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Igor Gielow: Política armamentista de Bolsonaro pode gerar guerra civil, diz ex-ministro da Segurança

Jungmann pede ao STF rejeição das iniciativas e vê risco de repetição do ataque ao Capitólio no país

Os decretos de Jair Bolsonaro ampliando o acesso a armas são uma ameaça à democracia, pois politizam uma questão de segurança pública e estimulam guerra civil, e o país pode ver repetidas aqui cenas como a invasão do Capitólio americano na eleição de 2022.

O alerta foi feito em uma carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal por um ex-ministro da Segurança Pública e da Defesa, Raul Jungmann. Ele pediu o veto às iniciativas.

O texto, ao qual a Folha teve acesso, é uma crítica dura às políticas armamentistas de Bolsonaro, que Jungmann identifica como "um nefasto processo" que gera "iminente risco de gravíssima lesão ao sistema democrático".

"É inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para 'a defesa da liberdade' evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto", diz.

Na véspera do Carnaval, Bolsonaro editou mais quatro decretos flexibilizando regras e ampliando acesso a armas de fogo e munições. O PSB e o PT foram ao Supremo questionar a legalidade das regras.[ x ]

Jungmann se diz especialmente preocupado pelo fato de que Bolsonaro, que desde a campanha eleitoral de 2018 defendia armar o cidadão contra criminosos e tomou várias medidas nesse sentido, agora fala abertamente que o objetivo é político.

Em uma narrativa iniciada na famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, a ideia é armar o povo contra eventuais ditadores.

O ex-ministro vê o oposto, como diversos críticos do governo têm feito. "Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão", escreveu.

E ele encerra a mensagem lembrando a horda de apoiadores de Donald Trump, o então presidente americano que não aceitava a derrota para Joe Biden no pleito de novembro, que invadiram o Capitólio e interromperam a sessão que confirmava o triunfo do democrata em 6 de janeiro.

"Lembremo-nos dos recentes fatos ocorridos nos EUA. Nossas eleições estão aí, em 2022. E pouco tempo nos resta para esconjurar o inominável presságio", diz o ex-ministro.

Bolsonaro, um admirador de Trump, nunca condenou os eventos —que levaram ao impeachment do americano na Câmara, e posterior absolvição pelo Senado.

Além das ações no Supremo, há uma série de projetos visando derrubar as iniciativas de Bolsonaro no Congresso.

Deputados e ativistas de esquerda vêm falando o que disse Jungmann, mas a carta do ex-ministro tem outro peso, não só pelos cargos que ocupou.

Ele tem bom trânsito no Supremo e também nas Forças Armadas, que comandou como ministro. É indisfarçável entre alguns generais do serviço ativo o desconforto com as políticas de Bolsonaro para o setor, desde o começo do governo.

Assim, ressoa também um trecho em que ele afirma que Bolsonaro está usurpando prerrogativas dos militares ao ampliar o acesso a armas.

"O armamento da população proposto —e já em andamento—, atenta frontalmente contra o seu papel constitucional [dos militares], e é incontornável que façamos a defesa das nossas Forças Armadas", afirmou Jungmann, que ocupou os postos no governo de Michel Temer (MDB, 2016-18), e também foi ministro do Desenvolvimento Agrário de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, de 1996 a 2002).

Carta aberta ao Supremo Tribunal Federal

Sr. presidente e srs. ministros do Supremo Tribunal Federal,

Dirijo-me a essa egrégia corte na dupla condição de ex-ministro da Defesa Nacional e da Segurança Pública, com o objetivo de alertar para a gravidade do nefasto processo de armamento da população, em curso no Brasil.

É iminente o risco de gravíssima lesão ao sistema democrático em nosso país com a liberação, pela Presidência da República, do acesso massificado dos cidadãos a armas de fogo, inclusive as de uso restrito, para fins de “assegurar a defesa da liberdade dos brasileiros” (sic), sobre a qual inexistem quaisquer ameaças, reais ou imaginárias.

