Gramsci

Luiz Sérgio Henriques: A filósofa e o autocrata

Agnes Heller adverte que a democracia liberal é nossa única chance de sobrevivência

Talvez não seja vezo, vício, muito menos viés o que tem garantido no debate corrente a fortuna do termo “ideologia”, especialmente no seu mau sentido, aquele segundo o qual, se não formos capazes de um esforço severo e constante, terminaremos por ver o mundo com lentes deformadas ou mesmo de ponta-cabeça. A acreditarmos em Agnes Heller, filósofa de sólida formação marxista e há décadas influenciada pelo liberalismo político, passamos rapidamente de uma sociedade de classes para uma sociedade de massas, em que, se as classes obviamente não desapareceram, foram fortemente redefinidas e deixaram de ser percebidas como o motor único ou mesmo principal do comportamento político.

Neste contexto de massas, ideologias tóxicas de novo tipo, manipuladas por aventureiros, tomam a cena, insuflam atitudes irracionais e servem de escora para modalidades inéditas de tiranos e tiranias. As palavras de Heller, registradas por Le Nouvel Observateur e reproduzidas por O Globo, provêm de um dos vários laboratórios atuais dessas perigosas experiências, a sua Hungria natal. Nela, com efeito, Viktor Orbán, personagem com quem nos familiarizamos já no primeiro dia do ano, com sua presença na posse do novo presidente, radicaliza o projeto de democracia iliberal, oposto ao liberalismo não democrático que, segundo ele, assinalaria uma Europa extenuada, sem cultura e sem alma, termos afins aos do nosso ministro das Relações Exteriores.

A “democracia cristã” do autocrata húngaro nada tem que ver com grupos e correntes da mesma denominação que, no segundo pós-guerra, reuniram partes muito expressivas de eleitores influenciados pelo catolicismo, muitas vezes em confronto aberto, mas institucionalmente regulado, com setores do mundo laico, fossem eles liberais ou socialistas. Conflitos ásperos à parte, a velha democracia cristã incorporava amplos contingentes populares à vida do Estado democrático, vitalizando-o e tornando-o mais representativo, transformando-o, por conseguinte, na arena por excelência da disputa política civilizada. Nessa arena preciosa, resultado de longo e cruento percurso histórico, o conflito, então, poderia ser produtivo para todos, tal como provado por décadas de políticas de bem-estar social que não se restringiram à Europa ou aos Estados Unidos de Roosevelt, mas deixaram marcas por toda parte, até no Brasil.

A nova “democracia cristã”, ao contrário, gostaria de generalizar ideias fora de lugar e de tempo – ideologias, exatamente –, como, em particular, o recurso demagógico a egoísmos nacionais e a extremado conservadorismo de valores. O primeiro de tais recursos choca-se, evidentemente, com os traços de uma época em que o gênero humano, provavelmente pela primeira vez, deixa de ser construção mais ou menos abstrata dos filósofos e passa a ser realidade imediata para cada indivíduo, em qualquer canto que esteja. Difícil contornar essa evidência apontando o dedo contra “globalistas”, uma vez que cada país se vê às voltas com fenômenos de todo tipo que escapam às próprias fronteiras. A interdependência, por isso, é o horizonte do nosso tempo para o bem ou, certamente, para o mal, se não soubermos construir os instrumentos capazes de governá-la.

O conservadorismo de valores assenta-se, no caso de Orbán, e não só nele, numa religião singularmente reativa aos processos de modernização e secularização, além de amputada da dimensão solidária e fraterna que nos acostumamos a encontrar nos fatos religiosos. Não há aqui nem sombra de períodos marcados pelo ecumenismo ou pelo “diálogo” com os não crentes, mas, ao contrário, espírito de cruzada a ser invocado na perspectiva de uma guerra de civilizações. Imigrantes são mal-vindos, as religiões que trazem maculam a pureza dos valores locais, o multiculturalismo próprio de uma vida cosmopolita deve ser desprezado. E não é complicado, para demagogos, explorar ressentimentos incrustados no senso comum e produzir tiradas em série contra o “politicamente correto”, denunciado como insuportável “ditadura” de minorias, quando, nos casos melhores, ele é sinal de atenção e reconhecimento de sujeitos e realidades antes invisíveis.

Viktor Orbán, como dizíamos, não está só no mundo. Pertence a uma galeria de personagens autocráticos que pouco a pouco passaram a fazer parte das nossas preocupações cotidianas. Alguns deles, mais agressivos, certamente por agirem em contextos de tradições democráticas mais frágeis, chegaram a concretizar os elementos iliberais com que sonharam. Outros, como Trump ou Salvini, mesmo implementando políticas regressivas, veem-se constrangidos ou limitados por aquilo que se tem chamado de “regras não escritas da democracia”, as quais, materializando amplo consenso em torno das instituições, impedem que as liberdades morram, para aludir ao livro conhecido de Levitsky e Ziblatt. E não se entende muito bem por que o Brasil, segundo palavras recentes do presidente Bolsonaro, deva se aproximar de países, como esses, ideologicamente vizinhos. Só haveria perdas reais e ganhos imaginários, a não ser que a realidade passe a ser percebida de cabeça para baixo.

A voz da outra Hungria, a de Agnes Heller, adverte-nos que a democracia liberal é a nossa única chance de sobrevivência, ainda que nem todas as suas promessas tenham sido cumpridas nem tenham sido exploradas todas as dimensões da liberdade. Mas nenhuma hipótese de mudança social poderá doravante cancelar o regime de liberdades “liberais”, ao contrário do que políticas puramente classistas do passado admitiram e promoveram, com resultados em geral negativos ou até catastróficos. E não há “populismo dos povos” a ser contraposto ao “populismo ideológico” dos grupos de extrema direita. Mas essa é uma outra frente de combate ideal que se deve travar no âmbito dos progressistas. Incessantemente, aliás.

 


Ivan Alves Filho: Notas brevíssimas sobre o momento atual

1. A política a ser implementada no tocante ao papel do Estado incorpora em boa medida a compreensão de que os setores industriais privados têm de receber incentivos por parte do capital público. Uma vez atingida a fase do chamado Capitalismo Monopolista de Estado — e isso, a rigor, já vem se verificando desde a Primeira Guerra Mundial —, é impossível imaginar um retorno puro e simples à livre concorrência e ao predomínio das chamadas forças do mercado. São os limites do liberalismo econômico, em que pesem seus grandes méritos políticos, ao afirmar o espaço relativo ao individuo frente aos poderes do Estado. Vale dizer, há setores da atividade econômica que não são lucrativos e outros que exigem investimentos que ultrapassam a capacidade operacional do setor privado. E Estado moderno algum pode prescindir do planejamento público. Deixar de recorrer ao financiamento público é simplesmente impraticável para a sobrevivência da própria esfera privada. A esmagadora maioria dos investidores e empresários tem plena consciência dessa questão. Qualquer política de retomada do desenvolvimento ou saída da crise tem que ter total clareza quanto a isso.

2. Da mesma forma que nem toda ditadura é sinônimo de fascismo (apesar de todo fascismo ser uma ditadura), nem toda militarização se apresenta sob a cobertura de uma ditadura militar. Precisamos entender esse fato novo na política nacional.

3. A presença dos militares nesse início de governo Bolsonaro — oito dos 22 ministérios são ocupados por eles, salvo engano — é completamente desproporcional ao peso numérico das Forças Armadas na vida brasileira: são menos de meio milhão de homens fardados para cerca de 210 milhões de civis. A partir dai já podemos falar em militarização do governo, de consequências imprevisíveis para a sociedade, independentemente da qualidade dos quadros militares que integram a administração central.

4. Está em marcha uma espécie de Integralismo de caserna que tem por características principais o desprezo pela atuação parlamentar, a valorização da chamada moral tradicional, o nacionalismo estreito e o autoritarismo.

5. Não há a menor possibilidade de a oposição ter outro posicionamento que não seja propositivo. A era do slogan — que vende ilusão, simplesmente — esbarra no muro da realidade. O que de fato importa é a defesa intransigente da democracia, do mundo do trabalho e da cultura. E essa defesa passa seguramente pela reforma do Estado. Resta saber se a oposição compreenderá isso também.

6. O discurso populista pode ser bloqueado por uma política econômica antipovo. O discurso moralista, abafado pelo comportamento de alguns membros destacados do governo nas redes sociais. O discurso anticorrupção, derrotado pelas próprias práticas de corrupção. Nessa quadra, o inimigo principal do governo pode perfeitamente ser ele mesmo, caso não haja uma mudança substantiva de rumos.

7. O fato de o conservadorismo extremado ter um peso considerável na atual administração só reforça a necessidade de uma Frente Ampla reunindo o Campo Democrático em defesa dos valores da Civilização contra a Barbárie. Que fique bem claro que ditadura nenhuma é de esquerda e regime democrático nenhum é de direita. Essa é, cada vez mais, a nosso juízo, a linha divisória na sociedade brasileira de hoje. A democracia é o norte, sempre.

