Humberto Saccomandi

Humberto Saccomandi: Trump leva a negação do outro ao limite

Ao acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e contestar, sem provas, o resultado eleitoral

“A esquerda radical está empenhada em destruir tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas serão decisivas.

Trump passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras, libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas armas (…), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou ele em outubro.

O presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é “tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.

A narrativa por trás disso é perigosamente simples. O outro busca destruir o que somos (algo propositadamente pouco definido). Logo, o outro não pode chegar ao poder, afinal ninguém quer ser destruído. O passo seguinte é que vale tudo para impedir a vitória do outro, como Trump está agora tentando fazer. Um passo ulterior é que, se o outro não pode vencer, porque ele precisa existir? E, pronto, estamos no terreno do autoritarismo. O fascismo italiano via a oposição como desnecessária, já que ele era o portador do bem comum.

Um dos princípios da democracia é a alternância de poder. Se eu não ganhar desta vez, ganharei na próxima ou na seguinte. Essa alternância permite refinar a política com o tempo, como numa concorrência normal, quando um produto predomina até que apareça outro melhor. Isso estimula, ou deveria estimular, os partidos a oferecerem candidatos e políticas melhores. Quem não o fizer acaba punido pelo eleitor. A alternância estimula ainda a colaboração. Se um partido ficar desfazendo tudo o que o outro fez no governo anterior, não se avança.

O discurso da exclusão, porém, visa deslegitimar o concorrente. O desfecho, caso o eleitor opte pelo outro, será apocalíptico. Não haverá retorno possível. É como se a propaganda de um sabão em pó, em vez de mostrar como ele lava melhor, acusasse o concorrente de destruir a roupa, a máquina de lavar. Sem provas.

Não foi Trump que introduziu esse discurso no “mainstream” da política americana. Já em 1996, no livro “A Política da Negação”. Michael Milburn e Sheree Conrad, professores de Psicologia Social na Universidade de Massachusetts, identificaram a ascensão dessa retórica extremista na direita religiosa americana, em figuras como Pat Buchanan e Newt Gingritch. Mas Trump levou essa negação do outro à Casa Branca, ao topo do establishment americano. Ninguém estimulou e explorou o medo e o ódio como ele.

Esse é um discurso comum a qualquer extremismo. Hugo Chávez passou anos dizendo que a oposição de direita destruiria a Venezuela caso voltasse ao poder. Seu sucessor, Nicolás Maduro, repete isso regularmente. O resultado é o impedimento de a oposição vencer, por quaisquer meios necessário. O fim da alternância levou o país à ruína.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se refere à oposição em termos similares. “Nós temos que acabar com aqueles que querem destruir a família brasileira”, disse em entrevista ao Valor, ainda em dezembro de 2017, como se houvesse um único modelo de família brasileira do qual ele seria o porta-voz. No início deste ano, afirmou: “Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil.” Outra expressão comum no discurso da negação é se proclamar do lado dos “homens de bem”, o que automaticamente coloca o outro fora do campo do bem.

Essa visão revela uma concepção quase religiosa do governo, como se fosse onipotente. Isso é, obviamente, uma falácia. Tudo que um governo faz, dentro das regras do jogo, pode ser desfeito. É improvável, por exemplo que qualquer governo democrático conseguisse fazer nos EUA os propósitos que Trump atribuiu a Biden. Haveria oposição do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil. O próprio Trump sentiu essa impotência na pele. O muro que ele prometeu construir na fronteira com o México, pago pelos mexicanos, nunca saiu do papel. E mudanças que ele fez nas normas ambientais serão agora desfeitas por Biden, por decisão dos eleitores americanos. Assim é o jogo da alternância.

Mas a política da negação tem um forte apelo populista. Ela identifica um culpado, o outro, ao qual pode ser atribuída a responsabilidade por quase qualquer mazela. Tanto na Venezuela chavista como nos EUA trumpiano, a culpa é sempre do outro. E, mesmo quando não há uma culpa, como no caso do surgimento de um vírus, é possível atribuí-la, como Trump faz com a China.

