hamilton mourão

Janio de Freitas: Firmeza de Mourão não é a de opinião pessoal

Entrada repentina do vice nos temas da vacina e do 5G indica a voz que fala mais grosso

O firme pronunciamento do vice Hamilton Mourão, contraposto a afirmações incisivas de Bolsonaro, suscita duas interpretações, mas é provável que as duas sejam uma só, com duas roupagens. E, como preliminar, note-se que o dito pelo vice tem mais do que o sentido de confronto, estendendo-se a importante inversão nas relações externas.

Bolsonaro vetou a compra, em qualquer tempo, de vacina chinesa contra a Covid-19: “Não vai haver compra, ponto final”. Antes, usou do mesmo tom definitivo a propósito do sistema 5G, que revolucionará as possibilidades de comunicações. Atrasados na criação do seu sistema, os Estados Unidos de Trump não admitem que o Brasil adote o sistema chinês, o qual, além da vantagem em tempo, evitaria custosas mudanças nos equipamentos de telecomunicações usados aqui, com muitos componentes chineses.

No seu estilo sucinto e de uso das entrelinhas, Mourão antecipa-se a novidades prenunciadas na campanha eleitoral americana. Joe Biden já indicou mais de uma vez que, se eleito, esvaziará a tutela imposta pelos Estados Unidos na América Latina. Com isso, aos países e só a eles caberia a escolha de suas relações comerciais e políticas. Não é o desejado por Bolsonaro, servil a Trump: “Quem vai escolher sou eu. Sem palpite por aí”.

O general-vice, porém, é claro: desde que asseguradas “soberania, privacidade e economia”, qualquer produtor de sistema 5G estará apto a disputar a adoção brasileira. O que, é claro, incluirá o sistema chinês indesejado por Bolsonaro.

A firmeza de Mourão não é a de opinião pessoal. Também não é a do vice de um governo que tem posição pública oposta.

Na competição política com João Doria em torno da vacina Sinovac, chinesa, a irracionalidade natural de Bolsonaro está perdendo. Mourão tanto parece dar-lhe um socorro, como parece aplicar-lhe um safanão excludente: “É lógico que o Brasil vai comprar o imunizante. O governo não vai fugir disso aí”, dos 46 milhões de doses previstos de início.

O passado guarda vários casos de divergência embaraçosa entre Bolsonaro e Mourão. As diferenças na comparação com as atuais começam no ambiente. O que lá atrás eram previsões, hoje é o notório desgaste do Exército, com os papéis deploráveis de vários do seus generais instalados no governo.

São exibições ora de arrogância e desatino, ora de ignorância e servilismo, diversas vezes de pusilanimidade sob ofensa e desmoralização. Isso tudo como personagens de um governo imbecilizado, destruidor, ridículo no fanatismo, negocista com o patrimônio nacional, sem projeto e sem rumo, antissocial e mortífero.

A interpretação de que Hamilton Mourão veio fortalecer as críticas dos generais Santos Cruz, mais diretas, e Rêgo Barros é cabível. Até óbvia. Mas a entrada repentina de Mourão em dois temas de grande relevância atual, em ambos levando Bolsonaro à beira do abismo, não é voz de decepções, arrependimento ou ressentimento. É voz mais grossa.

De modo diferente do planejado sob indução e orientação do general Eduardo Villas Bôas —quando, apesar de quase invalidado por doença neuromuscular, comandava o Exército porque visto como democrata—, estamos vendo os passos iniciais de um governo mais sob decisões e comando de militares do Exército do que de Bolsonaro e seu grupo.

O títere do plano, o presidente-laranja, fracassa. Se deterá os passos adversários, logo se verá. Enquanto isso, é justo reconhecer que o tropeção dessa aventura antidemocrática se deve tanto a Bolsonaro quanto aos generais ineptos que o circundam.

DOIS COADJUVANTES

A reunião de Bolsonaro com advogados de seu filho Flávio, no crime das “rachadinhas”, contou com duas presenças inadmissíveis: Augusto Heleno Pereira e Alexandre Ramagem. O general do Gabinete de Segurança Institucional e o delegado da Polícia Federal que dirige a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Dois cargos que proporcionam meios múltiplos de interferências em investigações policiais, em conduta de envolvidos e em ação do Ministério Público.

O procurador Lucas Furtado, frequente condutor de questões importantes no Tribunal de Contas da União, pediu que o tribunal investigue o uso de meios governamentais para favorecer o complicado Flávio Bolsonaro. Mas são necessárias providências também em outros âmbitos.

Bolsonaro não chamou assistentes jurídicos. Logo, Augusto Heleno e Ramagem estiveram na reunião em razão dos seus cargos, usando-os em ato contra a comprovação de crimes graves como o de corrupção para apropriação de dinheiro público.


Ricardo Noblat: Mourão, o vice-presidente, desafia o dono da caneta Bic

Bolsonaro reconcilia-se com o presidente brigão que sempre foi

Beleza! À falta de com quem mais brigar, o presidente Jair Bolsonaro, que não consegue que seus ministros parem de brigar, decidiu enfrentar o general Hamilton Mourão, o vice-presidente e seu substituto imediato. É verdade que Mourão fez por onde.

Bolsonaro disse e não se cansa de repetir que o governo federal não comprará a vacina chinesa para não dar gosto ao governador de São Paulo João Doria (PSDB), seu patrocinador. Sabe-se que isso não passa de marola, mas não vem ao caso.

Em entrevista à VEJA, Mourão disse o contrário: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai. Já colocamos os recursos no Butantan para produzir a vacina. O governo não vai fugir disso aí”. Foi o que bastou. “A caneta Bic é minha”, respondeu Bolsonaro.

Mourão passou a falar para dentro da caserna, mas também para fora, desde que concluiu que não tem futuro como candidato na chapa de Bolsonaro à reeleição. Sonha com uma cadeira no Senado, como admitiu à VEJA. Talvez pelo Rio Grande do Sul.

Os militares cavalgaram a candidatura de Bolsonaro a presidente só para barrar as chances de o PT ganhar a eleição de 2018. Em 2022, se o PT não tiver chance, poderão abandonar Bolsonaro e cavalgar outro nome. Os generais andam irritados com o capitão.

A derrota bate à porta de Russomanno e de Crivella

Os candidatos de Bolsonaro

A história ensina que a duas semanas do dia da eleição, é mais fácil que cresça um candidato atrás nas pesquisas de intenção de voto do que se recupere outro que só tem feito cair. Este é o drama que enfrentam Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio, ambos candidatos do partido Republicanos a prefeito.

A situação de Crivella é pior. 55% dos eleitores entrevistados pelo Ibope esta semana disseram que não votarão nele de jeito nenhum. Crivella aparece empatado com a Delegada Martha Rocha (PDT) que subiu de oito pontos percentuais para 14. Crivella oscilou dois pontos percentuais para cima, dentro da margem de erro.

