Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: A CPI da Covid será um sucesso?

Se fixarmos o objetivo no impeachment, receio que a resposta seja não

Com o passar dos anos, tornei-me cético em relação a CPIs. Há tempos que eu não vejo uma delas produzindo bons resultados.

Uma das razões para isso é que investigar é uma tarefa técnica, que requer uma expertise só raramente encontrada entre parlamentares. O ambiente escancaradamente público e politicamente carregado do Parlamento tampouco ajuda em apurações, que costumam avançar mais quando conduzidas com discrição e objetividade.

CPI da Covid, porém, é diferente. E é diferente porque a investigação já está pronta. Aliás, dizer "está pronta" é um eufemismo. Tanto o TCU como o MPF já analisaram a atuação do governo na pandemia e produziram documentos pouco abonadores à conduta das autoridades do Executivo. A imprensa também fornece boas peças.

Nos últimos dias, o próprio governo, em mais uma demonstração de inabilidade, deu de mão beijada para a CPI um roteiro com 23 vulnerabilidades a explorar. No que talvez seja inédito, existem até estudos acadêmicos a subsidiar o trabalho dos parlamentares, apontando falhas graves na gestão da epidemia e correlacionando falas negacionistas do presidente a aumentos nos óbitos. O relator da CPI precisará só juntar tudo isso e selecionar as melhores partes.

Isso significa que a CPI da Covid será um sucesso? Depende do que se define como sucesso. Se considerarmos que a meta é apenas gerar um relatório poderoso, a resposta é provavelmente sim. Mas, se formos um pouco mais ambiciosos e fixarmos o objetivo no impeachment, aí eu receio que a resposta seja não.

O que manda é a política. E o mais provável é que as correntes majoritárias no Parlamento prefiram usar a CPI para manter uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de Bolsonaro e arrancar vantagens do governo.

É pena, porque qualquer coisa menos que o impeachment significará que a sociedade acha normal e aceitável ter um presidente que fez tudo o que Bolsonaro fez.


Hélio Schwartsman: Como vão as instituições?

Bolsonaro jamais teve ascendência sobre o Parlamento nem excedeu 40% de aprovação

Li nos jornais da quinta-feira (22) dois bons artigos dizendo mais ou menos o contrário um do outro. Na Folha, Fernando Schüler sustenta que Jair Bolsonaro foi enquadrado pelo sistema político (um pedacinho das famosas instituições) e se encontra agora em modo sobrevivência, sem constituir ameaça maior ao regime democrático.

Em O Estado de S. Paulo, Eugênio Bucci afirma não estar tão seguro de que o presidente não tentará um golpe, mas, mesmo que não promova nenhuma ruptura formal, ele, comendo pelas beiradas, já provocou tamanha deterioração em tantas instituições e esferas do Estado que a democracia brasileira está hoje bem pior do que no passado.

Por paradoxal que pareça, acho que os dois têm razão. Bolsonaro se vê politicamente enfraquecido, com pouca chance de desferir com êxito um golpe, mas já causou um estrago tão grande em tantas áreas que, se tudo der certo, levaremos anos para nos recuperar.

Mas por que Bolsonaro não deu um golpe, seja no estilo clássico, tão ao gosto dos militares, seja à moda húngara, desfigurando as instituições de controle até que elas percam a função original? Não foi por falta de pendor autoritário. Isso ele tem de sobra. O que não teve foi apoio político para aventuras mais ousadas.

Com efeito, a maioria dos autocratas modernos, como Viktor Orbán, Vladimir Putin, Recep Erdogan, chegou a essa condição porque soube aproveitar momentos de alta popularidade, em geral proporcionados por bonanças econômicas, para aprovar leis que lhes permitiram consolidar o poder.

Bolsonaro nunca chegou nem perto dessa situação. O presidente jamais teve ascendência sobre o Parlamento (agora é refém dele) nem excedeu os 40% de aprovação popular. Não há milagre econômico à vista para redimi-lo. Com seu arsenal, Bolsonaro consegue baixar decretos, segurar verbas, mover pessoal.