O resultado dessa campanha de deslegitimação e descrédito é que dois terços dos americanos, segundo pesquisa divulgada nesta semana, acreditam que a eleição não foi justa nem livre. Trump contesta o resultado eleitoral no Estado de Nevada, onde as autoridades estaduais, republicanas como Trump, negam qualquer irregularidade.

E, por ora, ele conseguiu que o Partido Republicano o apoiasse nessa aventura política perigosa. Apenas uns poucos senadores e governadores republicanos se dissociaram. “Estou estarrecido de ouvir as acusações sem evidências vindas do presidente, da sua equipe e de muitas outras autoridades republicanas eleitas em Washington”, disse o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker.

O que distingue os EUA da maioria dos países é que há 200 anos os americanos elegem o seu presidente, e o vencedor, seja ele da situação ou oposição, assume. Essa estabilidade certamente ajudou os EUA a se tornarem o que são hoje. Nas próximas semanas ficaremos sabendo se essa tradição continuará.


Humberto Saccomandi: O que pode mudar na economia com Biden?

Democrata tem plano de US$ 2 trilhões em investimentos verdes

Se as pesquisas estiverem corretas, um grande “se”, o democrata Joe Biden será eleito em 3 de novembro presidente dos EUA. O que isso significa para a economia dos EUA e mundial? Há algumas certezas e muitas dúvidas ainda. A indefinição principal é com a continuidade, e em que medida, da guerra econômica com a China, que tem efeitos em cadeia por toda a economia global. O Brasil precisa atentar aos riscos e se preparar para oportunidades.

As pesquisas recentes indicam vantagem nacional expressiva do candidato democrata e uma vantagem mais apertada nos Estados decisivos, aqueles que definem a eleição presidencial nos EUA. Mas a dinâmica favorece Biden: a epidemia voltou a avançar, a economia perdeu força e a votação antecipada está muito alta. Há a possibilidade ainda de os democratas, que devem manter a maioria na Câmara, conquistarem a maioria no Senado. Isso seria vital para Biden aprovar suas propostas.

Uma vitória democrata por ampla margem parece ser o cenário mais favorável para os mercados, apesar de o setor financeiro ser tradicionalmente mais simpático aos republicanos. Isso porque a vitória democrata incontestável é provavelmente o único cenário possível em que não haveria judicialização da eleição, com meses de incerteza, e nem a paralisia do Congresso que marcou os últimos anos.

A economia ficou à margem do debate na campanha eleitoral. Os democratas estão focando no desastre que foi a reação do governo Trump à epidemia de covid-19 e, mais genericamente, na incapacidade de Trump para liderar o país. Já o presidente busca se colocar como o defensor da lei e da ordem contra a ameaça da extrema-esquerda democrata. Os enormes desafios dos próximos anos, na esteira da destruição econômica causada pela epidemia, não tornam o debate econômico atraente para nenhum dos candidatos.

No plano interno, Biden promete aumentar impostos e adotar um amplo programa de gastos públicos, para tentar tirar a economia americana da sua maior crise em quase cem anos. O PIB americano deve recuar 4,3% neste ano e crescer 3,1% em 2021, segundo as projeções do FMI. Isso significa que, ao fim de 2021, a produção ainda estará menor do que no fim de 2019. Após cair no meio do ano, o desemprego voltou a subir. O avanço da epidemia nos últimos meses, freou a retomada da economia.

O ponto central do programa econômico de Biden é um plano de investimentos verdes de US$ 2 trilhões ao longo de quatro anos, voltado principalmente para a transição para as energias renováveis. O democrata ainda promete retomar um programa de saúde similar ao Obamacare (que ampliou o acesso a serviços de saúde), a um custo ainda incerto, além de investimentos em educação e infraestrutura e centenas de bilhões em ajuda às empresas dos EUA para pesquisa. O Congresso deve aprovar ainda um novo pacote trilionário de estímulo à economia, no fim deste ano ou no início de 2021, com mais ajuda financeira às empresas e aos trabalhadores.

