invasão capitólio

Marcus Pestana: As repercussões globais dos acontecimentos nos EUA

A democracia americana é uma grande referência mundial. Daí a repercussão global dos acontecimentos do último 6 de janeiro. O que lá acontece, respinga para além de suas fronteiras.

Como citou, certa vez, o senador americano Daniel Patrick Moynihan, “Todo mundo tem direito às suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. Donald Trump, seus “engenheiros do caos” e suas verdades alternativas creem que é possível impor uma narrativa descolada da realidade a partir da repetição exaustiva da mentira e da manipulação dos algoritmos nas redes sociais, e assim, mudar as regras do jogo político e a face da sociedade.

A insistência exaustiva sobre fraudes nas eleições foi disseminada bem antes. Diante dos resultados, sucessivos recursos judiciais alimentaram o clima golpista desejado. Paralelo a isso, se deu a pressão sobre as eleições dos delegados ao Colégio Eleitoral. Já na reta final, Donald Trump pressionou o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, a “encontrar votos” que lhe dessem a vitória. Não satisfeito, Trump infernizou a vida de seu vice e presidente do Senado, o republicano Mike Pence, para que não sancionasse a vitória de Biden.

Todas as manobras visavam um acontecimento inédito na história da democracia americana: barrar a posse do presidente eleito e criar o ambiente social necessário para as ruidosas manifestações que sitiaram o símbolo da democracia americana, o Capitólio. A gota d’água para estimular a agressão ao Congresso foi o discurso de Trump, incentivando a marcha que resultou nos dramáticos acontecimentos ocorridos, inclusive cinco mortes. Ainda sobrevive no ar uma névoa de dúvidas sobre o que poderá acontecer até a posse de Joe Biden.

Imediatamente, houve ampla reação internacional com pronunciamentos contundentes de líderes como Macron e Merkel, entre outros, preocupados com o estímulo a reações semelhantes de agressão à democracia no restante do mundo.

O posicionamento da sociedade civil, da imprensa, de partidos, de setores empresariais, nos EUA e mundo afora, foi unânime em condenar o atentado e defender a democracia. As redes sociais bloquearam as contas de Trump.

Para o Brasil ficam lições importantes. É preciso, até 2022, fortalecer a cultura democrática. O nacional-populismo autoritário não é obra de lideranças, loucas e/ou fascistas, isoladamente. É um fenômeno social de massas a partir da insatisfação de diversos segmentos sociais e não só do núcleo ideológico radical. Precisamos defender com firmeza a integridade de nosso sistema eleitoral e da urna eletrônica, que desde 1996, produziram um dos mais modernos processos de votação e apuração do mundo. Defender as instituições, a Constituição e as regras do jogo. Estancar a tentativa de politização das Forças Armadas e das polícias estaduais e a liberalização excessiva da venda de armas e munições. As milícias ideológicas armadas existentes nos EUA ainda poderão produzir tristes fatos até a posse de Biden. Não é um bom exemplo a seguir.

Democracia é liberdade, debate aberto, contenção no uso do poder, respeito aos adversários, debate, diálogo, formação de consensos, eleição e subordinação às regras e à alternância no poder.

Os acontecimentos de 6 de janeiro fortalecem a convicção que quase nunca o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.              

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Sérgio Amaral: O que restará do trumpismo?

Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente

Em 3 de novembro, Donald Trump perdeu a eleição para a Presidência dos Estados Unidos e os republicanos foram vencidos na Câmara dos Representantes. Na Geórgia, mais recentemente, os democratas conquistaram a maioria no Senado. As vitórias eleitorais dos democratas propiciam a Joe Biden uma base sólida para a execução de um ambicioso programa de governo, tanto no plano interno quanto no internacional.

No dia 6 de janeiro, Trump sofreu uma segunda derrota, desta vez em seu próprio partido, pela decisão de algumas de suas principais lideranças, como o vice, Mike Pence, e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em aprovar a certificação dos delegados eleitos para o Colégio Eleitoral, como é legal e de praxe, ao contrário do que pretendia o presidente.

A ocupação do Capitólio, ostensivamente incentivada por Trump e membros de sua família, provocou o repúdio da opinião pública, por representar um atentado ao maior símbolo da democracia americana. E, como se não bastasse, mídias sociais decidiram suspender o acesso do presidente a suas plataformas, sob a alegação de incentivo à violência. Ainda que os motivos possam ser louváveis, não deixa de ser insólito que uma empresa privada possa censurar o presidente de um Estado.

Trump deixa a Casa Branca abatido e desmoralizado. As próximas pesquisas de opinião poderão estimar quantos na sociedade, e especialmente em seu próprio partido, deixaram de apoiá-lo. Diante desse cenário incerto e turbulento, resta saber o que ocorrerá com Partido Republicano e com o trumpismo no novo capítulo político que se inicia com a posse de Biden.

Lideranças republicanas já vinham manifestando seu incômodo com o casamento de conveniência entre o seu partido e o presidente. Martin Wolf, respeitado colunista do “Financial Times”, já havia condenado, de modo incisivo, o que chamou de pacto faustiano entre a plutocracia de Wall Street e Trump, pelo qual o Partido Republicano cede sua estrutura política ao presidente em troca das isenções na reforma tributária.

A temporada da luta interna no Partido Republicano está aberta. Alguns dos principais apoiadores de Trump já se transformaram em seus algozes. O que restará do trumpismo, até há pouco percebido como a principal força conservadora para a eleição de 2024? Ao longo de todo o mandato, a aprovação de Trump oscilou entre 37% e 42% do eleitorado.

Como manter esse capital político sem a caneta de presidente e sem os comícios que organizava quase todos os meses, em diferentes regiões do país? Alguns parlamentares republicanos que até há pouco se vangloriavam da proximidade com o presidente e buscavam tirar proveito eleitoral de sua transformação em “representantes da classe operária” agora se dissociam de Trump em público.

Qual o impacto das derrotas de Trump sobre os seus os seguidores pelo mundo? É bom ter presente que o trumpismo não se limita às maquinações de um líder carismático, por vezes desequilibrado, para ganhar as eleições, como fez em 2016. Na verdade, desde o início de seu ingresso na política, o presidente republicano se apresentou como o porta-voz de um movimento mundial, o populismo nacionalista, contra a globalização e o “globalismo”, em defesa da hegemonia americana (“America First”), que amealhou adeptos em várias partes do mundo, especialmente na Europa e inclusive no Brasil.

Hoje parece anedótico, mas foi real o projeto patrocinado por Steve Bannon, o guru de Trump, ao deixar a Casa Branca, para fundar uma escola de quadros, num convento medieval na pequena Trisulti, no centro da Itália, com o objetivo de formar os cruzados do século XXI. Professores chegaram a ser selecionados, entre os quais alguns brasileiros.

Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente. Se é verdade que o Brexit venceu, também é certo que as hesitações britânicas em relação à União Europeia são históricas. O Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha avançaram, mas hoje parecem estacionados ou mesmo em refluxo. Na Áustria, Holanda e Itália, diferentes modalidades de populismo também recuam, diante da percepção de que movimentos sociais podem eleger ou ajudar a eleger candidatos, mas enfrentam sérios desafios para governar diante da ausência de uma estrutura partidária. Hungria e Polônia parecem ser a exceção que confirma a regra.

E o Brasil? Bolsonaro e Trump apresentam semelhanças notáveis. O carisma, a capacidade de comunicação, a competente utilização das mídias sociais, a aversão aos partidos e à imprensa. Certas condições em ambos os países também registram coincidências, como a persistência do racismo estrutural e da desigualdade. Nos dois casos, o compromisso com a democracia mostrou-se enraizado nas forças da sociedade, nas instituições e no estamento militar.

Um dos equívocos da recente campanha de Trump foi o de buscar repetir os temas e as táticas eleitorais de 2016, sem levar em conta uma das máximas da política: a história não se repete, o que na primeira vez é drama, um enredo sério, na segunda vez é uma farsa, como foi efetivamente a campanha republicana em 2020.

Em nossos dias, as mídias sociais estão sob suspeição, a mentira cansou e a radicalização é percebida como destruição, sem nada construir. No Brasil, as eleições do ano passado, ainda que municipais, emitiram alguns sinais para 2022, ao priorizar a reeleição de administradores experimentados, trazer de volta a centralidade dos partidos políticos, em detrimento das mídias sociais, a moderação nos debates e a objetividade das propostas.

*Sergio Amaral, ex-professor de ciência política na Universidade de Brasília, foi embaixador em Washington


El País: Segundo impeachment pode deixar Trump inelegível?

