia da Unifil quando escapou por pouco da explosão do depósito de nitrato de amônia que devastou a capital libanesa em agosto.

A embarcação, cuja missão era impedir a entrada de armas e materiais ilegais no Líbano, deixará o porto de Bierute no dia 2 e deve chegar ao Brasil em 28 de dezembro. No dia 1.º de janeiro de 2021, o contra-almirante Sergio Renato Berna Salgueirinho passará o comando da força, encerrando assim a participação do País na missão – restarão como capacetes azuis apenas os militares que trabalham como observadores militares em missões individuais, em países como Chipre, Eritreia e Sudão do Sul.

Foi nos anos 1990 que aconteceu a retomada da presença brasileira em forças de paz. Em 1994, duas centenas de paraquedistas brasileiros foram mandados para a Onumoz, a força enviada pela ONU à Moçambique, após o acordo de paz de Roma, entre o governo da Frelimo e a guerrilha da Renamo. Desde 1967, quando se retirara da região de Suez em razão da Guerra dos Seis Dias, o Brasil não participava dessas missões. Então comandante do Contingente Brasileiro em Moçambique (Cobramoz), quando era major, o general Franklimbergue Freitas lembra que a tropa no país africano abriu o caminho na ONU para que a presença do Brasil fosse requisitada em outras oportunidades. "E nós procuramos contribuir com nossa experiência com aqueles que foram para Angola."

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Uma coluna de blindados brasileiros - Cascavel e Urutu - em estrada no centro de Angola durante a ação da Unavem 3 Foto: Arquivo pessoal

A missão seguinte foi justamente em Angola e durou quase três anos, mobilizando 4.485 militares das Forças Armadas e policiais militares. Em 1997, o Brasil ficaria pela última vez sem fazer parte de nenhuma missão de paz. Isso aconteceu por causa da retirada das tropas brasileiras da missão Unavem 3, das Nações Unidas, em Angola, em razão do recomeço da guerra civil entre a guerrilha da Unita e o governo do MPLA. A ausência brasileira duraria pouco mais de dois anos.  

O atual período de 21 anos contínuos de missões com tropas se iniciou em 25 de setembro de 1999, quando o então major Fernando do Carmo Fernandes chegou ao Timor Leste, como oficial de ligação do futuro contingente brasileiro com as tropas australianas. A ação na ilha foi autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, antes da formação propriamente de uma força de paz. Ela devia estabilizar o país, depois de os invasores indonésios – a ocupação do Timor Leste durou 25 anos – terem adotado a política de terra arrasada ao deixar o lugar. Dias depois, 51 homens – um pelotão da Polícia do Exército – desembarcaria em Dili.

Depois do Timor, o País mandou tropas para o Haiti e para o Líbano, como capacetes azuis. Ao todo, 38,2 mil militares brasileiros participaram dessas operações, que não se limitaram ao entorno estratégico do País, compreendido pela América Latina e pela África Ocidental. A presença nessas missões era considerado uma forma de projeção do poder nacional em um momento em que o Itamaraty buscava abrir novos espaços para o Brasil nos organismos internacionais, com reivindicações como a reforma do Conselho de Segurança da ONU a fim de nele obter uma cadeira para o País.

"Havia da parte dos diplomatas e dos militares essa consciência de que essas operações eram complemento indispensável à ação de um país como o nosso, que não tem propriamente poder militar – não somos uma potência nuclear ou convencional", afirmou o embaixador Rubens Ricupero. Diplomatas e militares concordam que a ausência de tropa do País nas forças de paz trará consequências para o Brasil e para suas Forças Armadas.