*Ivan Alves Filho é jornalista, historiador e autor de mais de uma dezena de livros, entre eles Memorial de Palmares e O caminho do alferes Tiradentes.

 


Luiz Sérgio Henriques: Os fatos da Venezuela

Absurdo drama humano, motivo de vergonha para seus promotores e quem lhes dá apoio

Certamente próxima do fim, mas sem que se possa excluir como desfecho uma intervenção externa ou uma guerra civil catastróficas, a tragédia venezuelana em curso põe de ponta-cabeça o mundo tal como o temos experimentado. É verdade que parte da esquerda global - seria mais apropriado falar de extrema esquerda - permanece irredutível na defesa do que seria uma “revolução nacional e democrática”, com todos os seus erros e até crimes, contra a ameaça iminente do “imperialismo”, acorrentando-se com cegueira deliberada ao destino da ditadura bolivariana. Não menos verdade é que, dada a gravidade dos acontecimentos, atores como Donald Trump e os que a ele se associam de forma subordinada podem apresentar-se, pelo menos taticamente, como defensores de uma agenda humanitária que raramente, até agora, deram mostras de considerar com seriedade.

Trump, afinal, é o político que constrói muros, mesmo quando na fronteira se amontoam refugiados de países centro-americanos literalmente devastados pela “guerra às drogas”. E o nativismo que apregoa é versão particularmente grosseira daquele “esplêndido isolamento”, uma das vertentes, ainda que não a única, do modo norte-americano de estar no mundo. O nacionalismo que pratica e, ao mesmo tempo, ajuda a difundir entre sócios menores hostiliza instituições multilaterais que, com todas as suas limitações, participam do “governo global” minimamente necessário numa fase histórica em que o mundo objetivamente se unifica, ao menos em termos econômicos, e a interdependência se afirma como possível fator de paz e entendimento.

Naturalmente, há razões geopolíticas de muito peso no movimento para além da própria fronteira, em direção ao sul do continente. Há motivos econômicos óbvios e há novos aliados ideológicos a serem mobilizados em ordem unida: a conjunção de astros aqui parece muito favorável, pouco depois do encerramento do ciclo dos governos ditos nacional-populares. Mas a justificativa imediata e, em seus termos estritos, rigorosamente defensável decorre de algo com que governos de direita e extrema direita dificilmente contam, a saber, uma emergência humanitária sem precedentes, acarretada, no caso, pelo colapso do frágil e ruidoso experimento de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Trata-se, em suma, de uma questão de direitos humanos ferozmente violados por uma ditadura que se apresentava, e se apresenta, como de “esquerda”, ainda que tenhamos de ampliar consideravelmente este último conceito para nele incluir expressões acabadas de caudilhismo, militar ou não, típicas da história do autoritarismo latino-americano. Para mencionar uma fonte acima de dúvida, ao tomar posse como alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, em setembro de 2018, a socialista chilena Michelle Bachelet teve palavras muito duras: em meados do ano passado, o êxodo venezuelano tinha dimensões assombrosas, atingindo até então cerca de 7% da população do país. Um êxodo causado pelo colapso econômico, pela falta de comida e de remédios, pela perseguição política pura e simples. Suas origens foram basicamente endógenas e não advieram de sanções ou pressões do poderoso vizinho do norte. Um absurdo drama humano, motivo de profunda vergonha para seus promotores diretos e para aqueles que ao longo de duas décadas lhes deram algum tipo de apoio.

Nenhuma possibilidade, por isso, de evocar o presidente Salvador Allende a propósito de aventureiros. Allende foi homem de Estado, que escolheu morrer com a democracia de seu país. A diáspora chilena seguiu-se à sua derrubada, diferentemente do drama venezuelano de agora. Por certo, Allende não está acima de exame crítico e menos ainda se presta à mitificação infantilizadora. O projeto com que passou dignamente à História - a construção do socialismo em regime de liberdades - era certamente inviável num tempo em que a potência dominante não permitiria outra Cuba no continente, embora houvesse distância imensa entre o ethos republicano do chileno e o caudilhismo “nacional-popular” característico de Cuba.

Tanto se tratava de personagem de outra envergadura que um destacado líder do comunismo histórico - talvez o último - tomou-o como inspiração para escrever sofridamente a propósito do 11 de setembro de 1973. Enrico Berlinguer, refletindo sobre os “fatos chilenos”, mostra então plena consciência do papel desempenhado tanto pelo PCI quanto pela Democracia Cristã no segundo pós-guerra. Os dois partidos rivais, que, no entanto, se entendiam e se condicionavam mutuamente, tinham sido praticamente os únicos recursos com que o país contara para se reconstruir depois dos 20 anos de fascismo e da catástrofe nacional por ele produzida. Por isso, qualquer avanço na conjuntura difícil dos anos 1970 só se poderia dar no quadro de amplo compromisso que resguardasse, em primeiro lugar, os institutos democráticos “clássicos”.

Impossível aqui avaliar as peripécias que frustraram generosos propósitos como os de Allende e Berlinguer. De resto, assim será sempre a história dos homens, fadada a não conhecer nenhum fim determinado - nem mesmo o “socialismo” como etapa última e superior -, mas por certo suscetível de equilíbrios mais justos e valores compartilhados, à medida que se afirmem os processos de democratização próprios da modernidade. A esquerda política, necessária “apesar de todas as quedas”, como no verso de Bandeira, está chamada a refletir impiedosamente sobre os “fatos venezuelanos”, sem minimizar as pesadas responsabilidades que recaem sobre parte de si mesma. Da extensão e da qualidade de tal reflexão dependerá a possibilidade de se recolocar coerentemente como fator de justiça e liberdade. Se não o fizer, continuará a deixar o caminho livre para autocratas capazes de manipular emergências humanitárias e redefinir direitos humanos, esvaziando-os de seu extraordinário universalismo.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, LUIZ SÉRGIO HENRIQUES É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

SITE: WWW.GRAMSCI.ORG


Alberto Aggio: Uma esquerda sem conceito

Mais uma vez pode-se registrar a distância sideral que sempre existiu entre o PT e Gramsci

Era o ano de 2001. Uma plêiade de intelectuais de esquerda reuniu-se no histórico edifício da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, para celebrar os 25 anos do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e “Pensar o Brasil”. Lua Nova n.º 54, publicação da entidade, registrou as exposições e os debates. Naquela época ainda se podia reunir intelectuais para esse tipo de discussão. Ao contrário do que ocorre hoje, o debate intelectual importava para a construção de referências visando a elaborar algum pensamento de fôlego sobre o País e o mundo.

“Articular transformação com conservação” foi o tema que norteou a exposição de Marco Aurélio Garcia. Resgatar aquela exposição não é importante apenas em razão do conteúdo, mas também pela importância que o expositor assumiu nos governos do PT durante os 15 anos seguintes.

Questionando a tese de que nossa formação histórica fosse resultado de uma “transição por cima”, demarcando nossa “pronunciada especificidade”, Garcia afirmava que aquilo que “foi contabilizado de maneira geral como revolução passiva”, além de se voltar para o passado, seria tributário “de uma certa visão linear da história”. É significativo que um dos próceres do PT manifestasse uma visão francamente contrária à noção gramsciana de revolução passiva, desqualificando-a de maneira integral. Surpreende porque o conceito de revolução passiva, em Gramsci, não guarda absolutamente nada daquela visão obtusa da história. Surpreende, também, porque desde 1997 tínhamos à disposição A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil, seminal estudo de Luiz Werneck Vianna sobre o tema e seus rebatimentos no Brasil.

O oximoro da revolução passiva, formulado por Gramsci nos Cadernos do Cárcere, juntamente com uma específica noção de hegemonia, já era reconhecido, por inúmeros estudiosos, como o par essencial de uma nova teoria sobre a política. Impossível expor, com profundidade, o que dá sustentação a essa nova conceituação. Aqui farei apenas uma breve súmula.

Revolução passiva é uma categoria analítica voltada para a compreensão de uma época de transformação histórica na qual o “impulso renovador” não advém do desenvolvimento econômico local, e sim de ideias derivadas do desenvolvimento internacional. Por incapacidade de autoconstituição da sociedade nacional, o Estado assume um papel preponderante na condução das mudanças, autonomizando sua classe dirigente. Nestes processos de construção do moderno, a conservação pesa, mas não é uma condenação. É distinto de uma contrarrevolução. Não há reação integral à mudança e o que se sobrepõe nas relações sociais é um conjunto de transformações moleculares. A história muda, mas não por meio de revoluções explosivas.

Como contemporâneo da revolução bolchevique, do fascismo e do americanismo, Gramsci sugere que se poderia entender como revolução passiva processos reformistas de transformação da estrutura econômica rumo a uma economia planificada, superando os momentos mais liberais e individualistas do capitalismo do século 19. Para Gramsci, o mundo caminhava rumo ao que ele chamava de uma “economia de programação”, dirigida quer pela política, quer pelo Estado em sua trama privada (o americanismo). A categoria da revolução passiva possibilitaria, então, a compreensão não apenas das modalidades de trânsito ao moderno, mas também as modalidades de reprodução da dominação sob o moderno.

