governo bolsonaro

Ricardo Noblat: Mudar para não mudar

A linha frouxa de corte do capitão

À vontade até então entre lutadores de jiu-jítsu que disputavam uma competição no Parque Olímpico da Barra, na zona oeste do Rio de Janeiro, o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) foi importunado por um repórter que lhe perguntou sobre a situação da futura ministra da Agricultura, a deputada Tereza Cristina (DEM-MS).

Quando foi secretária do agronegócio do Mato Grosso do Sul, a deputada concedeu incentivos fiscais ao Grupo JBS apesar de ser sua parceira em negócios de pecuária. O grupo processa Tereza por ter-se sentido lesado por ela. Quer ser ressarcido em um total de R$ 14 milhões, em valores atualizados.

A resposta de Bolsonaro: “Eu também sou réu no Supremo, e daí?”. De fato, Bolsonaro responde no Supremo Tribunal Federal a ação por incitação ao estupro. E acrescentou: “Afinal de contas sou um ser humano, posso errar, e, se qualquer ministro tiver uma acusação grave e comprovada, a gente toma uma providência. Neste momento, ela goza de toda a confiança nossa”.

Se a condição de réu na mais alta corte de justiça do país não impedirá Bolsonaro de assumir e exercer as funções do seu cargo, é legítimo supor que ele não terá motivos para afastar ministros que porventura sejam denunciados e virem réus. Assim, a regra de corte de Bolsonaro que se ofereceu para “mudar tudo o que está aí” dificilmente mudará grande coisa.

Em fevereiro do ano passado, o presidente Michel Temer anunciou que afastaria do governo qualquer ministro que fosse denunciado pela Lava Jato. O afastamento seria provisório se o ministro fosse apenas denunciado pela Procuradoria Geral da República ao Supremo. Mas se a denúncia fosse aceita, o que transformaria o ministro em réu, o afastamento seria definitivo.

Menos de sete meses depois, Temer deu o dito pelo não dito. Dois de seus ministros foram denunciados e continuaram onde estavam. Temer alegou que a denúncia se baseava em “delações fraudadas”. Por duas vezes, ele mesmo foi denunciado, virou réu e o Supremo pediu licença à Câmara dos Deputados para processá-lo. A Câmara negou sob a intensa pressão de Temer.

O presidente que se elegeu faz pouco prometendo “quebrar o sistema” acabará sendo obrigado a engolir o que dizia.


Roberto Castello Branco: É urgente a necessidade de se privatizar não só a Petrobras, mas outras estatais

Precisamos de várias empresas privadas competindo nos mercados de combustíveis

As crises políticas sempre demandam um culpado. No caso da greve dos caminhoneiros, os políticos e parte da opinião pública elegeram a política de preços da Petrobras, cujo responsável era seu presidente, Pedro Parente. Então, "fora, Pedro Parente" e todos voltamos a ser felizes.

Ninguém se deu ao trabalho de observar que o preço do óleo diesel no Brasil é inferior à média global, US$ 1,02 contra US$ 1,07 (dados de 28 de maio da Global Petrol Prices).

O diesel é commodity global e a principal fonte de diferenciação de preços entre países são impostos e subsídios.

Na Venezuela o preço é quase zero, nos Estados Unidos, onde a tributação é baixa, US$ 0,85 e na Noruega, onde os impostos são muito elevados, US$ 2,03 por litro.

Há dois anos, os preços de alimentos sofreram forte alta, o que afetou principalmente as famílias mais pobres. Não houve greve, nem protestos, nem foi pedida a demissão de ninguém.

A razão fundamental é que não havia ninguém para culpar, o culpado foi o mercado, uma entidade impessoal.

No caso do diesel, embora seguindo o mercado global, é o comitê de uma única empresa, uma estatal dona de 99% do refino, quem anuncia os preços.

Essa é mais uma razão para privatizar a Petrobras. Precisamos de várias empresas privadas competindo nos mercados de combustíveis.