Senado estará dividido em 50 a 50 entre republicanos e democratas, mas o impedimento só é aprovado com dois terços dos votos

Yolanda Monge, El País

Donald Trump entrará na história como o único presidente submetido a dois julgamentos políticos, ou impeachments. Pode até se tornar o primeiro presidente dos Estados Unidos a sofrer esse impeachment já sendo ex-presidente. Porque ao contrário dos julgamentos anteriores no Senado contra Andrew Johnson, Bill Clinton e o próprio Trump, nesta ocasião o tempo é um fator determinante, uma vez que daqui a uma semana o presidente eleito, Joe Biden, prestará juramento nas escadarias do Congresso e Trump deixará o poder ao meio-dia do dia 20.

O ambiente político é muito diferente daquele do impeachment que Trump enfrentou em 2019. Na época os republicanos eram uma força monolítica e sem fissuras ―com a única exceção do senador Mitt Romney. Desta vez, o líder da maioria do Senado, Mitch McConnell, indicou que considera que a melhor maneira de tirar o trumpismo do Partido Republicano seria submeter o presidente a um impeachment. Trump seria julgado por “incitação à insurreição”.

A missão da Câmara dos Representantes nesta quarta-feira era aprovar a norma procedimental que definiria o impeachment, uma questão puramente mecânica, e votar a favor ou contra. A votação resultou na aprovação, porque só era necessária maioria simples e a Câmara está nas mãos dos democratas. A partir daí, tudo é novo em comparação com os julgamentos anteriores da época moderna, seja o de Clinton ou o do próprio Trump. Nancy Pelosi, a presidenta da Câmara dos Representantes, deve então decidir quando enviar a proposta de impeachment ao Senado, uma vez que, segundo o atual calendário, a Câmara Alta está em recesso até o próximo dia 19.

A única maneira de o Senado retomar suas sessões seria se os líderes de ambos os partidos, Mitch McConnell e Chuck Schumer, acordassem voltar mais cedo do que o calendário indica. Nesta questão, alguns democratas tinham pedido a Pelosi que adiasse o início do impeachment para permitir que Joe Biden começasse seu mandato sem que esse fardo pesasse sobre sua cabeça, o que, além disso, tornaria mais lenta a confirmação de seu Gabinete. Outros exigiram que começasse de imediato. Se forem confirmadas as palavras desta quarta-feira do líder da maioria da Câmara dos Representantes, Steny Hoyer, uma vez aprovados, os artigos do impeachment serão enviados imediatamente ao Senado, onde se realizará o segundo julgamento de Trump. Isto acabaria com as dúvidas sobre se os democratas esperariam os primeiros 100 dias de Biden na Casa Branca para realizar o julgamento e assim não interferir em sua agenda. No entanto, McConnell já avisou que não reunirá o Senado durante o recesso, razão pela qual o processo certamente terá lugar depois de Trump ter deixado a Casa Branca.

Numa atmosfera normal, não depois do ataque ao Congresso e com a Guarda Nacional mobilizada dentro do Capitólio, haveria uma investigação que seria enviada ao Comitê de Justiça da Câmara, que realizaria audiências intermináveis nas quais seriam redigidos centenas de artigos para que se aprovassem. Isto aconteceu em 2019, quando Trump foi processado por seu conluio com o presidente da Ucrânia. Esse inquérito demorou três meses. O julgamento de Clinton começou em 19 de dezembro de 1998 e terminou com sua absolvição em 12 de fevereiro do ano seguinte.

No entanto, existe o precedente de um impeachment expresso. Em 1868 a Câmara levou apenas três dias para julgar o presidente Andrew Johnson para evitar que violasse uma lei que o impedia de demitir o secretário de Guerra. A Câmara terminou então os artigos relativos ao impeachment depois que o presidente já tinha sido julgado, e absolvido. Em resumo: a Câmara pode avançar tão rápido quanto os líderes democratas desejarem.

Uma vez que a proposta de impeachment for enviada ao Senado, que é onde se julga o presidente, é de suma importância lembrar que o impeachment acontece num momento de transição tanto presidencial quanto de senadores. Os democratas Raphael Warnock e Jon Ossoff ganharam as eleições especiais da Geórgia no dia 5, mas como os resultados ainda não foram certificados eles não foram empossados, razão pela qual Mitch McConnell continua sendo o líder da maioria na Câmara Alta. O dia 22 é a data limite para a Geórgia legalizar os votos.

Se ambos os senadores tomarem posse enquanto Trump ainda for presidente, o Senado ficaria dividido em 50 a 50 e seria o vice-presidente, Mike Pence, quem romperia um empate em favor dos republicanos. Só depois que a vice-presidenta Kamala Harris e os senadores da Geórgia prestarem juramento é que os democratas assumirão o controle do Senado. De novo o tempo joga contra os democratas, e até ao dia 20, e mesmo alguns dias depois, McConnell e os republicanos é que decidirão o que será feito no Senado, o que significa que decidirão se começam o julgamento e como (por exemplo, quanto tempo será dedicado a ele, se testemunhas serão chamadas ou não).

Entre os obstáculos para que Trump seja condenado por insurreição ―e, a depender de uma segunda votação, incapacitado para voltar a ocupar um cargo público― está o fato de que deve ser aprovado por uma maioria de dois terços no Senado ―a incapacitação política dependeria de maioria simples, por outro lado. Embora várias vozes republicanas defendam a punição a Trump, seriam necessários 17 votos no Senado, o que torna uma condenação muito difícil. A isto se junta a pergunta de saber se o Senado pode proceder a um impeachment contra um presidente que já não está em exercício.

A pergunta que divide os especialistas citados pela imprensa norte-americana é: o Senado pode efetuar um impeachment contra um presidente que já não está em exercício? Há quem argumente que um ex-presidente já é um cidadão comum e que a figura do impeachment não foi redigida para tais casos. Outros dizem que o objetivo é conseguir que se proíba ao acusado poder concorrer à Casa Branca ―ou a outras instâncias do Governo― no futuro. A Constituição não dá respostas claras a esse respeito.

Enquanto isto acontece, Trump pode tentar alguma manobra, como declarar a lei marcial ou ordenar uma nova eleição, como sugeriu seu aliado Michael Flynn? Apesar de que, depois da insurreição, o presidente tenha se comprometido a respeitar a transição de poder, ninguém pode garantir que o fará. É por isso que uma grande maioria de legisladores democratas acredita que não se pode confiar que o presidente jogará limpo, e por isso pedem sua destituição imediata do cargo.


Bruno Boghossian: Medo da violência aumenta poder sedutor do debate sobre armas

É melhor remover um lunático da arena política ou derrotá-lo nas urnas?

Donald Trump fez tantos estragos na política americana que foi preciso aprovar dois pedidos de impeachment contra ele na Câmara. O primeiro foi barrado no Senado, em 2020, e o segundo não deve ser votado antes do fim de seu mandato, mas o processo em curso pode abrir caminho para que ele seja proibido de disputar eleições.

Alguns congressistas republicanos apoiam a condenação de Trump. Além de gravar essa decisão na história, eles dizem que é preciso despoluir o partido e impedir que o atual presidente cause mais danos ao país no futuro. Outros parlamentares, porém, argumentam que expulsá-lo da vida pública vai alimentar animosidades e fortalecer seus devotos mais radicais.

É melhor remover um lunático da arena política à força ou é melhor derrotá-lo nas urnas? A resposta depende do apego a princípios democráticos, da força das instituições, do grau de ameaça do sujeito e, principalmente, da chance de sucesso de cada uma das alternativas.

Quem defende o acionamento do segundo botão sustenta que o confronto dentro das regras eleitorais reveste esse movimento com o condão da vontade popular e ajuda a reduzir os traumas da transição, mesmo após campanhas duras.

O problema é que essa solução tende a ser pouco eficaz contra populistas autoritários, que exploram teorias extremistas, posam como líderes perseguidos pelo sistema e se beneficiam do ressentimento de seus admiradores. Se os americanos escolherem esperar até 2024 para dizer um novo “não” a Trump, ele pode voltar à Casa Branca.

A exclusão pelos canais institucionais é um tiro mais certeiro, ainda que os efeitos colaterais sejam consideráveis. A ação depende de políticos que tenham coragem de tomar essa decisão e que abandonem a ilusão de que poderiam controlar o líder desvairado caso ele continuasse no jogo. Depois disso, é preciso ter instituições potentes para debelar focos secundários de extremismo e barrar a ascensão de seus filhotes.


Roberto DaMatta: O combate de Trump contra a igualdade

Eis um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu gosto as regras e estão acima da lei

A eleição é um evento de formidável significado político nas democracias. O ritual eleitoral livre e individualizado equivale à morte paradoxalmente programada de um rei. Ele renova o sistema político e acaba com o exclusivismo dos arranjos de familismos e abala os ardis de classe, dando sentido a associações voluntárias que ajudam a enfrentar problemas. Somente na democracia há uma entrega do poder político ao julgamento do povo. 