Para financiar esses gastos, Biden pretende ampliar a arrecadação. Para isso, ele reverteria os cortes de impostos aprovados por Trump e pelos republicanos em 2017. Os impostos aumentariam para os mais ricos e para as empresas. A alíquota de IR das empresas, que era de 35% e caiu para 21%, iria para 28%. Há ainda planos de elevar a taxação sobre ganhos de capital e herança.

Antes mesmo da pandemia já havia dúvidas sobre como financiar os gastos prometidos por Biden e pelos democratas. O aumento da arrecadação não cobriria a alta de despesas. Agora, com os EUA beirando um déficit fiscal de 16% neste ano, o maior em tempos de paz, a dificuldade só cresceu. Provavelmente Biden teria de manter o déficit elevado por muitos anos, com aumento significativo da dívida pública dos EUA, que vai superar 100% do PIB neste ano pela primeira vez desde a Segunda Guerra.

Mas, com o crescente consenso, apoiado nesta semana pelo FMI, de que os países ricos precisam gastar mais (e melhor) para sair da crise, isso não deverá ser um problema para Biden, desde que a inflação e os juros se mantenham baixos por vários anos, o que é o cenário base hoje, mas não é uma certeza. Se tiver maioria no Congresso, o democrata não terá problemas para aprovar mais déficit.

No plano externo, a grande decisão de Biden, que terá maior repercussão global, é sobre a continuidade da guerra econômica com a China, que é parte da tentativa americana de conter a ascensão da potência asiática. Biden parece endossar o consenso anti-China que se instalou em Washington, mas deverá adotar estratégias diferentes das de Trump.

A expectativa é que ele reorganize o bloco ocidental sob a liderança dos EUA (encerrando os conflitos comerciais com a União Europeia) e busque soluções multilaterais para lidar com o desafio da China. Isso passa, por exemplo, pela reforma da OMC, para que o comércio mundial possa lidar melhor com o capitalismo de Estado chinês.

Mas é provável que o processo de separação das economias dos EUA e da China continue, com a transferência para fora da China de parte da produção voltada para o Ocidente. Como observou o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon, em entrevista nesta semana ao Valor, esse processo pode trazer oportunidades para o Brasil, ainda que mais para o México, que está mais perto e integrado à cadeia produtiva dos EUA.

Assim, Biden manteria, por exemplo, a pressão para que a empresa chinesa Huawei seja banida das redes 5G dos países aliados dos EUA. Essa será uma decisão difícil para o Brasil, que tem na China seu maior parceiro comercial. Pequim já sinalizou que barrar a Huawei afetaria as relações entre os dois países.

Com Biden, os EUA apoiariam as negociações na OCDE para elevar a taxação de empresas digitais (o que traria mais receita aos governos). O país voltaria ao acordo de Paris, com mais pressão para a descarbonização da economia global e a proteção do meio ambiente - Biden falou em ajudar o Brasil na preservação das florestas, mas ameaçou com sanções se isso não for feito.

É provável também que os EUA retornem, em algum momento, à Parceria Transpacífica (TPP), o acordo comercial negociado pelo governo Obama e que inclui diversas economias da região do Pacífico, mas não a China. Trump deixou a TPP, que é uma iniciativa importante para conter a China comercialmente. O plano da UE de impor uma taxa de carbono a produtos de países poluidores tem a simpatia dos democratas.


Humberto Saccomandi: Uma epidemia de ódio ameaça EUA e Brasil

O ódio político pode afetar a economia pois leva ao impasse

Cuidado com a sua raiva. Raiva do presidente Jair Bolsonaro, do PT, do STF, do MST, da mídia, do movimento LGBT, dos ambientalistas, do seu colega evangélico, do seu primo que pede intervenção militar. A raiva política, que parece ter o efeito positivo de ressaltar nossas convicções e/ou indignações, provavelmente está trazendo prejuízos a todos. É um epidemia para a qual não existirá vacina tão cedo.