As pressões sobre o governo para resolver uma situação de excesso de oferta de fretes rodoviários, criada pelo desenvolvimentismo do BNDES, encontraram terreno fértil. Um governo populista, politicamente enfraquecido e num ano eleitoral, foi facilmente capturado.

A greve produziu choque de oferta que afetou toda a atividade econômica.

Vai se processar significativa transferência de renda da sociedade para um grupo de interesse, parte do jogo populista de soma zero. O que acontecerá se amanhã o preço do petróleo chegar a US$ 100 por barril e/ou o dólar a R$ 4?

O tabelamento dos preços dos fretes é uma distorção com significativas implicações negativas.

O fato gerador da greve, o excesso de oferta de caminhões de carga, permanece intacto. A intervenção do Estado só contribuiu para agravá-la, pois a demanda por fretes crescerá mais lentamente.

Existe um velho ditado popular que se aplica muito bem a esta situação: "é possível ignorar as leis da economia, mas elas nunca nos ignorarão".

A crise e a resposta dada pelo governo Michel Temer agravam sem dúvida as incertezas de um ano eleitoral, com repercussões bastante negativas sobre a recuperação da economia.

Uma das lições que se tira desta crise é a urgente necessidade de privatizar não só a Petrobras, mas outras estatais.

É inaceitável manter centenas de bilhões de dólares alocados a empresas estatais em atividades que podem ser desempenhadas pela iniciativa privada, enquanto o Estado não tem dinheiro para cumprir obrigações básicas, como saúde, educação e segurança pública, que até mesmo tiveram recursos cortados para financiar o subsídio ao diesel.

*Roberto Castello Branco é Diretor do Centro de Estudos em Crescimento e Desenvolvimento da Fundação Getúlio Vargas. Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 02/06/2018.


El País: General Heleno, o estrategista-chefe que Bolsonaro instalou a um gabinete de distância

Futuro chefe do GSI é o principal conselheiro do presidente em um futuro Governo de “superministros”

Por Afonso Benites, do El País

Em um governo de “superministros”, quem tem mais poderes é uma espécie de sombra do presidente eleito. O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, de 71 anos, foi um dos principais incentivadores da candidatura Jair Bolsonaro (PSL). Primeiro tentou que o seu partido, o PRP, aceitasse lançá-lo como vice. Não conseguiu. Desligou-se das atividades partidárias e passou a coordenar uma equipe de técnicos responsável por elaborar o programa de Governo. Paralelamente, organizava carreatas em Brasília em apoio ao então candidato e discutia estratégias de segurança com policiais federais depois que ele levou uma facada, em setembro.

Com a vitória nas urnas, deixou de ser um simples conselheiro. Primeiro, foi alçado a futuro ministro da Defesa. Todavia, como o presidente o queria mais próximo, aceitou uma espécie de promoção para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – órgão responsável por fomentar toda atividade de inteligência do Governo federal. Desde então, sempre que Bolsonaro vai tomar uma decisão importante, um dos primeiros a ser consultado é Heleno. Opina sobre tudo, desde que seja perguntado. É o principal estrategista do Governo.

“O presidente toma doses cavalares de Heleno, todos os dias. Nada de doses homeopáticas. Ele quer absorver tudo o que pode do general”, disse um membro da equipe de transição. Não por menos, o general é visto antes das 8h no apartamento funcional do presidente eleito, ou o acompanhando nos mais diversos encontros, seja ele uma reunião com embaixadores, um evento com governadores eleitos ou uma audiência formal com atual presidente, Michel Temer (MDB).

E sobre o que tanto fala com o presidente eleito? “São conversas sigilosas, profissionais, entre pessoas que se confiam. São trocas de ideias constantes”, afirma ele ao EL PAÍS.

Conforme membros da equipe de transição, frequentemente Heleno diz para Bolsonaro ter calma. Pede para ele se tranquilizar quando tem de tomar decisões relacionadas ao Itamaraty, à Defesa, aos médicos cubanos, à segurança pública.

