incendio

RPD 35 || Reportagem especial: Do prenúncio à nova tragédia - Caso Cinemateca confirma descaso com cultura

Incêndio mostra, na prática, reflexos da postura do governo do presidente Jair Bolsonaro com o setor no país

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Dois anos e dez meses separaram o prenúncio do risco de mais descaso com a cultura no Brasil e a tragédia do recente incêndio que destruiu parte da Cinemateca Brasileira, cujos prejuízos, ainda imensuráveis, são alvo de novas investigações do Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo. Instituições e representantes do setor cultural cobram a responsabilização do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em setembro de 2018, ainda candidato à presidência, Bolsonaro sinalizou com seu descaso para a cultura, após o incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. “E daí?”, retrucou, na época, ao ser questionado sobre o maior desastre que arruinou o patrimônio científico e histórico do país. “Já está feito, já pegou fogo, quer que eu faça o quê?", respondeu à imprensa.

Depois de 15 dias do mais recente incêndio na história da Cinemateca brasileira, registrado em 29 de julho deste ano, o governo Bolsonaro seguiu na ofensiva. No último mês, anunciou demissões de técnicos da instituição, que preserva o mais rico acervo cinematográfico do país, com mais de 250 mil rolos de filmes e mais de 1 milhão de roteiros, fotos, cartazes e livros relacionados ao cinema.  O fogo fez parte do teto do galpão desabar, e o prédio foi interditado.

No entanto, a sede da Cinemateca estava fechada desde agosto de 2020, quando o secretário especial da Cultura, Mário Frias, tomou as chaves do local com escolta policial. Agora, ele tornou-se alvo de uma queixa-crime apresentada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados por causa do incêndio, que também é investigado pela Polícia Federal.

João Batista: incêndio foi criminoso, não porque tenham botado fogo, mas pelo abandono da Cinemateca. Foto: Arquivo pessoal

“O incêndio foi criminoso, não porque tenham botado fogo, mas pelo abandono da Cinemateca, vítima do desejo político de destruição da memória, da criatividade e da crítica.  Arquivos de filmes são incendiários na essência de suas materialidades, principalmente de filmes antigos, ainda em nitrato. Deixar a Cinemateca sem funcionários é um grande crime”, disse o escritor e cineasta João Batista de Andrade.

O cineasta ressaltou a “queda brutal nos investimentos culturais”. “No cinema, por exemplo, há milhões de reais paralisados na Ancine, a agência reguladora e financiadora do cinema no Brasil.  Enquanto isso muitos filmes em produção estão paralisados e uma infinidade de projetos sem viabilidade previsível. Destruir a cultura é um projeto nefasto de poder. É o que estamos vivendo”, criticou ele.

Cobrança

Em 2020, por exemplo, o MPF cobrou explicações da Secretaria Especial de Cultura sobre a falta de repasses orçamentários à Cinemateca Brasileira. O contrato entre o Ministério da Educação e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) chegou a ser suspenso porque o governo não repassou nenhuma parcela dos R$ 12 milhões previstos no orçamento para a entidade gerir o local. Funcionários tiveram salários atrasados.

Diante da gravidade da situação, o MPF ajuizou, em julho do ano passado, ação civil pública e apontou que o grande problema foi a má transição na gestão da Cinemateca, de 2019 para 2020: encerrou-se o contrato de gestão da Acerp sem a União se responsabilizar pela continuidade nos trabalhos técnicos internos da Cinemateca, assumindo-os diretamente ou por outro ente gestor.

Apesar de ter saído acordada em agosto do ano passado, após o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) deferir recurso do MPF, essa transição ainda está sendo implementada pela União. A promessa é de que seja firmado um novo contrato de gestão.

O procurador da República Gustavo Torres Soares avaliou a situação como preocupante e disse que “a Cinemateca Brasileira corre sério e iminente risco de dano irreparável por omissão e abandono do governo federal”, responsável pela manutenção e preservação dela.