Tal paradoxo torna-se ainda mais poderoso num planeta permeado por redes digitais – uma jamais vista capacidade de livre expressão, o que facilita tanto a verdade quanto a intriga e a mentira. O fato inegável, contudo, é que a eleição livre é a melhor vacina contra os golpes cujo primeiro ato é eliminá-la. 

A dúvida de quem vai ser o mandatário por meio eleitoral é a prova viva do valor da igualdade inibidora do execrável “você sabe com quem está falando?”, porque a competição eleitoral suspende e separa indivíduos de cargos, revelando que estes são fixos, mas pessoas e contextos – eis o centro do surto trumpista e de todos os autoritarismos – passam.

As estruturas eleitorais neutralizam hierarquias e exigem igualdade. No fundo, elas equilibram esses dois polos descompassados, mas acasalados da vida social. Elas substituem um obrigatório “sabe com quem está falando?” por um realista “quem você pensa que é?”, numa transição verdadeiramente revolucionária quando se vai do personalismo patriarcal para a impessoalidade de um igualitarismo universalista – esse marco da vida moderna.

A eleição, diz um ativista amigo e querido, não é o emplastro de Brás Cubas, mas renova a esperança de liberdade, igualdade e justiça. 

Não foi, pois, por acaso que o inusitado, criminoso e brutal ataque ao Parlamento americano, uma agressão insuflada pelo próprio presidente Trump, tenha sido iniciado explicitamente no processo eleitoral. 

Ironicamente, foi o mecanismo eleitoral singularmente americano com as suas duas etapas – voto universal centralizador e de massa; e voto num colégio eleitoral federativo e qualitativo –, desenhado para inibir populismos, que, nesta eleição, trouxe à cena o antidemocratismo violento e, no limite, fascista, de Donald Trump. Foi justo na segunda etapa eleitoral que a narrativa de fraude ganhou credibilidade. 

Daí, encarnou-se a encrenca de Trump contra a realidade das contagens dos votos numa rejeição surrealista de números e do igualitarismo competitivo. Encrenca surrealista, típica da má-fé que tão bem conhecemos. Um “morde e assopra” que tipifica a nossa vida pública e permite escolher não escolhendo tanto a democracia quanto o autoritarismo; tanto o salvador da pátria quanto a lei, conforme tenho reiterado na minha obra. 

Eis um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu gosto as regras e estão acima da lei. Tal é justamente o caso de Donald Trump com a diferença de que, nos Estados Unidos, uma profunda tradição do “governo da lei” reafirmou que não há ninguém acima de qualquer suspeita.

Sobretudo quando se trata de um presidente contraditório, mentiroso e insuflador de insurreição. A força do domínio da lei surgiu abertamente quando o Senado reafirmou que, nas democracias, os juramentos não são feitos a pessoas, mas ao país e à Constituição.

Trump foi derrotado pela igualdade, essa discreta dama imprescindível às democracias. A despeito dos seus fanáticos seguidores, ele foi vencido pelo princípio de que, quanto maior o privilégio do cargo, mais o seu ocupante é um devedor permanente da honestidade e da transparência. 

O que nos leva a um assunto inibido quando se trata de discutir o lugar de uma superpotência num mundo globalizado. Refiro-me à capacidade de o presidente dos Estados Unidos poder emitir moeda, construir muros, afetar a economia mundial e – valha-nos, Deus! – de ter o poder pouquíssimo discutido, mas absurdo de, num apertar de botões, destruir o mundo! 

Nesse contexto, vale discutir se as regras de governabilidade que anularam, com justiça, o poder dos reis e dos papas, seriam ainda adequadas a presidentes e líderes de países dotados de artefatos nucleares. Lembro que, até a metade do século passado, imperadores, reis, ditadores e tiranos tinham poderes sem dúvida absolutos sobre seus povos, mas não tinham a capacidade de – como Deus ou algum maluco, a Oeste ou Leste, onipotente – destruir o planeta! 

Para terminar com essa crônica um tanto bíblica, temo que, quando a vacina for libertada das sabotagens burocráticas, todos estaremos doentes ou mortos pela tal “gripezinha”.

*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e democracia’


Ana Carla Abrão: Antes tarde

Além da autorregulação é preciso regras que inibam lá e cá atitudes como as de Trump

Numa decisão polêmica, mas acertada, o Twitter decidiu encerrar em caráter definitivo a conta do presidente americano Donald Trump. O motivo alegado foi o risco potencial de incitamento à violência dado o uso da plataforma pelo presidente para disseminar falsas notícias (fake news) e promover as mobilizações que levaram à invasão do Capitólio por manifestantes pró-Trump. Tardia, a decisão reflete uma reação que deverá aquecer as discussões já em curso sobre a necessidade de se regular as grandes empresas de tecnologia, em particular as plataformas de mídias sociais e seus algoritmos de curadoria.

Ao contrário do que querem fazer crer os defensores do presidente americano ou os críticos às ações do Twitter – e também do FacebookSnapchat e Instagram – lá e aqui, é a defesa da democracia o pano de fundo nessa discussão. Muito além das questões antitruste ou dos temores legítimos em relação ao tamanho (e ao poder de mercado) que as plataformas digitais adquiriram ao longo do tempo, é a capacidade de desinformar e de serem usadas como ferramenta de manipulação em massa a grande preocupação. 

Não surpreende, portanto, que os mais indignados e vocais contra as ações de banimento sejam os mesmos que se posicionam em favor dos nossos tristes anos de ditadura, marcados pela censura e pela tortura, negada por eles. Parece paradoxal, mas não é. Afinal, a capacidade de produzir fake news e de disseminá-las de forma rápida e em grande escala são o caminho para a manipulação e, consequentemente, para se colocar em xeque o regime democrático. A história – atual e pregressa – está cheia de exemplos analógicos de situações semelhantes.

Não são poucos os estudos e artigos acadêmicos que têm se debruçado sobre o tema. Um deles foi divulgado há cerca de um mês pelo Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Universidade Stanford. Elaborado sob o um programa que estuda “Democracia e a Internet” o relatório, que tem como um dos autores o cientista político Francis Fukuyama, faz uma ampla discussão sobre a escala e o papel das plataformas digitais. Ao final, o trabalho sugere um caminho inovador – e de implementação mais rápida. Fugindo (sem eliminar sua necessidade) das receitas tradicionais de fomento à competição, emerge a proposta de abertura dessas plataformas para que empresas independentes de tecnologia possam acessá-las diretamente e fazer a curadoria de notícias, sob orientação do próprio usuário e em contraposição aos algoritmos internos de inteligência artificial que hoje fazem essa escolha de forma automática. Devolve-se assim ao cidadão o controle sobre aquilo que ele lê.

A urgência dessa agenda vem dos efeitos da escala e do poder de alcance dessas empresas, que vão muito além dos aspectos econômicos. Eles são também políticos. A curadoria de notícias, via amplificação ou supressão de mensagens – e a consequente possibilidade de alavancar e rapidamente disseminar a desinformação – pode ter efeitos diretos sobre as escolhas políticas, influenciando as decisões e o comportamento dos cidadãos. Daí o impacto deletério sobre a democracia, que deixa de ter como eixo a decisão livre e informada dos eleitores e passa a ser subjugada por processos pouco transparentes – senão falsos – e reações dirigidas. Mais, conforme definido por David Lazer e autores no artigo A ciência das fake news, a disseminação de notícias falsas por um presidente da república que toma emprestada a credibilidade – não a sua (quando a tem), mas a da instituição (a Presidência da República) – para distribuir como verdade aquilo que não é, valida a desinformação e garante sua amplificação.

Sim, a decisão de banir o presidente Trump e evitar que ele continue a manipular cidadãos por meio da desinformação é uma decisão correta do Twitter. Fazê-lo só agora corrobora que ele foi longe demais e esteve livre demais para usar as plataformas digitais (e seu posto de presidente dos Estados Unidos) para desinformar, incitar o ódio e avançar contra as instituições americanas. Mas isso também significa que precisamos, além da autorregulação que agora surge, de uma regulação que iniba de forma estrutural atitudes como essas – lá e cá. 

A maior das motivações não é a econômica e tampouco o combate a uma eventual afronta à liberdade de expressão, argumento falacioso de bolsonaristas órfãos de seu guru abjeto. A motivação principal para a regulação e a abertura dessas plataformas é a necessidade de se definir critérios que vão muito além das atuais boas intenções das empresas. Elas hoje podem estar se guiando pela premência de interromper um processo nefasto e inaceitável de ameaça à democracia. Mas há que se lembrar que boas intenções não são substitutos para uma boa regulação e menos ainda para as instituições que a defendem. 

Essa é uma constatação que pode ter vindo tarde nesse campo. Mas tarde é sempre melhor do que nunca. 

*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.