Na área da Defesa, elas podem afetar a sua modernização por meio da aquisição de experiência e doutrina para o emprego de suas tropas – exemplo disso foi a mudança da logística do Exército brasileiro em operações no exterior depois da experiência do Haiti. Mas não só os militares devem ser sofrer com a retirada. É a própria presença do País no mundo e sua relevância internacional que serão diminuídas.  "A força no Líbano era a única presença significativa brasileira em uma área estratégica importante. Dentro do grande jogo, a única que tínhamos era essa.", afirmou Ricupero.

general Adhemar da Costa Machado Filho, um dos comandantes do contingente brasileiro em Angola, escreveu uma monografia sobre o tema, em 1999, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), no qual afirmava que a participação brasileira nas operações de manutenção da paz proporcionava a "oportunidade de projetar a expressão militar do poder nacional no exterior o que, em última análise, representa um acréscimo da influência do poder nacional no contexto internacional". Passados 21 anos, o general Adhemar mantém sua opinião. "O Brasil tem um perfil que se ajusta muito a essas missões."

O desejo de militares e diplomatas de manutenção de tropas no exterior esbarrou nos gastos. Entre 2004 e 2017, a tropa no Haiti custou R$ 2,6 bilhões aos cofres públicos. De 2011 a 2018, o governo havia colocado R$ 483,5 milhões na Unifil para manter uma fragata, um helicóptero e as tripulações patrulhando as águas do Líbano. Nos últimos anos, gastava-se de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões por ano com o contingente da Marinha no exterior, de acordo com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Ao todo, durante os dez anos de operações, quatro fragatas, uma corveta e um navio de patrulha oceânico passaram pelo Líbano.

“A presença do Brasil nessas forças é uma modalidade muito original de soft power por meio de um poder hard sem os inconvenientes do hard power, da imposição da força, pois ela tem um contexto jurídico, sempre aprovado pelo Conselho de Segurança e dentro da carta das Nações Unidas”, disse Ricupero. Para ele, tratava-se de uma "maneira nobre de projetar esse poder".

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Grupo de intervenção armada do contingente embarcado na fragata União, uma das quatro que participaram da missão no Líbano Foto: Marinha do Brasil

Mesmo que a da força do Líbano estivesse prevista desde agosto de 2019, quando a Marinha anunciou a medida, o retorno da fragata brasileira acontece no momento em que o Brasil aumenta ainda mais seu isolamento internacional, por meio da política levada à cabo pelo chanceler Ernesto Araújo, que disse se comprazer em ser um pária diplomático. Ao mesmo tempo, o chefe do chanceler afirma ter provas de que houve fraude na eleição de Joe Biden – sem apresentá-las –, acusa a China de querer derrubá-lo com o coronavírus e diz que a Europa quer saquear a Amazônia.

Ninguém sabe qual o propósito de Bolsonaro em escalar crises com praticamente todos os maiores parceiros comerciais do Brasil. "É o sinal dos tempos nos retirarmos do último domínio (as forças de paz) em que tínhamos uma presença multilateral." O Itamaraty não se manifestou sobre o tema e não há notícia de que a chancelaria tenha procurado reverter a decisão sobre as forças de paz. "Esse tipo de atitude está em harmonia com a posição do Ernesto Araújo, que é hostil ao multilateralismo e ao que ele chama de globalismo."

E, assim, é em um governo, como o de Jair Bolsonaro – com um Estado-Maior alojado no Planalto dominando os principais ministérios civis e no qual os militares conseguiram emplacar um projeto de reajuste de salários que preservou a paridade e a integralidade das aposentadorias –, que o abandono das missões de paz punirá, não só os objetivos históricos da diplomacia brasileira, mas também os mais capazes entre os militares, cuja experiência no exterior constituía etapa essencial de sua formação. Em todos os governos há os que fecham os olhos e preferem o dinheiro no bolso, o cargo e os favores dos poderosos. São estes os que causam os desastres nacionais, como os argentinos descobriram nas Malvinas. 


Celso Lafer: ONU, 75 anos

Diplomacia do governo almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional

O multilateralismo e suas instituições têm como função criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados. Resultam das realidades de um mundo finito e interdependente. Respondem à necessidade de lidar com desafios que não estão ao alcance das relações bilaterais e muito menos de ações unilaterais, como pandemias e mudança climática. É o que convém lembrar preliminarmente, afastando desqualificações “globalistas”, ao comemorar os 75 anos da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU representa a presença da figura do terceiro no pluralismo do mundo dos Estados. Há na figura do terceiro um potencial de favorecimento do entendimento, que se revela nos conflitos bilaterais.