Dá para fazer um estrago formidável, mas não para redesenhar o Estado.


Hélio Schwartsman: Guerras vacinais

Qual vacina você tomaria se pudesse escolher?

Se você, leitor, pudesse escolher, qual vacina tomaria? Penso que muitos optariam pela da Pfizer. Ela, afinal, apresenta uma das taxas mais altas de eficácia em estudos de fase 3 publicados, não foi associada a efeitos colaterais graves, ainda que muito raros, e está mostrando que funciona bem na vida real, como se vê em Israel.

A questão, porém, é mais complexa. Ao que tudo indica, o Sars-CoV-2 veio para ficar. É provável que tenhamos de colocar a vacina anti-Covid no calendário anual de imunizações, e aí as vantagens da Pfizer talvez não se sustentem.

Hoje, diante dos custos econômicos de lockdowns, mesmo a mais cara das vacinas é uma pechincha. Mas, se precisarmos de reforços anuais, o preço será uma variável importante, e o da Pfizer está entre os mais elevados --US$ 20 a dose, contra US$ 4 da vacina Oxford. A logística também é mais complicada, já que o biofármaco da Pfizer precisa ser mantido à temperatura de -70°C.

Quem desponta como candidata forte a prevalecer no mercado de mais longo prazo é justamente a vacina da Oxford, a mais barata entre os principais imunizantes, que se conserva em geladeiras comuns e que também vem se mostrando efetiva nos experimentos de mundo real.

A disputa por mercado, assim como interesses geopolíticos ou simplesmente eleitoreiros, são fatores que não devem ser ignorados quando analisamos os noticiários sobre as vacinas. Não acho que, nas esferas "mainstream", ninguém esteja inventando notícias falsas contra este ou aquele imunizante, mas o peso que cada país dá a elas e as medidas que toma têm muito a ver com esses elementos não farmacológicos.

É nesse contexto que devemos entender a guerra que países da União Europeia deflagraram contra a vacina Oxford ou que Bolsonaro travou contra a Coronavac. Para nós, cidadãos comuns, qualquer vacina que evite que morramos ou desenvolvamos quadros graves deve ser celebrada.


Hélio Schwartsman: O distritão como ameaça

Se fosse desenhar nossas instituições, proporia algo bem diferente do que temos

Como tem ocorrido nos últimos ciclos eleitorais, a Câmara ameaça aprovar uma reforma que inclua o distritão, um sistema de cômputo de votos em que todos os candidatos a deputado por um estado, inclusive os de uma mesma legenda, concorrem diretamente uns com os outros, debilitando ainda mais os partidos políticos, que já são fracos no Brasil.

É pouco provável que a iniciativa prospere. Mas, numa estratégia semelhante à do ministro que gosta de fazer passar a boiada, parlamentares acabam trocando a desistência do distritão pela aprovação de alguma outra medida de menor alcance que os beneficie. Todo mundo fica feliz. A massa crítica de eleitores e os políticos responsáveis porque evitaram o pior, e deputados que prosperam na balbúrdia partidária porque conseguiram arrancar uma vantagem.

Se eu fosse desenhar do nada as instituições políticas brasileiras, proporia algo bem diferente do que temos. Eu adotaria o parlamentarismo num sistema unicameral em que os representantes são escolhidos por voto distrital ou distrital misto.

A questão é que não estamos criando algo do nada. Ao contrário, estamos num país concreto com eleitores concretos, que, consultados, já disseram não ao parlamentarismo duas vezes nos últimos 60 anos. Mudanças enfiadas goela abaixo do cidadão, por mais bem desenhadas que sejam, tendem a não funcionar.

Nenhum sistema é perfeito, e todos podem ser aprimorados com mudanças incrementais. No Brasil, introduzimos timidamente duas delas na última reforma: o fim das coligações em eleições proporcionais e um arremedo de cláusula de barreira. Se dermos tempo para que produzam seus efeitos, o que já começou a ocorrer, em mais alguns ciclos observaremos a redução do número de partidos políticos, o que deve favorecer a formação de coalizões estáveis de governo. Meu receio é que seja justamente uma dessas medidas que deputados planejem reverter.