Joel Pinheiro da Fonseca: Redes sociais aceitaram sua responsabilidade, mas precisam de critérios mais claros

Se critério das empresas for a preferência ideológica ou pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão

invasão do Capitólio por extremistas, apesar de sem precedentes, não foi inesperada. É resultado preparado por anos de fake news, desinformação, discurso de ódio e teorias de conspiração nas redes sociais. Depois da longa negligência, a resposta das redes foi rápida. Donald Trump está banido da maioria delas, assim como, aparentemente, centenas de outros influenciadores de extrema direita.

Com a consolidação de um oligopólio nas redes —Google, Facebook e Twitter controlam todas as principais— essas empresas passam a ter um poder similar ao de grandes grupos de mídia no passado: o poder de varrer uma opinião ou pessoa do debate público pelo mero silêncio. Basta não dar espaço para alguém se expressar que essa pessoa desaparecerá da discussão e das mentes do público. Sem Twitter e fora da presidência, o dano que Trump pode causar é drasticamente reduzido. Quanto a influenciadores que nunca tiveram altos postos na política ou na mídia, sua capacidade de influenciar o debate cai a próximo de zero quando são banidos das redes.

Há, no entanto, diferenças. Na mídia tradicional, o poder de dar voz e silenciar era exercido na seleção de quem teria o limitado espaço da página de um jornal ou na grade de uma TV. A rede social, ao contrário, seleciona os poucos que não terão espaço, pois nela cabe todo mundo.

A decisão de excluir alguém de algo a que todos têm acesso exige uma justificativa muito mais sólida do que a de dar a alguns privilegiados algo que é escasso. No caso de Trump, sobram justificativas válidas: seus tuítes pregavam o descrédito de instituições fundamentais da democracia americana, encorajavam sedição e insurreição. Além disso, por seu cargo e número de seguidores, sua voz é poderosíssima em termos de possíveis consequências práticas. Se um zé-ninguém conclama a derrubada do Congresso, ninguém dá ouvidos. Se é o presidente da República, as mesmas frases se tornam armas perigosas.

Num primeiro momento, a perda de espaço nas redes sociais principais indicava que os extremistas iriam para redes sociais menores, como o Parler. Lá, embora a radicalização seja levada a níveis verdadeiramente alucinados (muitos dos que invadiram o Capitólio são figuras do Parler), a capacidade de influenciar as massas é muito menor. Só que mesmo esses redutos de extremismo estão sendo desbaratados: com boicote de Google, Apple e Amazon, o Parler não sabe se continuará a existir.

O sentimento de vitória esmagadora contra as forças do mal é uma delícia. Mas não é um bom guia. Há indícios de que as redes sociais são muito mais intolerantes com o extremismo de direita do que com o de outras variantes. Que Donald Trump tem sido tratado de maneira mais dura até do que o aiatolá Khamenei, cuja conta de Twitter já pregou o fim de Israel e, mesmo assim, não foi suspensa.

As redes estão se conscientizando da responsabilidade de não permitir que qualquer loucura —ainda mais com consequências perigosas— seja veiculada em suas plataformas. Mas para que isso seja feito de forma justa e evite abusos, precisam desenvolver critérios e mostrar transparência e isonomia em sua aplicação. Se o critério das empresas for a preferência ideológica de seus diretores somadas às pressões sociais do momento, coitada da liberdade de expressão. Hoje, o alvo é justo. Amanhã pode não ser.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Oliver Stuenkel: Como o fim da Guerra Fria contribuiu para a polarização dos EUA

Colapso da União Soviética eliminou a ameaça existencial que ajudava a estabilizar a política norte-americana

Quando ficou sabendo da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, meu pai ficou extasiado. Correu pela casa gritando “Caiu o Muro!”, como se seu time de futebol tivesse vencido o campeonato. Horas depois, toda a família estava na estrada em direção a Berlim, onde dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram para saudar cidadãos da Alemanha Oriental, que entravam na parte Ocidental de Berlim pela primeira vez. Sem compreender o significado geopolítico daquele episódio na época, me impressionei com meu pai abraçando pessoas desconhecidas, todo o mundo aos prantos.

Como a vasta maioria da sociedade norte-americana, meu pai, um berlinense que passou a adolescência nos Estados Unidos, viu no colapso da União Soviética um triunfo histórico dos EUA. Ele fazia questão de que minhas irmãs e eu cursássemos parte do Ensino Médio em uma escola nos Estados Unidos. À primeira vista, a década de 1990 lhe dava razão: foi um período marcado por um boom econômico nos EUA e muita confiança de um país que se via, pela primeira vez na história, sem rival no planeta.

Em retrospectiva, porém, ficou claro: o colapso da União Soviética plantou na sociedade norte-americana a semente da polarização destrutiva, hoje uma marca registrada da política contemporânea dos EUA. Os debates políticos nos Estados Unidos durante a Guerra Fria não foram sempre civilizados evidentemente. A carreira do senador Joseph McCarthy, um charlatão famoso nos anos 1950 por liderar o combate a supostos comunistas infiltradosno Governo norte-americano, é prova disso. Durante expressiva parte desse período histórico, porém, havia consenso na população americana de que, diante da ameaça soviética, haveria limites aos ataques a oponentes na política doméstica. Afinal, a disputa contra a URSS gerava uma espécie de acordo nacional, que unia todos os atores políticos nos EUA, independentemente de suas convicções ideológicas.

Livre de preocupações sobre a sobrevivência do país, o tom na política norte-americana nos anos 1990 mudou para pior. Carente do grande projeto nacional de derrotar o comunismo, a política começou a priorizar intrigas que apequenaram a elite política dos EUA. Liderado pelo deputado republicano Newt Gingrich em 1999, o processo de impeachment de Bill Clinton —do qual seria absolvido pelo Senado depois—indicava uma abordagem de vale-tudo e a demonização dos opositores. Duas décadas mais tarde, a fragilidade da democracia americana revelou-se ainda mais flagrante quando seguidores pró-Trump invadiram o Capitólio para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Como escreve Janan Ganesh, “o fim da Guerra Fria foi uma vitória da qual os Estados Unidos nunca se recuperaram.”

A última vez em que um candidato à presidência dos EUA ganhou mais de 400 votos no Colégio Eleitoral foi em 1988, quando George Bush pai, piloto da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, com longa experiência de política externa, venceu na vasta maioria dos Estados norte-americanos. Não se trata de uma coincidência. Desde então, todas as eleições presidenciais revelam um país profundamente dividido, com ambos os lados acusando o outro de inimigo da pátria, cuja vitória representaria o fim da república. Não surpreende, tampouco, que mais presidentes tenham sofrido processos de impeachment desde o fim do confronto ideológico com os soviéticos do que nos primeiros dois séculos da república estadunidense.

Nesse contexto, a ascensão da China e a emergência de uma guerra fria entre os EUA e esse país asiático teriam o potencial de ajudar a sociedade americana a superar suas profundas divisões, que hoje representam ameaça à estabilidade política do país? À primeira vista, parece que não —afinal, apesar do seu sistema político formalmente parecido com o da União Soviética, qualquer um que pousa no aeroporto de Pequim ou Xangai logo percebe que a sociedade chinesa é profundamente capitalista e pelo menos tão materialista e individualista quanto a dos Estados Unidos. Enquanto na Guerra Fria (1947-1991) havia pouca interação econômica entre os EUA e a União Soviética, hoje, milhares de empregos norte-americanos dependem da China, dificultando um confronto como o proposto por Donald Trump nos últimos quatro anos. Um vasto número de estudantes chineses, muitos deles filhos da elite política da China, assegura a sobrevivência das universidades norte-americanas. Além disso, diferentemente da União Soviética, a China não tem planos de exportar seu modelo político ou econômico. Transformar o regime comunista chinês em bicho-papão com o fim de unificar os EUA não seria nada fácil.

Por outro lado, tudo indica que Trump é apenas sintoma de um novo consenso anti-China em Washington, reflexo de uma sociedade cada vez mais preocupada com o deslocamento de poder para o gigante asiático. O bloqueio de aplicativos chineses pelo Governo dos EUA e a disputa pela supremacia digital entre as duas potências, simbolizada pela atuação do Governo norte-americano contra a empresa chinesa Huawei, representam somente o começo de um novo sistema internacional marcado por esferas de influência de natureza tecnológica, dividindo o mundo em países que ou usam tecnologia americana ou preferem a chinesa. Parece provável que líderes políticos nos EUA tentarão aproveitar esse novo cenário para incitar o nacionalismo que ajudou a estabilizar o debate político durante a Guerra Fria.

Um estrategista da equipe de transição do Governo Biden me disse recentemente que a postura de Trump em relação à China era “talvez o único ponto de convergência que temos [com os Republicanos]”. Só o tempo dirá se esse entendimento será suficiente para ter início uma reaproximação entre Democratas e Republicanos de forma a superar a hiperpolarização que se apoderou da política norte-americana.

*Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Amanda Mars: Trump dinamita o final com o qual sonhava

Até quarta-feira, o presidente republicano imaginava uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate. O ataque ao Congresso o deixa mais isolado e silenciado que nunca

Silenciado nas redes sociais, repudiado pelo establishment republicano, abandonado por uma série de altos funcionários de seu Gabinete e derrotado nas urnas, Donald Trump nunca esteve tão sozinho como agora. Sua última grande batalha contra o sistema dos Estados Unidos, na qual tentou reverter o resultado das eleições presidenciais espalhando acusações infundadas de fraude, serviu de teste final sobre as lealdades, e também sobre as forças democráticas, e o presidente se deu mal.

O secretário de Justiça William Barr, nomeado pelo próprio Trump, não encontrou nenhum fundamento da alegada grande operação fraudulenta; as autoridades republicanas dos Estados cujos resultados eleitorais foram contestados pelo mandatário resistiram às suas pressões; a Suprema Corte, de maioria conservadora e com três dos nove juízes nomeados por ele, decidiu por unanimidade não envolver-se; e no último momento, na quarta-feira, quando o Congresso se reuniu para certificar em Washington a vitória eleitoral do democrata Joe Biden, apenas um punhado de legisladores fiéis ao presidente se animou a torpedear o processo.

Naquele 6 de janeiro, já escrito para sempre nos livros de história, o magnata nova-iorquino resolveu fazer uma nova demonstração de força. Pela manhã, antes que os membros do Congresso se reunissem para ratificar Biden, convocou um comício em frente à Casa Branca, aproveitando a enorme quantidade de seguidores que tinham chegado de todo o país. Depois, incentivou-os a ir protestar diante do Capitólio, a ser fortes, a recuperar o país sem fraquejar.

Até quarta-feira, Donald Trump tinha planejado uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate, pensando em se manter como uma voz destacada do eleitorado conservador. Tinha revelado inclusive sua intenção de voltar a ser candidato nas eleições presidenciais de 2024 e, pelo que seu entorno vazou para a imprensa, pensava em anunciá-la formalmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ninguém gosta tanto de um bom espetáculo como esse empreendedor imobiliário de 74 anos que conquistou a presidência mais poderosa do mundo ao saltar dos reality shows para a política. Irritado com a linha da TV conservadora Fox News —outra que o abandonou, segundo seu ponto de vista—, pensava em lançar uma plataforma própria para continuar conectado com suas bases. A batalha de fundo era o controle do eleitorado republicano. Alguns membros de sua família, como sua filha, Ivanka, e seu filho mais velho, Donald, também consideraram a possibilidade de seguir uma carreira política. Em suma, para a família Trump, a política estava apenas começando.

Todos esses planos se complicaram para Trump depois do violento assalto de seus seguidores radicais ao Congresso, uma revolta — instigada por sua campanha dos últimos meses— na qual morreram cinco pessoas e que pôs a imagem dos Estados Unidos, a democracia mais poderosa do mundo, em uma situação vergonhosa.

Segundo o procurador Ken Kohl, do gabinete do Ministério Público dos EUA em Washington, o Departamento de Justiça não planeja, pelo menos por enquanto, denunciar por crimes de incitação à violência o presidente ou outros que discursaram no comício da manhã de quarta-feira diante da Casa Branca (como seu filho Donald Jr.), onde foi aceso o pavio. No entanto, o Partido Democrata pretende submeter Trump a um processo de impeachment, ou seja, a um julgamento político no Congresso para decidir sobre sua destituição, a não ser que ele renuncie ou seu próprio Gabinete o deponha recorrendo à 25ª emenda da Constituição (estas duas últimas opções são improváveis).

Resta para Trump pouco mais de uma semana na Casa Branca, mas, se for condenado nesse processo, o Senado poderia votar também para incapacitá-lo como candidato no futuro. O impeachment teria caminho livre na Câmara dos Representantes, que iniciaria o processo e tem maioria democrata, mas seria complicado no Senado, onde ocorreria o julgamento político em si, no qual um presidente só pode ser condenado por maioria de dois terços dos votos —o que, atualmente, o partido de Joe Biden não tem.

“É muito difícil que tenham tempo para tudo isso; o que os democratas querem fazer é prejudicá-lo politicamente, evitar que possa se candidatar nas eleições em 2024, e buscam o apoio dos republicanos para isso, mas essa não é sua prerrogativa, é uma prerrogativa dos eleitores”, considera o jurista republicano Robert Ray, que atuou como procurador independente no caso Whitewater, um escândalo imobiliário que atingiu Bill e Hillary Clinton nos anos noventa.

Além dos episódios violentos no Congresso, o que estará à espera de Trump quando ele deixar o Governo é a Justiça. A procuradoria de Manhattan está investigando seu histórico tributário e, graças a uma vitória na Suprema Corte, terá acesso a oito anos de suas declarações, como parte de inquéritos sobre pagamentos a mulheres para ocultar possíveis infidelidades matrimoniais durante a campanha de 2016 e sobre uma possível fraude fiscal. Além disso, a procuradora de Nova York Laetitia James está analisando possíveis acusações contra sua construtora por alterar o valor real de seu ativos para obter empréstimos.

O Departamento de Justiça também terá o caminho livre para reativar o caso de obstrução à Justiça durante a investigação da trama russa —Trump já não terá a imunidade presidencial— e, por outro lado, continuam os processos por sua conduta pessoal: uma ação de sua sobrinha Mary Trump por fraude em uma herança e duas por difamação, uma destas movida pela escritora E. Jean Carroll, que o acusa de uma agressão sexual supostamente cometida nos anos noventa.

Essas questões, porém, já estavam na mesa antes do pleito de novembro e não minaram o apoio ao presidente, que perdeu as eleições, mas obteve 74 milhões de votos, quase 12 milhões a mais do que em 2016. A dúvida é se o magnata conseguirá manter sua capacidade de mobilizar as bases a partir de agora; se realmente, como afirma, poderá continuar sendo o líder dos eleitores conservadores depois de ser expulso do poder político, com menos atenção da mídia e com outros republicanos já pensando em varrê-lo do mapa para entrar na corrida pela Casa Branca.

Para o estrategista político Rick Wilson, um dos fundadores do The Lincoln Project, uma plataforma de republicanos contra Trump, o presidente perdeu “seu superpoder”, ou seja, seu alto-falante nas redes sociais, Twitter e Facebook, “e não poderá se comunicar com seus seguidores tão facilmente quanto antes”.

Wilson relativiza o peso dos 74 milhões de votos que Trump recebeu nas eleições, e alerta que metade deles é de “republicanos comportamentais”, ou seja, eleitores que “votarão em republicanos aconteça o que acontecer, porque para eles as eleições são uma alternativa entre socialismo e liberdade, luz e escuridão, bem e mal”. Resta, acrescenta o estrategista, essa outra metade que participa do culto à figura do magnata nova-iorquino. “Mas o grande cisma com que esta nação se defronta é se as pessoas que se dizem republicanas, que acreditam nos princípios conservadores, estão bem servidos com Trump”, assinala. Para o Partido Republicano, diz ele, o que ocorreu quarta-feira foi “devastador”.

Fala-se muito sobre os próximos movimentos de Trump. Renegado como nova-iorquino, espera-se que ele se mude para a Flórida, principalmente por conveniência fiscal. Um personagem tão singular como esse, alérgico às derrotas e orgulhoso até a agonia, não pode ser considerado varrido do mapa. Se vir opções, continuará lutando pelo controle dos eleitores republicanos, mas ninguém acredita mais que ele tenha coragem de convocar outra manifestação para coincidir com a posse de Biden.


Cacá Diegues: Uma nova democracia

O fracasso da invasão do Capitólio se deu graças à aliança entre democratas e republicanos

Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus, pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da versão política de Steven Levitsky à nênia econômica de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump. Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008. A decadência desse baile de máscaras ideológico nos pegaria em cheio — a eleição, no Brasil, de Jair Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos tempos.

Como disse Manuel Castells, “a desconfiança nas instituições (...) nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. Não há interesse comum quando os “representantes do povo” administram seus próprios sonhos em nome das sociedades que supostamente representam. O movimento antidemocrático é a inversão da energia popular: não cabe aos líderes realizar os “sonhos do povo”, mas orientar o povo sobre quais devem ser seus sonhos. É daí que nascem os “brexits”, rompimentos indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.

O surgimento de um personagem excessivo, narcisista e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio. “A chave do sucesso de Trump”, escreve Matt Taibbi, “é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores que não têm o coração e a coragem de ser eles mesmos”. Essa é a mensagem do trumpismo numa era “narcisista de massa”, bem adequada a ela. O apoiador herda, por transição natural, o poder do apoiado, o herói político que o salvará não apenas da fome, mas também da insignificância de onde só pode se embasbacar com o universo estratosférico dos heróis inatingíveis da Marvel.

