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Foto reprodução: Nádia Pontes / DW Brasil

Joenia Wapichana: "Foi um mandato de resistência à boiada"

Nádia Pontes | DW Brasil

Perto do fim de seu mandato como deputada federal, Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita para o Congresso, sabia que teria uma estreia difícil. Líder do seu partido (Rede) na Câmara, a advogada diz ter evitado muita "tratorada" e "boiada" nos embates com deputados, em referência a projetos de lei considerados anti-indígenas e antiambientais.

Formada em Direito pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), ela atua há décadas como assessora jurídica em movimentos indígenas. Em 2008, foi a primeira advogada indígena a defender no Supremo Tribunal Federal (STF) o polêmico caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Durante a recente 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, ela conversou com a DW sobre suas expectativas em relação a um Ministério dos Povos Originários, promessa de campanha do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva que foi confirmada após a vitória dele na corrida presidencial contra Jair Bolsonaro.

"Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial", disse Wapichana sobre a demarcação de terras indígenas, paralisada sob Bolsonaro.

"Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas", afirmou.

DW: A senhora está chegando ao fim do mandato de deputada federal, eleita como a primeira mulher indígena na Câmara. Como foram esses quatro anos de trabalho sob o governo de Jair Bolsonaro?

Joenia Wapichana: Foram difíceis, mas quem disse que seria fácil? Dentro de um governo fascista, negacionista, dentro de um governo anti-indígena, antiambientalista.

Foi um momento de resistência, de resiliência, mas também de mostrar a capacidade de uma indígena vinda de Roraima, um estado que rebate direitos indígenas como demarcação das terras e que tem posicionamento antiambiental. Um estado com uma série de casos a serem resolvidos, como a invasão dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami.

A minha atuação parlamentar, a partir do meu estado, do meu povo, sendo indicada a partir de uma assembleia indígena, mostrou que é possível fazer uma política diferente. Uma política que vem trazer o olhar indígena, a questão do valor da coletividade, de manter a floresta em pé. Como indígena originária, eu diria que foi um mandato de resistência. Não tem nome mais apropriado que esse.

Tentamos resistir à boiada, à tratorada, seguramos o máximo possível todos os projetos antiambientais e anti-indígenas. Conseguimos segurar muitas coisas. Acho que esta nova legislatura que vem aí vai continuar sendo uma questão de resistência, mas também propositiva.

O meu mandato contou muito também com o apoio da sociedade civil organizada, que nos deu a força para ser coerentes com os compromissos que nosso país precisa avançar.

Mesmo com essa maioria bolsonarista dentro do Congresso, dentro da Câmara, onde eu estava, a gente conseguiu algum espaço para propor projetos de extrema importância.

Aqui na Conferência do Clima eu falei sobre isso, sobre o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Climática. Foi fruto de uma mobilização de pessoas em todo o país. Nós conseguimos aprovar o relatório na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no mês passado.

Foram muitos embates com a bancada ruralista?

Muitos. Mas a gente conseguiu manter alguns direitos. Lutamos no momento que era mais necessário em favor dos povos indígenas. Fui relatora do projeto que foi aprovado, o plano de enfrentamento à covid.

Além do negacionismo de Bolsonaro neste desgoverno, a gente enfrentou anos de uma pandemia que matou muitos brasileiros e afetou também as comunidades indígenas. Então, o fato de eu ser parlamentar permitiu que outras autoridades pudessem ouvir os povos indígenas e a gente pudesse construir uma política para salvar vidas.

O mandato teve essa visão de trazer os povos indígenas não só pela voz, pelo simbolismo, mas pela capacidade que nós temos de representar o nosso povo politicamente dentro do Parlamento brasileiro e, assim, usar as ferramentas que o Parlamento nos dá.

Congresso que assume no ano que vem contará com duas mulheres indígenas eleitas e um grande número de candidatos que se elegeram apoiando Bolsonaro. O que esperar desta legislatura?

A gente já tinha um Congresso, digamos, bastante pesado. Infelizmente, o Executivo também era pesado. O governo fechou o diálogo com povos indígenas, rompeu com toda a sociedade civil, fechou participação.

Agora vem o governo Lula, que eu defendi, mesmo sendo ameaçada lá no meu estado de Roraima por garimpeiros. Mas eu vejo que é um novo governo que vai dar possibilidade de diálogo. 

Agora a gente tem uma questão essencial, que é o presidente Lula no Executivo, que é uma pessoa que tem demonstrado abertura para o diálogo, principalmente, e maturidade muito importante de exercer uma presidência e juntar pessoas.

Espero que esse seja o diferencial desta legislatura em que, antes mesmo de ele tomar posse, já inicia diálogo com os partidos. É assim que é a política, uma conversa, um diálogo, para ter espaço para propor e decidir.

A partir do Executivo, é possível trabalhar políticas públicas, reformar, resgatar, recuperar agendas importantes, como a socioambiental, indígena, climática. Dá para fazer ações e programas positivos no sentido de proteger a floresta, os guardiões que estão na ponta.

Eu sei que vai ser um desafio muito grande. No Brasil, como em todo o mundo, existe uma crise social, uma crise econômica, que a gente precisa conciliar. Mas só o fato de ter um compromisso afirmado, e reafirmado pelo presidente aqui na COP, nos dá a clareza que vai ser importante ele ali, mesmo tendo um Congresso majoritariamente tendo sido eleito pelo bolsonarismo.

Como a senhora imagina um Ministério dos Povos Indígenas, algo inédito na história do país?

Primeiro, que precisa ser em construção com os povos indígenas. Um espaço de articulação, de fortalecimento das políticas públicas, de direito, de implementação. Nós temos muitos planos, mas falta implementação. 

Esperamos diálogo com os povos indígenas, que vêm de diferentes regiões, biomas, culturas. Esperamos, principalmente, um avanço na proteção territorial.