Sobre o trato com o Congresso Nacional, prefere que o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) opine. Quando falam de economia, ele pede, principalmente, para que não haja contingenciamento de recursos das Forças Armadas e joga o restante no colo de Paulo Guedes (futuro “superministro” da Economia). Já na pasta do outro “superministro”, Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, ele dá opiniões, mas diz confiar plenamente no futuro colega de Esplanada. Em privado, contudo, segue falando com Bolsonaro.

Ao contrário de seu chefe, o general costuma ser cordial com a imprensa. Raramente perde a paciência com jornalistas, nem quando insistem em perguntar sobre temas que ele não está disposto a falar. Na última semana, quando notou que um batalhão de repórteres o aguardava após um dos eventos, disse aos risos: “Pô, parece que vocês se reproduzem por partenogênese”. Ao perceber que três desses jornalistas eram de um mesmo grupo de comunicação, voltou a fazer piada: “Está sobrando gente no jornal, heim! Que bom”.

Quando atendeu por telefone a reportagem do EL PAÍS, afirmou, em tom simpático: “Não tenho nada para acrescentar. Tudo já foi dito. Agora não é mais campanha. Cada um tem um cantinho para cuidar”. Ainda assim, teceu breves comentários sobre várias áreas da gestão.

Sobre sua ida para o GSI, Heleno afirma que não teve como rejeitar o convite de Bolsonaro. “O presidente conversou comigo para que eu ficasse próximo a ele. E eu no ministério da Defesa não fico próximo, nem física nem funcionalmente. Aí, eu concordei com o seu pedido”. No GSI, Heleno comandará a força-tarefa de inteligência, estrutura criada pelo Governo Temer que dá poderes aos militares.

Inicialmente, o general usaria de sua experiência como comandante das forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti e de chefe da região amazônica para comandar as três Forças Armadas. Ele é visto como uma referência entre os militares. E, mesmo não sendo mais o chefe oficial deles, manifesta-se sobre o tema. Bolsonaro disse que foi de Heleno a sugestão para que indicasse o general Fernando Azevedo e Silva para a Defesa. Algo que o próprio Heleno contemporiza. “A Defesa é uma decisão pessoal do Bolsonaro. O general Fernando é amigo dele há muito tempo”.

E sobre o fato de ter mais um representante do Exército no primeiro escalão, em detrimento de nomes da Marinha ou da Aeronáuttica? “É uma bobagem. É absolutamente compreensível que até hoje tenha sido um civil. Se bem que alguns deles só foram provocações. Mas é lógico que o entendimento entre nós, das três forças, é muito sadio e muito vasto”, diz Heleno.

Quando indagado sobre a escolha do diplomata trumpista Ernesto Araújo para o Ministério das Relações Exteriores, Heleno elogia. E bota a definição na fatura de seu chefe. Ainda que o próprio general e o escritor Olavo de Carvalho tenham sido consultados. Independentemente de qualquer crédito dado a ele e negado por ele, algo é certo: quase nada será decidido por Bolsonaro antes de uma consulta rápida ao seu estrategista-chefe, que ficará instalado em um gabinete a uma escadaria de distância.


Luiz Carlos Azedo: Deus é brasileiro

“Para Fraga Araújo, Itamaraty evitou a todo custo participar de blocos e preservou a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma, mas precisa ir além disso”

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, anunciou que o diplomata Ernesto Henrique Fraga Araújo será o novo ministro das Relações Exteriores. Atual diretor do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos, nunca comandou uma embaixada; porém, como ministro de primeira classe e chefe de departamento, tem status de embaixador. Ao confirmar o nome em entrevista, depois de anunciá-lo pelo Twitter, Bolsonaro classificou o novo chanceler, que tem 29 anos de carreira, como “uma pessoa bastante experiente” e “intelectual brilhante”. Fraga tem 51 anos e disputou a posição com outros diplomatas de grande prestígio.

Fraga Araújo fez campanha eleitoral de rua para o presidente eleito. Sem falsa modéstia, disse que à frente do Itamaraty fará uma política “efetiva em função do interesse nacional”, tornando o Brasil um país “atuante”, “próspero” e “feliz”. Negou alinhamento automático com o governo dos Estados Unidos, tangenciando a tese que defende sobre a política externa brasileira, explicitada no artigo “Trump e o Ocidente”, publicado nos Cadernos de Política Exterior nº 6, do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, que fez a cabeça de Bolsonaro. Segundo Fraga Araújo, Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais.

