Haddad

Andrea Jubé: 'Deus poupou-me do sentimento do medo'

Centro já descartou Huck e Moro como presidenciáveis

Vamos tratar aqui de três presidentes: pela ordem, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, e Jair Bolsonaro. Este passou recibo, com firma reconhecida, de que sentiu a mão fria do “impeachment” roçar-lhe as costas na semana passada, quando o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) desferiu-lhe duas bordoadas: confirmou a ordem de instalação da CPI da pandemia, e o restabelecimento dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A CPI da pandemia, se não tem o impedimento do presidente como alvo, provocará enxaquecas palacianas. Lula, por sua vez, desponta hoje como a principal ameaça à reeleição de Bolsonaro. Mas, remarque-se que a política muda como as nuvens - ou como o humor presidencial.

Bolsonaro está mal humorado, e deixou o azedume transparecer na “live” de quinta-feira, quando o STF sacramentou a investigação contra seu governo, e a elegibilidade de Lula. “Só Deus me tira da cadeira presidencial, e me tira, obviamente, tirando a minha vida", vociferou.

Em recado velado, porém, audível, ao Congresso, ao STF e à oposição, acrescentou, com ênfase, que salvo a prerrogativa divina, “o que nós estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo. Não vai mesmo, tá ok?” Nesse trecho cifrado, Bolsonaro aludiu à ameaça de “impeachment”.

O temor do impedimento ronda o Planalto há meses, e vai e volta em ondas, como o mar. Ou como a pandemia, para ser exata. A primeira onda deu-se em junho do ano passado, quando Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), foi preso, o que acendeu a luz amarela no Palácio. O episódio teve o condão de suspender a sucessão de atos antidemocráticos pelo fechamento do Congresso e do STF, que Bolsonaro, e sua militância, estimulavam.

A segunda onda se consumou há algumas semanas, quando o Centrão redobrou a pressão pela saída do chanceler Ernesto Araújo, em paralelo ao recrudescimento da pandemia. Para não passar recibo, Bolsonaro improvisou uma ampla reforma, aproveitando-se para se livrar do incômodo ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos três comandantes das Forças Armadas, que, pela sua percepção, não o respeitavam como comandante-em-chefe, conforme prescreve a Constituição Federal.

Nessa ampla reforma o medo do “impeachment” ganhou nome e sobrenome: Flávia Arruda, a elegante e discreta ministra da Secretaria de Governo, cuja nomeação selou a aliança de Bolsonaro com o Centrão raiz: o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o PL de Valdemar Costa Neto.

Quando os generais Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto decidiram finalmente ceder e entregar a articulação política para o Centrão, uma semana antes do domingo de Páscoa, o primeiro nome lembrado foi o do senador Eduardo Gomes (MDB-TO), que tinha o padrinho mais forte do mercado: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Mas toda a força de Flávio empalidece diante da caneta de Arthur Lira (PP-AL), que despacha os requerimentos de “impeachment”. Por isso, os dois generais concluíram que o novo ministro tinha de ser egresso da Câmara, e abençoado por Lira. Ontem Flávia admitiu em uma “live” promovida pela XP Investimentos, que recebeu o convite de Bolsonaro para assumir o cargo, mas tratou do assunto com Lira, e com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Com Flávia Arruda, Bolsonaro reforçou a blindagem contra o “impeachment” com uma segunda camada. A primeira camada é o vice-presidente, Hamilton Mourão. Num cenário de instabilidade quase permanente, nenhum deputado ou senador calejado de crises quer apear um ex-deputado do poder para passar a caneta para um general. “Ele não inspira confiança”, reconheceu um cacique do Centrão em conversa com a coluna.

Um cacique do Centrão é categórico ao rechaçar qualquer risco de “impeachment”, a começar porque falta o elementar: povo na rua. “Impeachment” depende de dois motivos: o político e o jurídico. A pandemia complica o elemento “povo na rua”, mas isso não basta para revisar a fórmula basilar dos impedimentos presidenciais: motivo político, primeiro; depois, o jurídico. “O motivo jurídico se arruma, no [Fernando] Collor foi o Fiat Elba, com a Dilma [Rousseff], foram as pedaladas, mas tem que ter o ingrediente da sociedade cobrando”, explica o líder do centro.

Nessa quadra, cresce a corrida pela terceira via capaz de quebrar a iminente polarização entre Lula e Bolsonaro. A novidade é que embora ainda figure nas pesquisas, o nome do apresentador Luciano Huck foi alijado das conversas de bastidores no Centrão. Com Lula no jogo, a convicção unânime é de Huck refugou. Por ora, o ex-juiz Sergio Moro também não é levado a sério como presidenciável, apesar da boa performance nas pesquisas.

Sem Huck e Moro, o nome que mais empolga no momento é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM. Na pesquisa Ipespe realizada no Estado de São Paulo, encomendada pelo Valor, Mandetta alcançou 6% no cenário com o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, disputando, sem João Doria.

Entretanto, o DEM também já colocou no radar de presidenciáveis o nome do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que larga com alguma vantagem em relação ao correligionário: ocupa cargo de visibilidade nacional, e é mineiro, representante do segundo maior colégio eleitoral, berço de presidentes da República, desde a política café-com-leite, até Tancredo neves e Itamar Franco.

Para citar os mineiros, faz falta a Bolsonaro um conselheiro político do quilate de Tancredo Neves, que serviu a Juscelino Kubitschek. Tancredo ajudou o poeta Frederico Schmidt a redigir para JK um pronunciamento que se tornou famoso ao repelir uma rebelião militar. A frase mais forte proclamava: “Deus poupou-me do sentimento do medo”.


Eliane Catanhede: Proliferam não só nomes, mas frentes para um projeto pela democracia, pela vida

Em debate, Ciro, Doria, Haddad, Leite e Huck focam na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial ‘genocida’

O principal recado do debate entre Ciro Gomes, João Doria, Fernando Haddad, Eduardo Leite e Luciano Huck, sábado à noite, foi a civilidade, até gentileza entre eles, ao longo de quase três horas. Deixando as divergências de lado, eles focaram na convergência contra os retrocessos do presidente Jair Bolsonaro, tratado por adjetivos ácidos, puxados pelo já trivial “genocida”.

Há inúmeras frentes para virar a página Bolsonaro e tocar a reconstrução do País, uma espécie de transição à la Itamar Franco pós-Collor. Assim como naquela época, o PT não participa de um projeto de união nacional, mas Haddad compôs bem a mesa, com conhecimento e sobriedade.

Ciro Gomes, ex-candidato três vezes à Presidência, ex-ministro e ex-governador do Ceará, é o que mais impressiona, com seu malabarismo verbal para juntar temas diferentes, amontoar números e produzir uma imagem de experiência e competência. Foi, também, responsável pela maior lista de “atributos” do presidente.