Nós esperamos muito tempo por uma recomposição do Estado brasileiro que reconhecesse a importância dos povos indígenas. Então esse espaço tem que ser de respeito. Os povos indígenas têm toda a capacidade hoje de estarem fazendo e encaminhando suas próprias demandas.

Foram quatro anos de desmonte de políticas públicas e que merecem urgência. Seria o ministério para fortalecer a relação dos indígenas com o Estado brasileiro.

https://www.youtube.com/watch?v=b1XbbOqIeWA

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Política ambiental no atual governo precisa ser restaurada | Foto: reprodução: Google/domínio público

Revista online | Luz (Verde) no fim do túnel?

André Lima e Bazileu Margarido*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

Em que ponto estamos? Naquela situação em que não há nada tão ruim que não possa piorar ou já é possível ver um ponto de luz logo ali, após a eleição?

Há muitos motivos para acharmos que a situação está muito ruim. A política ambiental no governo Bolsonaro tem sido desastrosa. Os órgãos ambientais federais, principalmente o Ibama e o ICMBio, foram sufocados. Estão de joelhos.

Servidores que insistiram em cumprir suas atribuições fiscalizatórias de forma republicana foram afastados de funções de chefia ou deslocados para unidades remotas, onde não poderiam molestar os agressores do meio ambiente.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

Além de reduzir drasticamente o número de multas aplicadas, a atual gestão anulou as multas aplicadas entre 2008 e 2019 em que os infratores foram avisados por edital (recurso corrente em órgãos de fiscalização, quando o infrator não pode ser alcançado por outros meios). Segundo o Ibama, devem ser anuladas quase 40 mil multas, com valor aproximado de R$16 bilhões.

O torniquete orçamentário foi uma estratégia aplicada com requintes de crueldade. Dos valores previstos no orçamento de 2021 para a fiscalização ambiental, que já eram insuficientes, menos da metade foi efetivamente utilizada. Infelizmente, o mesmo está ocorrendo neste ano. Com isso, o desmatamento na Amazônia quase dobrou, cresceu de 7,5 milhões de Km² em 2018 para 13 milhões de Km² em 2021.

Essa situação ainda pode piorar, se considerarmos o resultado da eleição de deputados federais e senadores. O Painel Portal Farol Verde avaliou o mandato dos atuais congressistas com base em suas votações em 12 das principais matérias da pauta socioambiental. Entre os 486 parlamentares que concorrem à reeleição, os parlamentares “ambientalistas” caíram de 30% para 27% na nova legislatura, os moderados caíram de 33% para 30% e os contrários à pauta ambiental subiram de 37% para 42%.

No caso dos parlamentares amazônicos, o índice médio de reeleição dos deputados considerados ambientalistas foi de apenas 26%, frente a um índice médio de reeleição de 57% para toda a Câmara Federal. O índice de reeleição dos deputados de estados Amazônicos considerados anti-ambientais foi 126% superior ao índice dos verdes. Esse quadro indica que haverá maior pressão para alteração, para pior, das regras que regulam as atividades predatórias em todos os biomas, mas principalmente na Amazônia.

Não se pode deduzir, a partir dessas informações, que a sociedade brasileira não esteja priorizando as questões ambientais na hora de definir o seu voto. É preciso avaliar, ainda, se houve diferença significativa nas condições financeiras que o grupo de parlamentares “ambientalistas” teve para fazer campanha, comparado aos demais candidatos à reeleição. Como sabemos, a distribuição do Fundo Eleitoral em cada partido é definida centralizadamente e a menor disponibilidade de recursos pode ser decisiva no resultado eleitoral. Além disso, o orçamento secreto beneficiou a base Bolsonarista no parlamento. PL, PP, União Brasil e Republicanos juntos, os piores partidos pela avaliação do Farol Verde, possuirão 48% dos votos na Câmara e 40% no Senado.

Galeria de imagens a seguir:

Sustentabilidade e meio ambiente | Imagem: NINA IMAGES/Shutterstock
Projeto Unidos pelo Plantio | Foto: Flickr
Comissão de Meio ambiente | Foto: Wikimedia commons
órgão ambiental | Foto: Flickr
Ibama | Foto: reprodução
Desmatamento e queimadas | Foto: Flickr
Parque socio ambiental irmã Dorothy Stang | Foto: Wikimedia commons
Contra os agrotóxicos | Foto: Rawpixel
Farol verde interface | Foto: reprodução
Sustentabilidade e meio ambiente
Projeto Unidos pelo Plantio
Comissão de Meio ambiente
órgão ambiental
Ibama
Desmatamento e queimadas
Parque socio ambiental irma Dorothy Stang
Contra os agrotóxicos
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Projeto Unidos pelo Plantio
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Desmatamento e queimadas
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Contra os agrotóxicos
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Mas pode haver uma luz no fim do túnel, uma ponta de esperança. Em 30 de outubro (domingo) haverá o segundo turno da eleição para presidente da República. Além da continuidade da desarticulação da política ambiental do atual governo, a reeleição de Bolsonaro reforçará a pressão à favor das mudanças legais que poderão intensificar a grilagem de terras, a extração ilegal de madeira, o garimpo predatório e o uso indiscriminado de agrotóxicos. Se o Brasil optar por Lula na Presidência da República poderá haver, com muito esforço do governo, um certo reequilíbrio de forças no parlamento em relação às pautas de clima e meio ambiente.

O Brasil pode optar pela criação de emprego e renda a partir de uma economia sustentável e de baixo carbono, aumento da produtividade no campo, desenvolvimento tecnológico e uma matriz energética renovável, limpa e segura. Só a eleição de Lula poderá reposicionar o Brasil no cenário mundial e recuperar a liderança que o País já teve na agenda socioambiental. A alternativa é o atraso e o negacionismo climático, com suas consequências sobre o comércio internacional de nossos produtos.