“Avante, ó filhos de helenos,/ libertai a pátria,/ libertai vossos filhos,/ vossas mulheres,/ os templos de vossos deuses,/ os túmulos dos ancestrais,/ agora mais que nunca,/ lutai!”. Esse trecho do poema Os Persas, de Ésquilo, que exalta a batalha naval de Salamina, na qual os gregos derrotaram os invasores persas, em 480 a.C, assinala o marco fundador da primeira aliança do Ocidente. “A visão de Trump tem lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental, que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável da essência do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história. Não se trata tampouco de uma proposta de expansionismo ocidental, mas de um pan-nacionalismo. O Brasil necessita refletir e definir se faz parte desse Ocidente”, propõe o futuro chanceler.

Araújo critica o Iluminismo e o globalismo. Segundo ele, a Europa e os Estados Unidos viviam já fora da história, depois da história, num estado de espírito (ou falta de espírito) onde o passado é um território estranho. Toda a tradição liberal e revolucionária constituiu-se numa rejeição do passado, aos heróis, ao culto religioso e à família, destaca. Ao contrário, Trump, ao falar de alma, desafia frontalmente o homem pós-moderno, “que não tem alma, que tem apenas processos químicos ocorrendo aleatoriamente entre seus neurônios”.

Salvação
O Ocidente teria sido salvo pelos Estados Unidos: “Nestas últimas sete décadas não foram os europeus, mas os norte-americanos que preservaram o legado ocidental em seus principais pilares, não só militar e economicamente, não só institucional e politicamente, mas também na vida do espírito: a fé cristã morreu na Europa para todos os efeitos, mas viceja nos EUA (não penso apenas nos protestantes, penso também na Igreja Católica, vigorosa nos EUA, enfraquecida na Europa). O sentido de nação foi banido do mainstream cultural e social europeu, mas permanece central na vida americana. A própria cultura clássica é celebrada e vivenciada somente nos EUA como parte da própria herança, enquanto na Europa ela hoje se esgota na dimensão acadêmica, por um lado, e turística, por outro”, afirma.

Para Fraga Araújo, o Itamaraty evitou a todo custo participar de blocos e preservou a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma, mas precisa ir além disso. “Queremos relacionar-nos com todos os blocos, mas sem fazer exclusivamente parte de nenhum deles. Vemos, então, com grande desconfiança a ideia de integrarmos um Ocidente que necessariamente exclui outras civilizações e que nos deixaria presos a um determinado bloco. Mas esse não alinhamento absoluto não deveria impedir o Brasil de alinhar-se consigo mesmo e com a própria essência de sua nacionalidade, se chegarmos à conclusão de que essa essência é ocidental.”

Fraga Araújo propõe o que chama de uma “metapolítica” externa, para que o Brasil possa se situar e atuar naquele “plano cultural espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático-militar, estão-se definindo os destinos do mundo”. Propõe, além de um ponto de vista geopolítico, uma “teopolítica”: “Não será o desenvolvimento nem a tecnologia nem a justiça social nem a cooperação nem a sustentabilidade nem os direitos humanos que nos salvarão. Somente um Deus poderá salvar-nos, dar-nos sentido — se Ele o quiser, se nós O quisermos”.