O tema do armamento dos cidadãos, até aqui, foi um assunto limitado à esfera da segurança pública em debate que se dava entre os que defendiam seus benefícios para a segurança pessoal e os que, como nós, e com base em ampla literatura técnica, afirmávamos o contrário —seus malefícios e riscos às vidas de todos.

Ao transpor o tema da segurança pública para a política, o Executivo incide em erro ameaçador, com efeitos sobre a paz e a integridade da nação, pelos motivos a seguir. Em primeiro lugar, viola um dos principais fundamentos do Estado, qualquer Estado, que é o de deter o monopólio da violência legal em todo o território sobre a sua tutela, alicerce da ordem pública e jurídica e da soberania do país.

Em segundo lugar, pelo fato de que as Forças Armadas são a última ratio sobre a qual repousa a integridade do Estado nacional. O armamento da população proposto —e já em andamento—, atenta frontalmente contra o seu papel constitucional, e é incontornável que façamos a defesa das nossas Forças Armadas. Em terceiro, é inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para "a defesa da liberdade" evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto.

Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão.

No plano da segurança pública, mais armas invariavelmente movem para cima as estatísticas de homicídios, feminicídios, sequestros, impulsionam o crime organizado e as milícias, estando sempre associadas ao tráfico de drogas.

Por essas razões, Estados democráticos aprovam regulamentos rígidos para a sua concessão aos cidadãos, seja para a posse e, mais ainda, para o porte. Dramaticamente, srs. ministros, estamos indo em sentido contrário à vida, bem maior tutelado pela lei e nossa Constituição, da qual sois os guardiães derradeiros.

Em 2018, pela primeira vez em muitos anos, revertemos a curva das mortes violentas, por meio de um amplo esforço que culminou com a lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), que permanece inexplicavelmente inoperante. Hoje, lamentavelmente, as mortes violentas voltaram a subir no corrente ano e no ano anterior, enquanto explodem os registros de novas armas em mãos do público: 90% a mais em 2020, relativamente a 2019, o maior crescimento de toda série histórica, segundo dados da Polícia Federal.

Com 11 milhões de jovens fora da escola e do trabalho, os “sem-sem”, vulneráveis à cooptação pelo crime organizado, a terceira população carcerária do planeta (862 mil apenados, segundo o Conselho Nacional de Justiça), um sistema prisional controlado por facções criminosas, polícias carentes de recursos, de meios e de ampla reforma, mais armas em nada resolvem o nosso problema de violência endêmica —antes a agravam e nos tornam a todos reféns.

Está, portanto, em vossas mãos, em grande parte, impedir que o pior nos aconteça. Por isso apelamos para a urgente intervenção desta egrégia corte, visando conjurar a ameaça que paira sobre a nação, a democracia, a paz e a vida.

Lembremo-nos dos recentes fatos ocorridos nos EUA, quando a sede do Capitólio, o Congresso Nacional americano, foi violada por vândalos da democracia. Nossas eleições estão aí, em 2022. E pouco tempo nos resta para afastar o inominável presságio.

Respeitosamente,

Raul Jungmann


Luiz Sérgio Henriques: Os heróis da retirada

Precisamos deles para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade

Um dos muitos encantos de ler Javier Cercas, o autor de Soldados de Salamina e de Anatomia de um Instante, reside na sua consciente mistura de ficção e História, imaginação e política, alimentando-se mutuamente e dando-nos, como compensação, a certeza de que o mundo não é um conjunto de fatos de fácil catalogação. A matéria de Cercas é a Espanha, amada e amarga, como a definiu certa vez o marxista italiano Pietro Ingrao, com sua história atribulada, repleta de violência, golpes e revoluções, e sua democracia tantas vezes interrompida, o que certamente a traz para bem perto de nós.