Doria foi Doria, a começar do vídeo e do áudio impecáveis, tudo milimetricamente programado. O governador de São Paulo explorou o fato de ter liderado a guerra pelas vacinas contra a covid no País e deixou o carimbo mais contundente contra Bolsonaro: “mito das mortes”.

Haddad, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro da Educação e ex-adversário de Bolsonaro no segundo turno de 2018, foi menos candidato, mais militante, preocupado em defender os feitos dos governos do PT, enquanto batia duro no “autoritarismo” de Bolsonaro.

Eduardo Leite, o jovem tucano que saiu de uma prefeitura do interior para o governo do Rio Grande do Sul sem passar pelo Legislativo, mediu palavras e fugiu da eloquência e da agressividade dos demais contra o presidente e o governo. Foi bastante crítico, mas num tom abaixo.

Essas impressões são, de certa forma, consensuais, mas quem mais dividiu opiniões foi Huck, celebridade sem passagem pelo setor público. Para uns, incapaz de enfrentar o debate no campo da economia e das políticas públicas. Para outros, foi o que focou nos dois temas do futuro: era digital e desigualdade social. “Mais jovem, mais atualizado”, resumiu uma importante jornalista. Se isso define um bom candidato, é outra história.

No final, o professor Hussein Kalout, que dividia comigo a mediação no encerramento da Brazil Conference, organizada por estudantes brasileiros de Harvard e MIT, lançou um desafio: Bolsonaro fez algo de bom? O primeiro a cair na armadilha foi Ciro: a menor taxa de juros em 30 anos. Leite citou a reforma da Previdência. Huck, o auxílio emergencial.

Na verdade, a reforma veio do governo Temer e o auxílio emergencial foi obra do Congresso. Haddad foi no ponto: todo governo democrático tem qualidades e defeitos, mas os “autoritários” não têm qualidades. E Doria concluiu: o grande feito de Bolsonaro foi transformar o Brasil em pária internacional. Só ele conseguiria isso.

Foram abordados: pandemia, fome, economia, política externa, ambiente, educação, ciência e tecnologia, mas também autoritarismo e investidas sobre polícias estaduais. Ao citar o motim da PM do Ceará, quando seu irmão, senador Cid Gomes, levou dois tiros, Ciro Gomes disse que a intenção de Bolsonaro é “formar uma milícia militar para resistir, de forma armada, à derrota eleitoral”. O temor é generalizado.

Exceto Haddad, os outros já tinham assinado um manifesto pela democracia e novos nomes nessa linha continuam surgindo: Tasso Jereissati, Temer, Luiza Trajano, Luiz Henrique Mandetta... Quem tem tantos nomes é porque não tem nenhum, mas o fundamental é que proliferam frentes para construir um projeto de união nacional pela democracia, pela gestão, pela vida. É assim que tudo começa...


Folha de S. Paulo: Bolsonaro é resposta tosca, mas não ameaça a democracia, diz Mangabeira Unger

Guru de Ciro Gomes diz que PT preferiu ser derrotado a perder a atual hegemonia na esquerda

Por Carolina Linhares, da Folha de S. Paulo

Para o filósofo Roberto Mangabeira Unger, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) é uma resposta tosca a uma aspiração legítima do Brasil profundo de botar para quebrar.

O professor da Universidade Harvard (EUA) critica a hegemonia do PT, de Lula. "Como eles vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria."

Guru de Ciro Gomes (PDT), ele assume erros na campanha.

 Qual o significado da eleição de 2018? 
Foi um plebiscito sobre a volta do PT. A maioria decisiva dos brasileiros estava disposta a pagar quase qualquer preço para evitar o retorno do PT. O PT e o Lula deveriam ter tido a grandeza de reconhecer que a maioria dos brasileiros não aceitaria a volta do PT. Não havia qualquer chance de vitória do candidato do PT, mesmo que Lula pudesse ter sido candidato. O natural é que o PT desde o início tivesse apoiado Ciro.

E por que Ciro não venceu? 
Ciro e nós, seus aliados, cometemos um erro. Havia dois caminhos. Um era acertar-se com Lula e com o PT. Aceitar ser vice de Lula para depois virar cabeça de chapa. Havia objeções a isso, devido à diferença entre os projetos par o país e à falta de confiança nos acertos do PT, que tem uma longa história de dar rasteiras. Esse caminho tinha uma consistência tática.
O outro caminho era romper desde o início com o PT. Deixar clara a diferença de projeto e oferecer-se ao eleitorado como uma alternativa mais confiável do que Bolsonaro. O erro foi ficar no meio termo. Muitos até o final continuaram a achar que o Ciro era um homem de Lula. Isso é que foi fatal.

Ao não declarar apoio a Haddad no segundo turno, Ciro buscou esse afastamento? 
Tarde demais para superar os males gerados por essa ambiguidade. Ciro passou muito tempo explicando-se para as classes ilustradas e endinheiradas, que na maioria jamais votariam nele, em vez de buscar o povão.

Qual dos caminhos que o sr. mencionou para Ciro era melhor? 
Os dois tinham consistência. Se ele escolhesse o acerto com o PT, não havia nenhum risco de que, no poder, ele se conduziria como instrumento do lulismo. Eu advoguei essa alternativa.

O sr. não disse que tem que correr fora da raia do lulismo? 
Você está fazendo confusão. Uma coisa é o caminho tático. Nós não escolhemos as circunstâncias. Se fosse o primeiro caminho, haveria o problema da confusão da população, porque ficaria manifesto que o Ciro tem um outro projeto.

Mas ele seria eleito? 
Com grande chances, com o apoio de Lula, mas sendo não-Lula e sendo quem é, inconfundível com poste, teria grandes chances. O [caminho] preferível teria sido começar de lá de trás essa pedagogia da diferença.

O sr. disse que é preciso correr fora da raia do lulismo... 
Eu não disse isso, Fernando Haddad atribuiu essa frase a mim, porque ele confundiu duas coisas: a questão tática com a questão de fundo. Sinceramente eu acho que ele, meu amigo, até hoje não compreende a diferença substantiva dos projetos.

Como o sr. explica a ascensão de Bolsonaro?
PSDB e PT juntos, duas cabeças da mesma serpente, conduziram o Brasil por uma lógica da cooptação. Cada parte do país foi comprada, a corrupção foi apenas um dos vários corolários desse sistema. Intuitivamente o Brasil buscava passar da lógica da cooptação para a lógica do empoderamento. E por trás dessa rejeição ao PT havia o repúdio à lógica da cooptação.
O modelo que chamamos de nacional consumismo democratizou a economia do lado da demanda e do consumo, não do lado da produção. O agente social mais importante do Brasil, os emergentes, é órfão de projeto político. Não é apenas a pequena burguesia empreendedora mestiça, morena, que vem de baixo. É também uma multidão de trabalhadores pobres que vê nos emergentes a vanguarda. Essa é a cara do Brasil profundo.