Foi o vírus que nos salvou desse mundo de mentira, dessa ficção de blockbuster direitista. A tragédia da Covid-19 nos fez voltar à realidade, trocar o papo enfeitado da política pelo discurso óbvio da sobrevivência da humanidade.

No Brasil do século XIX, por ocasião da Guerra do Paraguai, o governo imperial obrigara cada província a enviar uma percentagem de sua população para a luta. Os senhores de terra prometiam então a seus escravos alforria imediata a quem fosse à guerra no lugar deles. A maior parte desses “voluntários” acabava morta, esquecida no campo de batalha; e os que retornavam voltavam aos poucos à condição de escravos, numa sociedade em que não havia, para eles, outra coisa a fazer para ter um teto e matar a fome. É como se a escravidão estivesse em sua natureza e pudesse ser chamada de democracia, já que dependia apenas da vontade dos que a exerciam.

O melancólico livro de David Runciman, sobre o fim da democracia liberal, nos afirma, logo no início, que “nada dura para sempre”. E acrescenta o que nega ao longo de suas páginas: “A democracia sempre esteve destinada a passar, em algum momento, para as páginas da história”. Mas as páginas da história reproduzem apenas o modo como certas ideias são tratadas em um determinado tempo. Se pensarmos na convivência humana sem limitações ou prejuízo para o outro, estaremos praticando a ideia de democracia. Essa ideia nasceu há muitos séculos, nas reuniões públicas de cidadãos da Grécia Antiga. E, como ideia, já chegou hoje à ausência absoluta de discriminação, onde todos têm os mesmos direitos, seja qual for seu gênero, cor, origem ou formação. A única interdição segue sendo não atropelar os interesses legítimos e o justo desejo do outro.

O fracasso da invasão do Capitólio pelas tropas civis de Trump se deu graças à aliança entre membros dos partidos Democrata e Republicano, políticos tão diferentes quanto Nancy Pelosi e Mitch McConnell. Selvageria e barbárie dos invasores, em cuja tropa não havia um só negro, passaram longe das comoventes passeatas que proclamavam que “black lives matter”. Uma nova democracia pode surgir daí, talvez menor, mas certamente mais humana, sem bravuras mas com solidariedade. Uma democracia que não serve apenas a quem já tem o poder. Mas a do vizinho, nascida da consciência de que estamos todos vivendo num mesmo mundo e dele temos que tirar os mesmos proveitos para sermos felizes. Em tempos de tanta incerteza, não custa nada citar Gramsci: a velha ordem já não existe, e a nova ainda está para nascer.


Celso Rocha de Barros: Golpismo de Trump animou Bolsonaro

Os dois deveriam ser presos por tentativa de golpe de Estado

invasão do Congresso americano por extremistas de direita inspirou uma nova onda de entusiasmo golpista entre os bolsonaristas, que nunca deixaram de ser inimigos da liberdade por terem se vendido ao centrão.

Jair Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou a invasão liderada por milícias racistas, neonazistas e/ou adeptas da teoria da conspiração QAnon. Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou uma manifestação de gente vestindo a camiseta “Camp Auschwitz”. Enquanto a invasão acontecia, Bolsonaro disse que houve fraude na eleição americana (é mentira) e declarou que “se nós não tivermos o voto impresso em 2022, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.

As instituições deles são mais fortes do que as nossas. Alguns dias antes da tentativa de golpe, os últimos dez secretários de Defesa americanos (tanto republicanos quanto democratas) assinaram um artigo dizendo que “Os militares americanos não têm nenhum papel na determinação do resultado das eleições americanas”. Nenhum foi ao Twitter reclamar do julgamento do Lula, nenhum virou assessor de Toffoli durante a campanha eleitoral. E sem apoio de militar ou policial, cachorrinho de Olavo não se cria.

Ainda não sabemos se a invasão do Congresso americano foi o início de um novo movimento golpista ou o fim do último. A invasão provou que a democracia americana esteve sob ameaça durante o governo Trump e certamente estaria sob grave ameaça se Trump tivesse sido reeleito. Mas ainda não sabemos se o extremismo reacionário sobreviverá bem sem bons resultados eleitorais.

Por um lado, o extremismo racista de Trump ajudou a energizar a base eleitoral democrata e a fez comparecer em massa para eleger os dois novos senadores do estado da Geórgia. Não foram quaisquer dois senadores. Foram os dois que faltavam para que os democratas ganhassem a maioria no Senado. Muita gente no Partido Republicano vai perder a tolerância contra os extremistas de Trump agora que eles começaram a custar votos.

Por outro lado, o momento trumpista deixou um legado de degeneração moral no Partido Republicano. A invasão do Capitólio seria um episódio isolado de violência, facilmente rechaçável por, digamos, a torcida organizada do Volta Redonda, se não tivesse tido apoio de republicanos poderosos antes e depois da ofensiva.

O próprio presidente da República incentivou a radicalização para tentar fraudar a eleição. E, o que é ainda mais incrível, depois da invasão, 139 deputados e 8 senadores republicanos votaram a favor de moções que contestavam a vitória de Biden, sabendo que mentiam. Não há diferença importante entre Trump e os invasores, ou entre esses 147 e os invasores. O que faz de 6 de janeiro uma tentativa de golpe não foi a invasão do Capitólio, foi o fortíssimo encorajamento institucional que os fascistas tiveram.

Se Obama tentasse o que Trump tentou, dormiria em Guantánamo no mesmo dia. Se Lula chamasse o golpe como Bolsonaro chamou, o Exército o enforcaria na Praça dos Três Poderes. Tanto Trump quanto Bolsonaro precisam ser presos por tentativa de golpe de Estado. As Forças Armadas brasileiras precisam denunciar o golpismo de Jair Bolsonaro. Isso, sim, seriam instituições funcionando.

*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


The Economist: Invasão do Capitólio é retrato de como Trump mudou o Partido Republicano

As cenas dantescas revelam como os republicanos ficaram reféns do presidente, e como será difícil se livrar de sua influência e dos extremistas em um futuro próximo

The Economist / O Estado de S. Paulo

O livro mais importante da era Donald Trump não foi Medo, de Bob Woodward, nem Fogo e Fúria, de Michael Wolff, nem qualquer um dos outros best-sellers que expuseram o circo da Casa Branca. Indiscutivelmente, o livro mais importante da era Trump foi a obra instigante de dois cientistas políticos de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicada um ano após a ascensão de Trump à presidência e intitulada Como as democracias morrem.

Depois de muitos anos pesquisando derrapagens democráticas no Leste Europeu e na América Latina, a dupla admitiu ter ficado surpresa ao voltar os olhos para seu próprio país: “Sentimos pavor (...) bem agora que estamos tentando nos tranquilizar, dizendo que as coisas não podem ser tão ruins assim por aqui”. A invasão do edifício do Capitólio em 6 de janeiro por milhares de seguidores de Trump brandindo tacos de beisebol e a bandeira dos confederadas mostrou que as coisas estão bem ruins, sim.

Convocados a Washington pelo presidente derrotado para protestar contra a sessão parlamentar que iria confirmar os resultados do colégio eleitoral, eles ocuparam o prédio por mais de quatro horas, obrigaram o vice-presidente Mike Pence e outros congressistas a fugir em busca de segurança e vandalizaram o escritório da presidente da Câmara dos Representantes.

Quatro pessoas morreram durante a violência, entre elas uma mulher baleada pela polícia. Jornalistas foram acossados e suas câmeras foram destruídas por delinquentes adeptos do Make America Great Again (MAGA) vestidos em trajes de camuflagem. Enquanto isso, Trump tuitava seu “amor” pelos insurgentes. “Pessoas muito especiais”, ele os chamou em um vídeo gravado na Casa Branca. Suas contas no Twitter e no Facebook foram suspensas pouco depois. Bombas caseiras foram encontradas perto das sedes dos partidos Republicano e Democrata.

Pode-se argumentar que a sessão do Senado interrompida pelos insurgentes seria ainda mais preocupante. Mais de dois terços dos membros republicanos da Câmara dos Representantes e mais de um quarto dos senadores republicanos estavam prestes a votar para magicamente reverter a derrota de Trump em vitória, rejeitando os votos do colégio eleitoral de um punhado de estados nos quais ele perdera.Naturalmente, com uma ladainha bem familiar aos golpistas, os parlamentares em questão alegavam que estavam tentando proteger a democracia, não a derrubar. Josh Hawley, do Missouri, que liderou a iniciativa no Senado, declarou que “as preocupações de milhões de eleitores quanto à integridade eleitoral merecem ser ouvidas”.

Aos 41 anos de idade, formado pela Universidade de Stanford e pela Escola de Direito de Yale, Hawley retocou sua própria imagem para se tornar um flagelo das elites sob o comando de Trump e, na quarta-feira, foi fotografado com o punho em riste diante da multidão MAGA pouco antes de os insurgentes romperem as barricadas.