Em São Paulo, enquanto Bruno Covas (PSDB), candidato à reeleição, cresceu quatro pontos e alcançou 26% nas intenções de voto, Russomanno perdeu cinco pontos e está com 20%. Poderá ser ultrapassado por Guilherme Boulos (PSOL) que saltou de 10% para 13%, ou até por Márcio França que passou de 7% para 11%.

Covas torce para enfrentar Boulos. No Rio, o líder da pesquisa, o Eduardo Paes (DEM), torce para que Crivella reaja. O perigo para Paes seria Martha Rocha. Em apuros, Crivella e Russomano gravaram um vídeo de propaganda com Bolsonaro onde o presidente pede que seus seguidores votem neles.

A rejeição a Bolsonaro é maior em São Paulo do que no Rio. Mas o apoio de Bolsonaro a Russomanno é mais sincero do que o apoio a Crivella. Em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro disse sobre Crivella: “E terminando agora, um nome que dá polêmica, né. Porque o Rio de Janeiro sempre é polêmico.”

E em seguida: “Eu tô aqui com o Crivella, tá certo. Conheço ele há muito tempo. Foi deputado federal comigo.” A respeito de Paes, sem citar seu nome, afirmou: “Eu não quero tecer críticas, é um bom administrador. Mas eu fico aqui com o Crivella”. De fato ficou, não sem antes advertir:

– Se não quiser votar nele, fique tranquilo. Não vamos brigar entre nós por causa disso aí porque eu respeito os seus candidatos também.

Crivella está frito. Russomanno ainda alimenta alguma esperança.


Merval Pereira: Incontrolável?

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, tem um espaço maior que seus colegas de farda para lidar com a política com mais liberdade, pois foi eleito pelo voto direto e é indemissível pelo presidente Bolsonaro. Por se posicionar com independência, já foi visto como uma alternativa mais liberal ao presidente, que avisou: “O Mourão é mais tosco do que eu”.

Colocado na vice-presidência da chapa para, segundo o filho 03 Flavio Bolsonaro, tirar qualquer veleidade de derrubar seu pai, Mourão assumiu o Conselho da Amazônia para tentar dar uma organizada no combate às queimadas e ao desmatamento.

O ministro do Meio-Ambiente não é dos mais chegados a Mourão, que o convidou por último para participar da viagem à Amazônia com representantes estrangeiros. Algo indica que Mourão preferia que não fosse.

Por tudo isso, a afirmação dele de que o Brasil comprará, sim, a vacina chinesa, desde que ela seja aprovada pela Anvisa, entrando em confronto com as afirmações de Bolsonaro, que disse que, por sua origem, a vacina chinesa não tinha credibilidade, mostra que há limites para a aceitação das idiossincrasias do presidente.

Também outros ministros militares continuam incomodados com a atuação do presidente Bolsonaro na mediação de desavenças políticas entre seus assessores. “O Jair é fraco de liderança”, comenta um desses ministros, reclamando da aceitação, por parte do presidente, dos militantes digitais, que levam para as redes sociais as baixarias, intrigas e disputas, apoiando os ministros da ala ideológica.

Mourão, embora tenha dito que não é de seu feitio o desabafo feito pelo General Rego Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro, elogiou o colega de farda, e disse entender “sua mágoa”. Ao afirmar que “política é política e Forças Armadas são Forças Armadas”, o vice-presidente parece querer traçar uma linha que separa as duas, e pode acabar assumindo o protagonismo, por atos e falas, na defesa da ala militar, que está se aproximando de uma fase reativa em relação aos políticos que assumiram a liderança do governo.

Não caiu bem entre eles a revelação, pela mesma revista Veja, das intrigas e brigas palacianas que continuam nos bastidores da ala ideológica contra militares, principalmente o general Luiz Eduardo Ramos, o ministro encarregado da articulação politica do governo e que continua sendo atacado por integrantes da ala ideológica.

A desculpa meia boca do ministro Ricardo Salles não acertou as coisas, as brigas de bastidores continuam, e nas redes sociais, os grupos ideológicos são violentos e incontroláveis. Certa ocasião, ainda na campanha presidencial de 2018, conversei com o então Comandante do Exército Vilas Boas, na presença de outros militares. Perguntei por que não controlavam o candidato Bolsonaro, que espalhava agressões para todos os lados na campanha. O General Vilas Boas respondeu: “Ele é incontrolável”.

A aceitação desse tipo de comportamento devia-se à vontade dos militares de impedir a eleição de Lula. A ida para o governo de vários militares que conheciam Bolsonaro há muitos anos, alguns deles, como Luiz Eduardo Ramos, acostumados a terem que controlar o capitão Bolsonaro expulso do Exército, mas que continuava atuando como líder sindical dos militares nas portas dos quartéis, tinha a intenção de ajudá-lo a governar.

Um fato curioso foi o que aconteceu na Academia das Agulhas Negras, quando Bolsonaro, atrás de votos dos militares, postou-se à porta da instituição panfletando para parentes e amigos dos formandos. A cerimônia não podia começar com aquela panfletagem por onde entraria o presidente da República, Itamar Franco.

Quem foi negociar com o capitão Bolsonaro foi o então Major Luiz Eduardo Ramos, e o máximo que conseguiu foi que o candidato fosse panfletar longe do portão principal. Hoje, quem manda é Bolsonaro, que se utiliza da hierarquia militar para enquadrar seus generais, e os submete à atuação das milícias digitais. Ou a suas idiossincrasias, como fez com o General da Ativa Eduardo Pazzuelo, ministro da Saúde, que teve que engolir calado o presidente desmenti-lo publicamente, afirmando que não compraria a vacina chinesa. Hoje, Mourão garante que o país comprará, sim, a vacina chinesa.


Ricardo Noblat: Como cobra, o general troca de pele para melhor servir ao capitão

Mourão quer ser vice outra vez. Pegou gosto

Procura-se alguém do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que prioriza a divulgação de dados negativos sobre as queimadas que devastam a Amazônia e o Pantanal. Só nos últimos 14 dias, o número de focos de incêndios na Amazônia superou o total de focos registrados nos 30 dias de setembro do ano passado.

Que alguém é esse que tanto se procura? Vice-presidente da República e comandante do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão não faz ideia de quem seja. Ou se faz não quer dizer. Foi ele que falou do alguém que prioriza a divulgação de dados negativos. Mas não apresentou provas de que ele exista.

O provável é que o general tenha posto a circular mais uma teoria conspiratória tão ao gosto do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos. Porque não é preciso que nenhum alguém divulgue dados negativos ou positivos sobre o meio ambiente. Os dados do instituto, com base em imagens de satélites, estão na internet.

