Itália [Europa]

Foto: Beto Barata\PR

Luiz Sérgio Henriques: O terceiro fantasma  

A falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos

Espectros e assombrações, de acordo com sua natureza evanescente, costumam rondar cenários de terra devastada, como é o caso da política brasileira, trazendo presságios e reminiscências mais ou menos distantes e, no entanto, úteis para nossa ponderação. De fato, a devastação é grande demais: líderes e partidos, de governo ou da oposição, parecem dissolver-se no ar, arruinados por denúncias às vezes imprevistas ou transformados em alvo de acusações que os tratam, respectivamente, como delinquentes ou “organizações criminosas” imprestáveis para o funcionamento de uma democracia normal.

Tendo em vista as prosaicas malas abarrotadas de dinheiro ou os sofisticados softwares de propina, não se pode dizer que se trata de calúnias saídas do nada. Mas o fato é que, ao lado do aspecto investigativo-judicial, é preciso voltar os olhos para toda a imensa crise de representação que assim se estabelece, dando ouvidos à assombração italiana dos anos 90 do século passado e à argentina da virada de século. A evolução política daqueles dois países é o que nos interessa de perto; judicialmente, respeitado o processo legal, que os mortos enterrem os mortos. De todo modo, não haverá muito a fazer se e quando condenados, sejam eles quem forem e seja qual for a narrativa persecutória que preferirem.

O impacto da Mãos Limpas na história italiana foi de tal monta que assinalou o ocaso da Primeira República, estruturada em torno de dois grandes partidos de massa, a Democracia Cristã e o Partido Comunista. O primeiro deles ainda tentaria reviver com o nome de seu longínquo antecessor, o Partido Popular, mas sem muito sucesso. E deixaria o campo da centro-direita livre para o surgimento fulminante de um personagem egresso do mundo dos negócios, Silvio Berlusconi, a seduzir cidadãos-consumidores, numa peculiar telecracia, com a retórica da antipolítica. Empresário, estaria comprometido só com a eficiência; rico, não precisaria valer-se da corrupção intrínseca à atividade política.

Em síntese extrema, o que levou à ruína a Democracia Cristã – e o Partido Socialista de Bettino Craxi, morto no exílio – foi a construção de um complexo sistema de poder, que excluía por definição a alternância. Impensável um partido comunista chefiar um governo nacional na Itália daquele tempo. Excluído do poder central e, portanto, só marginalmente atingido pelas investigações, o PCI, já mudado em partido de esquerda democrática, se lançara havia alguns anos em busca de uma identidade distinta da matriz bolchevique, busca evidentemente necessária para a formação de governos alternativos ao de Berlusconi.

Esta função cumprida pelos pós-comunistas italianos é algo que hoje nos falta à esquerda, se for verdade – do ponto de vista estritamente político – que o comportamento do petismo terá significado pelo menos o início da constituição de estruturas de poder avessas à alternância e voltadas para a cooptação bruta de aliados, chamados para ocupar predatoriamente, em posição subordinada, os lugares disponíveis em órgãos de Estado e empresas públicas. E esta falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos, penalizados que seremos pelas contradições e ambiguidades do lulismo e do petismo.

O fantasma argentino também traz sua mensagem para nós. Após a década neoliberal de Menem, uma das mais surpreendentes metamorfoses do peronismo, e do fracasso de seu sucessor “radical”, Fernando de la Rúa, as praças do país vizinho foram invadidas por intensos protestos populares. E até houve quem os tomasse, confundindo a nuvem com Juno, por um processo revolucionário à moda de Lenin, no qual uma eventual invasão da Casa Rosada significasse, quem sabe, a tomada do Palácio de Inverno.