Sobre os autores

*André Lima é advogado, ex-secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal, colunista do Congresso em Foco e coordenador do projeto Radar Clima e Sustentabilidade, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

*Bazileu Margarido é engenheiro de produção e mestre em economia. Foi presidente do Ibama, entre 2007-2008, secretário de Fazenda de São Carlos, São Paulo, em 2001 e 2002 e chefe de gabinete da ministra de meio ambiente Marina Silva de 2003 a 2007. 

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Amazonenses são contra o desmatamento e as queimadas

Pesquisa mostra que a esmagadora maioria dos moradores de Manaus é a favor da manutenção da floresta

Virgilio Viana / Amazônia Sustentável / El País

Uma das narrativas usadas por aqueles que se colocam como coniventes ou mesmo defensores do desmatamento da Amazônia é que a proteção ambiental seria uma causa dos estrangeiros ou de pessoas de fora da região. Segundo esse raciocínio, os europeus e norte-americanos teriam desmatado suas florestas no passado para desenvolverem suas economias e agora não querem permitir que o Brasil se desenvolva desmatando a Amazônia. A premissa dessa narrativa diz que é do interesse do Brasil e dos moradores da Amazônia desmatar e que isso é essencial para o desenvolvimento econômico do país.

Os resultados de uma pesquisa inédita, realizada em Manaus em 2021, com 1.003 entrevistados e com 3% de margem de erro, mostram o oposto. O Manauara é contra o desmatamento: 86% não concordam com a tese de que é preciso desmatar para desenvolver e 88% defendem a proteção do meio ambiente.

Quando o tema é incêndio florestal, 94% encaram as queimadas como prejudiciais à saúde. Na pergunta aberta, as principais menções são relacionadas à poluição do ar e suas consequências para a saúde humana. De fato, segundo pesquisas cientificas, as queimadas na Amazônia são um dos principais fatores de causa e agravo de doenças na região, desde as respiratórias até as cardiovasculares. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a poluição do ar representa o principal problema para a saúde humana em todo o mundo. Durante o período das queimadas, o nível de poluição do ar na Amazônia é pior do que o de grandes cidades, como São Paulo.MAIS INFORMAÇÕESA mudança de ministro resultará em mudança de rumo no Meio Ambiente?

A maior parte da população de Manaus (67%) considera que áreas verdes urbanas melhoram a qualidade de vida, devido principalmente à redução do calor (40%) e à produção de ar puro (20%). A grande maioria defende que os governos trabalhem para diminuir o desmatamento e aumentar a arborização de ruas e a proteção das áreas verdes urbanas.

Quando o assunto é a criação de unidades de conservação ambiental, 74% da população entende que isso não atrapalha o desenvolvimento econômico. Dentre as principais razões mencionadas está a visão de que as unidades de conservação geram mais benefícios do que prejuízo e criam oportunidades para o desenvolvimento econômico. De fato, um dos principais potenciais para o desenvolvimento econômico da região é a bioeconomia amazônica, e esta depende diretamente da produção de frutas, óleos, peixes etc., que são oriundos de áreas protegidas com a presença de populações tradicionais e povos indígenas.

A pesquisa, realizada pela Action Pesquisas de Mercado, a pedido da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), com apoio do Instituto Clima e Sociedade (ICS), mostra de forma clara que a esmagadora maioria dos moradores de Manaus é contra o desmatamento e as queimadas e é a favor da manutenção da floresta em pé. Os resultados mostram que essa posição é consistente em todas as classes de renda, idade, gênero e escolaridade; com pequenas variações dentro dessas categorias.

Os resultados da pesquisa mostram um enorme descompasso entre a visão da sociedade e a narrativa de lideranças políticas, tanto do Amazonas quanto de outras regiões do Brasil. Existem diversas hipóteses que podem explicar essa contradição. A primeira é que esse é mais um fenômeno que atesta a baixa representatividade das lideranças políticas do Brasil, o que aponta para a necessidade de um aprimoramento do sistema eleitoral visando o fortalecimento da democracia. Outra hipótese é que, nesse caso especifico, as lideranças políticas estão mais relacionadas com os agentes econômicos que se beneficiam do desmatamento do que com os anseios da sociedade em geral.

Vale lembrar que o desmatamento e as queimadas na Amazônia são frutos de uma engrenagem econômica, que gera grandes lucros para um pequeno segmento da sociedade amazônica, representado pelos madeireiros, grileiros e garimpeiros —todos eles atuando de forma ilegal e criminosa. Os madeireiros ilegais atuam geralmente em terras públicas, incluindo unidades de conservação e terras indígenas. Não pagam os impostos devidos, empregam trabalhadores de forma irregular, sem os devidos direitos trabalhistas, e atuam sem as licenças ambientais necessárias, causando enormes prejuízos ambientais. Os madeireiros ilegais abrem estradas ilegais por onde entram os grileiros, que roubam terras públicas. A criação de gado pelos grileiros tem a função principal de criar uma fachada de produtor rural para conseguirem documentos da terra de forma ilegal e fraudulenta. Os garimpeiros ilegais, que são a esmagadora maioria, aplicam parte significativa dos seus ganhos na compra de terras de grileiros e na criação de gado, como forma de esquentar o dinheiro ganho ilegalmente e que deixa um rastro de destruição nos rios e de degradação social das comunidades locais. O mercado global de alimentos adiciona combustível e lucratividade para essa engrenagem econômica.

A partir da pesquisa Action/FAS/ICS podemos entender melhor de onde vem e para quem serve a narrativa usada por aqueles que se colocam como coniventes e defensores do desmatamento da Amazônia. Não se trata de uma posição da sociedade amazonense e nem da sociedade brasileira.