A grande maioria dos eleitores republicanos que afirmam acreditar que Trump ganhou a reeleição em novembro não está respondendo a preocupações racionais. Se estivessem, deveriam ter se tranquilizado diante do número recorde de decisões judiciais, verificações de segurança e recontagens gerado pelos dois meses de esforços de Trump para reverter os resultados.

As sessenta e tantas contestações de sua equipe jurídica foram objeto de escárnio geral, até mesmo na Suprema Corte dos Estados Unidos. A equipe de segurança eleitoral de seu governo julgou que a votação foi “a mais segura da história americana”.

O Departamento de Justiça e seu ex-diretor, Bill Barr, até pouco tempo atrás leal a Trump, concluíram que não houve fraude significativa. Ainda assim, a crença de que Trump foi roubado se recrudesceu entre o eleitorado republicano. Uma pesquisa do YouGov encomendada pela Economist nesta semana apontou que 64% queriam que o Congresso revogasse o resultado da eleição em favor de Trump.

Para ilustrar a profundidade dessa ilusão, veja o sentimento entre os republicanos do Wisconsin, estado em que Biden venceu por 20.608 votos. Os advogados do presidente entraram com seis contestações judiciais ao resultado, até mesmo junto à Suprema Corte dos Estados Unidos. Eles também instigaram uma recontagem nos condados mais populosos do estado, Milwaukee e Dane, o que adicionou 87 votos à soma de Biden.

O senador republicano do Wisconsin, Ron Johnson, realizou uma investigação no comitê do Senado sobre as alegações de Trump; e posteriormente disse à Economist que não via razão para questionar os resultados em seu estado natal. No entanto, Terry Dittrich, presidente do Partido Republicano do Condado de Waukesha, o maior de Wisconsin, afirma que Trump venceu, que a eleição foi repleta de fraudes e que não conhece nenhum republicano que pense o contrário.Como evidência, o senador, profissional do setor imobiliário de 59 anos de idade, apresentou uma lista de preocupações quanto à votação, todas rejeitadas pelo procurador-geral do estado, entre elas o grande aumento na votação por correspondência, a qual Dittrich taxou de “absolutamente fraudulenta”.

Ele também mencionou o simples fato de Biden ter apresentado um desempenho digno de nota no frondoso condado de Waukesha, nos arredores de Milwaukee, exatamente como o democrata de fato teve nos ricos subúrbios brancos de todo o país. “Não tem absolutamente nenhuma possibilidade de Biden ter superado Barack Obama no condado de Waukesha pelos números que eles estão divulgando”, disse Dittrich. “Não vamos desistir disso. Não somos um bando de bebês chorões, nem de perdedores ressentidos. Somos cidadãos cumpridores da lei que só querem uma eleição limpa”.

William F. Buckley Junior, um dos arquitetos do movimento conservador moderno, chamou o conservadorismo de “política da realidade”. Agora parece justamente o contrário. A maioria dos eleitores republicanos aceitou a afirmação de Trump de que os democratas não podem ganhar legitimamente e de que a falta de provas de suas tramoias é prova de que houve alguma ocultação.

“É difícil imaginar um ato mais antidemocrático e anticonservador”, foi o veredito do sempre reticente Paul Ryan, ex-líder republicano na Câmara, sobre a decisão de tantos congressistas republicanos de apoiar essa ficção.

A votação final do Congresso, realizada depois que os insurgentes foram expulsos do Capitólio e que seus corredores foram vasculhados em busca de explosivos, certificou os resultados do colégio eleitoral, com objeções de 130 deputados republicanos e meia dúzia de senadores.

De sua parte, Ziblatt disse que vê essa manobra como um “ensaio geral” para um esforço republicano mais sério de derrubar alguma eleição, possibilidade que ele agora considera provável.

Há razões para esperar que essa previsão acabe se provando pessimista demais. Os republicanos que votaram para anular os resultados o fizeram de maneira imprudente e cínica, mas sabendo que não teriam sucesso. As autoridades republicanas que realmente poderiam ter mudado o resultado da eleição seguiram a Constituição.

Entre elas se encontra o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, objeto de uma campanha de intimidação e abuso por parte do presidente e seus comparsas. Esta semana, Raffensperger divulgou uma gravação na qual o presidente tentava convencê-lo a “encontrar 11.780 votos”, pouco antes do segundo turno das eleições para o Senado da Geórgia, em 5 de janeiro.

Os ataques de Trump contra Raffensperger e outras autoridades georgianas parecem não ter surtido nenhum efeito positivo para seu partido. Os candidatos democratas, Raphael Warnock e Jon Ossoff, venceram as duas disputas, dando a seu partido as primeiras cadeiras do estado no Senado em 20 anos, o controle do Senado e um governo unificado.No dia seguinte, Mitch McConnell, assim despojado de sua maioria no Senado, emitiu uma repreensão contundente contra Hawley e os demais. Derrubar os votos do colégio eleitoral “causaria danos à nossa república para sempre”, disse McConnell, que raras vezes é acusado de agir com base em princípios. Minutos depois, as “pessoas especiais” de Trump se lançaram à invasão do Capitólio - o que, por sua vez, encorajou os republicanos mais experientes a criticar o presidente de maneira mais direta do que jamais haviam ousado.

O senador Tom Cotton, do Arkansas, antigo defensor de Trump, disse que “já era hora” de ele “parar de enganar o povo americano”. Liz Cheney, a terceira na hierarquia republicana da Câmara, disse que “não há dúvidas” de que Trump “incitou a multidão”. Até mesmo alguns trumpistas mais ferrenhos se juntaram ao coro. Uma declaração notável feita pela Associação Nacional de Fabricantes, até então pró-Trump, pediu a Pence que considerasse invocar a 25ª Emenda para remover o presidente do cargo.

Ainda está longe de ser um repúdio generalizado a Trump por parte do establishment republicano. E, sem esse repúdio, é difícil imaginar que o presidente abrirá mão de sua força dentro do partido, o que daria a este a oportunidade de voltar a se comprometer com as normas democráticas.

No entanto, esse repúdio agora parece mais imaginável. As líderes de torcida do presidente na mídia conservadora, todas obcecadas por lei e ordem, talvez achem difícil ignorar as imagens do Capitólio invadido por delinquentes MAGA. Talvez tenham dificuldade até de atribuir a culpa à esquerda democrática (embora algumas já tenham tentado).

O americano médio, ainda que sob intensa polarização, não gosta de violência de turbas e preza pelos símbolos de sua democracia. Um comentarista lembrou a mudança no apoio da população aos republicanos em 1995, depois que Timothy McVeigh, integrante do tipo de milícia que diz amar a liberdade até então defendida pela direita, explodiu um prédio federal em Oklahoma, matando 168 pessoas. O paralelo é inexato, mas indica até que ponto Trump e suas tropas de choque parecem ter ultrapassado os limites.

Antes mesmo dos eventos desta semana, entre a maioria dos republicanos mais experientes parecia muito forte a convicção de que Trump manteria sua preeminência sobre o partido - um caso de síndrome de Estocolmo, talvez. “A base acha que Trump é um mártir”, disse um senador republicano. “Pelos próximos dois anos, talvez quatro, ele vai conseguir ferrar todo mundo nas primárias, sem levantar um dedo”. Isto pode se revelar correto.

Ainda assim, os eleitores querem um vencedor, e é por isso que Grover Cleveland foi o único presidente com mandato único a ter sido reeleito para o cargo, em 1892. E, depois que Trump deixar a Casa Branca e desaparecer da vista diária, mais e mais republicanos talvez comecem a enxergar aquilo que o mito da eleição roubada pretende ocultar: sua fraqueza eleitoral.

Os proponentes do mito citam os muitos novos eleitores que ele atraiu em novembro para explicar por que Trump não poderia ter perdido. Mas para tanto seria necessário fechar os olhos (como faz Dittrich) para o fato de que Biden atraiu muito mais gente. Em uma eleição que teve comparecimento recorde para ambos os partidos, o democrata ganhou os 6 milhões de eleitores que já haviam votado em algum candidato de outro partido por uma proporção de 2 para 1. E conquistou eleitores de primeira viagem pela mesma proporção.

Trump também impulsionou a maioria dos candidatos republicanos ao Congresso. Seu partido teve um ganho líquido de dez cadeiras na Câmara e quase manteve a maioria no Senado, mesmo que ele tenha perdido a disputa presidencial por uma margem considerável. Isto sugere que os republicanos podem ter um belo futuro pós-Trump.

Apesar de suas derrotas esta semana na Geórgia - estado cujo eleitorado jovem e plural há muito tem apresentado tendências democratas - a marca republicana não foi muito prejudicada pelos anos Trump. O partido também tem uma grande vantagem na toxicidade contra a esquerda democrática, sobre a qual seus candidatos falaram incessantemente durante a campanha, o que parece ter sido especialmente eficaz na conquista dos latinos.