Também aqui a antipolítica ressurgiu com virulência. O lema que se vayan todos, que no quede uno solo, condenatório de toda a “classe política”, correu mundo como expressão da vontade popular de fazer tábula rasa de representantes e instituições representativas. Alguns terão sonhado novamente com a “democracia direta”, a ser exercida nas praças, dispensando mediações e dando voz ao verdadeiro soberano. A ilusão de começar do zero, em meio à instabilidade provocada pela sucessão alucinante de governos brevíssimos, haveria de desembocar paradoxalmente na era Kirchner, manifestação desta feita do peronismo de esquerda, cujo apelo “nacional-popular” nem sempre, ou quase nunca, ocultou o desígnio de uma democracia iliberal e tendencialmente carente de contrapesos republicanos.

Pode ser que um terceiro fantasma tenha, agora, aparecido em nosso relato. Ambíguo, multiforme, o populismo será um espectro capaz de variadas encarnações e, por isso mesmo, de difícil apreensão conceitual. Há mesmo um bom argumento que rejeita seu uso por causa destas suas múltiplas figuras, que vão dos governantes “nacional-populares” da América Latina até Berlusconi ou mesmo Trump. O fato é que, em nossos dias, importantes teóricos voltaram a pôr em circulação a “razão populista”, que invariavelmente tenta desagregar, segundo a lógica feroz de amigos versus inimigos, o consenso em torno das instituições democráticas. O que diferenciaria o populismo progressista daquele reacionário seria a escolha atilada dos inimigos: as elites em vez dos imigrantes, por exemplo.

Em tempos difíceis, como os que temos vivido aqui e agora, o que se requer é uma esquerda que majoritariamente não pense só na afirmação de suas próprias razões, mas seja capaz de levar em conta o conjunto da sociedade, aceitando a espinhosa – e interminável – missão da persuasão permanente. E reconheça, por isso, que apostar na cisão simplória entre o povo e seus inimigos pode acarretar tragicamente “a ruína comum das classes em luta”. Como temos visto, construir esse tipo de esquerda não é nada fácil.

Mais em: www.gramsci.org

 

 


O Estado de S.Paulo: ‘Mãos Limpas deu lugar a multidão de esquemas'

Antigo sistema ruiu e corrupção apenas mudou de forma; nova política se voltou contra ação de procuradores na Itália. Entrevista com Gianni Barbacetto, jornalista e escritor

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo

Vinte e cinco anos depois do início da Operação Mãos Limpas, uma multidão de esquemas de propina tomou o lugar do sistema centralizado que existia até 1992. A política deixou de guiar a economia e, agora, é esta que comanda e estabelece novos formas de corrupção na Itália. A conclusão é do jornalista italiano Gianni Barbacetto é dos autores do livro Operação Mãos Limpas, cujo prefácio foi feito pelo juiz Sérgio Moro. Barbacetto critica ainda a decisão de magistrados, como Antonio Di Pietro, que entraram para a política. “Era um excelente magistrado; tornou-se um péssimo político.” O jornalista estará nesta semana em São Paulo para participar do seminário Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, uma parceria entre o Instituto Teotônio Vilela (ITV) e a Fundação Astrojildo Pereira.

Após 25 anos da operação, onde estão as pessoas que apoiavam Mãos Limpas?

Em 1992, Mãos Limpas, os magistrados de Mãos limpas tinham o apoio de 90% da sociedade italiana, seja da esquerda, seja da direita, porque todos tinham o objetivo de derrotar um sistema que era corrupto. Isso mudou após a vitória de Silvio Berlusconi. Em 1994, nas eleições, Berlusconi usou Mãos Limpas para substituir os partidos políticos que estavam no governo. Em poucos meses, o cenário mudou. Ele se tornou investigado na Mãos Limpas. Berlusconi havia vencido a eleição dizendo ser um empresário de fora do meio político, não comprometido, que era o novo, como se fosse uma alternativa ao sistema corrupto. Muitos italianos – a maioria – acreditaram nele de boa-fé.

O juiz Gherardo Colombo, da Mãos Limpas, disse que a operação acabou quando as investigações chegaram ao cidadão comum. O senhor concorda?