O desmatamento da Amazônia não é apenas contrário aos anseios da sociedade amazonense e brasileira: ele é contrário ao interesse nacional. O desmatamento e as queimadas afetam negativamente o regime de chuvas de todo o Brasil e contribuem para o aumento dos períodos secos, agravando a crise hídrica. A continuidade do desmatamento pode levar ao colapso hídrico do Brasil, com enormes consequências para a produção agropecuária, a geração de energia hidrelétrica e o abastecimento urbano de água. Além disso, os aumentos no desmatamento observados nos últimos anos pioram a imagem do Brasil, afastando os investimentos produtivos no país, reduzindo a geração de empregos em todo o território nacional.

Os resultados dessa pesquisa permitem manter acesa a chama da esperança, como nos ensina o Papa Francisco. Se a população deseja a proteção da Amazônia contra a ação dos madeireiros, grileiros e garimpeiros ilegais, esperamos que nossas lideranças políticas escutem e representem melhor os anseios dos amazonenses em particular e de todos os brasileiros em geral. Quem sabe as atuais lideranças políticas comecem a mudar o seu posicionamento... Quem sabe surjam novas lideranças políticas nas próximas eleições, mais comprometidas com o interesse nacional... Vale manter acesa a chama da esperança!

Virgilio Viana é superintendente-geral da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-13/amazonenses-sao-contra-o-desmatamento-e-as-queimadas.html


“Tem traficante de drogas indo para a madeira”, diz Alexandre Saraiva

Em entrevista exclusiva à Política Democrática online de outubro, ele explica esquema de grilagem

Cleomar Almeida, da equipe FAP

A extração ilegal de madeira é um dos motores da destruição ambiental na Amazônia, segundo o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva, ex-superintendente do órgão na região. "Tem traficante de drogas saindo do tráfico e indo para a madeira, tanto mais porque a pena do tráfico de drogas é de cinco a 15 anos, regime fechado", diz ele, em entrevista exclusiva à revista Política Democrática online de outubro (36ª edição).

A revista é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e que disponibiliza todo o conteúdo para o público, por meio da versão flip, gratuitamente.

Clique aqui e veja a revista Política Democrática online de outubro

Saraiva foi exonerado do cargo de superintendente em abril passado, após enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma notícia-crime contra o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por obstrução de investigação, advocacia administrativa e organização criminosa.

Um dos pioneiros das delegacias de crimes ambientais no país, o delegado da Polícia Federal comenta os problemas enfrentados na região amazônica nas ações de combate ao garimpo ilegal, grilagem, extração ilegal de madeira e desmatamento. Além disso, aborda soluções que poderiam inibir a ação de quem comete tais crimes.

Com base em dezenas de investigações, o delegado explica como funciona o modo de operação de madeireiro que atua ilegalmente. “Primeiro, o cara chega, detona a madeira. A madeira paga o desmatamento que vai deixar a terra nua a ser grilada, mas a madeira dá muito dinheiro”, afirma.

“Por que a madeira está dando muito dinheiro?”, questiona, para responder: “Porque o mercado internacional era dominado pelos países do sudeste asiático. Diversos artigos de pesquisadores japoneses atestaram foi a madeira o motor econômico para a destruição das florestas no sudeste asiático, depois vieram a agricultura e o gado. Pode ter vindo até um shopping center, não importa, o motor econômico foi a madeira”.

No Brasil, de acordo com o delegado, há ainda uma particularidade com a grilagem. “O sujeito grila, tem um esquema no Incra ou no órgão estadual, mas não vai plantar ali. Vai usar a terra que ele documentou de forma fraudulenta como garantia em um banco público dizendo que ele vai plantar soja, plantar gado, plantar não sei mais o quê. Passado um tempo, ele não plantou nada”, observa.

De acordo com Saraiva, através da metodologia de isótopos estáveis, base da tecnologia de rastreabilidade, seria possível diferenciar a madeira proveniente de cada região do país, por exemplo.

O delegado também diz, na entrevista à Política Democrática online de outubro, que os supostos crimes de Ricardo Salles ocorreram após a Operação Handroanthus, da Polícia Federal, apreender 213 mil metros cúbicos de madeira ilegal na divisa entre Amazonas e Pará, no fim do ano passado, no valor de R$ 130 milhões. Foi a maior apreensão de madeira ilegal da história do país.

Veja lista de autores da revista Política Democrática online de outubro

A íntegra da entrevista com o delegado pode ser conferida na versão flip da revista, disponível no portal da FAP, gratuitamente. A edição deste mês também mostra os riscos de a covid-19 se tornar uma endemia, além de artigos sobre política, economia, meio ambiente e cultura.

Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.

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Míriam Leitão: Governo afastado dos brasileiros

O governo Bolsonaro está descolado dos brasileiros na área ambiental e climática. Empresas anunciam compromissos de zerar emissões, de fiscalizar sua cadeia produtiva, porque isso é um diferencial competitivo. Governadores fazem pontes com governos e empresas. Bolsonaro estrangulou o orçamento dos órgãos ambientais, um dia depois de dizer ao mundo que os fortaleceria. Ontem, na Câmara dos Deputados, o delegado Alexandre Saraiva, da Polícia Federal, mostrou provas explícitas da ilegalidade da madeira que o ministro Ricardo Salles diz que é legal. “O ministro tornou legítima a ação de criminosos”, disse Saraiva, que foi exonerado da Superintendência.

O engenheiro Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, observou esse descolamento entre o governo e a sociedade.

— Temos algo acontecendo aqui. A sociedade está fervilhando, o mundo inteiro está olhando para isso. No setor empresarial, do segundo semestre do ano passado para cá, todos os conselhos passaram a falar sobre o tema, querendo entender. Saiu do nível de gerente, foi ao CEO e chegou ao conselho. Várias empresas estão assumindo compromissos e alguns são bem fortes — diz.

Está curioso ver, exemplifica Tasso, a corrida entre as três maiores empresas produtoras de proteína animal, JBS, Marfrig e Minerva:

— Parece que as três estão disputando quem acaba primeiro com as suas emissões. A carta dos 200 CEOs pedindo mais ambição nas metas, tudo está indo nessa direção.