Essa compreensão da história dá suporte a uma nova teoria da ação a partir da identificação de um grande problema político: saber em que grau, alcance e através de que formas as classes subalternas teriam constrangido o seu protagonismo. Em outros termos: de que forma as classes subalternas poderiam se manter ativas nos contextos de revolução passiva. Com centralidade na democracia política, a luta pela hegemonia seria essencial para a manutenção das classes subalternas em plena ativação, descartando tanto a ideia de assumir a revolução passiva como seu programa quanto o voluntarismo jacobino de uma estratégia de “antirrevolução passiva”.

A revolução passiva, na arguta observação de Luiz Werneck Vianna, expressaria, simultaneamente, positividade “em termos de processo, uma vez que, no seu curso, a democratização social, por meio de avanços moleculares, se faz ampliar”, e negatividade, “porque a ação das elites se exerce de modo a ‘conservar a tese na antítese’”. O problema estaria no agir político capaz de obstar a lógica predominante do “conservar mudando” e, realisticamente, conseguir inverter os vetores, fazendo com que a mudança dirigisse a conservação. Rovesciare, colocar em pé a revolução passiva, ou girar o registro do transformismo, de negativo para positivo, eis o sentido do que se vem chamando de “novo reformismo”, inspirado em Gramsci, no qual democracia e reformas, por meio de consensos, visam a suplantar a oligarquização do Estado, ampliar a participação, sem suprimir a representação política.

Sensível ao nexo transformação/conservação, Marco Aurélio Garcia preferiu a crítica convencional à “linearidade da história”, recusando-se a dialogar com o que havia de melhor no “comunismo democrático” brasileiro, na sugestiva expressão de Maria Alice Rezende de Carvalho. O rechaço à angulação da revolução passiva impediu a adoção de uma estratégia reformista fundamentada teoricamente e aberta à inovação.

Por que o intelectual petista optou, como está no final da sua exposição, por uma escolha burocrática que descrevia de maneira superposta e simplista as questões democrática, social e (pasmem) nacional como o feixe de problemas que se deveria enfrentar para mudar o País? Difícil dizer, mas o que se pode inferir é que foi uma escolha consciente.

Mais uma vez pode-se registrar a distância sideral que sempre existiu entre o PT e Gramsci. O resto da história dessa esquerda avessa a conceitos é conhecido.


Otavio Frias Filho: Gramsci, esquecido e atual

 

Ainda sobre o tema do centenário da Revolução Russa, é oportuno registrar uma lacuna nas celebrações, a do pensador italiano Antonio Gramsci. Ele foi não só um dos dois marxistas mais inventivos do século 20 (o outro seria o húngaro György Lukács), mas um pioneiro ao intuir as deficiências sobre as quais assentava a experiência soviética. A crítica de Gramsci, embora implícita, tinha mais alcance que a do próprio Trótski e sua teoria do desvio burocrático.

É verdade que está saindo agora "Gramsci e a Revolução Russa" (Mórula Editorial), coletânea de ensaios de especialistas brasileiros e italianos, e que há meses foi publicado um gigantesco "Dicionário Gramsciano" (Boitempo), ambos trabalhos instrutivos, mas apologéticos, voltados a um público de iniciados e militantes.

O próprio Gramsci, porém, está mal editado. As traduções de Carlos Nelson Coutinho estão em parte esgotadas; falta, sobretudo, uma reedição crítica desse autor inesgotável. Escrita quase toda na precariedade extrema dos dez anos que passou numa prisão fascista, até ser libertado para morrer de tuberculose em 1937, aos 46 anos, sua obra são anotações iluminadoras sobre uma imensidade de tópicos, em geral culturais (como Nietzsche, sua área de origem era a filologia).

Gramsci extrapola as fronteiras de uma seita intelectual e pertence ao pensamento humano. Sua escrita, como a do próprio Marx, é plástica e imaginativa, sem aquele automatismo determinista de tantos marxistas que faz a história parecer tão viva quanto um teatro de marionetes. Sua maior contribuição terá sido enfatizar que o poder repousa sobre instrumentos coercitivos, mas nunca dispensa outra dimensão, que se expressa como persuasão e relativo consentimento.

A dimensão coercitiva concerne ao Estado, mas a "sociedade civil" (economia e instituições privadas) é o palco onde se disputa em épocas de crise a "hegemonia" (direção mental da sociedade), exercida habitualmente pelo "bloco histórico" (aliança de classes e grupos antagônicos acoplados a um mesmo modo de produção) por meio de uma ideologia elaborada pela camada de "intelectuais".

Estes podem ser "tradicionais" (quando resquício de modos de produção extintos, que por isso aparentam autonomia social; por exemplo, o clero católico) ou "orgânicos" (quando surgem em resposta a demandas de uma classe ascendente, como técnicos, cientistas, gerentes e publicitários, no caso da burguesia). Quanto ao proletariado, seus intelectuais haveriam de se formar no partido, que assim aparece como príncipe moderno, numa releitura do precursor da ciência política, Maquiavel.

As percepções de Gramsci vão do específico ("a escola é uma luta contra o folclore", no sentido de conhecimento irrefletido) ao mais geral, como a noção de "revolução passiva". Trata-se das modernizações econômicas promovidas não por uma sublevação social, mas pelo próprio partido da ordem, com pouca mudança na estrutura social ("revoluções sem revolução" que o leitor da história brasileira conhece de cor e salteado).

Quando insistia que os comunistas italianos deveriam obter a hegemonia, esse intelectual cedo convertido em dirigente partidário estava oficialmente falando de uma sociedade civil superdesenvolvida, como a italiana. Mas ficava subjacente a ideia de que os revolucionários russos, vitoriosos no surpreendente assalto ao poder, teriam de se manter nele por meios cada vez mais coercitivos, porque não tiveram tempo nem interesse em conquistar consentimento.

Gramsci nunca chegou a ser um dissidente, embora suas críticas ao sectarismo criminal das lutas entre facções bolcheviques fossem conhecidas em Moscou e lhe tenham valido, nos últimos anos, isolamento por parte dos camaradas italianos. Ele definhava na prisão, escrevendo. A sobrevivência de sua obra é devida à cunhada russa, Tatiana Schucht, que salvou seus numerosos "cadernos do cárcere".

Sua atualidade se deve ao menos a dois motivos. A esquerda, depois de tantas aventuras frustradas, entendeu que o programa socialista para a economia funciona mal e concentrou as lutas nas batalhas culturais de cunho identitário. A direita, depois de cinco décadas de hegemonia progressista, seja no âmbito mundial, seja no nacional, volta a articular um discurso cultural conservador. Gramsci é o autor por excelência da política tomada como cultura.

Com boçalidade insuperável, o promotor fascista que pediu a condenação do deputado Antonio Gramsci em 1926 escreveu que "precisamos fazer esse cérebro parar de pensar por 20 anos". Oitenta anos depois de desaparecer, aquele cérebro continua a pensar na mente de quem o lê.

 


Daniel Aarão Reis: O desvio autoritário de uma ideia

Durante o século XIX, socialismo e democracia eram conceitos intercambiáveis. O socialismo era visto como um aprofundamento da democracia e só seria possível quando esta fosse aperfeiçoada. Eram ideias poderosas, que se sedimentaram principalmente após as revoluções francesas de 1848 e de 1871 (a Comuna de Paris), quando vários partidos socialistas se formaram pelo mundo. Em 1889, fundou-se a II Internacional Socialista, rapidamente dominada por aqueles que se intitulavam herdeiros de Karl Marx. Para todos eles, os valores democráticos eram referências comuns. Lutava-se pelo sufrágio universal, direto e secreto. Pela liberdade de organização sindical e partidária, pela liberdade de imprensa e pelos direitos sociais. Mesmo nos países da Europa Oriental, onde ainda eram ignoradas as liberdades democráticas, os partidos socialistas eram identificados com a democracia e nada é mais eloquente a este respeito do que o fato de que eles, na Rússia, se autodenominassem e fossem conhecidos como “a democracia”.

No mundo atual, contudo, esses dois conceitos parecem estar separados como água e óleo. Na América Latina, no começo dos anos 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT), por meio de várias de suas tendências, cultivou a ambição de construir um caminho socialista e democrático. Mais tarde, porém, derivas pragmáticas e “gestionárias”, ocupadas quase que exclusivamente em “administrar os negócios”, e garantir a “governabilidade”, fizeram com que o PT perdesse esse rumo. Casos em que socialismo e democracia aparecem juntos são raros, mas existem. No Uruguai, propostas de construção de um socialismo democrático estão vivas no interior da Frente Ampla, destacando-se aí a figura de José Mujica. Na Europa, têm aparecido igualmente tendências socialistas democráticas, ecológicas e favoráveis à auto-organização das gentes, com destaque para Espanha, França, Islândia, Itália e Grécia. Todos esses movimentos, porém, têm dificuldade em se apresentar como democráticos.

A principal razão para essa crise de confiança no socialismo originou-se nos desdobramentos da Revolução Russa. O comunismo russo dissociou democracia e socialismo, principalmente após a revolução que ocorreu durante as Guerras Civis, entre 1918 e 1921. Os anarquistas passaram a ver o socialismo soviético como uma espécie de capitalismo de Estado. Para os social-democratas, tratava-se de um “socialismo de quartel”. Um pouco mais tarde, Trotski lançou a ideia de um “socialismo degenerado”. Todos esses críticos não perceberam que estava surgindo um socialismo de novo tipo: autoritário, centralista, estatista. Foi ele que hegemonizaria a história do socialismo no século XX.

Convém recordar, antes de mais nada, que, na Rússia, na virada do século XIX para o século XX, inexistiam tradições democráticas. Uma autocracia totalizante imaginava o Imperador como gosudar, ou seja, o “amo” de um “domínio”, estabelecendo-se entre ele e seus vassalos uma dominação absoluta, sem mediações institucionais. O czar (do latim, César) regia seus territórios e gentes com mão de ferro, só prestando contas a Deus. Os governos eram de sua livre nomeação. A burocracia civil, hierárquica e vertical, “seus olhos e ouvidos”. A Igreja Ortodoxa, decisiva na formação de um povo extremamente religioso, também era controlada pelo autocrata. Na defesa do regime, uma das melhores polícias políticas do mundo destacava-se pela eficiência, enquanto os cossacos, tropas especiais, reprimiam com brutalidade os movimentos sociais. Num outro plano, as forças armadas formavam um dispositivo temível interna e externamente.

Entre 1905 e 1921, a Rússia conheceu um ciclo de cinco revoluções. Em 1905, movimentos sociais, defendendo reivindicações democráticas, agitaram a sociedade de janeiro a dezembro, quando foram esmagados. Durante o ano de 1905, a revolução na Rússia surpreendeu a todos. Ela foi derrotada, mas fixou experiências que permaneceram nas memórias. Quatro grandes movimentos sociais se destacaram: operários, soldados e marinheiros, camponeses e nações não-russas. A eles se associaram as classes médias e mesmo setores das elites sociais. Em comum: a luta contra a autocracia e por uma assembleia constituinte que democratizasse o poder no sentido de uma monarquia constitucional ou de uma república democrática, como os mais ousados já propunham.

Em 1917, no contexto da I Guerra, de proporções totais e de caráter industrial, a Rússia, aliada à Inglaterra e à França, suportou mal a pressão dos exércitos alemães. Em consequência, exasperaram-se as contradições políticas e sociais. O resultado foi que, em fevereiro daquele ano, em Petrogrado, capital do Império, cinco dias de grandes manifestações, sucessivas e surpreendentes, de operários e soldados, derrubaram a autocracia. Emergiu, então, uma sociedade livre de repressão e de quaisquer tipos de constrangimento. Como disse um observador: “Todos queriam mandar e ninguém pensava em obedecer.”

Encimando a máquina administrativa tradicional, constituiu-se um governo cuja capacidade de comando, porém, sempre foi muito reduzida. Em contraste, e por toda a parte, multiplicaram-se os poderes de fato: conselhos (sovietes) de soldados e operários, comitês agrários, assembleias, milícias armadas, associações de jovens e de mulheres, sindicatos, etc. Eram redes horizontais que só respeitavam diretivas ou ordens que correspondessem a suas vontades e interesses. Ressurgiu a reivindicação comum, formulada em 1905: eleger uma assembleia constituinte, eleita na base no sufrágio universal. Por ela um novo governo seria legitimado e teria autoridade — era o que se esperava — para governar as gentes. Era preciso marcar o quanto antes a data de sua convocação. E acabar com a guerra, cujo peso ninguém aguentava mais. Entretanto, os governos que se sucederam não foram capazes de responder a esses desafios.

Num contexto de imensa cacofonia, desencadearam-se movimentos sociais cada vez mais poderosos, sem freios e autônomos: os operários exigiam melhores condições de vida e de trabalho; os camponeses queriam a terra, toda a terra, sem nenhum tipo de indenização aos proprietários; os soldados e os marinheiros exigiam a paz imediata, a qualquer custo; as nações não-russas, nas brechas, queriam a independência nacional, ameaçando a integridade do país. No turbilhão social, fortaleceu-se, cada vez mais, a proposta de derrubar o governo e entregar “todo o poder” aos sovietes e às organizações populares. Um congresso pan-russo dos sovietes, convocado para 25 de outubro, decidiria esta e muitas outras questões.

Foi nessa situação caótica em que “ninguém obedecia ninguém” que aconteceu uma terceira revolução, a de outubro. Ela teve uma face autoritária notória: o partido bolchevique, que então passara a controlar, entre muitos outros, o Soviete de Petrogrado, organizou uma insurreição na capital e tomou o poder central. As guerras civis que viriam em seguida decidiriam o destino daquele processo histórico. Elas foram, de fato, uma revolução na revolução. Houve uma guerra entre o novo governo revolucionário e as anteriores classes dominantes (vermelhos vs. brancos). Foi a principal polarização, mas não a única. Ocorreram ainda duas outras guerras, a que opôs os bolcheviques e as demais forças socialistas, contrárias ao rumo ditatorial que os bolcheviques imprimiam ao poder revolucionário (vermelhos vs. vermelhos). E a que opôs os russos e os não-russos, pois o direito à secessão, reconhecido na teoria, foi desrespeitado na prática. As guerras civis se estenderam até 1921. Elas arrasaram o país e liquidaram com a autonomia e a democracia que as organizações populares haviam conquistado ao longo de 1917.

Na tentativa de reverter este processo, em março de 1921 ocorreu uma quinta e última revolução, realizada pelos marinheiros da base naval de Kronstadt. Eles queriam um retorno à democracia socialista e às liberdades soviéticas de 1917. Os marinheiros, com muitos ucranianos e lituanos entre eles, foram esmagados a ferro e fogo pelos bolcheviques. Consolidou-se, assim, um regime ditatorial que permaneceu intocado até a desagregação da União Soviética, em 1991.

Dessa forma, o comunismo russo deu início a uma nova vertente do movimento socialista mundial. Criou até mesmo a Internacional Comunista ou III Internacional, que perdurou até 1943. Mesmo após esta data, contudo, as conexões do comunismo russo com o mundo continuaram fortes. Embora a revolução chinesa de 1949 e a cubana, de 1959, tenham ocorrido com pouca ou nenhuma ajuda soviética, os governos que se formaram adotaram, pelo menos nas primeiras fases, os padrões do socialismo soviético: ditadura política, planificação centralizada, estatização radical da economia, mobilização ideológica da sociedade, reformas sociais profundas. Ao lado da Revolução Russa, elas configuraram um padrão, o da revolução catastrófica, que se associa necessariamente a ditaduras políticas. Uma tragédia para a teoria, a proposta — e a esperança —, que associava socialismo e democracia. Em comum, as revoluções em Cuba e na China também ocorreram em sociedades agrárias, como a russa.

De modo geral, e curiosamente, as tendências soviéticas sempre negaram seu caráter ditatorial. Em suas polêmicas com os social-democratas europeus, Lenin argumentaria que a “democracia soviética” era “mil vezes mais democrática” que a melhor democracia europeia. Ele se referia ao processo soviético de 1917, que não mais existia na Rússia revolucionária. Em outras linhas de argumentação, os socialismos autoritários reivindicaram-se como “verdadeiras democracias” por terem sido capazes de alcançar a soberania nacional e de realizar efetivas reformas sociais (nacionalização da terra, serviços públicos gratuitos e de qualidade na educação e saúde), reduzindo drasticamente as desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, buscaram legitimar-se criticando as insuficiências gritantes dos regimes democráticos liberais — corrupção dos processos eleitorais, nível baixo de participação efetiva das gentes nas decisões políticas, permanência de desigualdades sociais, etc.

Em todos esses argumentos há importantes grãos de verdade, o que contribuiu para que esses regimes adquirissem uma certa legitimidade, interna e externa. Por outro lado, na medida em que as classes trabalhadoras europeias e seus partidos foram conquistando importantes reformas sociais e políticas, tenderam a se afastar de uma perspectiva socialista revolucionária. Em consequência, quase todos os partidos social-democratas mudaram seus programas originais, comprometidos com a superação do capitalismo, adotando-se fórmulas afeitas ao capitalismo “regulado”, também chamado de “estado de bem-estar social”.

Assim, a bipolarização entre “comunismo” ditatorial e “social-democracia” gestionária, marcou profundamente a história do socialismo do século XX.

Entretanto, a partir dos grandes movimentos sociais de 1968, a crítica ao paradigma da “revolução catastrófica” se fortaleceu, gerando diversas correntes que, no interior da social-democracia, criticavam suas tendências à “gestão progressista” do capitalismo.

A desagregação da União Soviética, em 1991; as opções da China no sentido de um desenvolvimento capitalista sob controle do Estado, mantida a ditadura política; e a transformação da Revolução Cubana numa ditadura conservadora e familiar geraram situações favoráveis ao repensar de um socialismo democrático, com raízes nos movimentos socialistas do século XIX, cujas experiências mais fortes encontravam-se na Europa e nos Estados Unidos. Este é o desafio que se coloca para uma eventual reinvenção do socialismo no século XXI — voltar a associar socialismo e democracia. Só assim terá condições de prosperar como alternativa.

* Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense/UFF

 

 


Alberto Aggio: O comunismo histórico em perspectiva global

A propósito da efeméride dos 100 anos da Revolução Russa de outubro de 1917, livros foram publicados e reeditados, artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo e, no entanto, a discussão sobre o tema ainda continuará aberta por algum tempo. Seria um excesso imaginar que qualquer revisão daquele processo teria capacidade de (re)estabelecer a verdade dos fatos. Mas uma coisa é certa: nenhuma revisão consegue ter impacto nas orientações políticas hodiernas da esquerda mundial, como antes acontecia. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove a divisão ou a reorientação que antes promovia entre os simpatizantes das suas principais ideias.

Há alguns anos atrás a editora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, convidou especialistas, principalmente historiadores, e decidiu organizar uma publicação sobre a história do comunismo, tomando como referência principal o que foi estabelecido como comunismo histórico, depois de 1917. Os três volumes estão indicados em https://www.cambridge.org/core/series/cambridge-history-of-communism/0399F87881C31D61C89C961E62A2DDEC para serem eventualmente adquiridos e lidos. Dentre os especialistas convidados estão Lucien Bianco, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, Stephen A. Smith, da Universidade de Oxford e Silvio Pons, da Roma Tor Vergata, que já publicou entre nós “A Revolução Global - história do comunismo internacional (http://www.contrapontoeditora.com.br/produto.php?id=3036 ). Esta coleção de três volumes da Cambridge constituiu a base do seminário “Ripensare la storia del comunismo”, realizado em Roma, entre 26 e 27 de outubro, na Biblioteca do Senado italiano, cuja organização esteve a cargo da Fondazione Gramsci de Roma e dos grupos parlamentares do Partido Democrático (PD) da Câmara e do Senado.

Os historiadores presentes não tiveram dúvida em qualificar como fracassadas as duas revoluções que implantaram o comunismo na Rússia e na China, levando-se em conta os objetivos que nortearam suas ações ao longo do tempo, desde o momento da conquista do poder. Não há mais nenhuma perspectiva interpretativa que busque erros específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e diante de desafios e dilemas que constituem parte do processo histórico. É a história in acto que importa a estes historiadores e não uma discussão ideológica e justificativa.

O traço fundamental do seminário - distinto da publicação de Cambridge, uma vez que nem todos os temas e autores estiveram presentes - foi o de tratar o comunismo como um fenômeno global, que influenciou varios países do mundo e milhões de pessoas durante o século XX. De fato, a crença no poder dos comunistas que se impuseram na Rússia tornou o seu movimento uma força global. Claro que esse tratamento teve um desenvolvimento específico, onde se tratou do papel do internacionalismo e do transnacionalismo na história do comunismo russo, bem como da experiência do comunismo na Europa depois da Segunda Grande Guerra, o que importa sobremaneira para uma reflexão do fenômeno em relação à trajetória e aos desafios da esquerda europeia.

Mas, a questão fundamental, no que tange a essa visão geral, é a de se comparar o comunismo russo com o chinês. O problema não é apenas quando se instala ou quando termina o comunismo, pois o fim do comunismo na antiga URSS já é fato conhecido e na China é algo suposto em razão do processo no qual o PCC, atuando em regime ditatorial, instaura o capitalismo como modo de produção material. O problema é efetivamente o destino do “comunismo capitalista” chinês como um player mundial e que papel ele poderá jogar no mundo globalizado.

Realidades não europeias também foram contempladas, como aquelas que envolvem a dinâmica de transformações do Vietnã, similar à chinesa, os limites da estratégia nacionalista dos comunistas da África do Sul e Argélia, e, mais importante, as mudanças que se operaram nos países que compunham uma espécie de commonwealth comunista, como Lituânia, Estônia, Ucrânia, etc.

Mas, o que torna mais evidente a mudança de perspectiva investigativa é o fato de se incluir na análise do comunismo histórico o que os historiadores vêm chamando de “história do cotidiano”. Isso retira, definitivamente, a discussão da temática do poder revolucionário e do seu destino e a coloca na história dos homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo histórico. A historiadora Juliane Fürst, da Universidade de Bristol, Inglaterra, assumiu precisamente essa tarefa ao organizar uma pesquisa voltada para o “comunismo como experiência vivida”. Quem assistiu e se recorda do filme “Adeus, Lenin” se lembrará muito bem das questões cotidianas que envolviam a vida das pessoas na antiga Alemanha Oriental, mal qualificada como “democrática”. O ponto limite deste aspecto da história do comunismo se volta para a reflexão da sua incapacidade como inspirador de uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. No fundo, a revolução e o poder bolchevique não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria apenas e “hegemonia civil”) que pudesse lhe dar sustentação.

O fracasso do comunismo histórico deve ser visto na perspectiva que ele se assumiu, ou seja, como um movimento de caráter global. Não há como sustentar que sua perspectiva possa ainda fazer sentido aos homens e mulheres do século XXI. Ele não foi derrotado por forças superiores em termos materiais ou culturais. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Estamos, hoje, em uma nova fase da humanidade na qual o comunismo não é mais do que história.

 


Mauro Magatti : Sociedade digital e mundo do trabalho

1. Desde quando, no início dos anos noventa, começou a Internet, só se lançaram as premissas para a criação da sociedade digital: construiu-se a rede, venderam-se computadores pessoais, tablets, celulares, desenvolveram milhares de aplicativos. Agora estamos prontos para um verdadeiro salto de qualidade.

Nos próximos anos, com a Internet of Things, a inteligência artificial, o deep learning, os robôs, a indústria 4.0, muitas coisas estão fadadas a mudar radicalmente.

2. Tal processo entrelaça-se com a crise do sistema capitalista global iniciada em 2008. O que isto significa? Significa que um equilíbrio baseado politicamente na hegemonia dos Estados Unidos e na troca social entre finança e consumo (que já provocou a perda da centralidade do trabalho) não se sustenta mais.

3. Isto significa que o problema não é simplesmente religar o motor da economia. Porque, ainda que este motor volte a funcionar — como agora —, não ficam resolvidos os problemas sociais e do trabalho.

E por três razões:

– o efeito do crescimento do PIB sobre o emprego é hoje mais moderado do que há alguns anos. O caso americano ensina: embora a economia mostre há anos um ritmo positivo, a taxa de emprego dos Estados Unidos permanece nos mínimos históricos (e mesmo comparável à da grande depressão). As baixas taxas de desemprego não devem enganar: muitos americanos simplesmente deixaram de buscar trabalho. O problema é que o aumento do PIB está relacionado principalmente aos setores mais inovadores e eficientes (frequentemente ligados à demanda externa). Assim crescem lucros, investimentos e produtividade; e só em medida mais modesta o emprego.

– O crescimento do PIB tende a concentrar-se mais do que no passado. Alguns setores e profissões veem aumentar os próprios ganhos; no entanto, são muito mais aqueles em que os salários tendem à estagnação, o trabalho é precário e subpago. A parte de valor adicionado distribuída ao trabalho continua a decair. Eis por que o homem comum permanece convencido de que as coisas continuam mal. Se não fosse assim, não se explicaria por que Trump pôde vencer as eleições americanas, apesar dos bons dados macroeconômicos obtidos pela administração Obama.

– o crescimento concentra-se em algumas áreas de modo ainda mais explosivo do que no passado. A retomada, assim, ameaça desagregar comunidades políticas inteiras.

4. Com a digitalização, afirma-se a indústria 4.0, caracterizada pelo uso intensivo e capilar de robôs autônomos, realidade aumentada, cloud, big data e analítica, internet das coisas industriais, integração dos sistemas horizontais e verticais, simulação e produção aditiva, produções sob medida. Novos níveis de integração ditigal permitirão às máquinas relacionarem-se entre si e aprenderem continuamente, desenvolvendo formas de “automação inteligente”. A otimização da produção será o objetivo fundamental do novo modelo de produção, impulsionando-o para níveis ainda mais elevados de eficiência.

5. Entre as grandes companhias emergentes, a Amazon permite ver a direção de tal mudança. Colosso da logística que movimenta mercadorias provenientes de todo o mundo, organizando-as numa cadeia distributiva capilar que chega até aos lugares mais remotos e caracteriza-se por sua velocidade e confiabilidade, a Amazon — precisamente graças às tecnologias digitais, robôs, drones — alcança níveis de eficiência extraordinários. Recentemente, a Amazon abriu o primeiro supermercado “sem caixas e sem atendentes”. A Amazon é a campeã de uma abordagem dura do trabalho, submetido ao sistema técnico.

6. Neste caminho uma parte ampla dos trabalhos será substituída por máquinas e dispositivos. Os pessimistas sustentam que se chegará a uma jobless society, isto é, a uma sociedade sem trabalho.

7. A esta tese os otimistas respondem afirmando que o problema das novas tecnologias sempre foi resolvido com a criação de novos postos de trabalho. Mas tal argumento não é decisivo. Não só porque talvez o que aconteceu em outras épocas históricas não se verifique de novo, mas sobretudo porque, admitindo-se só para fins de raciocínio que tal seja o resultado final, não sabemos como será a transição. Que é o que mais conta.

8. No entanto, aqui gostaria de argumentar que é equivocado — e, portanto, perigoso — enfrentar a fase que estamos a atravessar permanecendo prisioneiros desta discussão. E isto à medida que a sociedade digital atinge dois pontos que estiveram na base da sociedade nascida com a revolução industrial.

9. O primeiro ponto é o desaparecimento da fronteira entre trabalho e vida tal como a concebemos nos últimos dois séculos, isto é, a partir da revolução industrial e do surgimento da fábrica moderna.

De fato, o surgimento da sociedade digital possibilita difundir de modo capilar o controle historicamente exercido no interior dos muros da fábrica para o que se desenrola em toda a sociedade e cria as condições para tornar “ubíquo” — isto é, sem tempo e sem lugar — o trabalho. Em outras palavras, um trabalho destituído de lugar, porque organizado em “ambientes digitais” e, como tal, ainda mais abstraído da realidade. E, ao mesmo tempo, destituído de tempo; daí que desapareça a noção de horário de trabalho e, com ele, a segmentação entre “tempo de trabalho” e “tempo livre”, “tempo público” e “tempo privado”, períodos dedicados ao estudo, ao trabalho ou à aposentadoria. Deste ponto de vista, talvez estejamos caminhando, antes do que para a jobless society, para a total-job society, isto é, uma sociedade organizada em torno de um novo tipo de trabalho (e de vida) sem lugar e sem tempo, na qual a relação entre trabalho e remuneração deverá ser completamente renegociada.

10. O segundo ponto refere-se ao aprofundamento de um processo já iniciado há tempos, ou seja, a inclusão sistemática do consumo no regime capitalista. Com o advento dos big data, toda e qualquer ação nossa será monitorada. E de algum modo nossa atividade extralaboral será cada vez mais inserida na produção.

Mais uma vez, a Amazon faz-nos compreender do que se trata: acumulando um conhecimento aprofundado dos gostos e das inclinações dos próprios clientes, a Amazon é capaz de estabelecer uma relação com cada cliente, a quem oferece sugestões personalizadas. Como se vê, o que se redefine é a divisão “industrial” entre produção e consumo.

11. Por estes motivos, mais do que a jobless society, parece-me que o desafio diante de nós seja o risco de ver nascer um neotaylorismo societal.

Esta possibilidade primeira prevê que a capilar penetração da rede e a digitalização de todo instrumento e ambiente de nossa vida pessoal e coletiva seja a condição para poder conceber toda a vida social como uma grande fábrica, em que cada ato (de produção, de consumo, de reprodução) poderá ser monitorado e tornado eficiente. Com a digitalização, a lógica taylorista poderá ser aplicada não mais só às fábricas, mas também às cidades, aos hospitais, às estações, às escolas, às universidades. Graças aos eficazes instrumentos de controle remoto à disposição, não haverá lugar (casa, rua, etc.) nem atividade (trabalho, mas também saúde, tempo livre, formação, etc.) que em princípio possa ficar fora da visão telescópica. Isto significa que um novo Panóptico infinitamente mais poderoso do que aquele imaginado por J. Bentham está hoje ao alcance da mão. Não uma jobless society, mas uma total job society.

Além de inúmeros problemas (perda de privacy, ulterior padronização das atividades humanas, aumento de controle, perda de proteção), o neotaylorismo societal, indiscutivelmente, tem a grande vantagem de poder inserir na produção parcelas cada vez mais amplas da vida social e humana, tornando assim possíveis novas margens de crescimento quantitativo.

12. Devendo administrar níveis cada vez mais altos de eficiência em presença de desigualdades crescentes, o neotaylorismo se baseará na troca de eficiência por segurança.

13. Será este o único resultado possível? Acredito que não.

14. Bernard Stiegler sustenta que “uma ‘economia da contribuição’ tem na rede a infraestrutura técnica necessária”.

Graças à digitalização, hoje existe a possibilidade de criar ambientes laborativos dinâmicos e plurais, em que o produto é um objeto em torno dos quais se criam comunidades de interesse mútuo, no quadro de um novo tipo de horizonte relacional baseado no compartilhamento de responsabilidades e no cuidado recíproco. Segundo esta concepção, o que se redefine é a ideia mesma de trabalho: antes do que como consumidor, cada qual é aqui visto como um contribuidor, isto é um sujeito ativo e capaz que participa da produção de valor contextual.

Nesta perspectiva, o valor contextual determina-se a partir de uma matriz de prioridade estabelecida politicamente, a qual, com a definição das opções de desenvolvimento compartilhadas, fornece o sistema das conveniências sobre cuja base as decisões individuais podem ser tomadas. Isto promove o florescimento dos territórios através de investimentos públicos de tipo infraestrutural, educativo, empresarial e associativo.

15. Para compreender o que falo, uso uma categoria de Carl Schmitt, o qual associava a técnica ao mar. Neste sentido, a política hoje pode ter um papel se operar para construir “terra humana” no mar da técnica. Um dos significados etimológicos do termo nomos (lei) — além de “conquista” e “repartição” — é “cultivação”. No mar da técnica, a terra “emerge” no ponto em que se torna de novo possível a vida humana associada, colocando a técnica a serviço de seus habitantes. Em relação com o mundo. Mas, para dar frutos, a terra deve ser trabalhada e cuidada. Este é o “nomos da terra” na era do mar técnico: uma terra humana só existe na medida em que se criam as condições que a definem — fazendo-a emergir — em relação ao que está a seu redor.

16. Isto implica uma nova troca entre política, economia e sociedade — que chamo sustentável-contributiva — capaz de assumir a forma de uma aliança baseada numa nova forma de relação win-win, para a produção de valor contextual.

17. Aos sujeitos econômicos que reconhecem a sustentabilidade (ambiental e social) como condição para uma nova era de crescimento, oferecem-se condições adequadas para a obtenção de lucros mediante a criação de contextos simultaneamente dinâmicos, integrados e bem organizados, em que se criam as condições mais propícias para poder dispor dos melhores recursos (humanos, tecnológicos, financeiros).

Do ponto de vista econômico, a troca sustentável-contributiva age:

i) sustentando a demanda interna como efeito de uma política de integração e de equidade econômica;

ii) desenvolvendo novos espaços de mercado gerados mediante investimentos públicos, novas parcerias público-privado, processos difusos de inovação;

iii) melhorando a competitividade sistêmica como efeito da produção de valor contextual.

18. Mas a sustentabilidade, por si só, não será bastante se não se aliar a todo o variado conjunto dos contribuidores.

19. Neste sentido, a revolução digital pode constituir a infraestrutura tecnológica para um novo paradigma socioeconômico com base numa troca “sustentável-contributiva” — que se segue à fordista-welfarista e à financeiro-consumista — fundada numa economia do “valor contextual”. A ideia de fundo é que, terminada a bonança financeira, deve-se voltar, de modo novo, a uma velha ideia: quem produzir valores contextuais é que será capaz de sustentar também os consumos, e não mais o inverso. Como pensamos nestas décadas.

20. Embora o tenhamos esquecido, a economia é sempre “política”. E hoje mais do que nunca isto é verdade. Depois de 20 anos de desconexão — efeito da globalização liberal —, o que hoje está em discussão é o liame social, como, de resto, confusamente o populismo dá a entender. Precisamos, portanto, de uma nova inteligência social, uma nova imaginação sociológica sobre nosso modo de estar juntos, para evitar que uma oportunidade — o fato de que o homem seja substituído pelas máquinas no desempenho de funções repetitivas e maçantes — se transforme em drama social.

* Mauro Bagatti é professor da Universidade Católica de Milão. Entre outros, escreveu Cambio di paradigma – uscire dalla crisi pensando il futuro (Feltrinelli, 2017). Texto apresentado no seminário “Desafios de um mundo em intensa transformação” (set. 2017), organizado em São Paulo pela Fundação Astrojildo Pereira e pelo Instituto Teotônio Vilela.

 


Luiz Werneck Vianna: As flechas contra o general Leônidas e nós

Talvez já seja a hora de se falar que as aves de mau agouro, que ainda insistem em pousar em nossa sorte, estejam começando a sentir que lhes tenha chegado o momento de baterem asas em busca de lugares mais propícios à sua presença malévola. As ruas, embora atentas ao que se passa ao redor, se mantém serenas, malgrado as vociferações daqueles treinados em açular, como nas rinhas de galos de briga, instintos guerreiros e que, mesmo em surdina, se mantêm renitentes incitando cizânia pelos meios de comunicação sob sua influência.

Nessa empresa, ocultam maliciosamente seus propósitos da opinião pública, assim exposta a um enigma que não consegue decifrar – será que se trata de tentativas de manipulação da próxima sucessão presidencial? De outra parte, os quartéis, em outros momentos sensíveis a turbulências do tipo das que agora nos acometem, igualmente atentos, se fizeram blindar das paixões irracionais da política com o manto do texto constitucional.

De fato, hoje quase um lugar comum, as instituições que desenhamos na Carta de 88 têm demonstrado uma resiliência capaz de manter em equilíbrio uma sociedade tão invertebrada, heterogênea e desigual como a nossa. Como o general grego Leônidas, em célebre batalha dos campos de guerra da antiguidade, ao ser advertido de que as flechas do exército persa, com quem combatia nos desfiladeiros das Termópolis, eram tantas que podiam cobrir o sol, teria retrucado que “tanto melhor, combateremos à sombra”, podemos também não temê-las sob o abrigo de nossas instituições.

Mas de onde procedem as flechas que desejam ameaçar uma democracia debilitada por um segundo impeachment presidencial em pouco mais de duas décadas? Bizarramente elas nos vêm de uma instituição jurisdicional do Estado incumbida da defesa da ordem jurídica e do regime democrático, que se auto atribuiu o papel salvífico de passar o país a limpo livrando-o do que seria a casta cleptocrata dos políticos. Sob o tema fiat justitia et pereat mundus nossos procuradores têm fechado os olhos às teorias consequencialistas de um Ronald Dworkin, de obra justamente reverenciada, que na modelagem do seu herói Hércules jamais desconsiderava todas as circunstâncias presentes num caso difícil a fim de atingir a melhor solução possível.

O Brasil, sabem todos, é um caso difícil, tanto pela sua história de formação, que combinou as instituições políticas do liberalismo com a escravidão, tanto por sua história recente, quando no regime militar em que foi submetido, em condições de imobilidade política, a um vertiginoso processo de modernização “pelo alto”. O sociólogo Carlos Hasenbalg, estudando os processos demográficos dessa modernização em ensaio marcante, chegou a compará-lo à envergadura do caso chinês.

Boa parte dos políticos ainda atuantes nasceu sob as condições inóspitas daquele regime – os militares, a seu modo, eram “consequencialistas” – a fim de realizar seu projeto de modernização “pelo alto” se aliaram notoriamente a vetustas oligarquias. Analistas sérios não podem recusar tanto os êxitos modernizadores do regime do Estado Novo de 1937 quanto os do recente regime militar, sem deixar de lamentar o lastro autoritário que nos legaram após sua passagem.

A Carta de 88 varreu grande parte desse entulho autoritário, mas a cultura política que vicejou ao longo de décadas de modernização “por cima” – incluído o governo JK e os anos do regime militar – não se deixa remover por letras de lei, e sim pela livre atividade da sociedade civil que, por ensaio e erro, venha a encontrar formas de auto-organização. A própria lei da ação civil pública, de 1985, inspirada nas class actions americanas, visava animar a sociedade civil facultando a ela o acesso ao judiciário a fim de apresentar suas demandas. Os movimentos sociais, que grassaram como cogumelos nos anos de 1980, iniciativa da esquerda em reação ao autoritarismo da época, não só se tornaram refratários ao Estado, como desenvolveram crenças e sentimentos em favor da autonomia da sociedade civil e de suas instituições diante dele. Era também por baixo que o país se “fazia passar a limpo”.

Essa movimentação benfazeja, contudo, foi interrompida pela mudança de rumos adotada por alguns atores estratégicos: a teologia da libertação que, desde os anos 1990, tinha sido uma de suas fontes mais relevantes, foi obstruída pela intervenção da hierarquia católica; as ações civis públicas foram apropriadas pelo Ministério Público, introduzindo um sistema tutelar sobre a vida civil, adulterando, como comentou o jurista Kazuo Watanabe, um dos seus autores, sua intenção original; e o PT, talvez a sua mais forte sustentação na época, em guinada surpreendente, “absolve” a era Vargas e se põe em continuidade com suas tradições de estadofilia.

O resto da história nos é bem conhecido. Passado o hiato dos governos FHC, em que se procurou deixar para trás a herança dos anos 1930, a era Lula que lhe sucedeu, a princípio timidamente, logo investe sem rebuços na sua restauração, como ficou claro em sua política de financiamento das centrais sindicais pela contribuição obrigatória dos seus filiados. E, sobretudo, pela sua orientação em favor de uma forte associação do Estado com setores empresariais, ditos “campeões nacionais”, nos moldes antes praticados nos governos de Vargas.

A chamada operação Lava Jato vem deslindando os resultados maléficos dessa política para a nossa democracia, e não se pode negar a ela, em que pese seus excessos, de que seja um esforço bem sucedido de se passar o país a limpo. Mas esse esforço somente poderá deixar frutos permanentes se envolver a ação das forças vivas da sociedade, que, aliás, já contam com hora marcada para intervir na reforma política em curso e, principalmente, na vizinha sucessão presidencial.

* Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio

 


Sergio Augusto de Moraes: Travessia e armadilhas

Parece que nestes tempos o povo, enojado com a corrupção que grassou no Brasil e castigado pela crise, virou as costas para o mundo político e apenas aguarda 2018 para tentar uma solução. Fazer deste modo tal travessia contém várias armadilhas. Uma delas é deixar que a polarização Lula-Bolsonaro cresça e chegue a outubro do próximo ano como a alternativa mais forte, o que, entre outros males, elevaria o absenteísmo, o voto nulo e em branco a patamares nunca antes atingidos. Outra é deixar espaço para que o Governo Temer e o Legislativo, juntos, empurrados pelo que têm de pior, anulem o trabalho da Lava-Jato.

É natural que esta descrença aconteça. Durante quase treze anos uma polarização primitiva patrocinada pelo PT e seus governos — “nós” contra “eles” — dividiu o povo brasileiro. Esta mercadoria, vendida por vários meios, foi comprada meio às cegas; aparecia para a grande maioria como “pobres” contra “ricos”.

Entretanto, a realidade era outra: foi nestes governos que os banqueiros realizaram os maiores lucros de sua história e outros setores do empresariado — a Lava-Jato escancarou boa parte deles — enriqueceram às custas de favores do Estado, numa aliança espúria que visava dominar o Brasil no mínimo por vinte anos, segundo verbalizado por alguns líderes petistas. Na verdade, o “nós” significava quem estava ou apoiava os governos de Lula e Dilma e o “eles” aqueles que lhes faziam críticas ou simplesmente não os apoiavam.

Ao passar do tempo, o verdadeiro caráter destes governos foi revelando-se. De repente, sem que os analistas ou os políticos previssem, o povo acordou. Em junho de 2013 milhões saíram às ruas pedindo mudanças, verberando os políticos de maneira indiscriminada. Não tinham uma proposta única, apenas gritavam que aquilo não podia continuar, era preciso fazer algo diferente.

Em março de 2014 veio uma primeira resposta: a Lava-Jato começou a tarefa de combater a corrupção, fosse de quem fosse. Preferencialmente daqueles que haviam indevidamente se apropriado dos recursos das empresas ou de setores públicos. Foi e continua sendo uma resposta do Poder Judiciário às demandas populares, instituição da democracia brasileira que demonstra ter meios de defendê-la no terreno que lhe cabe.

Mas isto não bastava. Sem entrar em questões jurídicas, vemos que foi a incapacidade do governo Dilma de articular uma resposta à altura da indignação popular, expressa em novas grandes manifestações de rua, e de lidar com a “crise de governabilidade”, os motores que levam ao seu impedimento em agosto de 2016. Este e a assunção de Michel Temer ao governo central dão-se de acordo com a Constituição da República. Era para ser uma resposta no terreno do Poder Executivo ao clamor do povo.

Entretanto, o DNA do PMDB e do próprio Presidente não lhes permite responder à expectativa popular. O governo Temer não consegue mudar o rumo do despenhadeiro para o qual apontava o governo Dilma e aos poucos se tornou refém do “centrão”, a parte mais fisiológica do Poder Legislativo. De tropeço em tropeço, seus esforços principais vão, hoje, no sentido de chegar vivo às eleições de 2018.

É este cenário de longos e sucessivos engodos que, hoje, joga para baixo a expectativa popular em relação à política. Se isto persistir neste tempo de travessia, será o pior, porque é nele que vai ser decidido o futuro do Brasil nos próximos anos. A pergunta que não quer calar é: o que fazer de agora até outubro do próximo ano, diante da campanha pela sucessão presidencial já começada?

A alternativa é, desde já, iniciar a formação de um bloco político de centro-esquerda que mobilize o povo e possa plasmar neste período e em outubro de 2018 uma solução democrática e republicana. Esta é a grande tarefa que está colocada para o vasto mundo que não se identifica com extremismos. Difícil? Sem dúvida, mas é possível realizá-la.