Essa é, adaptada ao Brasil, a tese de Steven Webster, professor de Ciências Políticas na Universidade de Indiana (EUA), que lancará em setembro o livro "American Rage", a raiva americana. Há uma extensa literatura recente que tenta lançar luz sobre o crescente fenômeno da polarização política nos EUA. Webster disse ao Valor que se concentrou nas consequências sistêmicas.

Para ele, a raiva ao oponente político virou a força dominante da política americana. E essa extrema polarização está destruindo a confiança das pessoas nas instituições, o que leva a um governo disfuncional, ameaça a democracia e causa prejuízos à economia. Isso parece ocorrer no Brasil também.

A disfunção ficou evidente na reação catastrófica dos dois países, na área da saúde, à epidemia. Para os apoiadores de Donald Trump/Bolsonaro, a cloroquina era uma solução, apesar da evidências científicas de que o medicamento não funciona. Os presidente não buscaram políticas de consenso nem colaboração com os Estados. Agora, ambos ignoram a disparada no número de casos.

Sempre houve raiva política na história dos EUA. O que há de novo nos últimos 25 anos, diz Webster, é a extensão da raiva dos americanos e a frequência com que eles estão dispostos a expressá-la.

Ele atribui isso a três fatores principais: um é o casamento da identidade partidária com a identidade racial, cultural ou ideológica. “Cada vez mais os republicanos são o partido dos brancos, e os democratas são uma coalizão multiétnica. Essa diferente composição influencia as políticas que os partidos acabam defendendo.”

Os outros dois fatores são: as mudanças na mídia, com a importância crescente da mídia explicitamente partidária; e as novas tecnologias de internet, que facilitam a expressão do ódio. É mais fácil ser agressivo com alguém numa rede social, sentado no sofá de casa, do que fazê-lo socialmente, num bar.

“Trata-se cada vez mais de um jogo de soma zero. Minha vitória é a sua derrota, e vice-versa. Houve uma transição de eu perceber que há pessoas que discordam de mim para eu achar que essas pessoas são oponentes a serem derrotados”, diz Webster. “A raiva leva as pessoas a enxergar os outros pela lente da política, e não como pessoas, numa espécie de desumanização política. Os apoiadores do outro lado são vistos cada vez mais como uma ameaça ao bem-estar do país e até como menos inteligentes.”

Essa polarização pela raiva não foi criada nem por Trump nem por Bolsonaro. Ela os precedeu e é provável que continuará depois deles. Mas ambos deliberadamente a fomentam e se nutrem dela.

Webster diz que os dois principais partidos americanos mudaram e rumam para os extremos. Mas ele condivide a teoria da polarização assimétrica, isto é, que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda. E, para se justificarem, precisam tentar colar no oponente a pecha de extremista. Trump repete todo dia que os democratas foram tomados por radicais. No Brasil, qualquer um que se oponha a Bolsonaro vira instantaneamente socialista ou comunista.

“O ódio político pode afetar a economia porque leva ao impasse. Se os eleitores estão com raiva do partido rival, isso cria o incentivo para as autoridades eleitas não façam acordos com membros do outro partido. E sem esse entendimento suprapartidário, é difícil enfrentar grandes questões nacionais”, disse.

O Medicare, o programa de saúde público para pessoas com mais de 65 anos, criado em 1965, no governo do democrata Lyndon Johnson, só passou no Congresso dos EUA graças ao voto favorável de 13 senadores republicanos, pois 7 senadores democratas votaram contra. Quando o Obamacare, seguro saúde compulsório com ampla participação privada, foi aprovado em 2010, nenhum deputado ou senador republicano votou a favor. Trump não conseguiu derrubar o programa, mas o desidratou. Com isso, dezenas de milhões de americanos enfrentam agora a epidemia sem plano de saúde.

Nem todo o mundo é assim, claro. A Dinamarca aprovou nesta semana um ambicioso plano de cortar as emissões de carbono em 70% até 2030. A proposta teve o apoio de mais de 95% do Parlamento. Os principais lobbies empresariais defendem o plano, ainda que ele possa levar a um aumento de impostos para financiar a conversão energética.