Na semana passada, Mourão confessou que está em campanha para continuar vice de Bolsonaro caso ele se reeleja. Mourão troca de pele como as cobras. Na campanha de 2018, comportou-se como o general linha dura que foi. Eleito, pôs a máscara de liberal e passou a fazer contraponto a Bolsonaro. Carlos não gostou.

Então, aos poucos, Mourão foi mudando de postura. Trocou a máscara de liberal pela de tradutor condescendente de Bolsonaro, atenuando suas declarações mais explosivas. E, agora, vestiu a máscara de aliado incondicional do seu chefe e ex-companheiro de armas. Ambos já foram punidos quando serviram ao Exército.

O capitão acompanha a metamorfose do general. Por enquanto, ela o satisfaz.


Míriam Leitão: Caminho certo no chão da Amazônia

A terra e o ouro subiram de preço. Isso é um poderoso incentivo econômico à grilagem e ao garimpo na Amazônia. O Brasil tem vantagens competitivas no agronegócio, setor que está ligado, como nenhum outro, às cadeias internacionais, mas o desmatamento leva os grandes fundos de investimento e os consumidores externos a fazerem exigência ao país. Querem ter certeza de que o nosso produto está livre do crime de destruir a maior floresta tropical do planeta. No chão da Amazônia vicejam produtos preciosos, açaí, cacau, castanha, mas não há cadeias produtivas que sustentem a geração de riqueza para quem mora lá.

Esse é o quadro no qual três bancos privados, competidores —mas não adversários, como se definem —decidem se unir. Se vão contribuir para mudar essa realidade, o tempo dirá. O que eles querem? Estimular as cadeias locais de produtos da floresta com a ambição de que haja escala, ter incentivos econômicos à preservação, buscar informação sobre as grandes cadeias produtivas para quebrar a ligação entre o legal e o ilegal. Saber para quem estão emprestando.

Na sexta-feira, durante uma hora e meia, entrevistei os presidentes do Bradesco, Octávio de Lazari, do Itaú-Unibanco, Cândido Bracher, do Santander, Sergio Rial. A ideia era saber como passarão dos bons propósitos que anunciaram recentemente para a prática. Eles fizeram afirmações interessantes, que o jornal de ontem trouxe no texto de Glauce Cavalcanti e Carolina Nalin. O que me impressionou positivamente é que admitem, logo de início, que estão num processo de aprendizagem. Amazônia é um assunto denso como a floresta, que se abre em muitas vertentes como os igapós, e diante de sua dimensão o risco maior é se perder. A Amazônia pede de nós humildade.

O que de fato os bancos vão fazer? Um grande problema é o da produção de carne. Tempos atrás, a moratória da soja uniu produtores, ONGs, órgãos de controle, grandes consumidores. O pacto que fizeram obrigou as tradings a só comprarem de quem comprovasse que não desmatou. A ideia é repetir isso numa mesa da pecuária.

— Estamos no epicentro de todas as cadeias, da fazenda ao garfo. E a agroindústria está ligada globalmente. É essencial sabermos se continuaremos nessa cadeia de produção. A Amazônia está no centro da capacidade competitiva do Brasil a longo prazo — explicou Sergio Rial.

Octávio de Lazari disse que há uma mudança de comportamento no consumidor que definirá que empresas vão prosperar no século XXI.

— O consumidor brasileiro das novas gerações está se tornando cada vez mais atento. Aquela empresa que não for responsável, ecológica e inclusiva, ou não respeitar a diversidade, vai ficar pelo caminho. Esse é o ponto fundamental da mudança de postura brasileira e mundial — diz Lazari.

Na visão dos banqueiros, é preciso inverter a equação que hoje devasta a floresta.

— O caminho da redução de carbono é inexorável. Temos que aumentar o prêmio para o cumprimento da lei, estimulando o mercado de crédito de carbono, o mercado de serviços ambientais, e o desenvolvimento de cadeias produtivas. A repressão ao ilegal tem que ser um elemento, mas não o mais importante. Tem que haver o estímulo econômico às boas práticas dentro das regras de mercado —diz Cândido Bracher.

Há muita coisa que é difícil saber como lidar. Os três admitem que mineração é um grande desafio e que, ao contrário do que acontece na agricultura, o pequeno produtor, ou seja, o garimpo, não pode ser sustentável. E que a grande mineração não pode sair deixando as cicatrizes na floresta. Perguntei sobre os indígenas porque o tema está ausente nos dez princípios que eles estabeleceram para orientar sua atuação na Amazônia. Eles admitiram que, de todos os assuntos, “esse é o que mais se aplica a necessidade de aprender e ser humilde”, como definiu Bracher.

O governo anda em direção contrária a toda essa agenda, mas eles consideram que o vice-presidente Hamilton Mourão abriu um canal de diálogo. Querem pensar a Amazônia como uma questão de Estado e não de governo, mas não fugiram da pergunta sobre a última declaração do presidente Bolsonaro, que comparou as ONGs a câncer. Eles discordam. As ONGs são parceiras, estão nos conselhos e têm conhecimento do assunto, disseram.


Míriam Leitão: Floresta no chão e fumaça no ar

O ministro do Meio Ambiente quer floresta no chão e fumaça no ar. Em plena crise de imagem do Brasil por causa do desmatamento, que gerou uma onda de alertas dos investidores contra o país, ele propõe suspender a meta de diminuição de queimada e desmatamento ilegais. O que o Brasil perde se Ricardo Salles ganhar? Riqueza natural, qualidade do ar, investidores internacionais, biodiversidade, futuro. Além de Salles, quem ganha com o desmatamento? Alguns poucos criminosos, como mostrou a revista “Veja” na edição desta semana, dando seus nomes e endereços.

A impressionante reportagem fez o ranking dos dez maiores desmatadores segundo as multas do Ibama. Imagens de satélite indicaram o antes e o depois. O campeão é Edio Nogueira, da Fazenda Cristo Rei, em Paranatinga, Mato Grosso, onde ele derrubou 24 mil hectares de mata nativa, equivalente a 22 mil campos de futebol. Ele usou aviões para jogar gigantescas quantidades de agrotóxico para matar as árvores, o que faz o fogo espalhar mais rapidamente.

Edio recebeu uma multa de R$ 50 milhões, que dificilmente pagará, até porque o presidente Bolsonaro critica isso que ele chama de “indústria da multa”. A empresa de Nogueira, a Agropecuária Rio da Areia, coloca no site que fornece para a JBS, Marfrig e Minerva. A “Veja” procurou os frigoríficos, que negaram compras recentes. A Minerva disse que a última compra foi feita em 2015, a JBS admite que comprou, mas de outra empresa do mesmo grupo em Mato Grosso do Sul. A Marfrig parou de comprar deles em 2017. Seja como for, está lá no site. E como disse a revista, na reportagem de Edoardo Ghirotto e Eduardo Gonçalves, “é esse tipo de confusão que está estraçalhando a imagem do Brasil lá fora”.