Os bons ofícios, a mediação, a arbitragem são exemplos da intercessão do terceiro nas soluções pacíficas de controvérsias.

A diplomacia é uma arte do terceiro, que opera no âmbito internacional no trato da governança da complexidade, negociando, persuadindo, contendo tensões, desdramatizando conflitos.

A ONU é um terceiro. Não é um terceiro acima das partes, um tertius super partes, porque não é um governo mundial. É um tertius inter partes, um terceiro entre as partes, criado pelos Estados e institucionalizado pela Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Tem como função ser uma instância de abrangência universal de interposição e mediação entre Estados. É dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus Estados-membros. É o que confere à ONU a sua identidade internacional. Para cumprir sua função de instância de interposição e intermediação, rege-se pelas normas da sua Carta. Guia-se pela “ideia a realizar” de ser “um centro destinado a harmonizar a ação das nações” para a consecução dos objetivos comuns dos seus propósitos – paz, segurança, relações amistosas e cooperação internacional.

Os propósitos da ONU e suas realizações foram reafirmados na resolução da Assembleia-Geral de 21 de setembro deste ano, que registra o muito que precisa ser feito, apontando que os grandes desafios do presente são interconectados e interdependentes. Por isso só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado e pelo reforço do pilar da cooperação internacional.

Do espaço da ONU tem se valido a diplomacia brasileira no correr das décadas, exercendo com competência a arte diplomática do terceiro para articular, na interação com os Estados que integram a sociedade internacional, a voz própria e os interesses gerais do Brasil na dinâmica do funcionamento do mundo.

O multilateralismo vem propiciando soft power para o nosso país, que agrega substância à diplomacia bilateral brasileira. É o que comprovam os estudos acadêmicos e a experiência dos que viveram “de dentro” a responsabilidade de representar o Brasil em instâncias multilaterais.

É o que não percebem a diplomacia do governo Bolsonaro e a vocação negacionista de seu chanceler Ernesto Araújo, que almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional.

A figura de secretário-geral corporifica a identidade do tertius inter partes. Ele é um agente administrativo, mas também um ator político, proveniente de seu poder de iniciativa que lhe dão a Carta e a prática construída por sucessivos secretários-gerais, cabendo destacar o papel inaugural que teve Dag Hammarskjold.

Ele, aliás, dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a responsabilidade do secretário-geral de promover iniciativas de cooperação que façam da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos grandes problemas internacionais.

Muito tem feito, em condições difíceis, o atual secretário-geral, António Guterres, com criatividade e determinação no exercício de suas funções, para as quais vem mobilizando a opinião pública e a sociedade em prol de um mundo mais sustentável e menos precário.

Concluo lembrando conhecida elaboração de Albert O. Hirschman sobre o papel da voz, da saída e da lealdade na dinâmica da vida de organizações. A lealdade numa instituição equilibra a voz e a saída. A saída pressupõe a existência de alternativas, no caso a alternativa ao multilateralismo e suas instituições, como a ONU. Eu não creio, dada a natureza da realidade internacional, que seja possível conviver com os unilateralismos de um Estado de natureza hobbesiana e sua propensão à guerra de todos contra todos. “Somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”, como observa Hannah Arendt.

Daí a relevância da lealdade à ONU, que é uma característica histórica da diplomacia brasileira.

Quanto à voz, não faz sentido o monólogo da discussão contra, com a qual se compraz a diplomacia de confronto do governo Bolsonaro, mas sim o diálogo de discussão com os outros integrantes da comunidade internacional, tendo como propósito encontrar interesses comuns e compartilháveis, cujos caminhos o secretário Guterres vem desbravando de maneira corajosa e pertinente.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


O Estado de S. Paulo: Itamaraty reduz atuação em políticas ambientais

Ministério ‘rebaixou’ tema em sua estrutura interna e focou na luta contra ‘ambientalismo ideológico’; País perdeu recursos e importância no cenário mundial

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O Itamaraty desmobilizou a frente diplomática brasileira que usava a preservação ambiental como trunfo para atrair recursos e influenciar decisões em fóruns econômicos internacionais. Numa sequência de mudanças políticas, o governo Jair Bolsonaro desistiu de sediar a Conferência do Clima (COP) 25, no ano passado, e rebaixou o tema na estrutura interna do Itamaraty. Agora, é alvo de ameaças de perda de investimentos externos e bloqueio a exportações, além da desconfiança de seu real empenho em levar adiante negociações preservacionistas.