Algumas empresas sempre estiveram nessa trilha, como a Natura. Mas são muitas as companhias que sabem que precisam anunciar metas, verificáveis, prestar contas do esforço que estão fazendo.

O governo federal, apesar do que Bolsonaro disse na reunião de cúpula, segue o seu projeto de desmonte do Ibama, do ICMBio, e até da PF. No Congresso, tramitam projetos perigosos, como o que enfraquece o licenciamento ambiental e regulariza terras roubadas. O depoimento do delegado Saraiva mostra que 70% da madeira apreendida na operação Handroanthus, que Salles diz ser madeira legal, não apareceu nem o suposto dono para reclamar. Há casos de falsificações grosseiras nos documentos. Esse é o projeto do governo Bolsonaro de legalizar o crime. Mas não é o da maioria do povo brasileiro, não é o das grandes empresas, nem dos grandes bancos. O capital converteu-se? Não. Ele está falando de negócios, como sempre. No mundo de hoje, produção ambientalmente suja não é financiada, não tem clientes, perde a competição.

Os governadores fizeram dois movimentos inteligentes. Primeiro, na carta ao presidente Biden lembraram que construíram mecanismos em suas administrações para a cooperação internacional. Segundo, o consórcio dos estados da Amazônia celebrou a divulgação da Leaf Coalition, tão logo foi lançada. Essa iniciativa vem sendo costurada há algum tempo por um grupo de países — Estados Unidos, Reino Unido e Noruega — e de empresas internacionais.

— O Leaf começou em várias frentes e a Amazon esteve bem envolvida no começo. Foi montado um grupo de trabalho. A plataforma se parece com a do Fundo Amazônia, mas em escala global. Cria-se uma linha de base para mostrar a partir desse ponto a queda do desmatamento e há um conselho independente para acompanhar os compromissos. Os países podem se inscrever, mas também os estados, as regiões, para angariar fundos. Os estados brasileiros estão fazendo isso. Vale a partir de 2022, mas em comparação com os cinco anos anteriores — diz Tasso.

Pelo que se sabe, já foi fixado até o preço da tonelada de carbono, num valor acima do que era calculado o Fundo Amazônia. Uma empresa como a Microsoft, por exemplo, que quer zerar suas emissões — não apenas as de agora, mas as que emitiu ao longo da sua história — tem muito a comprar nesse mercado.

Os governadores da região Norte já estavam em contato com os organizadores e por isso no próprio dia do anúncio o governador Flávio Dino, presidente do Consórcio dos Estados da Amazônia Legal, saudou o lançamento da “nova aliança público-privada Leaf Coalition”.

A sociedade, as empresas, os bancos, os governos estaduais estão se conectando com o mundo e a agenda da preservação ambiental. Bolsonaro e seu ministro fazem seu trabalho de demolição das florestas tropicais, e de legalização do crime, descolados do mundo e do próprio Brasil.


Míriam Leitão: Com a palavra, os embaixadores

Os embaixadores da Noruega e da Alemanha em Brasília alertam que o Brasil deve tomar muito cuidado nos próximos três meses na Amazônia. São os de maior risco de desmatamento no ano florestal que termina em julho. Nils Gunneng, da Noruega, e Heiko Thoms, da Alemanha, afirmam que há meio bilhão de reais sendo usados do Fundo Amazônia e lembram que os recursos, quase R$ 3 bilhões, que estão congelados precisam apenas que o Brasil restaure o conselho do Fundo. “O Brasil não está sozinho no combate ao desmatamento”, diz o alemão Thoms. “Tem um mercado enorme para um país que tem florestas e queira mantê-las em pé”, completa o norueguês Gunneng.

Noruega e Alemanha são os financiadores do Fundo Amazônia, um bem-sucedido mecanismo em que os dois países doaram recursos para apoiar programas de proteção ambiental. Ele funcionava perfeitamente. Em junho de 2019, o ministro Ricardo Salles dissolveu o conselho que reunia representantes do governo federal, dos estados amazônicos, da sociedade e dos empresários. Sem essa estrutura, o Fundo Amazônia não pode liberar novos recursos. “Não há base legal para as decisões”, explica o embaixador da Noruega.

Eu entrevistei os dois diplomatas durante uma hora na sexta-feira, por uma chamada de vídeo. Eles demonstram conhecimento sobre o Brasil, admitem as culpas de seus próprios países nas emissões de gases de efeito estufa, comemoram a cúpula do clima, pela volta dos Estados Unidos aos esforços globais de combate às mudanças climáticas. Ambos disseram ter gostado da carta do presidente Bolsonaro ao presidente Biden e do discurso do brasileiro na reunião do clima. Mas alertam que é preciso ir além. “Queremos ver em breve os resultados dessas palavras nas taxas de desmatamento”, disse Nils Gunneng. “Estamos ansiosos para ver a tradução desse compromisso no plano concreto”, diz Heiko Thoms.

Os dois têm tido conversas com vários setores da sociedade brasileira, e, nos dias anteriores ao encontro convocado por Joe Biden, eles e outros embaixadores fizeram reuniões com políticos de diversos partidos, com empresários e ONGs. Perguntei o que eles têm ouvido. Segundo o embaixador alemão, todas as partes entendem que problemas ambientais têm um efeito negativo na reputação do país. “Os povos indígenas compreendem isso, os bancos compreendem isso”, diz Thoms.

O representante da Alemanha afirma que seu país é parceiro tradicional do Brasil na luta ambiental desde 1992, que a cooperação bilateral tem 70 anos e há um portfólio de investimento de US$ 9 bilhões. O representante norueguês conta que o Fundo Soberano tem investimentos de US$ 8 bilhões em ativos brasileiros. O grande nó das relações entre os dois e o Brasil atualmente é o Fundo Amazônia. Perguntei a Gunneng o que ele tinha a dizer sobre a afirmação de Salles de que o Fundo parou por decisão da Noruega. “É importante dizer que o Fundo foi congelado porque o governo brasileiro dissolveu a estrutura de governança unilateralmente sem o acordo da Noruega ou da Alemanha”, respondeu.