“Infelizmente, também é público e notório que, nos últimos anos, em razão da omissão na gestão de bens culturais, históricos e turísticos pelo Poder Público, a sociedade brasileira sofreu a perda de inúmeros bens materiais e imateriais dessa natureza”, destacou o procurador da República.

Rodrigues: "Desmonte da cultura não é um fenômeno isolado do governo Bolsonaro”. Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília

“Política destruidora”

Professor da Fundação Armando Alvares Penteado e doutor em comunicação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Martin Cezar Feijó afirmou que “o caso da cinemateca é o mais flagrante de uma política destruidora”. “A cultura representa a diversidade inaceitável para um projeto que se pretende único: autoritarismo”, acentuou.

“A cultura é sempre subversiva. Fazer alusão à queima de livros do nazismo não é desproposital nem retórica. Ela é concreta. Estamos vivendo um desmonte da cultura, da política do audiovisual, da educação e da ciência”, acrescentou o professor.

O secretário de cultura do Governo do Distrito Federal (GDF), Bartolomeu Rodrigues, afirmou que “o desmonte da cultura não é um fenômeno isolado do governo Bolsonaro”. “No governo Bolsonaro, isso ficou mais visível, mais latente. Ele extinguiu o Ministério da Cultura, e organizações importantes estão hoje tecnicamente impossibilitadas de fazer alguma coisa pela cultura nacional”, observou, ao lembrar outros episódios de incêndio na Cinemateca Brasileira.

Antes deste ano, o fogo já atingiu o local pelo menos outras quatro vezes: em 1957, 1969, 1982 e 2016, sempre perdendo entre 1.000 e 2.000 fitas em cada. No primeiro, quase todo o acervo foi perdido. O MPF e a Polícia Federal ainda não finalizaram o levantamento exato do estrago provocado pelo incêndio neste ano na cinemateca.  

A expectativa é de que os trabalhos sejam concluídos nos próximos meses. Depois disso, o MPF vai analisar se pedirá à Justiça a responsabilização de possíveis culpados tanto no âmbito cível quanto na esfera criminal.


Entidades criticam o novo edital elaborado pelo governo Bolsonaro para o  gerenciamento da Cinemateca Brasileira. Foto: Divulgação/Cinemateca

Governo enfrenta críticas por causa de novo edital

Depois da inércia administrativa que levou ao incêndio na Cinemateca Brasileira, o governo federal lançou edital para contratação de organização social habilitada a gerir o local que tem o maior acervo cinematográfico do país, pelo valor de R$ 10 milhões anuais. A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) diz que o valor é menos do que a metade do necessário.

Presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce já se manifesta há anos contra o valor reservado no orçamento do governo para manter as atividades. Segundo ela, o montante adequado para executar bem todas as atividades no local é de R$22,5 milhões.

As propostas poderão ser enviadas até o próximo dia 16, mas a publicação do resultado definitivo está prevista para 18 de novembro. A Comissão Técnica é composta por servidores da Secretaria Especial de Cultura, da Secretaria Nacional do Audiovisual, da Agência Nacional do Cinema e do Instituto Brasileiro de Museus, designados pela Secretaria Executiva do Ministério do Turismo.

Em 2020, o governo já havia sofrido críticas após lançar proposta com valor de R$ 12 milhões anuais para a Cinemateca Brasileira. "Esse edital feito a toque de caixa nos dá medo. Quem vai assumir isso aqui?", disse a pesquisadora Eloá Chouzal, uma das organizadoras de manifestações em favor da cinemateca.

Em maio daquele ano, a direção da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que já chegou a ter repasses atrasados por parte do governo pela gestão da cinemateca, chegou à secretaria para tentar negociar um novo contrato, em meio a um quebra-cabeças que colocou o local como moeda de troca em mesa de negociações.

Naquela época, a direção da Cinemateca foi prometida pelo presidente Jair Bolsonaro a Regina Duarte após sua demissão da Secretaria Especial da Cultura. A então secretária sofreu semanas de fritura antes de ser demitida depois de ficar menos de três meses no cargo.