O ponto é: quem ganha com o abandono da meta de reduzir o desmatamento e as queimadas ilegais? Esse empresário, que joga agrotóxico para matar as árvores antes de queimá-las, ganha. Não é o único, a revista dá a lista dos 10 maiores. No Pará, Amapá e Mato Grosso. Quem perde? O resto da sociedade brasileira.

O repórter Mateus Vargas, do “Estado de S. Paulo”, teve acesso ao documento em que Salles tenta contornar a meta de reduzir até 2023 o desmatamento e a queimada ilegais em 90%. Em troca, ele quer a aprovação do seu projeto, que definiu de Floresta+. Seria melhor chamá-lo de Floresta-, porque é proteger uma área de 390 mil hectares. O documento quer urgência na aprovação dessa ideia. Os técnicos do Ministério da Economia não gostaram. Oficialmente, o Ministério concordou com a proposta de redução da meta. A lorota que eles contam é que será para “adequar aos compromissos de zerar o desmatamento ilegal até 2030”. Ou seja, o plano plurianual pode ir mais devagar, em vez de ter a meta de reduzir a 90% em 2023 o desmatamento ilegal.

No Acordo de Paris, o Brasil propôs zerar em 2030, mas tem metas intermediárias. Em 2020, o Brasil teria que ter derrubado o desmatamento para o nível de 3 mil km2. Hoje, está em 10 mil e subindo. Mesmo se tivesse cumprindo o compromisso que firmou com outros países, destruiria uma área equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo. O Ministério da Economia deveria pensar duas vezes antes de concordar.

Ricardo Salles também completou o trabalho de desmonte da presença de qualquer representação nos conselhos ambientais. Desta vez foi reduzida a participação de entidades civis e conselhos estaduais e municipais na comissão executiva para o controle do desmatamento ilegal e recuperação de vegetação nativa, Conaveg. Eles poderão ir, se convidados, mas sem direito a voto.

Esse é só mais um passo do programa “mais Brasília e menos Brasil” em cada conselho ambiental. Uma das decisões acabou travando o Fundo Amazônia. Salles tirou todas as ONGs, entidades científicas, empresariais e representantes dos nove estados amazônicos do conselho. Resultado: demoliu a governança.

O vice-presidente Hamilton Mourão recebe educadamente os investidores, empresários, banqueiros. Promete a todos que o governo vai melhorar o combate ao desmatamento ilegal. Com isso, ele ganha tempo e tenta reconstruir a credibilidade do governo. Quando saem propostas assim, de reduzir a meta que foi estabelecida no plano plurianual de redução do desmatamento ilegal, Mourão fica falando sozinho. Ou ele está falando só para inglês ver?


Elio Gaspari: A fala de Gilmar acordou um vírus

Crises fazem parte da vida, golpes precisam de golpistas

Em abril do ano passado, quando era ostensiva a participação de militares na administração civil de Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão disse o seguinte:

“Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”

Entregar o que prometia, o capitão sabe que não entregará. A pandemia e suas superstições confirmaram sua previsão de março: “Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.”

Mourão acredita que o ministro Gilmar Mendes “forçou a barra” quando disse que, com a conduta do governo diante da pandemia, “o Exército está se associando a esse genocídio”. Gilmar tem uma queda pelo exagero. Se tivesse dito que o Exército está sendo associado a uma ruína, o vice-presidente não poderia se queixar, pois estaria seguindo o raciocínio que ele enunciou há um ano.

O Ministério da Saúde não tem titular. O general Eduardo Pazuello é um interino e na sua equipe há 24 militares. Com suas certezas epidemiológicas, Bolsonaro jogou-os na fogueira. Nelson Teich, paisano, foi-se embora.

Pinçado, o trecho da fala de Gilmar foi repelido pelo ministro da Defesa e pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Força Aérea: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana.”

Se o caso ficasse nisso, seriam salvas trocadas, mas o Ministério da Defesa informa que representará contra Gilmar Mendes junto à Procuradoria-Geral da República.

Foi assim que nasceu o Ato Institucional nº 5. Uma conspiração palaciana manipulou um discurso (irrelevante) do deputado Marcio Moreira Alves para que o governo pedisse licença à Câmara para processá-lo. No dia 12 de dezembro o plenário negou o pedido e no dia seguinte o marechal Costa e Silva baixou o Ato. Foram dez anos de ditadura escancarada, torturas e extermínio. No Ministério da Justiça estava um tatarana. A cabeça militar dessa urdidura foi a de um general miúdo, conspirador incorrigível. Jayme Portella de Mello foi para escanteio anos depois, sem ter conseguido a quarta estrela.

Como a manobra de 1968 deu certo, ela foi reciclada sete anos depois. Num discurso, o senador Leite Chaves protestou pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog: “Hitler, quando desejava praticar atos tão ignominiosos como os que estamos presenciando, não se utilizava do Exército, mas sim das forças da SS.” O ministro Sylvio Frota foi ao presidente Ernesto Geisel e, supondo falar em nome do Alto Comando, exigiu a cassação do senador. (O Ato 5 estava em vigor.)

Quando Frota entrou no gabinete de Geisel, esta foi a cena, nas suas palavras:

“Merda! Merda! Vocês querem criar um problema! Eu não quero ser ditador! A ser ditador, que seja um de vocês!”

Frota miou, propôs uma representação contra Leite Chaves e nem isso conseguiu. Com a ajuda do senador Petrônio Portella, um marquês do Império a serviço da República, capaz de tirar a meia sem tocar no sapato, o episódio foi diluído.

As duas semanas de recesso do Judiciário permitem que se jogue água nas cabeças quentes. Mesmo assim, a fala de Gilmar pode ser usada para alimentar uma crise. Para isso, os golpistas precisam dizer que o que eles querem é uma ditadura.


El País: 'Não vejo hoje no país ameaça a nossa democracia', diz Hamilton Mourão

Em conversa com veículos internacionais, vice-presidente reitera que a democracia no Brasil está assegurada e que atos contra o STF e Congresso são pequenos e “muito mais retórica”

Carla Jimenéz, do El País

O Governo do presidente Jair Bolsonaro segue a Constituição e não oferece risco à democracia, apesar de todos os sinais emitidos de uma ruptura por Bolsonaro e seus pares. “Estamos em pleno funcionamento da democracia, todas as instituições funcionam de forma independente”, diz o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva que hoje está à frente do Conselho da Amazônia, um colegiado que reúne ministérios para discutir ações de proteção à floresta. Em uma conversa de 25 minutos por videoconferência com o EL PAÍS e outros três veículos internacionais nesta quarta, em que só puderam ser feitas duas perguntas por jornalista (enviadas antecipadamente, sem possibilidade de réplica), Mourão refutou qualquer ameaça de golpe ou autogolpe, e minimizou os ataques à democracia brasileira promovidos de dentro do Governo. Desde a intenção do presidente de armar a população —“não é da cultura do brasileiro ter armas”— até os atos de apoiadores do presidente, que fazem ataques ao Supremo Tribunal Federal e pedem intervenção militar. “São muito mais retórica do que ações contra as instituições”, afirma Mourão.