O embaixador da Alemanha acha que o “Brasil está bem posicionado” para se beneficiar da transição para a economia de baixo carbono. “Tem a tecnologia necessária, tem uma legislação sólida e produtores sérios.” Gunneng concorda e diz que o Brasil já mostrou ser capaz de produzir sem aumentar o desmatamento. “Nós queremos ver mais países pagarem por isso”. O embaixador alemão disse que “no mundo inteiro os consumidores querem saber de onde vem o bife que está no seu prato e como o seu smartphone foi produzido. Os investidores procuram opções verdes de investimento. Quem produz de forma sustentável tem vantagem competitiva”.

Perguntei a Gunneng o que a Noruega fará com sua economia tão dependente do petróleo, e a Thoms, sobre as emissões históricas da Alemanha. “Nós somos parte do problema”, admitiu o norueguês. “A Alemanha tem grandes desafios como o do carvão”, admitiu o alemão. Os dois, contudo, dizem que seus países estão determinados a fazer a necessária transição para uma economia de baixo carbono. Perguntei se era fácil explicar para os contribuintes os gastos com o Fundo Amazônia. “Sim e não. É fácil quando o desmatamento cai, é difícil quando ele sobe”, diz Nils Gunneng, da Noruega. No momento, então, está difícil explicar.


Bruno Carazza: Bancarrota blues

Muda discurso sobre Meio-Ambiente, mas não a prática

Tomada ao pé da letra, há uma enorme evolução entre o discurso proferido por Jair Bolsonaro na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, bem no início do seu mandato (22/01/2019), e a carta enviada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na última quarta-feira (14/04), confirmando presença na Cúpula de Líderes sobre o Clima.

Em sua primeira viagem internacional, o novo presidente brasileiro apresentou-se à elite mundial com uma fala de meros 6 minutos e 37 segundos. Na ponta do lápis, foram 741 palavras - pouco mais do que uma página de Word. Já a carta enviada para Biden na semana passada, ao contrário, não economizou no texto; foram sete laudas, e diferentemente da apresentação na Suíça, quando desperdiçou a chance de apresentar os principais planos para o seu governo, Bolsonaro na missiva para o americano tratou de apenas um assunto: o meio ambiente.

Para além do tamanho do texto, houve uma mudança de tom. Em Davos, o presidente brasileiro apresentava o patrimônio natural brasileiro como um ativo a ser negociado. “Temos a maior biodiversidade do mundo e nossas riquezas minerais são abundantes. Queremos parceiros com tecnologia para que esse casamento se traduza em progresso e desenvolvimento para todos. Nossas ações, tenham certeza, os atrairão para grandes negócios”, afirmou, anunciando que o Brasil estava de braços abertos para o mundo.

A carta para Joe Biden é muito mais cautelosa. Começa reiterando “o compromisso do Brasil com os esforços internacionais de proteção ao meio ambiente, combate à mudança do clima e promoção do desenvolvimento sustentável”. Em seguida, faz um retrospecto dos avanços do país na área, frutos dos governos anteriores - embora não deixe isso explícito, não deixa de ser um fato importante para quem sempre criticou seus antecessores na área ambiental.

Por fim, Jair Bolsonaro apresenta planos muito mais elaborados do que simplesmente obter parceiros para explorar as riquezas da floresta: intensificar o combate ao desmatamento ilegal e as queimadas, acelerar a implementação de um mercado de créditos de carbono e estimular o pagamento por serviços ambientais para que proprietários de terra se sintam incentivados a manter a floresta em pé, entre outras medidas.

Comparando os dois textos, seríamos levados a concluir que o presidente brasileiro mudou, finalmente se conscientizando da seriedade da questão ambiental e dos imensos ganhos que o país pode obter ao assumir um maior protagonismo nessa área. Só que não (#sqn, como se diz nas redes sociais).

Quem mudou, na verdade, foi o mundo. E a reunião que começa na próxima quinta-feira (22/04), tendo o presidente dos Estados Unidos como anfitrião num encontro de 40 líderes mundiais, revela isso.

Há cinco anos o Global Risks Report, pesquisa realizada junto a centenas de especialistas do setor privado, governos e sociedade civil, aponta os danos causados pelo aquecimento global como o evento com maior probabilidade de ocorrência no curto prazo. Para 2021, embora a pandemia se apresente, por motivos óbvios, como tendo o maior impacto, a falha na ação climática, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos naturais aparecem, junto com as armas de destruição em massa, como os “top-five” riscos medidos pelos seus efeitos potenciais sobre o planeta.

O atual movimento político na direção da antecipação das metas celebradas no Acordo de Paris, contudo, não se deve apenas a uma preocupação crescente com a questão climática. Há uma revolução econômica e tecnológica em curso, e ele traz em seu âmago a questão ambiental - para o bem ou para o mal.

O barateamento da produção de fontes limpas de energia, como eólica e solar, combinado com o desenvolvimento de baterias mais potentes, recarregáveis e leves, prenunciam um futuro próximo menos dependente da queima de derivados do petróleo e do gás natural.

Além disso, o aprimoramento dos mercados de crédito de carbono - que nos últimos meses têm batido recordes sobre recordes - tem sinalizado para as companhias de energia e a indústria pesada que o custo de poluir será cada vez mais salgado. Para completar, fundos de investimentos bilionários estão adotando a sustentabilidade em suas políticas de governança e premiam empresas responsáveis na área ambiental.

Há também o lado sombrio dessa história, que é o protecionismo. Os dados mais recentes da Organização Mundial do Comércio revelam que em 2018 foram apresentadas 663 notificações de práticas desleais de comércio que tinham como pano de fundo questões ambientais. E no âmbito da União Europeia já se discute abertamente uma proposta para proteger empresas locais contra a concorrência de produtos provenientes de países que não descarbonizarem as suas economias.