Com a narrativa sofisticada e “presbítera” de Fraga, Bolsonaro alinha o Itamaraty ao seu governo e exuma a política externa defendida por Juraci Magalhães (UDN), um dos líderes militares da Revolução de 1930 no Nordeste, que foi ex-interventor e, depois, governador eleito da Bahia. No governo do general Castelo Branco, o primeiro do regime militar, foi nomeado embaixador brasileiro nos Estados Unidos, quando pronunciou sua célebre frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Em seguida, ocupou sucessivamente as pastas da Justiça e das Relações Exteriores.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-deus-e-brasileiro/


Aloysio Nunes Ferreira: O Itamaraty e a política comercial brasileira

Nossa máquina negociadora é uma das mais eficientes do mundo, mas depende de uma condução política firme

A ideia de retirar do Itamaraty a condução das negociações comerciais internacionais e a defesa do Brasil em disputas nessa área aparece sazonalmente. Ela insinua ares modernizantes, mas, na verdade, abre margem ao domínio por interesses setoriais do ciclo da política comercial, desde sua formulação até a liderança em negociações multilaterais, plurilaterais ou bilaterais.

Os argumentos são, normalmente, um festival de distorções: em outros países há área separada das chancelarias para negociar, então devemos imitá-los, afinal tudo que vem de fora tem de ser melhor; diplomatas têm visão política, então é preciso assegurar prevalência de visão técnica, deslocando a condução das negociações para o colo de luminares do comércio internacional; a política comercial tem sido passiva, de modo que a solução seria mudara máquina para assegurar novo ímpeto negociador.

Por distintas razões, em vários países a condução das negociações comerciais não se situa nas chancelarias, embora isso não seja uma unanimidade. Mas essa é uma falsa questão. A imitação de modelos forâneos não leva em conta as características de nossa história institucional e os resultados que foram obtidos ao concentrar no Itamaraty capacidade e conhecimento, que não podem ser desaproveitados sob pena de graves prejuízos ao país.

Nas disputas na OMC, foram várias vitórias. Basta lembrar os casos Bombardier, em que o Brasil foi autorizado a retaliar o Canadá em mais de US$ 247 milhões; os subsídios europeus ao açúcar e tarifas para frango, cujas vitórias resultaram em mudanças em regras a favor de produtores brasileiros; e o contencioso do algodão contra os EUA, em que obtivemos o direito de retaliar e, ao optar pela negociação, garantimos o pagamento da maior compensação financeira da história da OMC (US$ 147 milhões por ano até 2014).

Resultados também apareceram na frente negociadora, sempre que houve vontade política. Com mandato claro da Câmara de Comércio Exterior, onde a política comercial se decide colegiadamente, nossos negociadores entregaram resultados importantes. Na OMC, o Brasil foi central para a adoção do acordo de facilitação do comércio e para proibir subsídios às exportações agrícolas. Diante do impasse na Rodada Doha, o Itamaraty não ficou choramingando, impotente. Nos últimos dois anos, sob orientação do presidente Temer, resgatamos o Mercosul da letargia, eliminando barreiras internas ao bloco e reativando uma agenda negociadora externa agressiva. Avançamos muito nas negociações com a UE e lançamos negociações com Associação Europeia de Livre Comércio, Canadá, Coreia do Sul e Cingapura, que estão progredindo bem.

O corpo negociador também foi instruído a atuar com determinação nas tratativas regionais, como demonstram o programa de aproximação com a Aliança do Pacífico e novos acordos assinados com Colômbia e Chile. Emblemática da eficiência negociadora foi a conclusão, em apenas seis meses, de um Acordo de Livre Comércio como Chile, instrumento inovador que será assinado no dia 21 pelo presidente Temer.

Tudo isso teria sido possível sem a visão estratégica e a massa crítica que temos no Itamaraty? Muito provavelmente, não. Além da prática e do conhecimento adquiridos em anos de negociações, nossos diplomatas são treinados para enxergar o mundo não apenas da ótica de um setor, mas de uma perspectiva mais ampla, levando em conta aspectos políticos e culturais. Todos esses fatores incidem nas negociações.

Com visão de Estado, o Itamaraty reflete o interesse do conjunto da economia na abertura de mercados, como passou a ocorrer na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, agora na órbita do ministério, com ganhos expressivos no aumento das exportações e na captação de investimentos.

Nossa máquina negociadora é uma das mais eficientes do mundo, mas depende de uma condução política firme, com o apoio, segundo o tema, de órgãos especializados. Nos últimos dois anos, com direção política firme, a máquina voltou a mostrar resultados. Para ganhar na corrida do comércio, não basta ter um bólido de Fórmula 1, é preciso também saber conduzir. O pior que pode nos acontecer é culpar a máquina pela imperícia do condutor.