No Brasil e nos EUA, esse consenso é impossível. Temas de ambiente e aquecimento global foram colocados no escaninho da esquerda. Viraram não-assunto para a direita. Do mesmo modo, limitar a imigração é tema ignorado pela esquerda, apesar de ser demanda legítima de parte da população.

O candidato democrata, Joe Biden, pode não alimentar o ódio na sua campanha, mas ele quase não precisa disso, pois boa parte do país já tem tanta raiva de Trump e só a presença do presidente nas eleições já basta. “E é muito provável que grupos democratas explorem essa raiva.”

Ainda que a raiva possa ajudar os democratas nas eleições, ela é um risco à democracia, diz Webster. “Quanto mais os EUA ficarem polarizados, mais difícil se tornará manter a democracia. A democracia requer confiança, fazer concessões, um equilíbrio delicado, cada vez mais raro.”

Há saída para essa epidemia de ódio? “Espero, mas sou pessimista”, diz Webster. “Acho que será preciso algo grande e que afete todo o país para fazer as pessoas deixarem de lado a sua natureza partidária. Há evidência de que, quando algo as fazem se enxergar como americanos, e não democratas ou republicanos, isso reduz a hostilidade. Foi o que ocorreu no 11 de Setembro. A confiança no governo aumentou, o presidente George W. Bush teve a sua maior aprovação e muita gente trabalhou junto para um objetivo comum. É difícil saber se isso é factível sem que algo terrível aconteça. E ninguém deseja um ataque terrorista.”

Ele recomenda conter a raiva. “Uma dose de raiva é bom, pois eleva a participação na politica. Precisamos de uma quantidade saudável de raiva, não demais”.

*Humberto Saccomandi é editor de Internacional


Humberto Saccomandi: Epidemia deve levar a aumento de impostos

Países terão déficit público recorde. Essa conta terá de ser paga

Governos por todo o mundo estão fazendo esforços hercúleos para conter a devastação causada pela epidemia de covid-19 na economia e na saúde. Nunca se gastou tanto em tempos de paz. Passado o pior dessa crise, a ressaca fiscal deverá resultar igualmente desafiadora.

Será difícil escapar de uma onda de aumento de impostos para reajustar as contas públicas. Haverá muita movimentação nesse sentido nos próximos meses. E esse processo de alta da carga fiscal, se não bem conduzido, pode gerar tensão social, política e mais dano econômico.

Neste momento de guerra ao coronavírus, os governos estão aumentando incrivelmente os seus gastos, de um modo que é até difícil de controlar, para financiar o setor de saúde e para ajudar empresas e pessoas que perderam faturamento e renda.

Os governos estão sofrendo ainda com uma queda sem precedentes da receita. A atividade econômica desabou, e a arrecadação de impostos caiu junto. Além disso, os programas de socorro incluem medidas de alívio fiscal. Muitos países adiaram o recolhimento de impostos ou reduziram seu valor. Possivelmente, parte desses impostos nunca serão pagos.

Assim, a pressão imediata por mais gastos combinada com a queda na receita está gerando uma situação fiscal explosiva, que é generalizada. A maioria dos países deve ter déficit público recorde neste ano. A África do Sul já prevê déficit acima de 10% do PIB. Cingapura prevê mais de 15%, projeção que também já se vê no Brasil. Nos EUA, o Escritório de Orçamento do Congresso prevê déficit neste ano de US$ 3,8 trilhões, quase quatro vezes os US$ 984 bilhões do ano passado, atingindo cerca de 18% do PIB.

Há muita dúvida quanto à duração da epidemia e o dano adicional que ela ainda pode causar, o que dificulta antecipar quanto os governos ainda terão de gastar. Também há dúvidas sobre a intensidade da recuperação pós-epidemia. Quanto mais rápida e forte ela for, mais receita fiscal vai gerar, ajudando assim no ajuste das contas públicas. Mas se essa retomada for lenta, o ajuste fiscal será mais demorado. O Reino Unido, por exemplo, prevê que o déficit fiscal do país só cairá abaixo de 5% do PIB após 2024.