Para o vice-presidente, os protestos têm uma repercussão muito pequena nas ruas, “muito pouca gente comparece”. O problema é que o presidente Bolsonaro saúda publicamente esses poucos que se aglomeram em frente ao Palácio da Alvorada praticamente todos os finais de semana. No dia 31 de maio chegou a sobrevoar de helicóptero, ao lado do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, uma dessas manifestações em que pessoas sustentavam faixas contra o Supremo. Mas o vice repete: “Não vejo hoje no país ameaça a nossa democracia.” O formato engessado da conversa com o vice-presidente não permitiu contrastar as ponderações do vice, que não se vê como um representante das Forças Armadas —“sou um político atualmente”, afirmou. O fato é que as sucessivas investidas de Brasília à ordem democrática fez jornais como o Financial Times e o New York Times questionarem, nos últimos dias, o destino desses flertes autoritários no Brasil.

Mas, para Mourão, ruptura democrática houve de fato na Venezuela, onde ele viveu como adido militar da embaixada brasileira em Caracas, entre 2002 e 2004. “Ali eu realmente vi a democracia ser destruída e vi o que são ataques à imprensa”, disse ele, lembrando jornalistas sendo atacados na rua e ameaçados de morte por agentes do Governo, além de veículos sufocados por falta de recursos mínimos para funcionar. “Isso não ocorre no Brasil”. De fato, não, ao menos por enquanto. Mas o presidente Bolsonaro repete arroubos autoritários, como no final do ano passado, quando tentou excluir o jornal Folha de São Paulo, por exemplo, de licitações de assinatura do Governo por não concordar com a cobertura crítica do jornal ao seu Governo. Depois, recuou, muito embora incentivasse empresas a parar de anunciar no veículo. O presidente também ataca publicamente jornalistas, seja mandando calar a boca na frente de seus apoiadores, seja nas redes, especialmente mulheres, incitando ataques, amplificados por seus filhos, a jornalistas como Patricia Campos Mello.

Mourão integra um Governo que promove um clima belicoso em diversas instâncias, inclusive com os demais poderes, fomentando a interferência constante do Supremo Tribunal Federal, especialmente durante a pandemia de coronavírus, que já matou quase 40.000 pessoas no país. Uma das mais recentes decisões da Corte diz respeito à mudança na metodologia empregada para divulgar os dados do Ministério da Saúde. No dia 5 de junho, sem prévio aviso, o Ministério alterou a forma de apresentar os casos e óbitos por covid-19 no Brasil. Com a mudança, os dados acumulados de casos e óbitos deixaram de ser divulgados. No domingo, 7, o Governo chegou a retificar os números de mortos inicialmente publicizados reduzindo-os pela metade, o que acendeu o alerta de que os dados passariam a ser manipulados. Uma liminar do Supremo obrigou o Governo a voltar atrás e divulgar os dados da mesma forma que eram apresentados desde os primeiros registros da covid-19 no Brasil no final de fevereiro. O ministro interino, o general Eduardo Pazuello, passou horas da terça, dia 9, dando explicações a deputados na Câmara sobre as mudanças que haviam sido feitas para garantir que números não estavam sendo omitidos, prática comum durante a ditadura militar.

Questionado sobre a imagem das Forças Armadas diante da presença cada vez maior de militares no ministério —já são mais de 20— em meio à pior pandemia da história, o vice optou pelo distanciamento. “A gestão do Ministério da Saúde, apesar de estar nas mãos de um oficial general da ativa, não está nas mãos das Forças Armadas”, disse ele. “Todo sistema de saúde tem sua gestão própria, o papel do Governo federal é estabelecer as políticas, facilitar as questões logísticas e distribuição de recursos necessários, para que Estados e municípios operem seus sistemas de saúde”. O Governo já é alvo de ações na Justiça, e inclusive no Tribunal Penal Internacional, que questionam a condução das políticas de combate à pandemia. No limite, podem alcançar ministros militares do Governo.

A intenção de se descolar, no entanto, é limitada aos olhos de observadores experientes, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), filho e neto de militares. Em entrevista a este jornal, Cardoso disse que “quem vai ser responsabilizado pelos erros do Governo, queiram ou não, serão os militares”. No dia seguinte à publicação da entrevista, Mourão usou o Twitter para responder ao ex-presidente. “Quanto à afirmação: ‘os responsáveis pelos erros do Governo, queiram ou não, serão os militares”; convido o ex-presidente FHC a refletir sobre a História do Brasil e verificar se não são eles que, mais uma vez, servindo ao Estado, mantêm a estabilidade institucional do país.’

“Cometemos erros no controle de queimadas

Apesar da negativa a FHC, Mourão reconheceu ao menos um erro do Governo na entrevista desta quarta, no que diz respeito à Amazônia. “O presidente teve consciência de que cometemos erros em relação ao combate ao desmatamento e às queimadas”, diz ele, que comanda o Conselho da Amazônia. O desmatamento cresceu quase 35% entre agosto de 2018 e julho de 2019, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e a intenção de Mourão é que os resultados apareçam neste segundo semestre.

Uma ação do Exército na região, que ficará por dois meses na floresta, pretende coibir o desmatamento que, segundo o vice, deve ser reduzido ao mínimo, como afirmou em reunião ministerial desta terça. Mas não respondeu quanto seria esse mínimo. Apesar da imagem negativa do Governo nessa questão, Mourão assegura que o Brasil não é o vilão da história. “Não somos em hipótese alguma o vilão ambiental do mundo”, diz ele, lembrando que o país não queima petróleo e carvão para produzir energia, como outros países. “Em termos ambientais temos uma das legislações mais avançadas”, disse ele na entrevista desta quarta. No entanto, não foram poucas as tentativas do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de perdoar multas ambientais de produtores rurais que desmataram áreas verdes ilegalmente.

O futuro da fiscalização da Amazônia, agora sob as ordens de Mourão, é uma incógnita. Ele garante que serão criadas condições para fortalecer os órgãos de fiscalização com a criação de 20 bases de apoio na região. “Buscamos solução para reconstruir o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente] e o ICMBio e outras agências que se ressentem de fiscalização”, preconiza. A ação de dois meses do Exército consumiu 60 milhões de reais na Amazônia, pouco menos que o orçamento anual do Ibama (75 milhões de reais). Fiscalizar é caro, observa Mourão, por exigir recursos como helicóptero, aeronaves e viaturas especiais para transitar na região. A ideia é convencer a Alemanha e a Noruega, patrocinadores do Fundo Amazônia, a reativar recursos que foram suspensos desde que as queimadas viraram notícias no mundo inteiro. “Estamos colocando métricas para que possam ser medidos resultados”, explica Mourão. Otimista, acredita que em dois a três meses os recursos dos fundos estarão liberados e poderão financiar ações de fiscalização de Ibama e ICMBio. “O Brasil é muito maior que os problemas sazonais que estamos vivendo”, disse ele quando questionado sobre a imagem abalada do país no exterior.

