Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: No mundo de Bolsonaro

É possível conciliar o seu mundo ao mundo dos fatos?

No mundo dos fatos, Jair Bolsonaro negou a gravidade da epidemia de Covid-19, sabotou medidas de distanciamento social, promoveu tratamentos "mágicos" que não funcionam e foi omisso na compra de vacinas. Ainda provocou aglomerações com suas aparições públicas e espalhou "fake news" sobre as máscaras. Objetivamente, ele responde por parte das quase 300 mil mortes que o Brasil registra.

No mundo de Jair Bolsonaro, a história é bem diferente. No início deste mês, o presidente fez uma avaliação de sua performance ao longo de um ano de pandemia: "Desculpe aí, pessoal, não vou falar de mim, mas eu não errei nenhuma desde março do ano passado".

É possível conciliar esses mundos, isto é, há uma explicação lógica para pelo menos compreender a discrepância? Sim, e ela é de ordem psicológica. O cérebro humano é um trapaceiro. Ele não hesita em torcer a linguagem e os fatos para poupar-se das dores de dissonâncias cognitivas e construir para si próprio uma autoimagem aceitável.

Meu exemplo favorito da magnitude dessa capacidade é a declaração de um "serial killer" capturado nos EUA em 1994: "Além das duas pessoas que matamos, das que ferimos, da mulher em que demos coronhadas e das pessoas que fizemos comer vidro, não machucamos ninguém".

E Bolsonaro acredita mesmo que foi impecável em relação à Covid-19? A pergunta é traiçoeira. Gostamos de pensar nossos cérebros como um comando centralizado, mas a realidade é bem mais multifacetada. Uma imagem interessante é a proposta pelo neurocientista David Eagleman, segundo o qual o cérebro é uma democracia representativa, na qual diversos módulos e sistemas podem ter opiniões divergentes sobre o mesmo tema. Vence quem, num dado momento, grita mais alto.

O trágico dessa história é que quanto mais cobramos responsabilidade de Bolsonaro, mais seu cérebro busca refúgio no mundo paralelo no qual o ele "não errou nenhuma".


Hélio Schwartsman: Efeito Lula derruba Pazuello

É improvável que Bolsonaro deixe Queiroga fazer o que tem de ser feito

Quanto medo Bolsonaro tem de Lula? Bastante, já que o capitão resolveu demitir o general e se esforçou para convidar gente com qualificação técnica para exercer o cargo. A primeira cotada, Ludhmila Hajjar, recusou; o segundo, Marcelo Queiroga, aceitou.

As coisas, porém, são mais complicadas do que parecem. Ninguém com diploma de medicina e familiaridade mínima com o método científico pode aceitar o posto se não arrancar de Bolsonaro a promessa de que poderá mudar a política sanitária até aqui adotada, o que inclui licença para impor medidas de distanciamento social, para aposentar os delírios cloroquínicos e para investir pesadamente na vacinação. E, para o presidente fazer uma concessão dessas, ele precisa estar aterrorizado com Lula e sob muita pressão do centrão.

O problema é que, mesmo que Bolsonaro aceda agora a esse programa elementar, é improvável que deixe Queiroga fazer o que tem de ser feito. A impulsividade com tons paranoides é um traço inapagável da personalidade do presidente. Em algum momento, ele acabará recaindo em seus tresvarios sanitários e desautorizará o ministro.

Quem tem um bom olhar clínico percebe isso e nem aceita o cargo, como parece ter sido o caso de Hajjar. Já Queiroga provavelmente superestima suas capacidades como negociador. Deve acreditar que conseguirá tourear Bolsonaro e encontrar espaço para atuar. Veremos.

De todo modo, é positivo que Lula tenha entrado na equação. Ao tentar viabilizar-se como candidato que busca ganhar espaço entre eleitores do centro político, Lula não dá a Bolsonaro alternativa que não a de imitá-lo. Recoloca assim em jogo o teorema do eleitor mediano, segundo o qual os principais postulantes em um pleito majoritário buscam a chancela da maioria dos eleitores mesmo que sacrificando o apoio dos mais radicais. Até esse estranho começo de século 21, essa era a regra nas democracias.