A saída de Regina foi costurada pela deputada federal Carla Zambelli, que chegou a dizer que a nomeação da atriz para a Cinemateca dependeria só de questões burocráticas.

Com a hipótese de rompimento do contrato de gestão atual e a falta de recursos e de um plano para a Cinemateca por parte da secretaria, o cargo prometido a Regina tem se revelado cada vez mais incerto.

Parte do acervo da Cinemateca destruído pelo incêndio ocorrido em julho passado. Foto: CBMSP

* Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.


'Incêndio na Cinemateca não é acidente',diz cineasta Luiz Bolognesi

Após repetidos alertas sobre risco de fogo, cineasta Luiz Bolognesi pede responsabilização das autoridades e diz que comunidade artística internacional está chocada. "Cinematecas guardam o acervo audiovisual de um povo."

DW Brasil

Para o cineasta Luiz Bolognesi, o fogo que atingiu parte do acervo da Cinemateca Brasileira na quinta-feira (29/07) não se trata de um acidente – diante dos avisos repetidos e insistentes de que a entidade estava abandonada e que havia risco de incêndio – mas de um crime administrativo, pelo qual as autoridades competentes precisam ser responsabilizadas.

"Estamos diante de um crime administrativo, de a pessoa não cumprir a função para a qual tem um salário e atribuições. Precisa de uma investigação e está na hora de as pessoas responderem pelos crimes", afirma Bolognesi em entrevista à DW Brasil.

Ele disse que o ocorrido na Cinemateca é uma "tragédia" e que a comunidade artística internacional está "chocada". "Cinemateca de qualquer país é tratada com muito cuidado. É onde está depositado o acervo audiovisual de um povo", diz.

O cineasta, que venceu uma mostra da Berlinale deste ano pelo filme A última floresta, sobre o povo Yanomami, afirma que o governo Jair Bolsonaro, como todo governo com "tendência totalitária", tem um "projeto político" para "destruir o cinema".

Bolognesi: "Vem sendo avisado há mais de um ano que as estruturas estão abandonadas"

"A arte é o âmbito da diversidade e sempre foi questionadora. Se você tem um governo de esquerda, a arte questiona o governo de esquerda. Se tem um governo de direita, a arte questiona o governo de direita. E um governo que está o tempo todo ameaçando o Supremo, o Congresso, as eleições, é um governo que tem uma tendência totalitária, e esses governos procuram sempre destruir a cultura. Porque você não controla o artista", afirma.

Ele diz que o "salto quântico" na degradação da Cinemateca coincide com a gestão Bolsonaro, e identifica um problema semelhante na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que é financiada por tributos recolhidos de produtores de conteúdo e de empresas de telecomunicação, mas não tem destinado recursos para obras brasileiras. "Há ali também desvio do objetivo, porque eles arrecadam os recursos, pagam os salários dos funcionários, mas não fazem a finalidade de fomento", diz.

O secretário especial de Cultura, Mario Frias, que está em Roma para uma conferência dos ministros da Cultura do G20, postou mensagem no Twitter culpando a gestão petista pelo descaso na Cinemateca e disse que solicitou perícia da Polícia Federal para apurar o motivo do incêndio.

Como você avalia o incêndio no acervo da Cinemateca?
A comunidade artística sente isso como uma tragédia, inclusive a comunidade internacional, que está chocada porque uma cinemateca de qualquer país é tratada com muito cuidado. Seja nos Estados Unidos, no México, na França, na Alemanha. É onde está depositado o acervo audiovisual de um povo. Depois que a gente já teve um incêndio no Museu Nacional, agora temos um incêndio que queimou uma parte do acervo da Cinemateca. A gente já sabe que tinham negativos de curta metragem, parece que de longas metragens também. Toda uma história de Embrafilme, do Instituto Brasileiro de Cinema, toneladas de documentos que contam a nossa história, é gravíssimo.