Seu otimismo se estende a uma visão de resiliência do Governo que integra, acossado por mais de 30 pedidos de impeachment e processos que pedem a cassação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral. Mesmo com um índice de rejeição de 43%, segundo o último levantamento do Datafolha, contra 30% nos primeiros meses no poder, ele aposta que o Governo tem plenas condições de ir até 2022, e quem sabe, “se o presidente se candidatar, sermos reeleitos”.


Maria Cristina Fernandes: Mourão rima, mas não é a solução

Sem interlocução com partidos, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, vice se coloca, com seus ataques, para fora do tabuleiro

O vice-presidente da República deu início ao mandato do presidente Jair Bolsonaro como alvo número 1 do gabinete do ódio. Identificado como pretendente ao cargo, passou a ser tratado pelos filhos do presidente e seus acólitos como traidor em potencial e inimigo a ser abatido em todas as suas movimentações.

Hamilton Mourão nem parecia o general insubordinado que, mesmo punido, continuou a desobedecer o estatuto dos militares. Cultivou relações com empresários, partidos e até sindicatos, como a face civilizada de um governo cujo titular sempre demonstrou desapreço pela liturgia e pela missão constitucional da qual foi investido pelo eleitor. Acossado, se retraiu.

A bordo de um avião da FAB, passou a percorrer o país em palestras nas associações comerciais do interior para manter os motores em funcionamento sem o escrutínio da imprensa ou do gabinete do ódio.

Voltou à cena, primeiro com o artigo em que se apresentava como um vendedor de seguro para o titular. Mirou nos governadores e acertou todas as instituições. Um velho quatro estrelas diria a um ministro do Supremo: se parece difícil lidar com um capitão desabalado é porque ele ainda não topou com o general que o secunda.

Em novo artigo em “O Estado de S. Paulo”, o vice dobrou a aposta, desta vez, contra os manifestantes que foram às ruas no domingo e voltarão no próximo. A estes, que portavam faixas em defesa da democracia, denominou-os de baderneiros, extremistas, depredadores e criminosos. Voltou-se até contra “um ministro do STF”, que começa com Celso e termina com Mello, como “intelectualmente desonesto”.

Àqueles que ocupam a Praça dos Três Poderes nos fins de semana conclamando intervenção militar, agredindo enfermeiros em atos de solidariedade a colegas mortos e brandindo símbolos do ódio supremacista americano contra o Supremo Tribunal Federal, o vice limitou-se a denominar de portadores de “exagero retórico”.

Mourão se coloca como porta-voz não autorizado das Forças Armadas ao defendê-las da partidarização, mas acaba por atiçar os fantasmas da intervenção com a carta da baderna. Ao fazê-lo, distancia-se ainda mais de seus colegas da ativa que têm colecionado dissabores pela insistência com a qual Bolsonaro e seus ministros militares os empurram para a praça pública.

Com o artigo, Mourão se coloca como representante maior dos VIPs (valentes, inteligentes e patriotas), categoria em que os generais da ativa colocam os colegas que passam para a reserva e, sem tropas a comandar, se põem a ditar as ordens para a República.

À exceção de vozes solitárias como o ex-ministro e general Carlos Alberto dos Santos Cruz, tem faltado, à farda, apoio para que se mantenha longe das ruas, como o fez, nos Estados Unidos, o secretário de Defesa.

Mark Esper se manifestou ontem publicamente contra o uso da lei do fim do século 18 (“Insurrection Act”) para colocar a Guarda Nacional na repressão às manifestações de rua contra a violência policial que resultou na morte do ex-segurança George Floyd. Em vídeo que circula nas redes sociais, soldados da Guarda Nacional, depois de ouvirem o apelo de uma manifestante (“marchem conosco e nos protejam”), posam para uma foto com o grupo que os cerca.

Em artigo publicado no início desta semana na “The Atlantic”, Mike Mullen, que foi comandante do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas americanas, nos governos Bush e Obama, também se insurgiu contra o uso de seus ex-companheiros de farda para reprimir movimentos que têm sua solidariedade: “Os cidadãos não são nossos inimigos e nunca devem sê-lo”.

No Chile, que tem sido invocado por Bolsonaro desde as manifestações estudantis do ano passado, como exemplo de país em que as Forças Armadas, convocadas, agiram na repressão aos movimentos sociais, o que aconteceu foi exatamente o inverso.

Sebastián Piñera conseguiu arrancar um estado de sítio do Congresso e, durante duas semanas, as Forças Armadas foram para as ruas numa atuação sem violência em contraposição ao cassetete policial que vigorara até ali. Com o fim do prazo da medida, os militares voltaram pra casa mas os manifestantes, não.

O presidente chileno insistiu em nova incursão militar nas ruas de Santiago mas, desta vez, os comandantes se recusaram a acatar suas ordens. Não estavam dispostos a pôr em risco o prestígio reconquistado a duras penas junto à sociedade ao longo das três décadas passadas desde a sangrenta ditadura chilena.

A recusa levou Piñera a recuar, pedir desculpas à população e aceitar um acordo com os partidos que levou à convocação de um plebiscito, adiado pela pandemia, que vai decidir sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte.

O papel ao qual as Forças Armadas brasileiras têm sido forçadas a colocariam na contramão da história, a isolariam do mundo e, ao contrário do contexto do golpe de 1964, até de seus vizinhos e da própria sociedade. É a pandemia que impede que os signatários dos manifestos marchem ao lado das torcidas de futebol. Se as Forças Armadas se orgulham de terem golpeado a Constituição em 1964 para defender a marcha em defesa de Deus, da família e da propriedade, desta vez estariam ao lado de quem?

O presidente está seguro no cargo enquanto os partidos não se puserem de acordo em relação à alternativa de poder. É esta, na verdade, a razão de fundo para as dificuldades da grande frente anti-Bolsonaro. O vice-presidente é a opção constitucional para comandar o país em caso de impeachment, mas se força para fora do jogo ao tomar posições mais elaboradas mas tão inconsequentes quanto a do capitão e fortalece saídas como a cassação da chapa pelo TSE, que opõe quatro votos a 57 milhões.