Logo ao assumir o cargo, o chanceler Ernesto Araújo promoveu o que chamou de “agenda de luta contra o ambientalismo ideológico”. Reduziu a equipe dedicada a temas ambientais e rebaixou a chefia do setor na estrutura do ministério. A antiga Subsecretaria Geral de Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia foi extinta. O órgão tinha um Departamento de Sustentabilidade Ambiental e quatro  divisões dedicadas a Mudança do Clima, Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Mar, Antártida e Espaço. Ao todo, eram 10 diplomatas em cargos de confiança. No lugar, Araújo criou o Departamento de Meio Ambiente, sem o mesmo poder. Agora são seis diplomatas em funções comissionadas.

Além da mudança organizacional no Itamaraty, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, trocou em março um nome com experiência diplomática em organismos das Nações Unidas, Roberto Castelo Branco, pelo ruralista Eduardo Lunardelli Novaes, no posto de secretário das Relações Internacionais da pasta. A diretoria que cuida de Temas Globais e Organismos Multilaterais segue vaga.

Sem o poder econômico de países como Estados Unidos e China, o Brasil fazia do fato de concentrar a maior biodiversidade do mundo, com 20% da fauna e flora, uma arma de seu soft power (termo usado para descrever a capacidade de um país de influenciar os outros por meio de cultura ou ideologia). Liderava negociações multilaterais e formulava mecanismos para atrair verbas de países desenvolvidos – parte do dinheiro de livre alocação.

A delegação brasileira era consultada e seguida nas principais decisões globais por países em desenvolvimento, como vizinhos sul-americanos e nações africanas. A perda desse poderio ocorre em paralelo à alta no desmatamento, considerado no exterior como principal problema ambiental brasileiro.

A mudança na estrutura do Itamaraty é criticada pelo embaixador Everton Vieira Vargas. Em 43 anos de carreira, Vargas chefiou a frente da diplomacia ambiental brasileira. Teve participação direta nas tratativas para sediar a ECO-92, conferência histórica que ajudou a colocar o Brasil entre os protagonistas das discussões ambientais, no momento em que o País era pressionado pelo assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, em 1988. Foi embaixador em Berlim, Buenos Aires e Bruxelas.

Vargas tinha voltado a Brasília para comandar a Subsecretaria de Meio Ambiente, mas acabou ficando sem função na gestão de Araújo. Foi cedido para assessorar o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), que faz oposição a Bolsonaro. “A atual administração do Itamaraty não gosta muito de gente experiente e fiquei a ver navios”, disse o diplomata.

O embaixador aposentado Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, considera que o Brasil sofreu uma “perda total” de protagonismo na arena ambiental. “Até o governo passado, o Brasil era um dos players principais, claro que não no mesmo nível dos Estados Unidos e da China”, afirmou. “O Brasil se anulou internacionalmente, não tem mais nada a dizer.” Procurado, o Itamaraty não se manifestou.

Colômbia

No vácuo deixado pelo Brasil, a Colômbia se movimenta. O segundo país mais biodiverso do mundo assumiu um papel de articulação continental, quando o presidente Iván Duque promoveu um encontro com líderes de países vizinhos em Letícia, principal cidade da amazônia colombiana. Foi no auge das queimadas no Brasil, na Bolívia e no Paraguai.

Com apoio da Alemanha, a Colômbia sediou ainda o Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho, e está envolvida na próxima COP 15 de Biodiversidade. Também recebeu US$ 360 milhões de países como Alemanha, Noruega, e Reino Unido – os dois primeiros financiavam o Fundo Amazônia e suspenderam repasses por divergências com Bolsonaro sobre a gestão dos recursos.