A esquerda abandonou essa população? 
Chamar de esquerda o PT é muito esquisito. Porque esse nacional consumismo não tinha qualquer projeto de mudança estrutural. A parte social é o açúcar com que se pretendia dourar a pílula do modelo econômico. Esse Brasil profundo quer desesperadamente mais do que açúcar. Quer instrumento e oportunidade. Quer botar pra quebrar, criar, construir, inovar, ser gente. ​Bolsonaro é o beneficiário acidental desse desejo frustrado. Acidental não é para desmerecer o esforço que ele fez durante anos de construir um discurso e canais para esse Brasil desconhecido, que é o agente decisivo hoje.

Bolsonaro teve essa estratégia ou foi sem querer? 
Intuitivamente sim [teve estratégia]. Oferece soluções simplistas, mas que no imaginário apelavam para uma ideia de libertação e merecimento. Era a forma simplista e até distorcida e mentirosa de uma aspiração legítima.

Por que o PT não apoiou Ciro? 
Tudo indica que preferiam perder o poder à direita a perder a hegemonia na esquerda. Por soberba, sobrevalorizando a sua influência sobre a população e subvalorizando a descoberta pelo povo brasileiro da insuficiência do projeto petista. Um povo farto da lógica da cooptação nacional consumismo e buscando o empoderamento. Isso era o mais difícil de eles aceitarem porque seria uma crítica fundamental a eles mesmos.

O sr. concorda com essa estratégia de oposição sem o PT? 
Existe a tarefa pedagógica de esclarecer a divergência de fundo. PT não é esquerda. Precisamos de inovação estrutural. Andar demais com o PT é um perigo sob o ponto de vista dessa tarefa.
E eles continuam a ter aspirações hegemonistas, então é difícil andar com eles. Acham natural eles liderarem. Como vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria.
Não é razão para não conversar com eles. Por exemplo, eu hoje à noite [dia 5] vou jantar com Haddad. Não vou dizer que eles são diabólicos, mas os puritanos nos EUA têm um provérbio: “quando jantar com o diabo, use uma colher muito comprida”.

Do ponto de vista eleitoral, é possível que a esquerda chegue ao poder rejeitando Lula e o lulismo?
Precisará de eleitores que votaram em Lula, não precisará necessariamente do PT e do Lula. Gostaria que Lula tivesse grandeza de compreender tudo isso.

Bolsonaro fará um bom governo? 
Me parece promissor, e falo como opositor, a ideia de impor o capitalismo aos capitalistas. Nem de longe é condição suficiente para o modelo de desenvolvimento que precisamos, mas é condição preliminar. A radicalização da concorrência, quebra dos cartéis, a destruição dos favores dados aos graúdos pelos bancos públicos.
E de oferecer aos emergentes um projeto político que responde às aspirações deles. Considero que a resposta é tosca e que irá frustrar parte da população. Mas é melhor do que nada. O que era intolerável no nosso país é que o agente social mais importante estivesse alienado da política e não se sentisse representado.

Como e quando a população será frustrada? 
Quero acreditar que o momento Bolsonaro seja um primeiro momento em que rejeitamos a cooptação e tentamos constituir, numa forma tosca e insuficiente, a lógica do empoderamento.
O provável é que Bolsonaro consiga alguns feitos, mas que pare no meio do caminho. [Ele] Julga que o conserto das regras tributárias e da Previdência melhoraria o ambiente geral dos negócios. É uma preliminar indispensável, mas não resolve o problema.
A democratização do consumo se pode fazer só com dinheiro, mas democratizar a produção exige inovação institucional política e econômica. É uma nova vanguarda, da economia do conhecimento. Não há nenhum país grande no mundo que por sua natureza tenha mais pendor para esse experimentalismo radical do que o Brasil.Há
um empreendedorismo vibrante no Brasil, mas em grande parte, primitivo. Teríamos que começar a qualificá-lo. Temos que burilar nossa vitalidade, não difamá-la como barbárie e regressão.

Bolsonaro não é o experimentalismo radical? 
Não. Não é a ideia de que existe a forma simplista de acabar com a bagunça. A ordem na sala de aula, a força contra crime, é o presidente não comprar os partidos. Não é acabar com a bagunça, é transformá-la numa anarquia criadora. Não vamos impor ao país uma camisa de força.
A severidade moralizante, a fórmula pronta, o revólver, a ordem patriarcal. Tudo isso é uma fantasia arcaica, de que há um atalho, uma maneira simples de encontrar esse futuro que queremos. O Brasil vai descobrir que esse atalho não funciona, mesmo assim eu julgo que essa primeira onda será útil ao país e talvez, retrospectivamente, venhamos a pensar que ela foi necessária.

Bolsonaro é uma ameaça à democracia? 
Não vejo qualquer indício concreto de ameaça direta à democracia. Em Harvard, meus colegas me abraçam em solidariedade porque passa por lá que Mussolini assumiu o poder. Não é nada disso. O risco que nos ronda não é a ditadura fascista, é a perpetuação da mediocridade. O risco à democracia pode haver depois, por sucessivas frustrações dessas aspirações dos emergentes, de empoderamento.

Como vê Sergio Moro no Ministério da Justiça? 
Outro aspecto positivo de Bolsonaro é a desorganização dos acertos entre oligarquia do poder e oligarquia do dinheiro. Moro pode ser útil nisso. Muito bom para o país. Desde que não caiamos sob o governo dos juízes, que não têm eficácia ou legitimidade para governar. Eles são úteis ao país para abrir o espaço cívico e impedir que ele seja corrompido, mas não para ocupá-lo.

O que acha da política externa de Bolsonaro?
Há duas vozes dominantes na política exterior brasileira. A primeira é a da política exterior como sucursal da UNE. É retórica, nunca foi real. Por exemplo, nos assuntos da Defesa, o Brasil é um protetorado dos EUA e o PT nunca levantou um dedo para mudar isso. A outra voz é a política exterior como sucursal da Fiesp. É um bazar para vender os nossos produtos.
O que eu temo é que a política exterior do governo Bolsonaro venha a ser a continuação da mesma coisa, a justaposição dos dois erros. É o simbólico com sinal trocado, em vez de anti-imperialismo é antiglobalismo. Um tão ruim quanto o outro. Justaposto ao pequeno mercantilismo. É um bazar permanente.

E a relação com os EUA?
De um lado, dizemos “vamos ser como eles”. Eles buscam grandeza, nós vamos buscar grandeza. E qual a fórmula da grandeza? É nos subordinar a eles. Isso é algo que não passa, justificado por essa retórica confusa do antiglobalismo.
É a ambiguidade do discurso do Bolsonaro. Não está só trocando o sinal, passando de uma política ideológica para outra e não concebendo a política exterior como política de estado. Estão usando a política exterior como se fosse o reino do simbólico. Os astrólogos escolherem chanceleres. Isso só aconteceu na Babilônia há três mil anos.