Voltando à carta de Bolsonaro para Biden, John Kerry, responsável pela ação climática no governo americano, tuitou na sexta que a mudança de tom do presidente brasileiro foi importante, mas é preciso demonstrar “resultados tangíveis”. E quando se vê o que o Palácio do Planalto propõe de concreto, prevalece a velha agenda do que há de mais retrógrado no agronegócio, no garimpo e nas madeireiras.

Basta conferir a pauta prioritária encaminhada pelo governo aos novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro deste ano: nela constam propostas de mineração em terras indígenas (PL nº 191/2020), regularização fundiária na Amazônia (PL nº 2.633/2020) e flexibilização das regras de licenciamento ambiental (PL nº 3.729/2004).

O discurso pode ter melhorado, mas na prática a visão do governo brasileiro continua sendo aquela demonstrada de forma nua e crua pelo diretor Marcus Vetter no documentário “O Fórum”. Nos bastidores do encontro de Davos em 2019, Bolsonaro responde da seguinte maneira à preocupação do ex vice-presidente americano Al Gore com o desmatamento no Brasil: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Míriam Leitão: Do chão da floresta à cúpula do clima

Um avião do Comando de Aviação Operacional da Polícia Federal foi a Manaus em novembro buscar policiais para ajudar nas eleições no sul do Estado. O superintendente da PF, Alexandre Saraiva, perguntou ao piloto: “Na volta, tem como sobrevoar os rios Madeira e Mamuru para ver se tem balsa da madeira?” Um agente foi junto para fotografar e trouxe farto material. Assim começou a maior apreensão de madeira feita pela Polícia Federal. A ação foi comemorada em nota pela Secom do Planalto. Saraiva esteve no Conselho da Amazônia para explicar a operação e discutir o destino da madeira. A reviravolta ocorreu quando o ministro Ricardo Salles foi ao Amazonas e passou a defender os madeireiros.

Na reunião de cúpula esta semana sobre clima, convocada pelo presidente Joe Biden, o presidente do Brasil vai mentir. Já há muita falsidade na carta enviada por Bolsonaro a Biden. A meta de zerar o desmatamento ilegal em 2030 é antiga, foi apresentada pelo Brasil em 2009, em Copenhague, e confirmada em Paris. No mesmo dia em que prometeu reduzir o desmatamento, o governo fez o oposto. A boiada de Salles é coisa que passa todo dia. Ele baixou, na quinta-feira, uma instrução normativa que constrange mais ainda a fiscalização ambiental.

— A instrução normativa condiciona a validação das multas ambientais à concordância de uma autoridade ‘hierarquicamente superior’. Já havia antes criado um conselho de conciliação para validar as multas — explica André Lima, coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade.

Tudo é complexo quando o assunto é Amazônia. Mas os fatos se juntam. Tanto a exoneração do superintendente Saraiva, quanto as recorrentes normas com as quais o governo Bolsonaro mina o edifício legal construído em governos anteriores, que havia feito do Brasil um exemplo de combate ao desmatamento.

O delegado Saraiva, na sexta-feira, reapresentou a notícia-crime contra o ministro Ricardo Salles no STF por “obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato das questões ambientais”. A relatora será a ministra Cármen Lúcia. Ele havia tido dificuldade de incluir no sistema eletrônico, mas, mesmo após o anúncio de que seria exonerado, insistiu. Está convencido de que o que ele viu é crime. E dos grandes. O governo achava o mesmo. A nota da Secom, no dia 24 de dezembro, trazia a bandeira do Brasil ao lado da inscrição “O gigante verde” ilustrando a foto dos caminhões enfileirados da “Operação Handroanthus GLO”. A carga, dizia a Secom, “representa mais de 6,2 mil caminhões lotados”. E isso quando se achava que eram 131 mil m3 de madeira. Na verdade, foram mais de 200 mil m3. Salles diz agora que era tudo legal.

— A madeira que estava nas balsas não correspondia à madeira descrita no Guia Florestal. Nem nos caminhões. Os documentos que os empresários apresentaram têm fortes indícios de fraude, apesar disso o ministro os defendeu — disse Saraiva.

Esse é um fato. Há milhares de fatos estranhos na rede que sustenta o abate da floresta. Contra isso o Brasil aprovou leis e assumiu compromissos internacionais. Na gestão Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente foi feito o PPCDAm, o mais bem estruturado plano de combate ao desmatamento. Era maio de 2005. Por causa dele o Brasil derrubou em 80% o desmatamento nos anos seguintes. Em 2009, para a COP-15, quando o ministro era Carlos Minc, foi anunciada a Lei Nacional de Mudanças do Clima. Assim nasceram as metas do Brasil. Elas não foram inventadas agora pela dupla queima-floresta Bolsonaro&Salles.

— A carta de Bolsonaro a Biden é mais que triste, é dramática. Ele fala em proteger indígenas, e o governo é autor do projeto que legaliza mineração, exploração de madeira, agropecuária, gás, petróleo e usina elétrica em terra indígena. Ele enterrou o PPCDAm mas pede dinheiro alegando que o Brasil reduziu o desmatamento. Caiu por causa do plano que ele desmontou — diz André Lima.

O MapBiomas tem feito perguntas pela Lei de Acesso à Informação ao vice-presidente, general Hamilton Mourão, sobre os crimes ambientais. Fez 66. A resposta é sempre a mesma. A de que o Conselho da Amazônia é só o coordenador. “Sugere-se que seja realizado o pedido ao órgão competente”. Mas o Ibama nem faz parte do Conselho.

Esse ataque múltiplo contra a floresta é a verdade do Brasil. Verdade que não estará na fala de Bolsonaro aos líderes mundiais.