Agora, isso não é um acidente, vem sendo avisado há mais de um ano que as estruturas estão abandonadas. Uma coisa é a Cinemateca não funcionar legal porque não tem investimento. Mas o mínimo, manter uma equipe que permita que o acervo de um país não se incendeie, não tem como não ter. O custo não é elevado nem discutível.

Trata-se de um crime, e tem que ser responsabilizado criminalmente quem foi avisado ao longo de um ano... Há nove dias, a Procuradoria da República notificou o governo do perigo iminente de um incêndio e nenhuma atitude foi tomada. Na minha opinião, estamos diante de um crime administrativo, de a pessoa não cumprir a função para a qual tem um salário e atribuições. Precisa de uma investigação e está na hora de as pessoas responderem pelos crimes.

Nesta sexta, um dia após o incêndio, o governo publicou edital para contratar uma entidade para gerir e preservar o acervo da Cinemateca. O que isso indica?
Eles já estão com medo da responsabilização jurídica. Acho que algumas autoridades, agora orientadas por seus advogados, sabem que correm risco. E aí falam "estávamos em processo, não deu tempo". É isso, medo da responsabilidade judicial, é uma omissão administrativa, muito grave.

O descaso que você menciona é resultado de um projeto ou de pouca capacidade administrativa?
A minha interpretação, pelo conjunto da obra, pela paralisação da Agência Nacional de Cinema, que não está mais fazendo fomento, pelo abandono da Cinemateca, pelo abandono da Funarte [Fundação Nacional de Artes], o corte de verbas para a universidade, o corte de investimentos em ciência e tecnologia, parece que é um projeto de um governo que está atacando frontalmente a cultura, a ciência e a inteligência brasileira. Me parece que é um projeto político.

Em relação à Cinemateca, não era a hora de já ter todo o acervo digitalizado?
A Cinemateca estava em um processo lento e contínuo de digitalização do acervo, que foi totalmente interrompido. Essa é uma tendência de todas as cinematecas, guardar e preservar as suas fontes originárias, sejam películas dos anos 1920, sejam fitas magnéticas de 1970, e guardar uma cópia digital que fica para a eternidade. A gente está muito atrasado nesse processo se for comparar com a Cinemateca do México, a francesa ou a alemã.

Além de parar a digitalização, cortaram-se os investimentos a ponto de não ter profissionais e tecnologia suficiente para impedir a destruição de um material que é extremamente delicado e sensível ao fogo. As películas pegam fogo quase como álcool, todo mundo sabe que existem mil cuidados para guardar esse material. Isso vinha sendo denunciado e se agravou muito desde o início do governo Bolsonaro.

Qual é o marco temporal da piora na administração da Cinemateca?
O abandono maior realmente começa com o governo Bolsonaro. A Cinemateca vinha tendo um tratamento melhor sendo construído, passamos algumas crises de redução de investimento no governo Dilma [Rousseff], que a turma da cultura reclamou, mas o salto quântico no abandono, a ponto de todo mundo falar "está para pegar fogo" e o cara não fazer nada até o dia que pega fogo, coincide com as mudanças que foram feitas a partir do governo Bolsonaro, que retirou todo mundo que tinha lá e largou tudo abandonado.

O povo do cinema tentou manter a Cinemateca funcionando com recursos não federais, levantando recursos, e o Ministério da Cultura entrou com uma ação e, com o uso da Polícia Federal, tirou o povo do cinema e disse "vocês não vão cuidar de nada, porque isso é um equipamento que tem uma vinculação com o Poder Federal e nós vamos cuidar".

De forma geral, como o governo Bolsonaro lida com o cinema brasileiro?
O governo Bolsonaro tenta destruir o cinema brasileiro. Porque a arte é o âmbito da diversidade, traz um pensamento complexo e sempre foi questionadora. Se você tem um governo de esquerda, a arte questiona o governo de esquerda. Se tem um governo direita, a arte questiona o governo de direita. E um governo que está o tempo todo ameaçando o Supremo, o Congresso, as eleições, é um governo que tem uma tendência totalitária, e esses governos procuram sempre destruir a cultura. Porque você não controla o artista.