Não sabemos direito também como será a demanda social no pós-epidemia. Certamente haverá pressão para fortalecer os sistemas de saúde, especialmente a preparação para epidemias. Além disso, muitos países estão adotando temporariamente programas de distribuição de renda. Pode ser difícil retirá-los subitamente. A Espanha, por exemplo, anunciou que quer criar um programa permanente de renda mínima. Outros países estão avaliando isso. Ou seja, os gastos públicos explodiram, a receita caiu e é incerto que essa dinâmica possa ser corrigida rapidamente.

Parte dessa conta que se avoluma está sendo paga com impressão monetária, direta ou indiretamente, como por meio de programas de flexibilização quantitativa. Nesse caso, os BCs financiam os governos por meio da compra indireta de títulos públicos, no mercado secundário, como faz o Banco Central Europeu. Boa parte da conta, porém, vai virar dívida.

Países com mais solidez econômica e financeira têm maior credibilidade e podem lidar melhor com um aumento expressivo da dívida pública. Mas a maioria, não. Isso implica o risco grande de uma crise da dívida, principalmente nos países emergentes. Estes, para financiar suas dívidas, se verão compelidos pelos mercados a ao menos indicar um caminho de ajuste nas suas contas públicas

Mas todos terão de lidar com essa dívida, cedo ou tarde. E a dinâmica das contas sugere que será difícil evitar um aumento de impostos. Muitos países já estão discutindo isso. A Comissão Europeia também deixou claro que buscará mais impostos - inclusive inéditos impostos europeus - para financiar o seu plano de recuperação da União Europeia, de € 750 bilhões.

“A dívida pública vai crescer. Essa dívida uma hora terá de ser paga. E como é que se paga? Com impostos, não há outro modo”, disse ontem o ex-presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso, em webinar promovido pelo Fundação Fernando Henrique Cardoso. “Vai ter a dívida pública a pagar, o que exige maior taxação”, completou, a respeito a aumento do papel do Estado decorrente da epidemia.

“Vamos sair [dessa crise] muito endivididos”, disse Fernando Henrique Cardoso no webinar. Ele acha que os governos estão corretos em “jogar dinheiro” neste momento, mas “a dívida vai aumentar” e “o custo disso será pago nos próximos anos”, afirmou. “Precisaremos de mais taxação para redução da dívida.”

Mas quais impostos elevar? Aumentar quanto? Por quanto tempo? Essa discussão complexa deverá crescer à medida que os países forem saindo da situação de emergência da pandemia. Se não for encaminhada com habilidade, pode gerar um corrosivo conflito distributivo, sobre como dividir a conta.

As maiores fontes de arrecadação dos governos são os impostos sobre a renda e sobre o consumo. Mas subir muito o imposto de renda das empresas, num momento em que muitas delas estarão tentando sair do coma induzido pela crise, pode ser contraproducente. Taxar muito mais o consumo também é arriscado, pois as economias já estão com a demanda deprimida. Elevar o imposto de renda da pessoa física, possivelmente dos mais ricos, deverá ser uma opção.

Essa pressão de maior taxação dos mais ricos deve crescer, já que a crise tende a aumentar ainda mais a desigualdade, que já vinha em alta nas últimas décadas.

Há outras ideias sendo discutidas, como o imposto sobre fortunas, a taxação das gigantes digitais (que pagam menos impostos que as demais empresas), ampliar a taxação sobre ganhos financeiros ou até o imposto sobre transações financeiras. No Brasil, o governo já ventila ressuscitar a CPMF.

A Comissão Europeia propôs ainda uma taxa sobre o plástico (que incentivaria a redução do consumo), ampliar a taxação de emissões de carbono e um controverso imposto de importação que seria cobrado de produtos vindos de países que não cumprem metas de reduzir as suas emissões. Isso pode gerar uma nova onda protecionista.

FHC alertou que “as pessoas precisam acreditar que o dinheiro [dos impostos] não é para aumentar o tamanho do Estado, mas para reduzir a dívida pública”. E Durão Barroso alertou que é importante “que o Estado não atinja um peso que possa prejudicar a inciativa privada” Não é um processo fácil de tocar.