Hélio Schwartsman: Sem medo de patógenos

Temos muita dificuldade para converter achados da ciência em ações

No fundo, o ser humano não acredita em microrganismos patógenos. Essa é a melhor explicação para o fato de governadores e prefeitos estarem aliviando restrições a contatos sociais enquanto a curva de infecções pela Covid-19 se acelera e redes hospitalares colapsam.

A relação causal entre maior distanciamento social e diminuição do contágio está bem estabelecida, na teoria e na prática. Não obstante, a ideia de que doenças podem ser transmitidas por seres invisíveis é uma que relutamos em aceitar. Com um pouco de estudo, nós a acatamos no plano intelectual, mas não tão facilmente no circuito das emoções, que são motivadoras muito mais eficientes do que a razão.

A natureza não nos deixou inteiramente à mercê do contágio. Ela nos dotou com a sensação de repulsa que experimentamos ao visualizar, cheirar e até imaginar material potencialmente perigoso, como fezes, vômito, carne podre. De modo geral, mantemos prudente distância desses itens.

O problema é que não são só coisas nojentas que transmitem moléstias. Picadas de insetos, toques humanos (incluindo sexo), fômites, perdigotos e aerossóis também o fazem. E um bicho hipersocial como o homem jamais poderia desenvolver um instinto de afastamento social --o que nos deixa particularmente vulneráveis a vírus respiratórios como o Sars-CoV-2.

Seria tentador atribuir nossa desdita ao fato de estarmos nas mãos de políticos ignorantes que se dobram a interesses econômicos. Isso até pode ser verdade, mas o problema é mais profundo. A prova disso é que médicos, que mais do que ninguém sabem da importância de lavar as mãos, também fracassam nessa tarefa. O índice de higienização de mãos entre profissionais de saúde não passa muito dos 50%, mesmo em hospitais-escola do Primeiro Mundo.

Temos muita dificuldade para converter achados da ciência em ações, e o preço dessa incapacidade aumenta exponencialmente na epidemia.


Hélio Schwartsman: Qual Lula será candidato em 2022?

Ele já deu repetidas mostras de que é um camaleão político

Ao que tudo indica, Luiz Inácio Lula da Silva poderá concorrer à Presidência no ano que vem. Isso altera significativamente os planos de candidatos e partidos que já começavam a desenhar cenários para o próximo pleito.

Na leitura mais superficial, mas não necessariamente errada, o retorno do petista ao jogo reforça a polarização. Os beneficiados seriam o próprio Lula e seu antípoda, o presidente Jair Bolsonaro, que, mobilizando seus núcleos de apoiadores fiéis e demonizando os adversários, carimbariam seus passaportes para o segundo turno, fechando as portas para candidaturas mais ao centro.

O problema com essa interpretação é que ela parte do pressuposto de que o Lula de 2022 será um Lula radical, parecido com o que se candidatou em 1989 ou com o que discursou às vésperas de ser preso pela Lava Jato em 2018. Mas não há nenhuma garantia de que tal premissa se manterá.

Lula já deu repetidas mostras de que é um camaleão político, capaz de vestir a roupagem que mais lhe convém. Se ele sentir que tem mais chances de chegar ao Planalto com o figurino de candidato moderado, ele o adotará. Nada o impede de repetir a trajetória de 2002, quem sabe até reeditando uma versão da "Carta ao povo brasileiro" e forçando o PT a fazer uma tardia autocrítica do governo Dilma. Isso seria crível? Bem, se as pessoas acreditaram que Bolsonaro era liberal, então acreditam em qualquer coisa.

Meu ponto é que não estamos condenados à polarização. Dependendo da dinâmica que a campanha assumir, poderemos assistir à reintrodução do teorema do eleitor mediano, pelo qual os principais candidatos buscam desde o início apresentar-se como moderados para conquistar os cidadãos que rejeitam extremos, que são normalmente a maioria.

Se o vencedor vai governar de acordo com as promessas ou cometer mais um estelionato eleitoral é uma outra questão. Mas tratemos de um problema de cada vez.


Hélio Schwartsman: Fachin tenta salvar a Lava Jato

A corrupção mostrada pela operação precisa ser julgada pelo processo legal

Ao anular processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e devolver-lhe os direitos políticos, o ministro do STF Edson Fachin tenta salvar o que for possível da Lava Jato. É um caso clássico de entregar os anéis para não perder os dedos.

Se a decisão de Fachin se mantiver, não há mais razão para o Supremo julgar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro em relação a Lula. Evita-se assim que se abram comportas que poderiam levar à anulação de várias condenações de vários réus. A decisão permite até que os casos do tríplex no Guarujá e do sítio em Atibaia sejam julgados de novo, mas agora pela Justiça Federal de Brasília.

Objetivamente, o que Fachin fez foi acatar pedido da defesa para considerar a Justiça Federal de Curitiba incompetente para julgar os casos de Lula. Esse sempre foi o melhor argumento jurídico do ex-presidente.

O deslocamento de processos que corriam em São Paulo para as mãos de Moro sempre me pareceu forçado.

O problema é que a Justiça, em várias instâncias, já negara solicitações semelhantes da defesa. Aceitar a argumentação agora, após anos de tramitação e na iminência do que se afigurava como derrota certa para a ala lava-jatista do STF, soa como casuísmo.

Entendo a preocupação de Fachin em evitar que a Lava Jato desmorone numa reação em cadeia de anulações. O Brasil sofreria mais um vexame internacional se solicitasse às autoridades suíças que restituíssem o dinheiro desviado a seus ilegítimos donos. Receio, porém, que a opção de Fachin por evitar que enfrentemos as questões difíceis não seja uma boa estratégia.

Se Moro foi parcial em relação a Lula, esse não é um problema que devamos varrer para debaixo do tapete. Fazê-lo só aumenta o descrédito no Judiciário. Os casos de corrupção levantados pela Lava Jato são reais, mas precisam ser julgados segundo as regras do devido processo legal previstas na legislação.


Hélio Schwartsman: Como explicar os enigmas da pandemia?

Países riquíssimos sofrem, enquanto nações pobres se saem (até aqui) bem

Normalmente, quanto mais pobre um país, pior ele se sai em epidemias. A Covid-19 não é normal. Estamos vendo países riquíssimos, como os EUA e vários membros da União Europeia, comendo o pão que o diabo amassou, enquanto nações muito mais pobres, como o Vietnã e Burundi, se saem (até aqui) bem.

Não estamos falando de diferenças de 300% ou 400% na taxa de mortalidade, mas de variações de milhares de vezes. Na Bélgica, a Covid-19 matou, até aqui, 1.930 de cada milhão de habitantes. No Burundi, cujo PIB per capita é 1/177 do belga, essa taxa é de 0,26. E isso não ocorre porque os países mais pobres foram poupados do vírus. Estudos de soroprevalência mostram que muitos deles foram tão atingidos quanto os ricos.

Como explicar esses enigmas epidemiológicos? Siddhartha Mukherjee, autor do best-seller “O Imperador de Todos os Males”, faz uma bela tentativa em artigo publicado há pouco na New Yorker.

Para Mukherjee, não temos uma só causa, mas um “blend” delas. Há razões para crer, por exemplo, que haja uma subnotificação importante nos óbitos em países pobres, mas não suficiente para resolver a charada. Quando o coronavírus pega de verdade, não há como ignorar os cadáveres. Vimos isso Guayaquil e Manaus.

Bons candidatos a explicações parciais incluem a estrutura demográfica (proporção de idosos), comorbidades, governos mais ou menos eficazes no controle da doença e a imunidade, inata ou ativada por outras moléstias.

Um ponto de Mukherjee que eu quero destacar é que o método científico nos induz a buscar explicações parcimoniosas, de preferência únicas, mas isso pode ser um equívoco. A navalha de Ockham é útil para conter os piores exageros de nossa imaginação fértil, mas não há na natureza nenhum princípio que favoreça o simples em detrimento do complexo. Insistir muito na parcimônia depende de nossa fé num Universo elegante. E ele talvez não seja elegante.


Hélio Schwartsman: Com Bolsonaro e Araújo, Brasil corre risco de ficar sem aliados

Nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano

Há uma diferença importante entre o policial e o diplomata. Diante de crimes mais sérios, policiais não têm opção que não a de indiciar os suspeitos, independentemente do que achem da lei ou das circunstâncias que levaram ao delito.

Nas relações internacionais, as coisas são um pouco mais complicadas. Mesmo quando a diplomacia está diante de um crime gravíssimo e muito bem documentado, pode ver-se compelida a pegar leve com o autor. É o que acaba de fazer o presidente dos EUA, Joe Biden, ao deixar de responsabilizar o príncipe saudita Mohammed bin Salman pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi em 2018.

O problema de base é que, nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano. Sem uma autoridade central forte que a todos submeta, cada Estado é mais ou menos livre para agir como quiser. As principais limitações são a força de outros países, seguida de acordos e tratados internacionais, cuja imposição, entretanto, é fraca, e, no caso de democracias, da repercussão política que as ações possam ter para o público interno.

A resultante desses vetores em nível nacional costuma ser uma política externa pragmática, com algum tempero moral. Os EUA não podem dar-se ao luxo de romper com os sauditas, um de seus principais aliados na região, então Biden optou por pegar leve com o príncipe, mas sem deixar de sinalizar que reprova o homicídio e que poderá reagir de modo mais duro se violações desse tipo se repetirem.

Uma diplomacia totalmente pragmática, pautada exclusivamente por interesses, até pode funcionar para países autocráticos, onde o líder não deve satisfações a ninguém. Já uma diplomacia que se guie apenas por princípios acabaria rapidamente isolada, sem nenhum aliado.

O Brasil, com Bolsonaro e Ernesto Araújo no comando da política externa, corre o risco de terminar sem aliados e defendendo posições imorais.


Hélio Schwartsman: Os sapatos de Bolsonaro

Bolsonaro se comprometeu com obrigações com as quais agora está se omitindo

Você deceparia seu dedo mindinho para curar a enxaqueca de 5 milhões de pessoas na Ásia? E se for para salvar a vida de cinco desconhecidos em sua cidade? E para salvar seu filho?

Essa incomensurabilidade das dores (e dos prazeres) é um dos problemas que assombram o utilitarismo em particular e as éticas consequencialistas em geral. O fato de a dificuldade ser real não implica que não existam situações concretas em que a solução é óbvia. Todos, afinal, reprovamos a atitude do campeão de natação que deixa de resgatar uma criança que se afoga apenas para não estragar seu par de sapatos novos.

Faço essas considerações a propósito da imposição/retirada de restrições na epidemia de Covid-19. Embora não chancele, compreendo a posição do dono de restaurante prestes a falir que se insurge contra um "lockdown". Ele está, "mutatis mutandis", na situação do sujeito que pode salvar desconhecidos cortando o próprio dedo. Fazê-lo é a coisa certa, mas não obrigatória.Bem diferente é o caso do indivíduo que se recusa a usar máscara. O incômodo de fazê-lo é real, mas mínimo.

A analogia cabível é com o campeão de natação devoto de Herodes. É com preocupação, portanto, que leio nos jornais que o Texas, onde ainda ocorrem 7.600 novas infecções e 270 óbitos por dia, revogou a obrigatoriedade das máscaras e que o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em sabotar a vacinação e militar contra "lockdowns", resolveu espalhar "fake news" sobre esses equipamentos de proteção de eficácia comprovada.

Eu não sei se mandaria o nadador para a cadeia. O que esse indivíduo fez merece vívida condenação moral, mas ele em nenhum momento assumiu o compromisso de zelar pelos outros. Já Bolsonaro, quando aceitou a Presidência, se comprometeu com obrigações constitucionais e legais em relação às quais está agora se omitindo. E, pior, nem tem a desculpa de que não quer sujar os sapatos.