Agora, o primeiro passo nesta direção será lançar um nome que tenha, pelo seu passado, um sólido compromisso com a ética política, experiência administrativa e uma proposta para o futuro do País que coloque os interesses do povo à frente daqueles que vêm marcando a política brasileira nos últimos tempos.

Até hoje nenhuma pré-candidatura presidencial demonstrou potencial para realizar essa tarefa. Pelo centro surgem nomes, principalmente em São Paulo. Eles não levantam o ânimo, não acendem a esperança das mudanças sonhadas. À exceção do prefeito de São Paulo, que mais parece um pescador de águas turvas, os nomes levantados são de políticos conhecidos, alguns que podem até ser administradores razoáveis, porém incapazes de entusiasmar as multidões.

Mas também se ouve nas redes sociais o nome do senador Cristovam Buarque. Quem escuta ou lê suas propostas percebe que ele é portador de um projeto moderno, centrado na redução das desigualdades e na educação. Seu passado de político é exemplar, nada a ver com a Lava-Jato. Como governador de Brasília fez um trabalho que marcou época.

Quando foi eleito senador, tinha direito a dois salários: um de sua aposentadoria na Universidade de Brasília e outro de parlamentar. Abriu mão de seu salário como senador. Não usa carro oficial, vai para o senado em seu próprio veículo. Rara mercadoria entre os políticos de hoje, ele tem condições para acender a esperança do nosso povo, tornando-se o aglutinador da aliança apontada acima, única que pode tirar o Brasil do lamaçal onde está atolado e levá-lo à posição que todos almejamos.

* Sergio Augusto de Moraes é engenheiro e Conselheiro Vitalício do Clube de Engenharia.


Debate na ABI:” Gramsci não pode tirar o País dessa crise”

Neste ano em que se completa 80 anos da morte do pensador italiano Antonio Gramsci, a Fundação Astrojildo Pereira e a Associação Brasileira de Imprensa realizaram a mesa redonda ‘Um pouco de Gramsci nessa crise não faz mal a ninguém’. O debate recebeu dezenas de pessoas no auditório Belizário de Souza, nesta terça-feira, dia 21 de agosto.

A mesa redonda foi aberta pelo presidente da ABI, Domingos Meirelles, e teve como mediador o Conselheiro da entidade e colunista político Luís Carlos Azêdo. O debate contou com a presença do tradutor e ensaísta Luíz Sérgio Henriques, do representante da Fundação Astrogildo Pereira Alberto Aggio e de Andrea Lanzi, do Partido Democrático Italiano.

O objetivo do encontro foi discutir a importância do legado intelectual de Antonio Gramsci, 80 anos depois da sua morte, e a contribuição de sua obra como instrumento de percepção e análise da atual crise brasileira. Ao contrário do pensamento marxista tradicional, que se dedicava ao estudo das relações entre política e economia, ele chamava a atenção para o papel da cultura e dos intelectuais nos processos históricos de transformação social.

Domingos Meirelles destacou as diferentes leituras da obra do pensador italiano e a lucidez com que se debruçou sobre as questões de sua época e observou na mesa debatedora os vários ‘Gramscis’ que apareceram nas diversas leituras que cada teórico fez sobre sua obra.”As temáticas levantadas pelo autor são muito atuais para entender o mundo pós-moderno. O encontro foi muito frutífero já que foi possível ouvir as diversas interpretações do pensamento de Gramsci sob diversas perspectivas”.

O diretor da Fundação Astrogildo Pereira, Alberto Aggio, lembrou que nesse momento em que se recorda os 80 anos de seu falecimento, é importante se pensar a recepção do pensador no Brasil. O ensaísta ressaltou que Gramsci é de leitura difícil já que escrevia em códigos e desde os anos 60 ele é discutido no país.

Para Aggio, toda a dificuldade de entendimento da teoria gramisciana é válida já que seu pensamento é extremamente desafiador. “Existem muitas interpretações a respeito do pensamento gramsciano, mas seguramente as mais aceitas e difundidas dão conta de que nele há uma perspectiva democrática importante e perspectivas culturais novíssimas que o marxismo do século XIX não comportava. Mais do que isso, Gramsci também foi um crítico aos caminhos que tomava a URSS e suas reflexões buscam uma saída em relação a esses descaminhos que, mais tarde, ficaram mais evidentes. Por tudo isso, vale a pena refletir sobre o pensamento do filósofo italiano. Ao discutirmos sobre drogas, temos de estudar a experiência de outros países, como, por exemplo, o Uruguai ou Portugal. Ao discutirmos sobre violência, teremos de considerar o que acontece em sociedades, como a americana, que permitem a difusão abusiva de armas. Nesta nossa longa viagem no interior da sociedade civil, marxistas de inspiração gramsciana poderão dizer alguma coisa em proveito da convivência democrática e civilizada entre pessoas de múltiplas e variadas inspirações”.

Luiz Sérgio Henriques fez uma reflexão sobre Gramsci como um teórico que convida toda a sociedade a um diálogo. Mas lembrou que o pensador, por si só, não vai salvar a sociedade e nem o Brasil, como nenhuma teoria ou religião. Mas que é um importante instrumento para refletir sobre a atual crise da esquerda no país. Trazendo Gramsci para o contexto político brasileiro, ele garantiu que o Partido dos Trabalhadores nunca se embasou na teoria gramisciana. “Ao chegar ao poder, a esquerda do PT construiu relações de poder equívocas, e deixou de lado o que a sociedade pensava. Ele não considerou as questões e necessidades da população. Mas o que mais se deve nos interessar mais nesse autor é a Democracia como uma utopia”.

Andrea Lanzi, do Partido Democrático Italiano, acentuou que apesar de considerar que Gramsci jamais pensaria a sociedade com a Revolução Industrial, os ideias de liberdade e igualdade, da Revolução Francesa e o pensamento Gramisciano ainda são referência para um movimento que queira reduzir as injustiças sociais.

 

 

 


Mesa redonda sobre Gramsci discute democracia como valor universal

Evento realizado pela FAP em parceria com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, lembrou os 80 anos da morte do filósofo italiano e destacou a discussão em torno da democracia politica, valor presente em sua obra 

Germano Martiniano

A mesa redonda “Um pouco de Gramsci não faz mal a ninguém”, promovida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceria com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), teve como destaque a discussão em torno da democracia politica, valor presente na obra deixada pelo filósofo italiano. O evento, que foi realizado na sede da associação, na cidade do Rio de Janeiro, traçou um paralelo do pensamento gramsciano com a realidade brasileira, levando à discussão como alguns partidos políticos brasileiros, considerados de esquerda, ainda flertam com politicas antidemocráticas e que ameaçam a estabilidade política e social do país.

Luiz Sergio Henriques, palestrante e especialista em Gramsci, reforçou que parte da esquerda brasileira é anacrônica e não compartilha dos valores democráticos: “Partidos como PT, por exemplo, não entendem as novas condições do mundo, a globalização, e acabam ainda por defender regimes como o de Maduro, na Venezuela, que caminha para uma ditadura. É lamentável”, criticou o tradutor e ensaísta de Gramsci.

Alberto Aggio, professor e historiador e um dos expositores da mesa redonda, ao ser questionado sobre o sectarismo político de parte da esquerda brasileira, analisou como essa mesma esquerda “que ainda é muito pobre em termos conceituais”, prejudica uma análise mais séria, profunda e convincente para a sociedade em seu conjunto. “A maior parte da população ainda enxerga a esquerda dentro de uma lógica muito estreita, muito radical, dentro da lógica de amigos e inimigos, o que é muito negativo e precisa ser superado", avalia Aggio. "Existem outros partidos, que defendem posições diferentes, com mais capacidade de análise do mundo que estamos vivendo e que possuem a democracia como valor primordial, mas nem sempre isso é reconhecido”, disse o professor e historiador.

Além de Alberto Aggio e Luiz Sergio Henriques, a mesa redonda contou com a participação de Andrea Lanzi, presidente do PD italiano; Domingos Meireles, presidente da ABI, e o diretor-geral de FAP, Luiz Carlos Azedo, que foi o mediador da mesa redonda.

Azedo destacou a importância da parceria que a FAP mantém com o Instituto Gramsci de Roma por meio de diversas publicações, especialmente a coleção "Brasil e Itália": “Primeiramente, essa parceria estabelece uma ponte entre o pensamento politico no Brasil e o que há de mais moderno no pensamento politico europeu. Em um momento de grandes mudanças no mundo e de turbulências políticas, é importante para a FAP ter esse intercâmbio de ideias. Em segundo lugar, era essencial homenagear os 80 anos da morte de Gramsci, que possui em sua obra conceitos que permitem analisar a realidade brasileira com mais profundidade, como revolução passiva, americanismo, democracia e transformismo, entre outros”, completou o mediador da mesa, ao encerrar o evento.

A Fundação Astrojildo Pereira transmitiu o evento ao vivo, confira:

https://www.facebook.com/facefap/videos/1290854354358356/