 


O Globo: Em novo documento, PT desiste de autocrítica e enaltece Haddad

Dirigentes da legenda decidiram retirar trechos que falavam em autocrítica do partido e críticas aos governos da ex-presidente Dilma Rousseff

BRASÍLIA — Após dois dias de reuniões em Brasília, dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) decidiram retirar do documento que norteará a atuação da legenda trechos que falavam em autocrítica do partido e críticas aos governos da ex-presidente Dilma Rousseff , que sofreu impeachment e foi afastada do cargo em definitivo em 31 de agosto de 2016.

A inclusão de críticas no documento proposto na sexta-feira incomodou correntes internas, o que fez a direção da legenda recuar. Presidente do PT, Gleisi Hoffmann disse neste sábado que não haverá autocrítica no documento porque isso já é feito "na prática":

— Não tem autocrítica no texto, o PT faz autocrítica na prática. O PT fez financiamento público de campanha, o PT está reorganizando as bases, o PT está com movimento social. Nós não faremos autocrítica para a mídia e não faremos autocrítica para a direita do país — disse a senadora.

Em vez de apontar "equívocos" ocorridos nas gestões petistas, o que constava inicialmente no texto, o novo documento enaltece a participação de Fernando Haddad nas eleições deste ano, na qual foi derrotado por Jair Bolsonaro no segundo turno, e retrata o ex-prefeito de São Paulo como uma liderança em ascensão no partido.

"É imprescindível ressaltar nesse balanço que o companheiro Fernando Haddad se projeta como uma nova liderança nacional do Partido. Defendeu o legado do PT, ao mesmo tempo em que simbolizou aspectos de renovação política e social de que o PT é capaz, logrando conjuntamente com a militância democrática, da esquerda e do partido chegar ao final do segundo turno com 47 milhões de votos. É com este saldo político que Fernando Haddad poderá cumprir destacado papel frente aos novos e complexos desafios da conjuntura", diz um trecho do texto.


Valor: "Foi uma campanha despolitizada, de argumentos rasos e simplistas", diz Lula Guimarães

"Foram 4 horas e 8 minutos de exposição sobre a facada, só em telejornais, até o final do primeiro turno, com vitimização"

Por Malu Delgado, do Valor Econômico

SÃO PAULO - Campanhas eleitorais costumam ser uma mistura de circo com guerrilha, brinca o jornalista Luiz Flávio Guimarães, conhecido no marketing político-eleitoral como Lula Guimarães. Decantada a pressão que enfrentou na disputa presidencial, Lula Guimarães falou ao Valor sobre consequências que a eleição do WhatsApp pode gerar para o marketing político.

Segundo o especialista, que conduziu a campanha presidencial de Geraldo Alckmin (PSDB), a campanha na televisão não pode ser considerada desprezível. Ele alerta que cada candidato tem um perfil, e o de Bolsonaro casa como luva à linguagem das redes. "Essa exaustão de desgaste da classe política foi o fermento para crescer o bolo de conservadorismo no qual o Bolsonaro embarcou."

Ele realça que após o atentado do qual foi vítima Bolsonaro ganhou ampla exposição em entrevistas de televisão. "Nós calculamos 4 horas e 8 minutos de exposição sobre a facada, se juntássemos só os telejornais nacionais, até o final do primeiro turno. É uma exposição na TV de alta qualidade, porque é jornalismo, e não propaganda. E com vitimização", disse.

Guimarães lamenta o nível de despolitização desta campanha, que considerou "rasa". Para ele, "a sociedade, a política e os tribunais" precisam responsabilizar os autores da disseminação de mensagens obscuras e feitas no campo da ilegalidade. Neste sentido, para o marqueteiro, o WhatsApp não necessariamente é ferramenta de campanha eleitoral, mas sim de guerrilha.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Essa eleição presidencial marcou um novo paradigma sobre a influência da TV, por seu diagnóstico? Isso lhe surpreendeu, como profissional de marketing político?
Guimarães: Não acho que a TV seja desprezível, sinceramente. Se o Bolsonaro tivesse tido três minutos [na TV], seria eleito no primeiro turno. Não tenho dúvida. Assim como no caso do PT e do Haddad a televisão se mostrou muito eficaz para transferência de votos do Lula, em pouquíssimo tempo. O que vejo, também, é que alguns candidatos são adequados a alguns meios. O Bolsonaro é um candidato muito adequado para o tipo de comunicação que as pessoas consomem. Bolsonaro é espontâneo, polêmico. Esses dois elementos alimentam muito a rede social. Recebi uma pesquisa, um ano antes da campanha, mostrando que existia, na rede, um perfil de compartilhadores. Esse perfil aparece muito mais entre os radicais, tanto de direita, quanto de esquerda. Um ano antes da eleição já era perceptível um engajamento, bastante forte, dos apoiadores do Bolsonaro, muito mais ativos que os eleitores que se posicionam pelo centro.

Valor: E como analisar o poder da TV em paralelo ao das redes?
Guimarães: Apesar do reconhecimento de que Bolsonaro utilizou as redes de maneira muito intensa e eficaz, acho que é preciso este olhar equilibrado. A televisão, nas eleições estaduais, manteve sua forte influência. Bolsonaro é muito adequado para as redes sociais. Já Alckmin é formal, e talvez a informalidade seja a característica mais consumida nas redes. Outra coisa que é preciso destacar, que é um registro polêmico, mas verdadeiro: Bolsonaro tem um crescimento muito espontâneo nas redes sociais, no WhatsApp e no Facebook, mas não dá para dimensionarmos o quanto disso foi bancado, patrocinado por alguém.

Valor: Além do custo financeiro, a disseminação das mensagens parecia seguir padrão de conteúdo e formato, com trabalho profissional.
Guimarães: Sim, exato. Custa dinheiro e organização. As mensagens tinham lógica de pauta, conteúdo e direcionamento. Por mais espontâneo que seja, quem faz isso é profissional.

Valor: Depois da execração dos marqueteiros, agora é a vez do marketing político obscuro das redes?
Guimarães: Evidentemente as campanhas no Brasil tiveram muito caixa dois, muitos candidatos que se elegeram com isso. Mas muitos trabalharam com orçamento baixo, não ficaram milionários e fizeram um trabalho correto. Os marqueteiros continuam tendo papel importantíssimo. Tivemos eleições que foram vencidas por marqueteiros super competentes. No Rio Grande do Sul, o Eduardo Leite (PSDB) teve uma campanha feita pelo Fábio Bernardi, que é excelente. A campanha no Pará, do Hélder Barbalho (MDB), foi feita pelo Ricardo Amado, responsável pela vitória dele. Há uma série de profissionais que foram responsáveis por vitórias políticas nos Estados, muito bem conduzidas.

Valor: Essa foi a eleição do WhatsApp no Brasil?
Guimarães: O alerta mais importante para a sociedade, para a política e para os tribunais é procurar responsabilizar o autor de determinado tipo de comunicação e de mensagem. Em campanhas sempre houve a mensagem apócrifa, o jornal apócrifo, o lambe-lambe, os 'matraqueiros', pessoas colocadas em ônibus e locais públicos para disseminar mensagens falsas. Isso sempre existiu, mas não com o poder, a velocidade e a abrangência do WhatsApp. A ferramenta é muito mais um elemento de guerrilha do que de campanha. Alguns candidatos investiram muito nesta guerrilha. Como ela é ilegal, do ponto de vista da lei eleitoral, algumas candidaturas não investiram nisso.

Valor: Mas em que medida os profissionais do marketing foram surpreendidos por esta ampla rede de apoio de Bolsonaro?
Guimarães: Há dois fenômenos que temos que considerar fortemente para estudo: os protestos de 2013 e a greve de caminhoneiros [em maio deste ano], que parou o País de maneira acachapante. Esses dois movimentos foram caracterizados pela mobilização rápida via WhatsApp. Até que ponto a sociedade precisa encontrar mecanismos para se prevenir destas ferramentas, que são libertárias, mas de fakenews, e de uma atuação organizada que pode dar mais margem a radicalismos? O Brasil foi o campeão do uso do Orkut. Está em segundo lugar mundial de usuários do Facebook. Temos uma sociedade muito ávida por compartilhamentos, pelo uso destas redes sociais e interação. Aí não dá para saber se isso é o responsável pelo Bolsonaro ou o Bolsonaro foi o responsável por isso na eleição.

Valor: Como foi administrar todas as cobranças externas, do partido e do candidato para que a TV desse resultado?
Guimarães: Nosso posicionamento foi por procurar, logo de cara, ampliar os eleitores do Alckmin no campo azul, que já tinham sido eleitores do PSDB e migraram para o Bolsonaro. Na primeira semana de campanha, aumentamos muito a rejeição do Bolsonaro e crescer nossos pontos. A facada interrompe esse processo. Aí há uma inversão completa. O tempo de televisão que o Bolsonaro passa a ter nas matérias de jornalismo, além da isonomia que as TVs dão, passa a ser o maior de todos os candidatos. Nós calculamos 4 horas e 8 minutos de exposição se juntássemos só os telejornais nacionais, da facada até o final do primeiro turno. É uma exposição na TV de alta qualidade, porque é jornalismo, e não propaganda. E com vitimização.

Valor: A estratégia de desconstrução de Bolsonaro teve que se revista rapidamente.
Guimarães: Esse foi o maior desafio da campanha, como continuar fazendo a desconstrução do Bolsonaro sendo que ele tinha sido vítima de uma facada. Nossa opção naquele momento foi reforçar os atributos positivos do Alckmin em comparação aos demais. Nossa dificuldade é que o Alckmin representava, naquele momento, o establishment, seja por ter sido governador por 4 vezes, seja por ter apoio do Centrão.

Valor: O centrão acabou sendo um tiro no pé?
Guimarães: Não sei, talvez se não tivesse o Centrão o resultado tivesse sido ainda pior.

Valor: Essa campanha trouxe esse debate sobre comunismo. Como enxerga isso sob o ponto de vista do marketing?
Guimarães: Essa campanha trouxe uma despolitização. Ela deixou de debater os temas nacionais mais importantes e passou a ter argumentos muito rasos, e apoiados pelo excesso de fakenews, que dominaram a pauta. Até agora não sabemos claramente o que o Bolsonaro propôs porque ele nunca propôs, não foi a debates. Mas sobretudo em relação à qualidade da comunicação é uma campanha de argumentos rasos e simplistas. Esse apelo de que a esquerda significa uma ameaça comunista é tão inadequado! Onde é que o comunismo dá certo hoje no mundo? Não estamos na Guerra Fria.

Valor: O que predominou no debate eleitoral foi o antipetismo ou o antiestablishment?
Guimarães: Uma mistura das duas coisas. O PT, pelo tempo que ficou no poder, de certa maneira significa o establishment. De 2002 até agora o PT ficou no poder, há um desgaste pelos fracassos do governo Dilma, pelos escândalos de corrupção. E, de alguma maneira, se atribuiu à esquerda um certo de liberalismo, falta de valores morais. A direita fez esse discurso e isso colou. Você é gay, então é de esquerda. Você é artista, então é de esquerda. Assim. Chegou uma hora em que as pessoas achavam que tudo o que podia ser alternativo era de esquerda.

Valor: O que fica para o marketing político pós-Bolsonaro?
Guimarães: A sociedade e o mundo caminham com movimentos de ação e de reação. De certa maneira o que nós colhemos agora, na campanha do Bolsonaro, não deixa de ser uma reação ao governo do PT e ao que o Brasil passou nos últimos tempos. Essa exaustão de desgaste da classe política foi o fermento para crescer o bolo de conservadorismo no qual o Bolsonaro embarcou. Da mesma maneira que isso é uma reação, Bolsonaro agora passa a ser uma ação que deve provocar outra reação. E essa reação pode gerar, inclusive, o crescimento de uma força e crescimento de uma esquerda que estava desarticulada.

Acho que vamos ter, agora, uma avalanche de profissionais vendendo o jeito Bolsonaro de fazer campanha, com presença nas redes sociais. Mas isso tem que ter adequação, ao candidato, à circunstância. O discurso tem que casar com o perfil do candidato. O programa de cinco minutos do Bolsonaro no segundo turno tinha pouco conteúdo político, era mais um ataque ao PT. Era muito mais antagonista do que um programa construtivo.


Merval Pereira: Não aprendeu nada

Derrotado por sentimento majoritário antipetista e antilulista, PT mantém-se na posição de dono da esquerda

Parafraseando Talleyrand, ministro dos Negócios Estrangeiros por quatro vezes e o primeiro primeiro-ministro da França com Luis XVIII, o PT não esqueceu nada, não aprendeu nada. Talleyrand se referia aos Bourbons, que reassumiram o poder na sequência da Revolução Francesa, que havia decapitado Luis XVI, e não entenderam os novos tempos. Foram derrubados novamente anos depois.

O PT, depois de ter sido derrotado por um sentimento majoritário antipetista e antilulista, mantém-se na posição de dono da esquerda brasileira, anunciando uma oposição sem trégua ao novo governo, a partir do patético discurso da derrota de Fernando Haddad. O fracasso parece ter-lhe subido à cabeça, e também à da presidente do PT, Gleisi Hoffmann.

Haddad insistiu na “prisão injusta” do ex-presidente Lula, e Gleisi, na antevéspera da eleição, disse que o presente ideal para Lula seria indultá-lo. Só no dia seguinte se dignou a enviar um voto de boa sorte através do Twitter. As urnas disseram o que pensam sobre isso.

Depois dos discursos contundentes do senador Cid Gomes e do rapper Mano Brown, que jogaram água no chope petista ao denunciarem os equívocos cometidos pelo partido, e seu distanciamento do povo, foi a vez do candidato terceiro colocado na corrida presidencial, Ciro Gomes, que adotou uma posição de bom senso e anunciou um claro rompimento com o PT.

Em entrevista à “Folha de S.Paulo”, faz várias críticas ao partido, que se quer hegemônico e é traidor, na sua opinião. O PDT vai entrar em rota de colisão com o PT, que muito provavelmente ficará isolado na condição de oposição radical a qualquer preço. Ciro parece querer ser uma oposição mais equilibrada, até onde isso é possível tratando-se de um político com seu temperamento. Haverá um caminho pelo meio para a oposição de esquerda, mais responsável, que pode render frutos para sua liderança.

A única chance de o PT voltar a se colocar como grande esperança do povo brasileiro é se nada no governo Bolsonaro der certo. Por isso, o partido jogará no quanto pior, melhor, apostando no fracasso do governo Bolsonaro. Não é a primeira vez que o PT faz isso: não votou em Tancredo Neves para presidente, não apoiou o governo de transição de Itamar Franco, não assinou a Constituição de 1988, não apoiou o Plano Real.

A denúncia de uma suposta parcialidade do juiz Sergio Moro contra Lula, por ter sido convidado por Bolsonaro para o Ministério da Justiça, é tão absurda quanto as insinuações que partidários de Lula fizeram em 1989, após ele ter sido derrotado por Fernando Collor no segundo turno da primeira eleição direta depois da redemocratização. Collor convidou o ministro Francisco Rezek, do STF, que coordenara a eleição como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para ministro das Relações Exteriores.

Rezek aposentou-se do cargo de ministro do STF para poder compor o Ministério, mas, em 1992, retornou ao STF, período em que Collor lutava para escapar do processo de impeachment —ele não participou do julgamento de Collor por considerar-se impedido. Para que Rezek pudesse retornar ao STF, Célio Borja, que tinha sido assessor especial de Sarney, que o nomeou em 1986 para o STF, aposentou-se, em abril de 1992, assumindo o Ministério da Justiça no chamado “Ministério dos notáveis” de Collor, última tentativa de resistir à queda política.

A integridade e credibilidade do ministro Rezek não foi afetada, pois foi nomeado membro da Corte Internacional de Justiça da ONU, em Haia. É o mesmo processo de agora, quando os advogados de Lula, e os líderes petistas, consideram prova de parcialidade de sua atuação o juiz Sergio Moro ser convidado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro para ministro da Justiça.

Moro provavelmente aceitará o convite, depois de conversar com o presidente eleito hoje, e a principal medida será a elaboração de um Plano Nacional contra a Corrupção. Nada mais natural que um candidato eleito em grande parte pela luta contra a corrupção e o apoio à Operação Lava-Jato convide para seu governo o símbolo maior desse combate.


Bruno Boghossian: PT e esquerda saem defasados do ciclo que elegeu Bolsonaro

O PT e a esquerda saíram defasados do ciclo político que elegeu Jair Bolsonaro. O movimento de oposição ao novo governo deve preservar a relevância dos partidos derrotados, mas seu futuro dependerá de uma correção de rumos.

As principais marcas da eleição deste ano foram a renovação e a repulsa à política tradicional. Os petistas apostaram no caminho inverso: tentaram reciclar o governo Lula e formaram uma tropa composta especialmente por veteranos.

No PT, a atualização de quadros no Congresso ficou bem abaixo da média. Dos 56 deputados eleitos pela sigla, só quatro podem ser considerados novidades. Quarenta já estavam na Câmara, oito são deputados estaduais e outros quatro exerceram cargos relevantes nos últimos anos.

Embora o partido seja um dos únicos com uma vida partidária que estimule o surgimento de novos nomes, os petistas parecem ter perdido o bonde de 2018. Fernando Haddad, derrotado na corrida presidencial, desponta como principal aposta para recuperar o tempo perdido.

O presidenciável do PT enfrentará algumas barreiras nesse processo. Estará sem mandato (o que reduz o alcance de sua voz), enfrentará resistências de parte da burocracia da própria sigla e terá Ciro Gomes como concorrente na esquerda pelo papel de protagonista da oposição.

O maior desafio, no entanto, deve ser a reconfiguração de uma agenda partidária que parece obsoleta. O PT acreditou que a lembrança dos bons momentos do país sob Lula seriam suficientes na campanha, mas ignorou demandas sociais que foram os trampolins da eleição de Bolsonaro: a intolerância com a corrupção e o combate à violência.

A vitória de Haddad no Nordeste confirma o forte peso do legado petista de combate à miséria. A derrota nas demais regiões mostra que essa pauta se tornou insuficiente.

O desempenho de Bolsonaro no poder vai determinar se o anseio por renovação ficará vivo. Em quatro anos, o PT pode apresentar um novo estilo ou apostar numa onda retrô.


Alberto Aggio: “A alternância no poder se fará com legitimidade e democraticamente”

Ao analisar a vitória do candidato do PSL Jair Bolsonaro, eleito neste domingo (28) o 42º presidente do Brasil com uma diferença de mais de 10 milhões de votos sobre seu adversário, Fernando Haddad (PT), o professor e historiador Alberto Aggio disse que “a alternância no poder se fará com legitimidade e democraticamente”, operando uma “mudança grande” representada pela volta da direita ao governo federal – depois de “alijada do poder com o final da ditadura militar” -, ao derrotar todas as forças que participaram do processo de democratização do Brasil.

“Hoje a extrema direita emerge travestida de um populismo de perfil iliberal que tem vigência mundial”, disse Aggio, ao comentar o resultado da eleição presidencial (veja abaixo) para o Portal do PPS. O historiador também fala da reação do PT à derrota nas urnas, da fragmentação partidária dos governos estaduais e que o “Brasil está vivo. E, a despeito de tudo, ‘por si mouve’!”.

“A eleição acabou…

Bolsonaro venceu com mais de 10 milhões de votos de diferença. Não houve a virada de ultima hora que o PT imaginou. O Brasil tem um novo presidente. A alternância no poder se fará com legitimidade e democraticamente. Ela, de fato, vai operar uma mudança grande: a direita que havia sido alijada do poder com o final da ditadura militar retorna a ele, batendo todas as forças que participaram da democratização.

Mas o tempo não passou em vão. Hoje a extrema direita emerge travestida de um populismo de perfil iliberal que tem vigência mundial. Derrotado, o PT não alterou seu posicionamento. Não reconheceu a vitoria do seu opositor, pelo menos nos primeiros momentos. E, ato contínuo, Haddad afirmou um discurso que reproduz a divisão “nós contra eles”: Haddad assumiu a perspectiva de uma “outra nação” que vai precisar de “coragem” para enfrentar um suposto governo baseado exclusivamente da repressão a tudo e a qualquer coisa. Um irrealismo.

Por fim, no plano dos governos estaduais, não houve surpresa nenhuma. O resultado é de muita fragmentação, com diferentes partidos, os tradicionais e os novos (PSL e Novo), conquistando posições importantes. O PT se fixou no Nordeste, dividindo o poder principalmente com o PSB, e o restante está distribuído no território nacional. O PSDB venceu em Estados importantes, especialmente em São Paulo. Mas atenção: com Doria haverá um aggiornamento do PSDB, sob sua liderança. Esse é um ato democrático e é preciso não rejeitar, de saída, essa mudança.

O fato é que nem o MDB sofreu derrotas definitivas. Contudo, é preciso saber se haverá nova composição e um novo equilíbrio diante de tanta fragmentação. Quem diria: o Brasil está vivo. E, a despeito de tudo, ‘por si mouve’!

 


O Globo: Com 98% das urnas apuradas, Bolsonaro está eleito presidente do Brasil

Candidato do PSL aparece com 55,34% dos votos válidos, contra 44,66% de Haddad

RIO — Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente da República na noite deste domingo, derrotando no segundo turno o candidato do PT Fernando Haddad. A vitória foi confirmada às 19h18 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro tem 55,34% dos votos válidos, contra 44,66% para Haddad.

A pesquisa de boca de urna divulgada pelo Ibope na tarde deste domingo apontava Bolsonaro com 56% dos votos válidos, contra 44% para Haddad.

Os levantamentos de intenções de voto divulgados por Ibope e Datafolha no sábado apontavam uma vitória do candidato do PSL contra seu adversário do PT. O Datafolha apontou Bolsonaro com 55% dos votos válidos, contra 45% para Haddad. Já o Ibope mostrou Bolsonaro com 56%, enquanto Haddad apareceu com 44%.

No primeiro turno, Bolsonaro totalizou 49,2 milhões de votos, ou 46,03% dos votos válidos. Haddad avançou ao segundo turno com 29,28% dos votos válidos, com cerca de 31,3 milhões de votos.

Bolsonaro venceu em 631 dos 645 municípios paulistas . No estado, obteve pouco mais de 15 milhões de votos (68,01% dos válidos), mais que o dobro dos 7 milhões de Fernando Haddad (31,99%). O capitão da reserva saiu vitorioso inclusive na cidade de São Paulo — governada por Haddad entre 2013 e 2016. Lá, teve o apoio de 60,38% dos eleitores.

No Rio, o candidato do PSL obteve uma expressiva vitória. Integrante da bancada fluminense na Câmara dos Deputados, Bolsonaro tem 67,88% dos votos válidos, contra 32,12% de Fernando Haddad (PT). No Rio, já foram apurados 98,16% dos votos. No estado, o candidato do PSL obteve uma vantagem de quase 3 milhões de votos.

O discurso da vitória
Em uma live no Facebook, logo após a declaração oficial da vitória, Bolsonaro disse que governará o país seguindo "os ensinamentos de Deus ao lado da Constituição brasileira" . O parlamentar ressaltou que tem condições de governabilidade e que honrará compromissos assumidos durante a campanha com bancadas políticas e eleitores.

— O que eu mais quero é, seguindo os ensinamentos de Deus, ao lado da Constituição brasileira, inspirando em grandes líderes mundiais e com boa assessoria técnica, isenta de indicações políticas de praxe, começar a fazer um governo a partir do ano que vem que possa colocar o Brasil no lugar de destaque. Temos tudo para sermos uma grande nação. Temos condições de governabilidade com parlamentares. Todos os compromissos assumidos serão cumpridos com as mais variadas bancadas e o povo em cada local do Brasil.

Jair Bolsonaro iniciou sua carreira política em 1988, quando se elegeu vereador pelo Rio de Janeiro. Em 1990, Bolsonaro foi eleito deputado federal pela primeira vez. Atualmente, o capitão da reserva está em seu sétimo mandato consecutivo na Câmara dos Deputados.

Bolsonaro, de 63 anos, nasceu em Glicério, no interior de São Paulo. O novo presidente do Brasil serviu ao Exército entre 1977 e 1988, e chegou à patente de capitão. Três filhos de Bolsonaro também ocupam cargos políticos: Flávio, senador eleitor pelo Rio; Eduardo, deputado federal reeleito por São Paulo; e Carlos, vereador na capital fluminense.

Apoiadores de Bolsonaro fizeram festa ao longo do dia na frente da sua residência, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. Eleitores do candidato do PSL chegaram a fazer desafios de pagar 17 flexões, em referência ao número do partido. Alguns deles organizaram um churrasco na frente do condomínio de Bolsonaro.

Após sofrer um atentado a faca em Juiz de Fora (MG) durante um evento de campanha, no início de setembro, Bolsonaro teve de passar por cirurgia e colocou uma bolsa de colostomia. O presidenciável passou cerca de três semanas internado, a maior parte desse tempo no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Depois que recebeu alta hospitalar, Bolsonaro passou a maior parte do tempo em sua residência, na Barra da Tijuca, onde recebeu aliados para traçar os passos seguintes da campanha e manteve comunicação diária com eleitores através de publicações em redes sociais. Bolsonaro alegou motivos de saúde para não participar de debates com Fernando Haddad no segundo turno.


Ricardo Noblat: À espera da fumaça branca

O PT já está no lucro

Existem chances, sim, de uma virada que por gigantesca e surpreendente seria chamada de histórica. Mas o mais provável ainda é que ela não aconteça, e que Jair Bolsonaro (PSL) vá dormir esta noite na condição de eleito presidente da República do Brasil.

Se o segundo turno não fosse hoje, talvez daqui a uma semana – quem sabe? Ou se Lula tivesse liberado mais cedo Fernando Haddad (PT) para concorrer no seu lugar… Se o louco de Juiz de Fora não tivesse esfaqueado Bolsonaro… Ou se, se, se…

O país sairá rachado desta eleição, mas isso não será nenhuma novidade, ora. Saiu rachado da eleição presidencial de 2014 quando Dilma Rousseff, que se negou a abdicar em favor de Lula, por pouco não foi derrotada por Aécio Neves (PSDB).

Não foi por isso que ela caiu. O racha poderá ser bom ou ruim a depender do comportamento futuro do vencedor. Em 2002, depois de três derrotas consecutivas, Lua ganhou com 62% dos votos. Ninguém superou a marca desde então.

Poderia ter se valido da expressiva vitória para tentar impor todas as suas vontades, mas não o fez. Jogou o jogo, até mesmo no que o jogo sempre teve de mais sórdido e reprovável. Reelegeu-se. Elegeu Dilma e a ajudou a se reeleger.

O temor, que a essa altura parece dissipado, era de Bolsonaro se eleger com grande folga, estabelecer um novo recorde de votos e imaginar que o país acabara lhe dando um cheque em branco para pôr em prática todas as loucuras com as quais acenara.

Por natureza, formação e retórica autoritárias, Bolsonaro assusta, assusta muito o país que o rejeita e que continuará a rejeitá-lo. Ganhar de menos não fará dele um cordeiro. Nem operará o milagre de transformá-lo em um estadista. Mas poderá pôr freios nele.

Dada as circunstâncias adversas, Haddad já foi longe demais, e perigosamente longe para o próprio PT que jamais acreditou em sua vitória e nem a desejou. A levar-se em conta que seu candidato de fato está preso, o desempenho do PT superou as expectativas.

Por 5 milhões de votos
O tamanho da virada

A levar-se em conta as pesquisas Ibope e Datafolha divulgadas ontem à noite, Fernando Haddad (PT) precisará tomar de Jair Bolsonaro (PSL) ao longo do dia de hoje algo como 5 milhões de votos para se eleger presidente. Que tal?

Tudo indica que Bolsonaro já atingiu seu teto, e Haddad não. Mas um só poderá crescer se o outro cair. De todo modo, uma eleição que parecia terminada ainda não terminou.


Samuel Pessôa: A maré da direita

A política está funcionando; se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas

No início, era o antipetismo. Essa coisa meio amorfa. Tomou a rua. Fiquei surpreso com o tamanho da onda.

No domingo passado (21), o capitão falou. À la Trump, disse um monte de impropérios. Condenou a diferença e prometeu destruir os opositores. Não falou nada muito diferente do que muito radical petista fala em convenção do partido.

Mas há conteúdo positivo, propositivo, no voto para o tenente que se aposentou como capitão.

Há uma genuína agenda conservadora em gestação. Reforço do direito de propriedade com a criminalização das invasões —seja de imóveis urbanos ou propriedade rural—, empregadas como mecanismo de pressão contra nossas desigualdades históricas.

Redução do gasto público com as organizações não governamentais e, penso eu, corte em benefícios da Lei Rouanet. Provavelmente cobrança de mensalidade para universidades públicas de quem pode pagar.

Recrudescimento das penas para crimes, flexibilização da maioridade penal, maior liberalidade no porte de armas e elevação das garantias de proteção à atuação das polícias no engajamento com criminosos.

Total reforço à Lava Jato. Possivelmente serão retomadas as Dez Medidas Contra a Corrupção do Ministério Público.

Aparentemente, esse será o governo de direita por aqui. Dado que, para os petistas, FHC era neoliberal e centro-direita, faltarão graus no transferidor do espectro político para posicionar Bolsonaro.

Os intelectuais, artistas e tantos outros terão que aprender que há legitimidade nessas pautas da direita. Elas serão tratadas no Congresso Nacional, e o STF, como instância contramajoritária, vai se pronunciar e terá poder de veto sempre que novas legislações ferirem disposições constitucionais.

A fala do tenente aposentado como capitão, porém, nada disse sobre como ele pretende tapar o buraco fiscal de R$ 300 bilhões.

Se Bolsonaro tiver sabedoria, tocará a agenda econômica o mais rapidamente que puder.

Tapar o buraco fiscal é tarefa do Congresso. No entanto, a tão alardeada renovação foi qualitativamente muito ruim. Diversos parlamentares que conheciam a natureza do problema e as entranhas do sistema político não foram reeleitos.

Não poderemos contar com a experiência desses e teremos de lidar com uma leva de novos atores que deverão se adaptar ao seu novo ambiente e destrinchar seus mecanismos de funcionamento, em um momento em que não há tempo.

Sim, o presidente que for eleito terá que propor, coordenar e liderar as ações, mas o desenho final do ajuste fiscal será construído invariavelmente pelo Congresso.

O risco é Bolsonaro inverter as pautas. Em um afã de agradar a seu eleitor, tocar a pauta da segurança e dos direitos de propriedade antes da pauta econômica. A segurança não vivenciará uma melhora repentina, o crescimento não virá a tempo, o país não sairá do imobilismo e, inevitável, a popularidade cairá. Simultaneamente, terá que administrar inúmeros conflitos com o Supremo nessas pautas.

Há histeria no ar com a possibilidade de um golpe clássico ou com a deterioração da democracia com Bolsonaro.

Não sei se a histeria é sincera ou segue de certa dificuldade da esquerda em conviver com pautas democraticamente escolhidas que sejam frontalmente contrárias aos seus pontos de vista.

A política está funcionando. Quando e se a democracia estiver em risco, iremos para as ruas. Hoje é o momento da política.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Bruno Boghossian: País vai precisar de mais do que palavras para juntar cacos da eleição

O chamado à união é o acessório mais barato do manual dos vencedores. Palavras de conciliação e pedidos de diálogo são o mínimo que um presidente eleito pode oferecer a seu país. É preciso ir muito além quando as circunstâncias exigem.

Quem acredita que uma eleição dá aval à maioria para esmagar a minoria não procura uma urna eletrônica, mas um rolo compressor. O discurso que o Brasil ouvirá ao fim da apuração ainda não será suficiente para evitar que a intolerância seja reconhecida como ferramenta política.

O líder nas pesquisas foi muito longe nessa direção. No comício que fez pelo celular no domingo passado, Jair Bolsonaro ameaçou punir adversários e banir opositores. A fala de pacificação que promete fazer caso confirme sua vitória não apagará seus instintos autoritários. A conciliação dependerá de atos concretos.

Reeleita em 2014, Dilma Rousseff falou cinco vezes em diálogo, mas não estendeu a mão, nem mencionou o nome do rival Aécio Neves. “Não acredito, sinceramente, que essas eleições tenham dividido o país ao meio”, declarou, encantada com o próprio triunfo na corrida presidencial mais apertada da história.

O que dizer, então, de uma disputa em que um ex-presidente foi para a cadeia, juízes e policiais censuraram debates nas universidades, torturadores foram defendidos abertamente, eleitores agrediram rivaise um candidato foi esfaqueado?

Quem for eleito terá a legitimidade democrática do voto popular e, espera-se, fará o tradicional discurso da pacificação. Esse esforço pode soar bem, mas a ferida aberta nessa campanha tão violenta não será cicatrizada apenas por palavras.

Divergências continuarão a existir após a eleição. É fundamental evitar que essas diferenças contaminem as relações políticas e, principalmente, governos e instituições.

Começa agora um trabalho coletivo para juntar os cacos da disputa. A sociedade, a imprensa, a polícia e o Judiciário terão o papel de garantir o cumprimento da lei, preservar direitos e proteger liberdades.