Hélio Schwartsman: Judeus ultraortodoxos apostam na proteção de Deus contra o vírus

'Quantos funerais este funeral irá ocasionar?', pergunta-se uma 'haredi'

Deu no New York Times. Em Israel, religiosos ultraortodoxos representam 12,6% da população, mas respondem por 28% das infecções por Covid-19.

Não é difícil entender as razões físicas para o excesso de contágio. Os ultraortodoxos, também conhecidos como "haredim" (tementes), tendem a constituir famílias numerosas, que dividem habitações de poucos cômodos. Desconfiam profundamente de tudo o que venha do Estado, incluindo recomendações sanitárias. Alguns até usam máscaras, mas fazê-lo está longe de ser a regra.

Talvez mais importante, os "haredim" não renunciam à vida comunitária, cujas práticas frequentemente os colocam em aglomerações. Ironia perversa, dão grande valor aos ritos fúnebres, que exigem que cada fiel abra caminho na multidão para tocar o esquife do morto. "Quantos funerais este funeral irá ocasionar?", perguntou-se uma "haredi" chocada com as cenas de empurra-empurra em um enterro.

Menos sondáveis são as razões metafísicas para a despreocupação com a doença. Há lideranças que afirmam que Deus os protegerá do vírus. A essa altura, porém, a maioria dos fiéis já percebeu que isso não é verdade. Ainda assim, perseveram em seu comportamento.

O motivo tampouco é o desprezo para com a ciência. Ao contrário de muitos grupos religiosos tradicionalistas, "haredim" costumam aceitar a ciência e a tecnologia, que usam de domingo a quinta-feira. O ponto inegociável para eles é que quando ciência e fé se chocam, é sempre a fé que prepondera. E a fé, ao contrário da ciência, não precisa demonstrar suas razões.

O que me intriga é que a melhor hipótese científica para explicar o fenômeno da religiosidade é que ela atuaria como uma espécie de cola social, que favoreceria a sobrevivência de indivíduos que pertencem a grupos coesos. A Covid-19 e epidemias em geral, embora não falseiem a tese, mostram que existem situações em que a coesão pode ser letal.


Hélio Schwartsman: Pazuello, o verdadeiro mito

Qual é o general que consegue infligir mais de mil baixas por dia ao longo de mais de um mês sem disparar um único tiro?

A palavra “ironia” vem do grego “eironeía”, com o significado de “dissimulação”, “falsa ignorância”. O termo parece ter origem no teatro. “Eíron” é um personagem-estereótipo recorrente nas comédias gregas que, valendo-se da modéstia e até da autodepreciação, sempre desmascara “alazón”, que faz as vezes do impostor ou do fanfarrão.

Modernamente, a ironia costuma ser definida como o artifício retórico que embaralha os significados reais e aparentes das coisas para provar uma tese, enfatizar um argumento ou apenas para fazer rir.

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Estão pegando pesado com o Eduardo Pazuello, tentando desmerecer suas capacidades logísticas só porque ele deixou faltar oxigênio em Manaus, mandou as vacinas do Amazonas para o Amapá e as do Amapá para o Amazonas e se esqueceu de comprar imunizantes, seringas e agulhas para a campanha de inoculação contra a Covid-19, para a qual outros países se preparam desde o início da pandemia.

Esses críticos se esquecem de que o ministro Pazuello é um general do Exército, e, como qualquer criança sabe, exércitos existem para matar pessoas. Sob essa chave interpretativa, o que parecia fracasso torna-se um retumbante sucesso. Qual, afinal, é o general que consegue infligir mais de mil baixas por dia ao longo de mais de um mês sem disparar um único tiro? Pazuello é que é o verdadeiro mito. O outro é um mero amador.

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“É simples assim. Um manda e o outro obedece”, obtemperou com sabedoria o general após ter sido desautorizado pelo capitão (reformado) no episódio da compra de vacinas do Instituto Butantan.

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Um terceiro personagem arquetípico das comédias gregas é “bomolóchos”, que é mais ou menos o nosso bufão.