Hélio Schwartsman: Não chega a ser um dilema

Lula não foi julgado por um juiz equidistante das partes

Se não houver surpresas, deveremos ter no próximo pleito presidencial um embate entre Luiz Inácio Lula da Silva, que acaba de ser liberado pelo STF para concorrer, e o presidente Jair Bolsonaro.

Não é o meu cenário de sonhos. E não digo isso porque considere Lula um perigoso radical. Ele já esteve no poder e fez um governo bem "neoliberal", marcado por generosos superávits primários. Também soube respeitar o sistema democrático, embora tenha tido condições políticas de torcê-lo para beneficiar-se. Ele poderia, por exemplo, ter conseguido que o Congresso aprovasse uma PEC retirando os limites à reeleição. Não o fez, e isso é digno de crédito.

Duas coisas me incomodam na candidatura Lula. A primeira é que o PT, em tese o partido moderno de centro-esquerda do Brasil, já deveria ter superado a fase das lideranças personalistas que mandam e desmandam na legenda.

A segunda é a questão da ética. Lula não foi julgado por um juiz equidistante das partes, e isso justifica a anulação de suas condenações. Mas, pelo menos para meu tribunal ético interno, ele precisaria explicar melhor as histórias do apartamento no Guarujá e do sítio em Atibaia, além do fato de manter relações promíscuas com empreiteiros confessadamente corruptos. Pela régua moral do jovem PT, isso bastaria para a sua expulsão do partido.

O caso de Bolsonaro é mais cristalino. Ele é radical (de extrema direita) e não tem nenhum apreço pela democracia. Tem feito um governo desastroso em todos os aspectos, a começar da gestão da pandemia. Se nossas instituições fossem só um pouquinho melhores, ele já teria sofrido impeachment e estaria respondendo por crimes comuns. Mas, como estamos no Brasil do centrão e do eleitor complacente, ele deve chegar ao fim do mandato, talvez até como candidato competitivo à reeleição.

Não sei quanto a você, leitor, mas, entre o "corrupto" e o "assassino", a escolha não me parece difícil.


Hélio Schwartsman: Vale gravar o presidente?

Penso que Kajuru podia, sim, ter gravado Bolsonaro

"A que ponto chegamos no Brasil aqui. [Fui] Gravado". Foi assim que o presidente da República, Jair Bolsonaro, expressou contrariedade por ter um diálogo seu com o senador Jorge Kajuru divulgado para o público. A indignação se justifica?

Do ponto de vista legal, a questão é complexa. De modo geral, admite-se que uma pessoa grave conversação de que seja parte, especialmente se o objetivo for defender-se de alguma coisa. Mas vale lembrar que a lei só vai até certo ponto. Ela pode regular enquadramentos penais e a licitude de provas, mas não os efeitos políticos de uma gravação com conteúdos picantes.

Basta lembrar que tanto o diálogo entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva em que a então presidente dizia estar enviando o Bessias como as conversas entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da Lava Jato constituem provas ilícitas, mas isso não as impediu de desencadear terremotos políticos que também tiveram consequências jurídicas.

O melhor modo de analisar a questão, portanto, não é o legal, mas o ético. É correto gravar conversa própria sem avisar os outros participantes de que tudo está sendo registrado? Fazê-lo é por certo deselegante. Pode ser também uma violação ética, mas isso depende do contexto.

Se você grava sem avisar uma conversa íntima com seu melhor amigo e a divulga, fracassou nos deveres da amizade. Mas, se faz o registro de uma autoridade pública tentando extorqui-lo e a denuncia, cumpriu uma obrigação cívica. A ética tem menos a ver com o ato de gravar do que com as circunstâncias e personagens envolvidas.

Kajuru podia gravar Bolsonaro? Penso que sim, e não apenas porque a palavra do presidente não pode ser levada muito a sério —o que torna toda gravação um ato de defesa. Altos cargos públicos vêm com alguns ônus. Um deles é o de não dizer nada que cause uma crise política. Quem viola esse princípio o faz por conta e risco.


Hélio Schwartsman: O paradoxo de Bolsonaro

Quanto mais crimes de responsabilidade o presidente comete, mais nos acostumamos com a situação

Atribui-se a Eubulides de Mileto o paradoxo do monte (“sorítes”). Um grão de areia obviamente não constitui um monte. Se eu adicionar um segundo grão ao primeiro, ainda não tenho um monte. Nem com um terceiro. Mas, se eu continuar com esse processo, em algum momento eu chegarei lá. De quantos grãos eu preciso para fazer um monte?O diálogo entre Jair Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru pode sem grandes pinotes interpretativos ser enquadrado como mais um crime de responsabilidade, ou até dois, se valorizarmos a linguagem chula.
Pelas contas da Folha, em janeiro já havia 23 situações que poderiam ser classificadas como crimes de responsabilidade do presidente. Nos últimos três meses, Bolsonaro adicionou novos itens à lista. Quantos delitos mais ele precisa cometer para que tenhamos um monte de ilícitos e o Congresso decida pará-lo?

Filósofos, matemáticos e linguistas estão há 2.500 anos propondo soluções engenhosas para paradoxos como os de Eubulides, que fazem recurso à indeterminação ou à vagueza dos termos. Numa delas, a filósofa Diana Raffman traz a noção de histerese e sustenta que os limites em que os termos serão usados são elásticos e se relacionam com a história dos objetos.

Assim, se um objeto já era reconhecido por todos como um “monte de areia”, poderá continuar a ser chamado de monte mesmo que perca uma quantidade de grãos que, fosse outro o objeto, levaria a um rebaixamento de monte para pilha.

Vincular a categoria à história, porém, pode ser diabólico quando lidamos com questões institucionais. É mais ou menos o que estamos presenciando. Quanto mais crimes de responsabilidade Bolsonaro comete, mais nos acostumamos com a situação e mais difícil fica estabelecer que ele já excedeu o limite que exige uma ação. Em suma, quanto mais ele viola a lei, menor a possibilidade de que venha a ser punido —o que nos leva a uma outra família de paradoxos.


Hélio Schwartsman: O ocaso das CPIs

Elas se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado

Parece-me corretíssima a liminar exarada por Luís Roberto Barroso, do STF, que determina a abertura da CPI da Covid-19 no Senado.

Os três requisitos legais para a instalação estão dados: assinatura de 1/3 dos senadores, existência de fato determinado a investigar e prazo de vigência. No mais, a decisão de Barroso está de acordo com a jurisprudência do Supremo, que já mandou abrir outras comissões no passado.

Comissões parlamentares de inquérito, vale lembrar, são um dos instrumentos à disposição das minorias para exercer a função de fiscalização de governos —uma das principais missões das oposições—, daí que nem a Constituição nem os regimentos admitem que seu funcionamento seja obstado pela vontade da maioria e muito menos pela do presidente da Casa.

CPI da Covid-19 é, portanto, muito bem-vinda. Não vejo, porém, como deixar de observar que as CPIs de hoje se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado.

Com efeito, nos anos 90, elas nos permitiram acompanhar com lupa grandes escândalos, como no caso da CPI do Orçamento. Mesmo quando tratavam de temas menos explosivos, não raro saíam com recomendações úteis para aperfeiçoamentos legais.

Ocorre, porém, que a política, como tudo na vida, está sujeita às agruras da evolução. Percebendo o potencial de danos das CPIs, as maiorias passaram a trabalhar para contê-los. Um dos muitos caminhos para fazê-lo era ampliar o escopo da investigação e, para cada convocado com potencial de incomodar o governo, convocavam um que poderia criar embaraços à oposição. Com isso, entramos numa dinâmica semelhante à da corrida armamentista entre predadores e presas, o que acabou tirando muito da efetividade das CPIs.

Não diria que elas se tornaram inúteis. Os chiliques de Bolsonaro contra Barroso dão mostra de que ainda assustam. Mas eu não esperaria nada parecido com a CPI do PC Farias que derrubou Collor.


Hélio Schwartsman: Eles não sabem o que fazem

Kassio e milhões agem como se a epidemia fosse uma fatalidade imposta por Deus

liminar do ministro Kassio Nunes Marques, do STF, que liberava a presença do público em cerimônias religiosas é um contrassenso, sintomático de quem ainda não entendeu bem o que está acontecendo no país.

O raciocínio marquiano parte de um elemento de verdade. Os decretos anti-Covid-19 de governadores e prefeitos limitam a liberdade religiosa. Mas não só. Também limitam a liberdade de ir e vir, de reunir-se pacificamente etc. E é o que se espera que façam. Os decretos, afinal, estão baseados numa lei de emergência sanitária, que tem o propósito explícito de limitar temporariamente direitos para conter a epidemia.

Rezar é, de todas as atividades humanas, a mais facilmente adaptável para o “home office” —se Deus existe e é onipresente, como quer a tradição, ouve preces de qualquer lugar que sejam feitas. Diante de uma entidade assim tão poderosa, o papel que resta às igrejas é muito menos o de estabelecer a comunicação com o divino do que o de favorecer uma vida comunitária significativa para os fiéis.

Assim, os religiosos só teriam motivo para queixa se os templos estivessem recebendo das autoridades terrenas um tratamento menos favorável que o dispensado a outros negócios que promovem contatos sociais positivos, como clubes e grêmios recreativos. Não sendo esse o caso, a liminar só cria uma exceção injustificável para templos.

Nunes Marques, porém, não está sozinho. Ele e milhões de brasileiros continuam agindo como se a epidemia fosse uma fatalidade imposta por Deus e não a expressão matemática de interações sociais desprotegidas entre portadores do Sars-CoV-2 e suscetíveis. Como ainda permaneceremos meses sem vacinas nas quantidades necessárias, o único jeito de reduzir o contágio é reduzir essas interações.

Enquanto os brasileiros, em especial autoridades como Marques, não entenderem isso, continuaremos colecionando milhares de mortos por dia.


Hélio Schwartsman: Paradoxos da Covid-19

Contra a pandemia, tudo importa um pouco, mas nada explica tudo

Assim como o câmbio existe para humilhar economistas, a Covid-19 existe para humilhar epidemiologistas. Estou sendo injusto, pelo menos com os epidemiologistas. O chiste, porém, ajuda a mostrar que ninguém ainda entendeu direito essa moléstia. É claro que há aspectos básicos que estão bem estabelecidos, mas há algumas diferenças de desempenho entre países que desafiam as explicações.

Dinheiro? Temos nações muito ricas que foram extremamente mal, e outras quase miseráveis que foram muito bem, como é o caso, respectivamente, de EUA e Vietnã. Recursos são um fator relevante, mas não dão conta de explicar o todo.Governança? É importantíssima. Ilustram-no EUA e Brasil sob Trump e Bolsonaro. Mas também temos a Alemanha, que, dirigida pela competente Angela Merkel, foi bem na primeira onda, mas mal na segunda.
Testar e isolar? Outro par fundamental. Testar, testar e testar é o que tornou a Coreia do Sul um caso de sucesso. Lockdowns também funcionam. Portugal, que viveu semanas de pesadelo, conseguiu dobrar a curva de contágios com um lockdown bem feito. Algo parecido vale para Araraquara. Mas, na coluna dos contraexemplos, temos o Japão, que testou pouco, isolou pouco e vem passando pela crise com poucas mortes. Mistério extra, o Japão tem uma das populações mais idosas do mundo, o que deveria ter agravado a situação.

Geografia? Todos esperavam um desastre na África subsaariana, a parte do globo que sofre mais em quase todas as epidemias, mas a região se saiu relativamente bem, com exceção da África do Sul, para não desmentir a regra de que tudo tem exceções.

Um fator frequentemente negligenciado é o acaso. Sim, ele é relevante e se materializa em coisas como eventos de superinfecção, que são basicamente o sujeito errado, na hora errada, cercado pelas pessoas erradas.

A conclusão que me parece possível é que tudo importa um pouco, mas nada explica tudo.