A ferocidade da guerra civil de 1936, contudo, não tem paralelo possível na nossa própria vida política. Aqui, o putsch de 1935 foi episódio cruento, doloroso, mas circunscrito, sem a fúria das paixões desatadas em torno da República espanhola, verdadeiro ensaio geral para o grande conflito que viria a seguir. E a Espanha, mergulhada na longa noite do franquismo, só em meados dos anos 1970, ainda antes de nós, é que se libertaria do regime do garrote vil e restabeleceria a liberdade perdida no fim dos anos 1930, quando o nazismo e o fascismo pareciam vitoriosos, impondo-se mediante a violência e o irracionalismo tornado ideologia de massas.

O instante cuja anatomia Cercas empreende tem um simbolismo a toda prova. Como em toda jovem democracia, o golpe costuma estar à espreita. No início da década de 1980, chefes militares essencialmente franquistas, não convertidos à ideia fundamental da obediência ao poder civil, encontravam terreno fértil para maquinações. O terrorismo ameaçava a integridade nacional. O princípio da tutela militar sobre as instituições voltava a se insinuar, ameaçando fazer a Espanha retroceder muitas casas no tabuleiro das democracias modernas.

Como consta na generalidade dos manuais de golpe, até hoje e em toda parte, a sedução de um gesto “heroico” empolgava corações e mentes de patentes inferiores. E a invasão do Parlamento, em fevereiro de 1981, pareceu dar vazão a tal instinto predatório. Os parlamentares, vistos com desconfiança por parte grande da opinião pública, como é comum na crise das democracias, foram de fato sequestrados. Entre os poucos que desafiaram as balas dos fuzis, Adolfo Suárez, o primeiro-ministro sob pressão, e Santiago Carrillo, deputado comunista, dirigente do seu partido, lendário inimigo público número um do franquismo.

Este, o instante fixado, prenhe de significados, aberto a múltiplas interpretações. Suárez e Carrillo, o delfim do franquismo e o veterano comunista, tinham sido paradoxalmente, nos anos anteriores, grandes artífices da redemocratização do seu país, a ponto de terem seus destinos políticos associados para sempre, até mesmo no declínio dos anos subsequentes. Na bela expressão de Hans Magnus Enzensberger, que Javier Cercas invoca a propósito dos dois políticos, eles eram heróis da retirada, um tipo de personagem extremamente rico, denso e, em muitos contextos, insubstituível. Ao “se imolarem” metaforicamente, e arrastarem consigo as ideias de toda uma vida, ainda por cima vividas coletivamente, esses heróis permitem que desponte um futuro que, no entanto, não os abrigará.

Detenhamo-nos neste ponto. Lugar-comum entre estrategistas a noção de que uma retirada em ordem é manobra que exige rara inteligência tática. Ela poupa armas e homens, permite uma rearticulação de forças, possibilita alguma contraofensiva. Na política, o herói da retirada é mais do que isso. A manobra, aqui, é mais radical. Ao retirar-se, o herói “desconstrói” os próprios valores sobre os quais desenhara seu percurso, assim como o de todo um grupo social. Não se trata, porém, de ato niilista que provoca perda de referências, mas de percepção do esvaziamento das antigas orientações em face de nova configuração do mundo. Um ato do mais puro realismo, portanto, que parte da constatação de que determinadas percepções subjetivas e categorias de pensamento viraram pó diante do juízo severo da realidade.

Suárez, criatura do franquismo, toma consciência da sua caducidade. Carrillo, combatente antifascista desde sempre, sabe que o leninismo dos PCs não faz nenhum sentido em democracias modernas. No contexto da transição, direita e esquerda, se quisessem contribuir para a nova democracia, deveriam renovar-se de alto a baixo. E só heróis da retirada têm consciência dos próprios limites ideológicos, uma consciência que se manifesta em cada um dos seus atos. No instante decisivo podem até ser aniquilados, mas só eles se empenham em dissolver antagonismos esclerosados e, ao menos, apontar o caminho das pedras.

Já admitimos que a carga de dramaticidade que nos envolveu no passado e agora nos envolve é bem menor. Golpistas não faltam, até em posição de mando, mas não há guerra civil nem fascismos invencíveis à vista. Mesmo assim, precisamos daquele tipo particular de heróis – por ora, e com urgência, terão de vir da direita moderada, civil e militar, para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil