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Gustavo Franco: O fim do ano, fim da picada

A visita-comício na Ceagesp marcou o rompimento público do projeto liberal de Bolsonaro

Foi o mais longo dos anos recentes, a despeito de ter iniciado tarde, apenas em 11 de março, quando a OMS declarou que o surto de covid-19 era uma pandemia, e terminado cedo, em 15 de dezembro, com o comício da Ceagesp.

Sim, o ano terminou em 15 de dezembro, com a histórica visita do presidente ao “mercadão” de São Paulo, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, Ceagesp S/A, empresa pública federalizada em 1997, para pagar dívidas do Estado, que tentou privatizar a companhia em 1996, mas não houve um lance no preço mínimo de R$ 65 milhões.

A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com a sua própria política econômica declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um “casamento arranjado”.

A Ceagesp foi incluída na privatização pelo decreto presidencial n.º 10.045 de 4/10/19, do próprio Bolsonaro, e foi retirada nesse comício, sem decreto, no peito e na raça.

O rompimento do presidente com o liberalismo já vinha se desenhando há tempos, mas a crise final que explode neste momento teve seus detalhes conhecidos só após de reunidos e consolidados diversos relatos preciosos e picantes de testemunhas que atinaram para a transcendência do momento.

Tudo começou de forma um tanto mágica, e inesperada, quando o presidente, logo ao chegar ao palanque viveu um “momento Philip Roth”, como confirmam várias testemunhas:

– Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair... Não consigo encontrar, é uma coisa pequena, vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais, estavam todas no mesmo chaveiro...

Um dos muitos alter egos de Philip Roth é um ator que perde sua mágica (Simon Axler, de “A humilhação”), assim, de uma hora para a outra, e se torna um canastrão e uma caricatura de si mesmo: “tudo que funcionara para fazer dele quem ele era se tornara agora o que o fazia parecer um louco”. 

– É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada pelo chão, vamos procurar, por favor.

Os assessores à sua volta não entendiam, como assim, presidente, perdeu o que, mesmo, será que alguém pegou? E então, o presidente se virou na direção do presidente da Caixa, que se acotovelava entre os circundantes, suado como todos, buscando visibilidade nas fotos, e perguntou diretamente:

– Você viu meu projeto econômico, Pedro...?

Não lembrava do nome completo. Sabia das iniciais, P.G., iguais às do ministro, e das piadas sobre o PG2, mais novinho, ainda mais irrequieto, mas o nome era outro, também com “G”.

Pedro G. percebeu, e todos em volta, mas enquanto vários já sussurravam “Guimarães”, “Guimarães”, Pedro G. cochichou bem alto no ouvido que o presidente lhe estendera:

– Vamos abrir uma agência da Caixa aqui.

O presidente vira-se para o público, microfone em riste, e troveja:

– O nosso Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal vai abrir uma agência aqui, amanhã mesmo.

E a multidão reage com um bafejo de aplausos, como uma fera amorosa rugindo em busca mais carinho. O presidente volta a perguntar de seu projeto, mas foi Pedro G. quem tomou a iniciativa, balançando a cabeça decidido, está perdido mesmo, presidente, vamos em frente, a fila anda, e o presidente olhou desconfiado, virou-se para a multidão e soltou o verbo:

– Quanto à privatização, quero deixar bem claro que enquanto eu for o presidente da República, essa é a casa de vocês. Nenhum rato vai sucatear isso aqui para privatizar para os seus amigos.

Uma das testemunhas, conhecedora de Roth, lembrou de uma fala do escritor: a ficção existe para eviscerar a realidade. Outra comentou, em resposta, é mas no Brasil a realidade possui tripas que a ficção desconhece.

E foi assim que terminou “fase liberal” do governo, sepultada simbolicamente na Ceagesp que, aliás, tenha-se claro, não é mais que uma metáfora – com seus 600 funcionários, faturamento de R$ 117 milhões (2019) e prejuízos de mais de R$ 50 milhões acumulados entre 2016 e 2019 – perto dos R$ 7,6 bilhões que o Tesouro colocou em 2019 em aumento de capital da Emgepron, uma estatal que constrói fragatas para a Marinha.

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 


Gustavo Franco: Liberalismo e pandemia

A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica

Os adversários do liberalismo econômico, à direita e principalmente à esquerda, são de três tipos:

Há os que dizem que o liberalismo, o neoliberalismo e a teoria econômica convencional estão todos obsoletos, já mortos, ainda mais agora com a pandemia.

Há os que dizem que o liberalismo econômico é hegemônico no Brasil e, por isso, precisa ser abandonado, uma vez que a economia brasileira está estagnada desde os anos 1980.

E há os que dizem as duas coisas.

Sobre os do tipo número dois, me ocorre um comentário a esse respeito do próprio Roberto Campos, feito nos idos de 2000, quando afirmou que, até aquele momento, o liberalismo ainda não havia sido tentado no Brasil.

Campos deixou esse mundo em 2001.

Pois bem, depois disso o PT fez dois presidentes que foram reeleitos, e os dois outros presidentes a seguir, colegas improváveis de Campos da 50.ª legislatura (entre 1991 e 1994), Michel Temer e Jair Bolsonaro, nada tinham de liberais.

É verdade que o Brasil está estagnado desde os anos 1980, mas muito provavelmente isso tem a ver com deficiência de liberalismo, e não com hegemonia. 

Sobre os que dizem que o liberalismo e o saber convencional em economia estão mortos, seria bom lembrar que uma das piores consequências do politicamente correto, à esquerda e à direita, era desvalorizar a “expertise”.

A internet, como se sabe, cada vez mais funciona como uma espécie de memória auxiliar do cérebro humano: o que você não sabe, pode ser encontrado no Google ou na Wikipedia, em segundos, basta teclar no seu celular. Com esses auxílios, qualquer um se torna um especialista ou, pior, um apoquentador de especialistas: subitamente, a expertise não apenas não vale mais nada como atacá-la virou uma demonstração de independência e desprendimento. Os novos idiotas da objetividade são os cretinos da internet, Nelson Rodrigues e Humberto Eco estariam rigorosamente na mesma página nesse assunto.

A ciência devia nos guiar, sobretudo quando a noite cai, mas, em vez disso, nesse clima de rede social sem controle há tempos que se ouve que a ciência é apenas uma narrativa, uma de muitas, e que todas são legítimas, todas estão presentes na internet, ao alcance dos dedos, e que vai prevalecer a que tiver mais clicadas.

Sou um otimista, acho que vai ser o contrário, a pandemia vai sumir com essa cretinice de que a ciência é apenas uma narrativa. Tomara que seja também o caso da medicina alternativa em economia, que possui uma vertente milagreira de viés contábil, crescentemente presente em Brasília, com o auxílio da qual sempre se pode encontrar algum tesouro escondido (amiúde no balanço do Banco Central) que vai pagar todas as contas da pandemia, ou algum truque contábil que vai fazer sumir as dívidas do Estado. 

É claro que são truques ordinários, como o que fazia desaparecer o déficit da Previdência com uma reclassificação contábil, e que nada se resolve desse jeito. Mas os políticos adoram. Perde-se tempo precioso com isso, remédios milagrosos, cloroquina contábil.

O fato é que a urgência sanitária vai elevar o gasto e a dívida pública a níveis impensáveis em 2020. Depois de muito esforço, nesse ano íamos fazer um déficit de uns R$ 100 bilhões, e estávamos na beira do precipício da sustentabilidade fiscal. Pelo que se fala no Congresso, o déficit vai para perto de um trilhão, e a dívida pública vai chegar em 100% do PIB.

Como será o funcionamento do governo federal nessas condições? Será parecido com o que se vê em alguns Estados quebrados? Atrasos e calotes todo o tempo? Como nos países que lutaram na Segunda Guerra durante muitos anos depois do término do conflito?

As democracias liberais não deixam de ser democracias, nem deixam de ser liberais, quando lutam guerras. Democracias adultas pagam as suas contas e sabem de onde vem o dinheiro. A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica. 

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 


Gustavo H.B. Franco: Economia - 45 dias de corona

As primeiras projeções para o crescimento do PIB em 2020 começaram a aparecer; estamos falando de quedas superiores a 5% 

Com um mês e meio do início oficial da pandemia (a declaração da Organização Mundial da Saúde é de 11 de março), o estrago sobre a economia é imenso e, pior, não está completo.

As primeiras projeções para o crescimento do PIB em 2020 começaram a aparecer, o aspecto é péssimo, mesmo considerando as dosagens elevadas de pudor e genuína contrição nesses primeiros esforços.

Estamos falando de quedas superiores a 5% para 2020, mas, na hipótese otimista e irreal, que no segundo semestre de 2020 voltaremos à “normalidade pré-corona”, o que nem mesmo a Militância Bolsonarista da Terceira Idade de Taubaté acredita que vá acontecer.

Na verdade, se os números do segundo semestre forem afetados por alguma restrição espontânea de mobilidade e consumo, o que é bem provável, a conta para o PIB em 2020 vai ficar mais próxima de uma queda de dois dígitos.

A mesma dinâmica se observa para o resto do mundo, para o qual a projeção do FMI é de 3% de queda, mas na improvável hipótese de uma recuperação forte no segundo semestre.

Terrível.

Além de terrível, pode-se certamente acrescentar “inesperado” e talvez um “imerecido”. Mas não vale discutir, nem tem muita importância mesmo, pois é o que temos para hoje e o que vale, para a política, é o que os advogados designam como “responsabilidade objetiva”, ou, na linguagem do Conselheiro Acácio, a responsabilidade é do responsável independentemente de culpa ou merecimento. Vai para a conta da liderança.

De acordo com um velho teorema que aprendi em Brasília, e de aplicação global, é muito difícil a liderança política se aguentar (na próxima eleição) com a economia naufragando desse jeito, independentemente de culpa e dolo.

Isso é mais ou menos como dizer que nenhum tripulante graduado do Titanic tem muita chance de ser popular junto aos passageiros e seus familiares. Fica ainda mais difícil quando houver gente morrendo sem conseguir entrar nas UTIs, sobretudo na periferia da Belíndia. Por ora, vamos lembrar, a “curva” brasileira reflete a evolução na nossa população belga, daqui para frente, no entanto, vai ser como na Índia.

Claro que um ou outro líder pode destoar: Boris Johnson, por exemplo, ao ficar doente, experimentou o equivalente à facada de Bolsonaro durante a eleição, e vai sair da crise melhor que a média, assim como Jair Bolsonaro, por conta da “gripezinha”, entre outras malcriações e maus exemplos, vai sair pior, muito pior.

Sendo assim, e considerando que o fenômeno é global, o prognóstico é ruim para os políticos no poder, de modo que, provavelmente, vamos ter o encerramento desses populismos de quinta categoria ocorrendo em vários países, incluindo este aqui onde estamos. A ver.

Há algo de perverso, todavia, nessas más notícias do PIB saindo justamente no ápice do debate sobre a transição do confinamento geral para algo diferente, cujos protocolos estão ainda em discussão. A sofreguidão com as consequências políticas de um PIB muito ruim pode enviesar a decisão para uma abertura muito grande ou muito rápida, o que pode custar vidas e levar à volta de medidas mais restritivas no segundo semestre do ano, arruinando de vez o PIB de 2020.

Tudo isso não obstante, o presidente, neste mês e no meio da pandemia, deu duas demonstrações de desapreço à autonomia dos órgãos de Estado que lidam com a Saúde e com a Polícia, e que resultaram nas demissões dos ministros Mandetta e Moro.

É natural que o mercado financeiro volte a flertar um terceiro pavor que seria o desapreço à autonomia dos órgãos de Estado que lidam com a Economia e a possível substituição do ministro Paulo Guedes por “alguém mais afinado”, e “que possa interagir” com o presidente. Essa possibilidade precisaria ser afastada o mais rápido possível: o presidente teve 40 minutos em cadeia nacional para fazê-lo, mas, quando não falou de Sérgio Moro, tratou de aquecimento da piscina.

Por tudo isso, o ministro Guedes precisa ficar maior, e a turma do gabinete do ódio precisa ficar menor. Não existe outra receita para baixar a temperatura dessa crise.

* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS


Gustavo Franco: O isolacionismo brasileiro

Nosso grau de abertura é nada menos que indesculpável

O grau de abertura da economia brasileira, medido pela soma de exportações e importações (a chamada corrente de comércio) como proporção do PIB, era de 18% em 1960. Era cerca de metade disso na Coreia e na China, respectivamente 9,5% e 8,7%, e para o mundo o número era parecido com o nosso, 17,5%.

Nos 20 anos que se seguiram, a Coreia fez uma incrível transição: seu grau de abertura cresceu para 31,3% em 1970 e para 61,2% em 1980. O vento ajudou: a média mundial chegou a 34,9% nesses anos. No Brasil, em contraste, não avançamos praticamente nada, alcançando apenas 19,2% em 1980.

A Coreia chegou a 82,5% em 2010, quando o grau de abertura no planeta Terra seguiu crescendo até 47,7%. Já no planeta Brasil, nesses anos, registrou-se um ligeiro recuo no grau de abertura, que passa a 17,8%.

Em 2017, nosso grau de abertura foi de 18,3%, praticamente o mesmo de 1960, enquanto a média mundial atingiu 51,9%.

Depois de 57 anos vibrantes de globalização, quando o mundo foi sacudido por investimentos internacionais de muitas variedades, multinacionais, cadeias globais de valor e todo o tipo de modelo de negócio tornando a indústria um fenômeno essencialmente internacional, o Brasil continuou estacionado exatamente no mesmo lugar.

A Coreia tinha uma renda per capita 30% menor que a do Brasil em 1960, mas em 1980 já tinha empatado conosco, num nível perto de 20% da renda per capita dos Estados Unidos. Em 2017, a Coreia chegou a 65% da renda per capita americana enquanto o Brasil chegou a 26%.

A Coreia nos deixou para trás de forma acachapante. Todas as restrições que foram feitas a seu modelo globalizante de promoção de exportações ficaram prejudicadas, bem como as nossas esfarrapadas justificativas para a substituição de importações e para o ideal de autossuficiência.

Essa opção pela abertura, segundo se dizia, não estava disponível para os países grandes. Esqueceram de avisar os chineses. Em 1960, eles se pareciam com a Coreia em abertura e em 1970 se aproximaram da autarquia ao chegar a 4,95% de abertura. Mas o tal “socialismo de mercado” inventado por Deng Xiaoping (famoso, entre tantas realizações, pelo aforismo “não importa a cor do gato desde que cace ratos”), na verdade, um hipercapitalismo, levou a China para um grau de abertura de 19,9% já em 1980 e daí, na mesma toada, até 48,75% em 2010.

Enquanto isso, o Brasil permanece no mesmo lugar e ergue em torno de si um formidável acervo de impedimentos ao comércio exterior, compreendendo tributos, obstáculos administrativos e regulatórios, requisitos de conteúdo nacional e padrões exóticos, como a indefectível tomada de três pinos. E quando tudo parece falhar, sobrevém o apelo utilitário, trazido pelos diplomatas: é preciso reciprocidade, dizem, não vamos entregar nada de mão beijada. Como se não fosse em nosso benefício.

A nossa diplomacia é um exemplo internacional de profissionalismo e competência, inclusive para defender o indefensável. Sem falsa modéstia, o mesmo vale para os economistas. Tive experiências desse tipo, especialmente quando já estava no serviço público e precisava dizer a investidores estrangeiros que a economia brasileira estava em perfeita saúde mesmo tendo taxas de inflação de 30% ao mês. Em retrospecto, eu confesso, era ridículo. Dizia que a indexação era generalizada, que a inflação tinha pouco efeito nos preços relativos e variáveis reais e outras tantas coisas que me envergonho de repetir.

Parece-me que algo muito semelhante se passa com os responsáveis pelas nossas relações internacionais: nosso grau de abertura é nada menos que indesculpável e defendê-lo nos coloca firmemente no terreno do grotesco. Nosso isolacionismo é não apenas vergonhoso, como reduz as nossas possibilidades de progresso. Exatamente como foi, outrora, o nosso gosto pelo inflacionismo, um vício que conseguimos largar.

A liderança chinesa teve imensa coragem e lucidez ao optar pela abertura, uma estratégia que lhes conduziu à condição de potência econômica global. Nos últimos 57 anos, todavia, nos faltou a liderança, ou a convicção, ou ambas.

Quem sabe em 2019...

* Gustavo Franco é ex-presidente do Banco Central.


Gustavo Franco: Previdência 2.0

Precisamos discutir a criação de uma previdência por capitalização em larga escala no Brasil

O debate sobre a Previdência esteve muito focado no INSS, o instituto através do qual trabalhadores empregados recolhem uma contribuição que é utilizada para os pagamentos aos inativos. É um sistema, digamos assim, “da mão para a boca”, ou mais precisamente de uma mão (jovem) para outra boca (inativa), e que pode ficar seriamente desequilibrado com mudanças demográficas.

Pouco se falou, no entanto, sobre previdência complementar em regime de capitalização, aquela onde o indivíduo se aposenta com o que poupou, incluído o rendimento adequado do seu dinheiro.

Na verdade, se a “reforma da Previdência” serve para assegurar uma velhice confortável ao cidadão contribuinte, deveria cuidar de mudanças coordenadas nesses dois pilares do sistema, e em especial do segundo.

A primeira vantagem de se trazer a previdência por capitalização para o debate é a de oferecer um conceito intuitivo de aposentadoria justa: aquela que resulta diretamente do esforço de poupança do contribuinte somado à poupança feita a seu favor pelo seu empregador nos termos combinados em seu contrato de trabalho.

Se o cidadão, ao se aposentar, ganha mais do que isso, será em razão da generosidade da sociedade em assim presenteá-lo e necessariamente às custas de terceiros que nada têm com o assunto. Analogamente, se receber menos, será porque o governo lhe surrupiou um pedaço em benefício de algum escolhido das autoridades.

Como seria possível criar uma previdência por capitalização em larga escala no Brasil?

Resposta: através de poupanças previamente acumuladas pelas pessoas, nem sempre voluntariamente, e que têm sido utilizadas para outros fins. Estamos falando do FGTS, um fundo que tem 86,4 milhões de quotistas, mas cuja utilização passa bem longe dos melhores interesses dos donos do dinheiro.

O FGTS é caro, mal gerido e remunera miseravelmente o quotista.

A Caixa cobra uma taxa de administração elevada para gerir os recursos que, em verdade, formam uma linha auxiliar de funding para seus empréstimos habitacionais e de infraestrutura urbana, todos fortemente subsidiados.

Não se pratica no FGTS, ao contrário do que se passa em fundos de pensão, uma política de investimento que busque a melhor rentabilidade para o quotista, observado o seu perfil de risco. Ao invés, a prioridade é para os objetivos do governo, ainda que o dinheiro seja privado.

Além disso, o FTGS criou uma linha especial de investimentos em infraestrutura, o famoso FI-FGTS, que investiu em diversos projetos muito citados pela clientela da Operação Lava-Jato.

Durante o período 2003-2017, o FGTS rendeu para seus quotistas exatos 95%, correspondentes a TR + 3% anuais, perdendo para o IPCA do período, que andou 141%. Enquanto isso, o CDI andou 511% e o rendimento médio dos 262 fundos de pensão em funcionamento no país alcançou 641%.

Isso quer dizer que, em retrospecto, se o FGTS tivesse se convertido em um fundo de pensão em 2003, e investido seus recursos tal qual a média de outros da espécie, cada R$ 1 teria se transformado em R$ 7,41, e não em R$ 1,95 como se verificou.

Os R$ 5,46 dessa diferença, que poderiam estar na conta dos quotistas do FGTS, foram gastos pelo governo em “políticas públicas”. Muitos empregos podem ter sido criados, e muitas pessoas podem ter ficado felizes com isso, mas por que o governo não faz essas bondades com o dinheiro dele?

O ônus desse esquema é do cidadão poupador que deixou de acumular recursos que lhe garantiriam mais qualidade de vida na terceira idade.

Na posição de setembro de 2017, o FGTS possuía R$ 486 bilhões em ativos, e cada um de seus 86,4 milhões de quotistas poderia conjecturar que teria 7,41 vezes o que contribuiu de 2003 para cá se o FGTS tivesse investido como um fundo de pensão, observando o interesse do dono do dinheiro.

No fim de 2017, os 262 fundos de pensão em operação no país tinham R$ 802 bilhões em investimentos para 2,6 milhões de participantes ativos e 750 mil assistidos.

Uma boa reforma no FGTS faria muita gente mais tranquila com a reforma da Previdência.