Hélio Schwartsman: Na redução de acidentes, Bolsonaro e Doria vão na contramão da lógica

Autoridades têm enormes dificuldades para fazer o óbvio

Sempre brinco que o jeito mais fácil de salvar vidas é baixar um decreto reduzindo a velocidade máxima permitida para veículos. Reportagem da Folha corroborou meu chiste, mostrando que após uma década de reduções, os óbitos em acidentes caíram 44% na cidade de São Paulo. É claro que a diminuição da velocidade não foi a única medida adotada, mas é uma das variáveis-chaves, a julgar pela literatura internacional.

Outras fórmulas eficazes para evitar mortes no atacado, como o saneamento básico, demoram a apresentar resultados e envolvem custos altos, mas, no caso da velocidade, o efeito é imediato e não gera despesa. Considerando as multas, pode até ser lucrativa para o poder público.

Assim, num mundo racional, todo novo prefeito deveria baixar mais a velocidade máxima na cidade, de modo a poder dizer, na campanha para a reeleição, que salvou x vidas no trânsito. Nossa preocupação deveria ser com o risco cumulativo, que nos levaria ao imobilismo.

O que vemos no mundo real, porém, é que autoridades têm enormes dificuldades para fazer o óbvio. Em São Paulo, João Doria, que hoje proclama seguir a ciência, fez campanha à prefeitura (2016) prometendo aumentar a velocidade nas marginais.

Mais recentemente, o presidente Jair Bolsonaro mandou tirar os radares de rodovias federais e bancou um pacote de leis que promove a irresponsabilidade dos motoristas. O que está acontecendo?

Minha hipótese é que, da mesma forma que o público não resiste ao imediatismo econômico, não consegue contrapor-se ao populismo viário. O motivo é matemático. Na esmagadora maioria dos deslocamentos que as pessoas fazem acima da velocidade permitida, nada de grave acontece. É só numa pequena fração deles que ocorre um óbito ou acidente grave. Com isso, o perigo da velocidade passa ao largo de nossas consciências. O conceito de vida estatística poupada tem baixíssimo apelo emocional.


Hélio Schwartsman: As tentações do imediatismo

Abraçado ao centrão, Bolsonaro dá rédeas soltas ao imediatismo econômico

Jair Bolsonaro descobriu o caminho das pedras. Ele até que tentou seguir as bandeiras de sua campanha eleitoral, na qual rejeitou o "establishment" político, notadamente o centrão, e afirmou que governaria com o apoio de frentes parlamentares, em especial o das bancadas BBB (bíblia, boi e bala).

É óbvio que não deu certo. Ironicamente, foi uma derrota sua no Congresso, o generoso auxílio emergencial de R$ 600, que o fez experimentar as delícias do populismo. Com a ajuda de emergência, até grupos demográficos que pareciam bastiões inexpugnáveis do PT passaram a aprovar a gestão do capitão reformado.

Bolsonaro gostou e agora, abraçado ao centrão, dá rédeas soltas ao imediatismo econômico. Acaba de intervir na Petrobras e ameaça fazer o mesmo no setor elétrico, para assegurar preços baixos aos consumidores/eleitores.

O imediatismo é um dos muitos problemas que assombram as democracias. Pela lógica imposta por mandatos de quatro anos, sempre vale a pena para o governante sacrificar o futuro para se dar bem no presente. Como o auxílio emergencial mostrou, é fácil arrancar aplausos distribuindo benesses.

Os termos da equação seriam alterados se os mandatos durassem 20 ou 50 anos. Nesse cenário, responsabilidade fiscal e uma estratégia política baseada em ganhos incrementais mas constantes ganhariam importância eleitoral. Não recomendo, porém, o esticamento dos mandatos. Aí perderíamos uma das principais virtudes da democracia, que é a relativa facilidade com que ela despacha os maus políticos para casa.

O sistema só funciona bem quando o "establishment" se convence da necessidade de preservar o médio e o longo prazos e veta os arroubos populistas mais escandalosos dos dirigentes de turno. Até pareceu que o Brasil havia chegado a esse ponto de amadurecimento institucional nos anos FHC, Lula 1 e a primeira metade de Lula 2, mas, como vimos, era só uma ilusão.