*Aloysio Nunes Ferreira é ministro das Relações Exteriores


El País: Bolsonaro diverge de Guedes sobre Previdência e nomeia só homens para transição até agora

Presidente eleito concedeu longa entrevista a Datena, na Band. Equipe de transição do futuro Governo deve cortar 13 pastas e fundir Meio Ambiente e Agricultura

Por Afonso Benites e Flávia Marreiro, do El País

Jair Bolsonaro (PSL) mostrou, mais uma vez, não ter constrangimento em desautorizar seu futuro superministro da Economia, Paulo Guedes. Se na campanha ele dizia que Guedes era seu guia e "Posto Ipiranga" com respostas para os dilemas em matéria econômica, o presidente eleito disse nesta segunda-feira na TV "desconfiar" da proposta de seu auxiliar para a reforma da Previdência, que prevê uma mudança do modelo atual para um sistema de poupanças individuais para os futuros aposentados. Na longa conversa, ao vivo, com o apresentador José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, o futuro mandatário aplicou a estratégia de ser o calibrador e multiplicador, em várias direções, das mensagens do futuro governo. O presidente eleito sugeriu fazer "alguma" mudança no sistema de aposentadorias "sem colocar em risco e sem levar pânico à sociedade” e descartando mudanças profundas para categorias que lhe são próximas, como militares e policiais. Disse ainda que deseja que alguma proposta seja aprovada ainda neste ano — algo considerado remoto pelo Congresso que está de saída — ou no começo do ano que vem.

"Nós não queremos salvar o Estado quebrando o cidadão brasileiro", afirmou Bolsonaro. O eleito negava assim mais uma vez a proposta ventilada na imprensa e atribuída a seu auxiliares de recriar uma CPMF, tributo sobre movimentações financeiras, como um dos caminhos para mitigar a grave crise das contas públicas. O futuro mandatário também questionou a metodologia do IBGE para medir o desemprego — algo alinhado com padrões globais da área — e falou até que Guedes vai conduzir "renegociações" da dívida interna.

Transição só com homens, nenhuma demarcação indígena

Se na parte econômica as declarações provocam dúvidas se o futuro mandatário entregará a guinada liberal prometida com a nomeação de Guedes, em outras matérias, o presidente eleito repetiu à risca a cartilha de extrema direita. Voltou a defender que policiais e pessoas comuns possam matar até para defender o patrimônio e disse que, em seu Governo, não haverá mais demarcação de terras indígenas, apesar de esse ser um passo previsto na Constituição.

Enquanto isso, em Brasília, o coordenador da transição e futuro ministro da Casa Civil, o deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM), se utilizou da estratégia de liberar informações à conta-gotas para sinalizar que a equipe de transição do futuro governo deverá cortar 13 dos 29 ministérios hoje existentes no Brasil. A relação exata das 16 pastas sobreviventes ainda não foi divulgada. Nesta segunda-feira parte da equipe se reuniu pela primeira vez em Brasília, durante início oficial dos trabalhos. Serão ao todo 28 nomes — todos homens — que começarão a atuar nessa troca de bastão e na criação de dez grupos técnicos para o planejamento do Governo.

Antes desta segunda, apenas Lorenzoni havia sido oficializado. Conforme esse desenho inicial, em princípio, os ministérios de Agricultura e de Meio ambiente deverão ser fundidos. Um desses grupos de trabalho foi batizado de “produção sustentável, agricultura e meio ambiente”. Analisando as outras equipes setoriais, ainda é possível concluir que, os ministérios dos Esportes e da Cultura serão anexados pela Educação, o de Desenvolvimento Social se juntaria à Saúde e a confirmação de que a Segurança Pública e a Transparência seguem para o guarda-chuva da pasta da Justiça. Esta última a ser comandada pelo juiz Sérgio Moro, o juiz  Operação Lava Jato que desistiu da magistratura para aceitar o cargo político.