Bernardo Mello Franco: Plano de desmonte

No início da pandemia, Ricardo Salles expôs um plano para desmontar o sistema de proteção ao meio ambiente. Segundo ele, era preciso aproveitar as atenções voltadas para o coronavírus e “ir passando a boiada”. O ministro pode ser acusado de muita coisa, menos de não fazer o que prometeu.

Desde a célebre reunião de abril de 2020, Salles revogou normas de licenciamento, perseguiu servidores e se aliou abertamente aos devastadores da Amazônia. O resultado foi o maior desmatamento da floresta em dez anos, de acordo com os dados do Imazon.

Encorajado pelo chefe, o ministro continuou a tabelar com os algozes da floresta. Em março, ele se solidarizou com os alvos da maior apreensão de madeira da história do Brasil. A atitude revoltou os investigadores que comandaram a operação. “Na Polícia Federal não vai passar boiada”, reagiu o superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva.

O delegado não se limitou a protestar. Apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra Salles e o senador Telmário Mota. O documento acusa a dupla de advocacia administrativa, participação em organização criminosa e infração contra a lei de crimes ambientais.

Para Saraiva, o chefe do Ministério do Meio Ambiente atacou a PF “de forma parcial e tendenciosa, comportando-se como verdadeiro advogado da causa madeireira”. A descrição também serve para ilustrar as relações do ministro com grileiros de terra e garimpeiros ilegais.

A ousadia de Salles mostra que ele não age sozinho: cumpre tarefas combinadas com Jair Bolsonaro. Ontem o presidente deu mais um sinal de apoio à devastação. Em vez de demitir o ministro, mandou afastar o superintendente da PF que o acusou.

Saraiva fez o que o procurador Augusto Aras se recusa a fazer: denunciou o desmonte ambiental e tentou laçar a boiada de Salles. O Congresso também tem sido cúmplice do ataque à Amazônia. Agora, o Supremo tem uma chance de frear as motosserras.

A Corte ainda ganhou novos elementos para o inquérito que apura a interferência do presidente na PF. A investigação completa um ano no próximo dia 28. Ao derrubar o superintendente, Bolsonaro escancarou, mais uma vez, o plano de capturar a polícia para defender seu grupo político.


Vera Magalhães: Salles não é Ernesto nem Weintraub

Quem imagina que a pressão internacional pela adoção de políticas mais firmes no combate ao desmatamento, a demissão do superintendente da Polícia Federal no Amazonas ou os sucessivos indicadores de aumento dos desmates e das queimadas colocam em risco imediato a permanência de Ricardo Salles no governo deve atentar para uma diferença importante: Salles não tem nada a ver com Abraham Weintraub ou Ernesto Araújo.

A começar pela origem. Salles não é um fanatizado seguidor de Olavo de Carvalho, nem mesmo um cultor da imagem de Jair Bolsonaro como um “mito”. A associação entre ambos é uma conveniência de agenda, pragmática para ambos os lados.

O ministro não era o preferido do presidente eleito na transição. As primeiras reuniões entre eles foram cercadas de desconfiança, pelo fato de Salles ter integrado o governo de Geraldo Alckmin.

O paulista ganhou o posto ao se comprometer a implementar à risca a agenda de Bolsonaro, que logo nas primeiras conversas reclamou do excesso de fiscalização e de multas aplicadas por órgãos como o Ibama a madeireiros e produtores rurais. Disse que seu ministro teria a incumbência de acabar com a “indústria da multa” e enfraquecer o papel das ONGs, inclusive suas conexões no Inpe, no Ibama e no ICMBio.

Este é um ponto fulcral: diferentemente de Araújo e Weintraub, cujo comportamento caricato e cuja mente persecutória não permitiam que cumprissem nenhum planejamento de desmonte de seus órgãos sem que isso naufragasse como um plano infalível do Cebolinha, Salles sabe planejar e executar a agenda de Bolsonaro. Tem feito isso com extrema eficácia ao longo de dois anos e três meses.

O que ele propugnou na famosa reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, aproveitar a pandemia para “passar a boiada” do desmonte da estrutura de fiscalização e a legislação ambiental, inclusive do arcabouço legal, está sendo implementado à risca. Basta pegar a lista de normas revogadas nos últimos meses, inclusive as concernentes à concessão de licença ambiental.

Salles não se furta a defender a agenda de Bolsonaro em entrevistas, reuniões com outros países e fóruns internacionais. Faz isso sem alterar a voz ou a fisionomia, supostamente esgrimindo dados, que distorce sem nem corar. Aperta os botões certos para demitir ou mandar afastar quem cruza seu caminho, como acaba de acontecer com o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva — algo “já planejado”, segundo os envolvidos.

A queda de Salles dependeria de alguns fatores combinados. Primeiro, uma evidência que o ligasse à defesa dos interesses de empresas privadas que agem ilegalmente nos ramos de madeira, extração mineral ou agropecuária, como acusou Alexandre Saraiva na notícia-crime que enviou ao Supremo Tribunal Federal.

Portanto, se o STF abrir mais um inquérito para investigar um ministro de Bolsonaro, e exigir, como Alexandre de Moraes garantiu no caso das denúncias de Sergio Moro, um delegado da PF destacado para isso que não possa ser removido pelo diretor-geral Paulo Maiurino, a situação do titular do Meio Ambiente poderia se complicar.

O segundo fator que pode atrapalhar a permanência do extremamente eficiente (para Bolsonaro) Ricardo Salles é uma sanção mais concreta da União Europeia, da China ou dos Estados Unidos às exportações brasileiras pela nossa trágica gestão ambiental.

Isso faria com que o prejuízo pela manutenção do ministro se fizesse sentir no bolso daqueles que apoiam Bolsonaro: o agronegócio, o setor da mineração e os madeireiros. O presidente já perdeu sustentação em segmentos importantes, como o mercado financeiro e o empresariado industrial, em razão do desastre na resposta à pandemia e da economia que não decola. Se sentir que a própria cabeça estará na guilhotina, não se furtará a colocar a de seu dileto ministro no lugar.