Sem entrada nos partidos, sem interlocução com o empresariado que extrapole os viciados corredores da Fiesp, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, Mourão parece tentar se viabilizar junto ao que restou de apoio ao presidente, o bolsonarismo raiz, o mesmo do qual sempre foi vítimas. Se não deu com Cosme, aqui está Damião. Nem um nem outro. Se governar como escreve, Mourão pode até fazer rima, mas deixa de ser uma solução.


Bernardo Mello Franco: Mourão desistiu de bancar o moderado

Em artigo, o general Mourão chamou manifestantes de “delinquentes” e pediu mais repressão a protestos contra o governo. Mais um discurso típico de líderes autoritários

O general Hamilton Mourão desistiu de bancar o moderado. Em artigo publicado ontem, o vice voltou a revelar o que pensa. Chamou manifestantes contrários ao governo de “delinquentes”, atacou a imprensa e aderiu à campanha contra o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal.

Mourão começou o texto, veiculado no jornal “O Estado de S. Paulo”, com ataques a quem foi às ruas no domingo. Numa acusação sem provas, ligou os ativistas pró-democracia ao “extremismo internacional”. Em seguida, incentivou o aumento da repressão. “Baderneiros são caso de polícia, não de política”, escreveu. É um discurso truculento, típico de líderes autoritários.

O general nunca usou esses termos para condenar as marchas que pedem golpe militar e outras ilegalidades que agradam à caserna. Ontem ele também se esqueceu de citar a militante bolsonarista que desfilou na Avenida Paulista com um taco de beisebol. A madame foi escoltada com fineza pela PM, que lançou bombas de gás contra os críticos do governo.

Mourão ainda desmereceu os atos contra o racismo e a violência policial. Alegou que o Brasil seria um país livre do “ódio racial” e não precisaria importar “problemas e conflitos de outros povos”. A desigualdade racial também é coisa nossa. Negar a gravidade do problema é um erro que pouca gente ainda se atreve a cometer.

De volta à linha dura, o general embarcou na ofensiva contra o ministro Celso de Mello, relator do inquérito que preocupa Jair Bolsonaro. Sem citá-lo nominalmente, afirmou que o decano estaria sendo “irresponsável” e “intelectualmente desonesto” ao apontar riscos à democracia.

É intelectualmente desonesto ignorar que o Brasil vive uma escalada autoritária comandada pelo presidente da República. Na semana passada, ele chegou ao ponto de ameaçar descumprir decisões do Supremo. Quem não está preocupado é cúmplice ou anda mal informado, o que não parece ser o caso do vice.

No fim do artigo, Mourão escreveu que o Brasil, governado pela extrema direita, estaria livre de “administrações tomadas por ideologia”. Conta outra, general.


José Serra: Limites, responsabilidades e governabilidade

A dimensão política dessa crise multidimensional se configurou no início da atual administração

O artigo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, sobre “Limites e responsabilidades”, publicado no último dia 14 no “Estado de S.Paulo”, vem em bom momento. Justamente quando nos encontramos em uma tempestade mais que perfeita, na qual limites constitucionais, morais, econômicos e de segurança sanitária estão sob intensa pressão. E também porque abre as portas para um diálogo de alto nível, quando uns poucos, infelizmente, fazem ouvidos moucos e se excedem em palavras loucas.

O general Mourão tem razão em apontar o caráter político da atual crise e o papel primordial que o Estado nela desempenha. Entretanto, não podemos ignorar que a dimensão política dessa crise multidimensional se desencadeou no início da atual administração, tendo contribuído para um PIB que vem marcando passo com crescimento em torno de 1% ao ano.

Com efeito, o programa de reformas econômicas foi mal conduzido, desperdiçando o período de boa vontade de que os novos mandatários costumam gozar. O governo federal não apresentou uma proposta de legislação coerente e bem definida, tampouco prioridades claras. E os negociadores do Planalto no Parlamento encontraram um campo minado devido ao empenho do presidente da República em tornar pública sua recusa a aceitar a legitimidade dos demais Poderes do Estado brasileiro.

Resulta-se daí a queda na confiança de consumidores e investidores, sobretudo estrangeiros, o que, no primeiro trimestre deste ano, levou à retração de 1,95% do Índice de Atividade Econômica (IBC-BR), considerado uma prévia da variação do PIB. Como as decisões dos consumidores e dos investidores se baseiam em expectativas que, assim como as causas, vêm antes de seus efeitos, não se pode atribuir a crise econômica à pandemia, cujos efeitos sobre a atividade econômica vieram depois. A crise política levou à crise econômica, que foi exponenciada pela crise sanitária.

O vice-presidente tem razão em destacar o papel nefasto da polarização. Ela não existe no vácuo, mas resulta de uma ação deliberada de radicalizar as diferenças entre ideias e valores na sociedade, de modo a dividi-la entre os extremos e excluir, assim, os moderados. Esse extremismo levou a um resultado incomum: no primeiro turno, os dois candidatos — Jair Bolsonaro (então PSL) e Fernando Haddad (PT) — receberam, respectivamente, votos de 33,4% e 21% dos eleitores aptos a votar. No segundo turno, o presidente foi eleito com votos de 31% de eleitores aptos, com um aumento de ausências, votos brancos e nulos. O percentual de votos nulos no segundo turno chegou a 7,4% (8,6 milhões), o maior índice desde 1989, e um aumento de 60% em relação a 2014, quando 4,6% dos votos foram anulados.

Um Executivo com esse grau de fragilidade, tanto no número de eleitores — que são os detentores originários da soberania — quanto em sua presença no Congresso, comete um erro fatal ao recusar o diálogo com os demais poderes constituídos. Sem diálogo e sem reconhecer a legitimidade dos interlocutores, não é possível convencê-los de que sua agenda é a melhor expressão do interesse da Nação. Insistindo em governar por decreto, virando as costas para os parlamentares, tratando-os com ofensas e acusações, um presidente presta um enorme desserviço, não apenas a si próprio, mas principalmente ao país.

A questão federativa está definida na Constituição brasileira, que é única e difere das demais federações. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas o fato de que são os estados que elegem o presidente, e não o voto popular direto, sugere que não devemos seguir cegamente um modelo estrangeiro. Trata-se de uma questão fundamental, que merece ser debatida, como também as relações entre os poderes. Depende apenas da disposição para o diálogo, o que é distinto da contabilidade de cargos e verbas à qual o Executivo parece estar inclinado a aderir.

*José Serra é senador (PSDB-SP)


Marcos Sorrilha: O Federalismo de Hamilton, o Mourão

Na última quinta feira, 14 de maio, o vice-presidente Hamilton Mourão escreveu um artigo de opinião ao jornal O Estado de São Paulo com algumas observações a respeito do quadro político, institucional e econômico gerado pela Covid-19. Segundo ele, para além de toda a problemática inerente a pandemia, o “Brasil” e seus organismos institucionais estariam contribuindo para agravar a já calamitosa situação sanitária. No bojo de suas considerações, dirigiu recomendações à imprensa, aos presidentes dos três poderes e, também, aos governadores dos estados. Neste ponto, especificamente, observou que o Brasil não era uma confederação e, para discorrer sobre o modelo federativo, ao qual se enquadra nosso país, recorreu à obra clássica da política norte-americana O Federalista escrito a três mãos por: John Jay, James Madison e, seu quase xará, Alexander Hamilton[1].

A menção feita aos pais fundadores dos Estados Unidos é a deixa que eu preciso para pegar carona nas linhas redigidas por Hamilton, o Mourão. Gostaria de concentrar minha intervenção em quatro pontos. O primeiro deles diz respeito a uma imprecisão factual. Ao fazer referência à obra supracitada, o vice-presidente afirma que ela foi concebida com o intuito de persuadir os membros da convenção constituinte para que votassem a favor da nova Constituição, em setembro de 1787. Isso não é verdade. O documento constitucional foi construído ao longo de cinco meses por 55 delegados representando os doze dos treze estados da Confederação Americana, reunidos na Filadélfia[2]. O texto foi aprovado em setembro, mas precisava ser ratificado pelas assembleias estaduais. É só então que aparecem os artigos de O Federalista. A intenção era convencer os estados a abandonarem o modelo de confederação e abraçar o federalismo, fato que se concretizou em 1788.

O segundo ponto a ser destacado diz respeito ao argumento de Mourão sobre a competência da federação em funcionar como um agente centralizador capaz de dar respostas mais adequadas aos problemas nacionais quando comparado à confederação. É aqui que, no texto do vice-presidente, aparece a referência a um dos poucos artigos escritos por John Jay. No entanto, como bem lembrou Leonardo Avritzer, o texto de John Jay trata do papel do executivo em momentos de guerra contra nações vizinhas, afinal, era basicamente essa a função que os federalistas previam ao presidente: cuidar da organização da burocracia do estado, declarar guerra com respaldo do Congresso; tratar de assuntos internacionais; e fazer tratados.

Ou seja, diferente do que apresentou Mourão, o federalismo norte americano não representou um centralismo de governo, ao contrário, como se vê na Constituição, a autonomia dos estados é amplamente respeitada, desde a elaboração e execução de suas próprias leis, até o cultivo de determinados produtos agrícolas e a sua taxação exclusiva. É justamente sob esta prerrogativa que alguns estados americanos possuem pena de morte e outros não; alguns plantam maconha e outros não.

Assim, no caso específico da pandemia no Brasil, os artigos dos federalistas atuariam mais a favor de Dória e Witzel do que de Bolsonaro. Isso é tão verdadeiro que é exatamente o que vemos ocorrer nos EUA atualmente. Os embates públicos entre Trump e os Governadores Andrew Cuomo de Nova York e Gretchen Whitmer do Michigan dão a medida de como Trump tem, ou deveria ter, muito pouca margem de manobra sobre os estados. Esta situação se explica, pois, a centralização federativa da qual falavam os pais fundadores não se dava exclusivamente na figura do poder executivo, o que me leva imediatamente ao terceiro ponto a ser analisado no texto de Mourão: a separação dos poderes e dos limites e competências destinadas a cada um dos três.

Para explicar essa proposição federalista, o vice-presidente recorreu a uma citação de James Madison em que o político da Virgínia estabeleceu “como fundamentos básicos que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser separados e distintos, de tal modo que ninguém possa exercer os poderes de mais de um deles ao mesmo tempo”. No entanto, Mourão não esclarece que na Constituição dos EUA o Poder Legislativo tem muito mais preponderância do que os outros dois. Aliás, basta apenas uma leitura rápida sobre a magna carta dos EUA para perceber que a maior parte das discussões empreendidas nos debates da Filadélfia em 1787 foram para delimitar a organização do poder legislativo, desde sua disposição, o formato bicameral, a forma de escolha dos representantes, etc.

Isso se deu, afinal, porque as experiências com a Inglaterra rememoravam aos membros daquela convenção que um executivo muito poderoso resultava em tirania. Esta é outra questão importante a se destacar, uma vez que a Constituição dos EUA, em grande medida visa a criar mecanismos de limitação do poder autoritário com a elaboração de uma série de instituições e organismos de representação que protegessem a jovem nação dos “perigos” da democracia direta e da irresponsabilidade de demagogos. Em grande medida é sobre isso que Madison está falando, sobre a necessidade de se construir instituições sólidas e independentes que consigam responder a políticos irresponsáveis que capturam o poder em prol de suas pautas particulares, colocando em risco o bem comum. De maneira mais ampla, o debate travado é sobre a edificação de uma estrutura capaz de preservar a República e não estritamente sobre a federação. Grosso modo, este é o espírito da Constituição: defender a República da tirania, seja aquela que emana do voto, seja aquela que são impostas pelos déspotas.

O último ponto que gostaria de destacar não está no texto de Mourão, mas no papel desempenhado por George Washington na referida convenção constitucional. Por conta do prestígio acumulado em sua campanha vitoriosa à frente do exército continental, ele ocupou a cadeira de presidente daquela assembleia. Porém, apesar de General, o fez como um civil. Esta posição seria reforçada quando da sua posse como primeiro presidente dos EUA em março de 1789. Naquela oportunidade, Washington vestiu uma roupa simples de “colono”, negando os trajes militares e demonstrando que era um civil que chegara ao poder.

Ao final do segundo mandato, Washington se recusou a se converter em um presidente “eterno”, abdicando de uma segunda reeleição para a surpresa de todos. Com isso, criou uma regra não escrita de que o cargo é maior do que o homem e estabeleceu uma tradição de que o presidente só deveria concorrer a apenas uma reeleição, o que foi respeitado por todos os mandatários da nação subsequentes até Franklin Delano Roosevelt em 1940.

Mourão faz bem em retomar os clássicos da política americana ainda que o faça de maneira desconexa à realidade brasileira. A leitura deveria servir para que ele compreendesse e respeitasse a importância da separação dos poderes e, quem sabe, percebesse que o federalismo brasileiro não funciona como “manda o manual”, pois é muito mais centralizador do que o americano. De qualquer maneira, acho curiosa a predileção que o bolsonarismo tem pelo período da independência dos EUA. Porém, ao mirar para esse momento do passado, sugiro ao vice-presidente que, assim como Washington, desempenhe seu cargo na função de civil. Como no caso do primeiro presidente norte-americano, seria de bom grado que ele deixasse a farda em algum lugar apropriado de seu armário ou, até mesmo, em um aposento glorioso de sua memória.


[1] São 85 artigos no total, escritos entre outubro de 1787 e abril de 1788. Desses John Jay escreveu 5, Madison 29 e Hamilton 51.

[2] Rhode Island não enviou delegados.