O apoio dos cidadãos terminou quando perceberam que as investigações podiam chegar a quem não pagava impostos. Mas essa é parte da verdade. A outra é que enquanto o velho sistema político era atacado, todos à direita e à esquerda eram a favor da Mãos Limpas, porque esperavam tomar o lugar do velho sistema. Com Berlusconi criou-se uma nova direita, diversa da Democracia Cristã. Quando viram que até mesmo ela seria investigada, pois a corrupção também afetava os novos atores, disseram: “Agora basta”. E isso ocorreu também com o PDS (ex-Partido Comunista Italiano), que teve homens envolvidos em corrupção. Assim, a operação era boa enquanto investigava os velhos políticos, mas quando se voltou contra a direita e a esquerda, todos disseram “basta”.

Qual foi a mensagem à sociedade o fato de que nenhum grande político italiano foi para a cadeia?

Eu não comemoro quando alguém vai parar na cadeia. O problema, porém, é o senso de Justiça. As pessoas dizem que tudo aquilo não serviu para nada. Na Itália aconteceu isso. Mãos Limpas durou pouco mais de dois anos. As apurações seguiram, mas com Berlusconi o sistema se compactou – com a ajuda do PDS – e surgiram uma série de leis sob medida e ad personam para retirar dos magistrados instrumentos processuais, como a reforma sobre a falsificação de balanços de empresas. Houve uma ação da política contra Mãos Limpas.

Alguns meses após o começo da Mãos Limpas, as investigações se multiplicaram. Mais de 70 sedes de procuradorias abriram inquéritos.

Essa multiplicação não provocou impunidade?

O problema da multiplicação das investigações aconteceu porque Tangentopoli (o esquema de corrupção) era um processo ‘científico’. Era automático. Toda obra pública era regulada por um sistema que previa a propina. Não era possível haver um contrato sem pagar propina. Sempre havia um porcentual dado aos partidos e dividido entre eles. Mas as investigações não foram feitas todas com o mesmo padrão de Milão. Em algumas procuradorias ocorreu uma corrida em que juízes jovens, que queriam fazer carreira, abriram investigações e cometeram erros. Não chegaram a lugar nenhum.

Na próxima semana o senhor estará no Brasil. Muitos enxergam semelhantes entre Mãos Limpas e Lava Jato. O que significa para um País descobrir sua elite política nessa situação?

Eu sou muito cauteloso com esses paralelos. Conheço pouco os fatos do Brasil. Na Itália, a maioria, no início, era a favor da Mãos Limpas, enquanto no Brasil uma parte considera a Lava Jato uma operação de limpeza e outra parte a chama de golpe de Estado. Essa divisão na Itália não existia. Isso só aconteceu na Itália três anos depois, quando começaram a dizer que os juízes da Mãos Limpas faziam uma operação política.

Deslegitimar Mãos Limpas foi uma estratégia consciente dos partidos políticos italianos?

Com Berlusconi sim. Mas, no início, cinco partidos italianos se dissolveram como neve ao sol. Desapareceram porque as pessoas não mais votavam neles, porque era claro que havia um sistema corrupto. Após isso, o sistema político se renovou e reagiu. Berlusconi fez a luta contra os juízes.

O fato de magistrados que participaram das investigações, como Antonio Di Pietro, terem entrado na política foi um erro?

Para mim, sim. Os magistrados devem ficar longe ds política até porque não sabem fazer política. Di Pietro demonstrou que era um ótimo magistrado, um grande investigador e um péssimo político.

É possível ainda descrever a Itália como o país da ‘impunidade permanente’?

Creio que sim. A corrupção continua. O que mudou foi a forma. Enquanto em Tangentopoli os partidos haviam criado uma sistema democrático, que se repartia as propinas entre eles segundo a proporção dos votos recebidos, hoje, em vez disso, qualquer um pode criar um esquema de corrupção. Há uma multiplicação de esquemas sem um sistema que a controle. Um tesoureiro do antigo Partido Social Democrata Italiano me disse: “Nós impedíamos que roubassem”. No sentido de que recolhiam a propina e a usavam para a política. A política governava a economia e decidia sobre a economia. Hoje é a economia que governa a política, que decide qual obra pública será feita. É o empresário faz amigos políticos e guia a política e não o contrário.