No âmbito do cinema, a Agência Nacional de Cinema parou de fazer fomento. Os recursos do audiovisual brasileiro não vêm de Lei Rouanet nem do Orçamento. Tem um imposto criado na época da privatização das empresas de telefonia pelo governo Fernando Henrique [Cardoso] que teria que ser utilizado para o desenvolvimento da indústria de informática e o audiovisual. Até hoje esse recurso é recolhido e direcionado, [entre outras finalidades] para que a Agência Nacional de Cinema faça a política de fomento. Desde que o governo Bolsonaro chegou, o dinheiro entra e sai a conta gotas. Há ali também desvio do objetivo da agência, porque eles arrecadam os recursos, pagam os salários dos funcionários, mas não fazem a finalidade de fomento.

Qual é a situação atual do audiovisual brasileiro?
O audiovisual brasileiro é muito potente. Com esse imposto criado no governo Fernando Henrique e regularizado no governo Lula, o Brasil estava entre os dez maiores produtores de audiovisual do planeta, quando o governo Bolsonaro começa. Não é pouca coisa, estamos do lado de quem produz muito e barato, por um custo em dólar extremamente competitivo, e somos um dos maiores consumidores de streaming do planeta, como Netflix e Amazon. Então, apesar de a Ancine ter paralisado a nossa produção autoral, a indústria do audiovisual continua resistindo e produzindo porque os players estrangeiros viram uma oportunidade de produzir séries e filmes de qualidade, tanto na dramaturgia como tecnicamente.

Uma parte da indústria está sobrevivendo trabalhando para players americanos, mas estamos perdendo o nosso próprio patrimônio audiovisual, porque por meio da Ancine as produtoras brasileiras eram detentoras dos produtos feitos aqui, dirigíamos a linguagem do que queríamos fazer. Hoje a indústria brasileira está trabalhando para os players estrangeiros, não totalmente porque tem a Globoplay e alguns outros.

Mas o objetivo do governo era quebrar toda uma indústria que tem cerca de 60 mil empregos diretos e 300 mil indiretos porque a cultura vai contra o projeto totalitário. Uma economia de R$ 25 bilhões, maior que a do turismo em termos de faturamento. O incêndio na Cinemateca é só uma manifestação absurda de toda uma política de destruição de uma indústria e de uma memória.


Fonte:
DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/inc%C3%AAndio-na-cinemateca-n%C3%A3o-%C3%A9-acidente/a-58710325


Incêndio na Cinemateca Brasileira põe mais um acervo cultural no Brasil em risco

Objeto de denúncia do MPF contra a União por abandono e afetado por enchentes, acervo histórico tem sido vítima de falta de apoio, descaso — e agora, fogo

Lucas Berti e Joana Oliveira, do El País

Ainda sem se recuperar do incêndio que em 2018 destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o Brasil assistiu nesta quinta-feira as chamas —que chegaram até seis metros de altura— ameaçarem, mais uma vez, o acervo de um dos galpões da Cinemateca Brasileira, no bairro da Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo. De acordo com representantes do Corpo de Bombeiros que atuavam no local, o fogo começou por volta das seis da tarde e afetou três salas no primeiro andar do imóvel alugado na Rua Othão, número 290: duas delas abrigam o acervo histórico de filmes da entidade, e a terceira armazena documentos impressos. Às 20h, as chamas estavam controladas, mas ainda havia pequenos focos de incêndio no interior do edifício, rodeado por chamas. Cinco caminhões e 70 bombeiros atuaram para controlar a situação, que não deixou vítimas.


Uma das hipóteses é de que o fogo tenha começado durante a manutenção do sistema de ar condicionado, realizado por uma empresa terceirizada no galpão, segundo Robson Bertolotto, diretor da Defesa Civil da Lapa, que atuou no local, que teve 25% de sua estrutura comprometida e cujo teto desabou. “Vimos danos causados tanto pelo fogo, quanto pela água. Visualmente, constatei muitos rolos de filmes preservados, mas também vimos prateleiras retorcidas”, contou Bertolotto após uma vistoria no galpão.