Carlos Curbelo, ex-congressista do sul da Flórida, onde novos apoiadores latinos ajudaram o partido a ganhar duas cadeiras na Câmara, descreve esse avanço como “um grande processo, a coisa pela qual os republicanos estão mais animados”. Ele o considera um indicador do futuro ideal para o partido: uma coalizão multiétnica dedicada a fornecer soluções de mercado para os grandes problemas - como, por exemplo, a mudança climática - que a esquerda tende a lançar sobre os ombros do governo.

Estas são conjecturas razoáveis. Sublinham o fato de que a trajetória futura do partido ainda não está definida. Ninguém previu Trump em 2012. E o efeito perturbador de seu desprezo pelas verdades conservadoras provavelmente aumentou as possibilidades ideológicas da direita. A maioria de seus 16 oponentes nas primárias de 2016 repetia os mesmos slogans do reaganismo.

Uma disputa equivalente hoje poderia apresentar o conservadorismo pragmático do governador de Maryland, Larry Hogan, a sinofobia febril de Cotton e o populismo governamental do senador Marco Rubio, todos os quais, até certo ponto, foram moldados ou promovidos em resposta a Trump. Mas esse futuro pós-Trump mais feliz para o partido do presidente até agora é só uma possibilidade teórica.

A realidade do populismo de Trump não é o pensamento conservador heterodoxo - que produziu poucas políticas dignas de menção nos últimos quatro anos -, mas as fúrias dos populares que irromperam no Capitólio esta semana. E reprimi-los não será fácil, mesmo se Trump for embora. Na verdade, eles são anteriores ao presidente.

Movimentos populistas de base vêm emergindo na direita ao longo das décadas, por razões diferentes, mas com o compromisso característico de purgar o establishment conservador e a tendência de cair na paranoia e nas teorias da conspiração. A Ameaça Vermelha de Joseph McCarthy na década de 1950 deu lugar ao movimento de Barry Goldwater na década de 1960, ao reaganismo mais apresentável na década de 1970 e aos seguidores de Gingrich na década de 1990.

O padrão normal, observa o historiador da política Geoffrey Kabaservice, era que os insurgentes se levantavam, conquistavam o poder e então se acomodavam ao governo. Com isso, eles se tornavam o novo establishment e, por sua vez, eram também desafiados e derrotados. Mas, na última década, à medida que a insegurança econômica se cruzou com a polarização política e a aceleração da mudança cultural e demográfica, as ondas insurgentes de direita ficaram mais frequentes e mais radicais.

O Tea Party, que estourou no ano de 2010 em resposta a uma economia difícil e a Barack Obama, levou 87 conservadores radicais ao Congresso. Mas, uma vez ali dentro, eles não demonstraram nenhum interesse em se acomodar. Ao contrário, propagaram a conspiração racista quanto ao local de nascimento de Obama.

Atacaram o bipartidarismo, o governo em geral e até mesmo seus líderes partidários (expulsando o ex-presidente da Câmara, John Boehner, antigo seguidor de Gingrich). A paralisação do governo em 2013 e a campanha para “revogar e substituir” o Obamacare por absolutamente nada tiveram suas assinaturas.

Em vez de serem derrotados, eles se transformaram na multidão MAGA que desde então disseminou versões mais radicais de si mesma, como os ultra-trumpistas do QAnon, movimento comprometido com a missão de farejar círculos de pedófilos socialistas em Washington. “Desapareceu aquele velho padrão de avanço, consolidação, acomodação e renovação do conservadorismo”, escreve Kabaservice. “Em seu lugar se colocou uma coisa que parece #MAGAparaSempre”.

Esse processo também pode ser visto de perto em Wisconsin, onde a onda do Tea Party ajudou a levar ao poder, pelas mãos de Scott Walker, aquilo que a princípio parecia um novo e ousado experimento de governo conservador. No entanto, a base republicana do estado, incitada pela mídia conservadora, acabou se mostrando menos movida pelo sistema de vouchers escolares de Walker do que por uma hostilidade racial contra o outro lado.

Em um estado-pêndulo, até então conhecido por uma espécie de cortesia bipartidária, uma extrema manipulação dos distritos eleitorais perpetrada pelos republicanos em 2011 deu ao partido uma supermaioria na legislatura estadual. Isto desobrigou os republicanos do Wisconsin de falar aos eleitores indecisos, a tradicional força de moderação.

Eles aprovaram medidas de identificação de eleitores que diminuíram a participação de não brancos na diversa Milwaukee, ajudando Trump a ganhar o estado em 2016. Quando Walker e o procurador-geral do estado perderam as eleições em 2018, a legislatura aprovou leis para retirar os poderes de seus cargos antes que seus substitutos democratas pudessem assumir. Este foi um estudo de caso sobre o abandono dos republicanos de duas normas que Levitsky e Ziblatt consideram essenciais para uma democracia segura: tolerância e respeito mútuo.

Enquanto isso, a base republicana estava ficando mais radical. Os republicanos de Waukesha, até então um baluarte do reaganismo rico, foram transformados por um influxo de superfãs de Trump. Muitos são brancos da classe trabalhadora, sem nenhum vínculo anterior com o partido, que acham que Trump está em guerra contra o establishment corrupto de Washington.

Dittrich diz que esses eleitores agora respondem por 70% de seus membros. “Eles não reclamam de serem chamados de republicanos porque apoiam o presidente Trump”, diz ele. “Mas, se sentirem que o partido não está apoiando o presidente Trump, eles provavelmente não serão tão leais quanto os republicanos foram no passado”. Em setembro, a mãe de Kyle Rittenhouse - miliciano de 17 anos acusado de matar duas pessoas durante um protesto Black Lives Matter em Kenosha, Wisconsin, no mês anterior - participou de um jantar da organização Mulheres Republicanas do Condado de Waukesha. Ela foi ovacionada de pé.

Isto ilustra por que os eleitores republicanos podem, de fato, continuar excepcionalmente fiéis ao seu líder derrotado - e como será difícil trazê-los de volta à moderação, mesmo que não o façam.

Eles são uma nova base, dominada por homens brancos da classe trabalhadora que ouvem a raiva do presidente contra os establishments liberal e conservador como uma expressão de suas próprias frustrações em um país sob rápida mudança. Eles fazem o Tea Party parecer construtivo.

Trump introduziu na corrente conservadora dominante uma política de emoção e oposição estúpida, tão distante do comunismo quanto da filosofia de governo do reaganismo. “Se Reagan estivesse por aqui hoje, seria muito difícil convencer o Partido Republicano de que ele era um conservador ferrenho”, admite Dittrich sobre seu antigo herói. Por sua vez, o simpático presidente do partido afirma ter “ficado um pouco mais conservador”, uma evolução que ele acha difícil de explicar, embora a contraste com seu antigo entusiasmo pelo bipartidarismo.

É bem difícil imaginar a direita voltando deste estado fanático para o reaganismo moderado de Hogan, governador de Maryland. A ideia de Rubio - que é essencialmente manter os eleitores da classe trabalhadora a bordo de políticas econômicas populistas e, ao mesmo tempo, baixar o volume da mensagem cultural o suficiente para atrair de volta alguns suburbanos - pode ser mais promissora.

Ainda não se sabe se as políticas mais sérias desse populismo industrial diferem muito das da centro-esquerda, só despojadas de suas preocupações ambientais. Elas também não geraram quase nenhum entusiasmo entre o establishment pró-negócios do partido. Mas existe aí uma lógica política convincente. E está claro que quase qualquer trajetória que possa levar o Partido Republicano de volta ao governo, até mesmo o ressentimento cultural, deve ser bem-vinda.

McConnell e sua facção republicana deveriam ver a iminente possibilidade de cooperação com o governo Biden como uma oportunidade para este fim.

O presidente eleito é um veterano negociador do Senado, disposto a governar a partir do centro. E a estreita maioria democrata no Senado não dará ao seu partido outra opção a não ser tentar fazer exatamente isto.

O senso comum diz que McConnell, veterano da oposição desleal, não vai querer participar desse processo - assim como ele obstruiu o governo Obama. Mas, em retrospecto, talvez ele calcule que essa estratégia não funcionou muito bem para seu partido.

Essa dinâmica empurrou Obama para a esquerda e ajudou a alimentar a crescente fúria partidária da direita. O que, por sua vez, acabou gerando o Tea Party, Trump e a vergonhosa guinada antidemocrática entre os republicanos do Senado - à qual, é preciso reconhecer, McConnell se opôs firmemente.

É de se imaginar que ele e seus colegas republicanos machucados por Trump não queiram passar por tudo isso mais uma vez. Trabalhar com Biden para consertar alguns dos problemas mais graves do país seria um sinal de que eles de fato não querem. Tradução de Renato Prelorenzto