Hélio Schwartsman: Se o vírus tivesse me ouvido...

O corona, porém, não atendeu a meus apelos

Em julho, quando o presidente anunciou que tinha contraído a Covid-19, escrevi a coluna "Por que torço para que Bolsonaro morra". Ganhei uma enxurrada de emails irados e um inquérito com base na LSN. Riscos da profissão.

A título de experimento mental, convido o leitor a adentrar no fantástico mundo dos contrafactuais e imaginar o que teria acontecido caso o vírus tivesse atendido a meu desejo.

Em princípio, nada muito animador. Bolsonaro teria sido substituído pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que tem ideias parecidas com as do titular e também nutre crenças exóticas (cloroquina) em relação à Covid-19. Mas Mourão, admita-se, vem com uma demão de verniz civilizacional e parece mais disposto a seguir conselhos de especialistas.

De todo modo, as inclinações naturais do general nem são tão relevantes. Ao assumir a vaga de alguém que morrera de Covid-19, Mourão não teria alternativa que não a de declarar guerra ao vírus. Àquela altura, vale destacar, teria sido possível comprar antecipadamente grandes quantidades de vacinas, que talvez tivessem evitado as consequências mais catastróficas desta segunda onda que enfrentamos.

A própria população teria ficado assustada com a morte precoce do presidente e, presume-se, não resistiria a medidas de distanciamento social nos momentos em que elas se mostrassem necessárias.

Em 7 de julho de 2020, o Brasil contabilizava 1.658.589 casos confirmados da doença e 66.741 mortes. Hoje, esses números são 11.998.233 e 294.042 e aumentam rapidamente. Não dá para precisar quantos óbitos teriam sido evitados se Bolsonaro tivesse sucumbido à moléstia, mas não teriam sido poucos.

O vírus, porém, não atendeu a meus apelos. Para quem gosta de ciência e flerta com a teoria dos muitos mundos, resta o consolo de que existe um universo onde o Sars-CoV-2 levou Bolsonaro e, depois disso, o Brasil se tornou um exemplo no combate à epidemia.


Hélio Schwartsman: A tragédia poderia ter sido evitada

Sem citar Bolsonaro ou Covid, André Nemésio dispara um asteroide contra a política sanitária do atual governo

ficção científica tem uma legião de fãs dedicados. Não estou entre eles. Embora leia de tudo, eventualmente até ficção científica (e quase sempre com prazer), não sei de cor todos os títulos de Asimov, Bradbury e Clarke —e nem acho que tenha assistido a todos os episódios de “Jornada nas Estrelas”.

É estranho que a ficção científica não goze de grande prestígio literário, já que o gênero convida os autores a trabalhar com ideias em estado puro. Ela não é limitada pela ditadura da realidade nem pelos acidentes da geografia espacial e do estado tecnológico em que calhamos de viver.

No fundo, a única restrição que a ficção científica impõe é a de não violar sistematicamente as leis da física, as quais deixam enorme latitude para a imaginação. É um gênero perfeito para a crítica social, pois permite apontar problemas desvinculando-os de paixões presentes.

Faço essas considerações a propósito de “Crônicas do Cretáceo”, livro de estreia de André Nemésio, biólogo com o qual troco e-mails já há vários anos. A história gira em torno do asteroide que caiu sobre o que é hoje a península de Yucatán, 66 milhões de anos atrás, provocando uma extinção em massa. A tragédia poderia ter sido evitada. Não avanço mais para não cometer um “spoiler” sideral.

Impressionou-me a quantidade de discussões científicas fascinantes que André conseguiu reunir num enredo que prende a atenção. Quão comum é a vida no Universo? E a vida inteligente? Dinossauros poderiam ter criado uma civilização? Ainda entram debates sobre epistemologia, feminismo e, principalmente, sobre os riscos de ignorar a ciência. Sem nem mencionar Bolsonaro ou Covid-19, André dispara um asteroide inteiro contra a mortífera política sanitária do atual governo.

Detalhe revelador do rigor científico com que o autor trata os temas abordados, “Crônicas...” é um livro de ficção com notas de rodapé e bibliografia.