MAIS INFORMAÇÕES

Cinemateca Brasileira agoniza e se torna símbolo da falta de política cultural do Governo Bolsonaro
Adriana Calcanhotto: “A política cultural é inexistente no Brasil”
Pandemia gera “cataclisma” na cultura, e artistas passam fome em meio à falta de políticas do Governo

Criada na década de 1940 e conhecida como a quinta maior cinemateca em restauro do mundo, a instituição abriga 250.000 rolos de filme, sendo 44.000 títulos de curta, média e longa-metragens, além de programas de TV e registros de jogos de futebol. Entre seus maiores tesouros, estão o arquivo completo de Glauber Rocha, maior expoente do Cinema Novo e as gravações de Marechal Rondon sobre as Forças Expedicionárias Brasileiras. A maior parte desse acervo fica na sede da Cinemateca Brasileira, na Vila Mariana, mas estima-se que quatro toneladas de documentos sobre políticas públicas de cinema do Brasil tenham sido queimadas no galpão que armazena parte das películas e arquivos, o que coloca em risco a memória das instituições e programas audiovisuais brasileiros.

“Dependendo da extensão do dano, uma parte da história de preservação do cinema e do Estado brasileiro vai se perder para sempre”, lamentou o ex-conselheiro da Cinemateca Brasileira e professor de História do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Eduardo Morettin. Além de conhecer a estrutura, Morettin costuma levar alunos universitários à instituição.

Um funcionário que trabalha da sede principal da Cinemateca e que não quis se identificar, contou à reportagem que os riscos de incêndio não são exclusivos aos galpões distantes do prédio principal: “Ainda bem que [o incêndio] não foi aqui. Mesmo assim, a gente vive com o coração na mão. Toda hora fazemos ronda, sabendo que um incêndio também pode acontecer aqui, e a qualquer momento”.

A extensão real do dano ao acervo só será conhecida após a perícia da Polícia Federal, solicitada pelo secretário especial da Cultura, Mario Frias, que também revelará se o incêndio pode ter sido criminoso. “Tenho compromisso com o acervo ali guardado, por isso mesmo quero entender o que aconteceu”, escreveu Frias nas redes sociais.


Em nota oficial, a Secretaria Especial da Cultura afirma que “lamenta profundamente” o incêndio e que acompanha de perto a situação. Segundo a pasta, a manutenção do sistema de climatização do local foi realizada há cerca de um mês, “como parte do esforço do Governo Federal para manter o acervo da instituição”.

No último ano, a Cinemateca Brasileira tornou-se um símbolo da escassez de políticas públicas culturais do Governo Bolsonaro. Uma forte enchente no ano passado alagou as dependências hoje consumidas pelo fogo, o que motivou o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) a mover um processo contra a União diante da situação de abandono do local. A ação, no entanto, foi suspensa após o Governo prometer comprovar ações de reparo e preservação em um prazo de 45 dias.

Em 2016, parte do acervo foi atingida por um incêndio de condições similares ao dessa quinta-feira. Além disso, o ponto enfrenta um histórico de atrasos salariais, que motivaram funcionários a criar uma campanha pública para pedir apoio.

Repercussão
O incêndio de mais uma instituição histórica e cultural gerou indignação nas redes sociais, sobretudo pela situação de abandono em que se encontrava o local em que estão valiosos documentos, filmes e curtas nacionais —fato que vem na esteira de anos em que as posições do Governo Bolsonaro em relação à valorização cultural brasileira seguem em cheque.

O ex-governador e candidato à presidência em 2022, Ciro Gomes (PDT), disse que a “tragédia” vem de um “rastro de destruição de um governo que apaga nossa história”. Até o momento, porém, autoridades não haviam confirmado motivação criminosa por trás do incêndio. A vereadora de São Paulo, Erika Hilton (PSOL), relembrou a destruição do Museu Nacional há três anos e disse tratar-se de um “descaso organizado”.


Já o governador de São Paulo, João Doria, afirmouque a “morte gradual da cultura nacional” é resultado do “desprezo pela arte e pela memória do Brasil”.



Fonte:

El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-29/incendio-na-cinemateca-brasileira-em-sao-paulo-poe-mais-um-acervo-cultural-no-brasil-em-risco.html


Ricardo Noblat: De uma vez, Flamengo, assuma sua culpa!

O crematório do Ninho do Urubú

Direto ao ponto: salvo se algum dos garotos, ou um terrorista infiltrado nas dependências do clube, tenha tocado fogo no alojamento onde dormia parte do futuro do Flamengo, o que aconteceu ontem no Ninho do Urubu tem um único culpado: a diretoria. Mais precisamente: as diretorias do Flamengo desde que aquelas instalações foram construídas.

Na verdade, se pode falar em instalações, mas em construção seria exagero. Juntaram vários contêineres, desses transportadas por navios e carregados de mercadorias. No espaço exíguo de cada um, claustrofóbico, montaram beliches, apinharam armários e dispuseram um aparelho de televisão. A saída era estreita, e única. Não havia extintores de incêndio, a não ser do lado de fora.

O orçamento total do Flamengo para este ano é de R$ 750 milhões. Pelo menos R$ 100 milhões foram reservados só para reforçar o elenco. Em um clube forrado com tanto dinheiro, capaz de fazer a torcida exultar com contratações milionárias, adolescentes promissores dormiam e sonhavam com glórias em um espaço que se transformou em um forno, torrando-os cruelmente vivos.

A prefeitura do Rio lacrara o Campo de Treinamento (CT) do Flamengo em outubro de 2017. Motivo: o clube havia sido multado 30 vezes por falta de alvará de funcionamento. Sequer pagou o que devia. Naquele mesmo ano, o Flamengo reabriu o que fora fechado. Na prática, mandou a prefeitura às favas. O clube nunca pediu licença para construir qualquer coisa na área atingida pelo fogo.

“A área de alojamento atingida pelo incêndio não consta do último projeto aprovado pela área de licenciamento, em 05/04/18, como edificada. No projeto protocolado, a área está descrita como um estacionamento”, segundo nota oficial distribuída pela prefeitura. “Não há registros de novo pedido de licenciamento da área para uso como dormitórios”.

De resto, desde 2015, o Ministério Público do Rio entrara na justiça com uma ação cívica pública exigindo que o clube melhorasse as condições de alojamento dos jovens jogadores que precisassem morar no Ninho do Urubú, “inferiores até mesmo àquelas ofertadas aos adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas” em unidades prisionais. Deu em nada.

“Quase 500 atletas nascidos no Brasil que já atuavam no exterior trocaram de país no ano passado, e R$ 3,2 bilhões foram movimentados”, apurou Martín Fernandes, repórter de O Globo. “Cerca de R$ 160 milhões voltaram para os clubes onde esses jogadores foram formados. Deveria ser dinheiro suficiente para garantir que ninguém morresse queimado num alojamento”.

Para não terem que responder a perguntas incômodas, os diretores do Flamengo passaram o dia de ontem em reuniões e convocaram outras para hoje. O presidente do clube limitou-se a fazer um pronunciamento, sem direito a ser interrompido. Repetiu os lugares comuns que autoridades acuadas costumam usar quando estão diante de algo dramático que possa vir a culpá-las.

O que mudou na política pública de proteção a museus depois do grande incêndio que destruiu no Rio o Museu Nacional? Entre Mariana, há 3 anos, e Brumadinho, há 15 dias, nada mudou na política de fiscalização de barragens.

Com uma folha corrida de centenas de anos de estúpida impunidade, quem pode garantir que este país jamais assistirá a algo semelhante ao que ocorreu ontem?