Até o momento os dois principais empecilhos de Bolsonaro na redução de sua Esplanada dos Ministérios estão no Meio Ambiente e na pasta de Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Ele já deu declarações no sentido de unir esses órgãos com outros e depois voltou atrás. Nesta semana, um grupo de dez associações de industriais levou uma sugestão a Lorenzoni para que, ao invés de unir a pasta de Indústria à da Fazenda, Bolsonaro poderia juntá-la ao ministério do Trabalho. A ideia deles é criar a pasta de Produção, Trabalho e Comércio. Seu temor é o de perder a interlocução com o governo federal.

Com relação ao Meio Ambiente, o futuro governo de Bolsonaro ouve críticas de todos os lados. De ambientalistas e de ruralistas. Ainda assim, não anunciou qual será sua decisão. A expectativa é que ao longo desta semana ele anuncie ao menos mais um ou dois ministros, assim como o número total de seus ministérios.

Visita a Brasília e declaração de Moro

Na terça-feira, o presidente eleito retorna pela primeira vez à Brasília para participar da solenidade do Congresso Nacional em alusão aos 30 anos da Constituição Federal. No dia seguinte, reúne-se com o presidente Michel Temer(MDB) e deve fazer um pronunciamento na sequência. “Estamos na fase do muito trabalho e pouca conversa”, repetiu o seu mantra o deputado Lorenzoni. Moro, por sua vez, convocou os jornalistas e deve falar em Curitiba: trata-se de uma aguardada fala pública já que se especula que o juiz pode não endossar as propostas mais radicais de Bolsonaro, como licença para matar sem punição dada a policiais. Ao Datena, Bolsonaro disse que o juiz só terá que chegar a um "meio termo" sobre algumas propostas.

Até o momento, além do futuro chefe da Casa Civil e de Sérgio Moro, foram definidos como ministros o general Augusto Heleno (Defesa), o astronauta Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) e Paulo Guedes (Economia). Um dos próximos a ser anunciados deve ser o ministro da Infraestrutura. O principal nome para a função é do general Oswaldo Ferreira, que já coordenava os trabalhos prévios desta área.

A LISTA DA TRANSIÇÃO

Até o momento, 28 nomes foram apontados como membros do grupo de transição. São eles:

Abraham Bragança De Vasconcellos Weintraub;

Adolfo Sachsida;

Alexandre Xavier Ywata De Carvalho;

Antônio Flávio Testa;

Arthur Bragança De Vasconcellos Weintraub;

Augusto Heleno Ribeiro Pereira - futuro ministro da Defesa;

Bruno Eustáquio Ferreira Castro De Carvalho;

Carlos Alexandre Jorge Da Costa;

Carlos Von Doellinger;

Eduardo Chaves Vieira;

Gulliem Charles Bezerra Lemos;

Gustavo Bebianno Rocha;

Ismael Nobre;

Jonathas Assunção Salvador Nery De Castro;

Luciano Irineu De Castro Filho;

Luiz Tadeu Vilela Blumm;

Marcos Aurélio Carvalho;

Marcos César Pontes - futuro ministro de Ciência e Tecnologia;

Marcos Cintra Cavalcanti De Albuquerque;

Onyx Lorenzoni - futuro ministro da Casa Civil;

Pablo Antônio Fernando Tatim Dos Santos;

Paulo Antônio Spencer Uebel;

Paulo Roberto Nunes Guedes - futuro ministro da Economia;

Paulo Roberto;

Roberto Da Cunha Castello Branco;

Sérgio Augusto De Queiroz;

Waldemar Gonçalves Ortunho Junior;

Waldery Rodrigues Junior.


Elio Gaspari: Moro no governo dos ‘humanos direitos’

Sergio Moro lustrou a biografia de Jair Bolsonaro e de seu futuro governo ao aceitar o superministério da Justiça. Foi um tiro na mosca, pois seu trabalho à frente da Lava-Jato tornou-se um marco na História da política nacional, faxinando a corrupção do andar de cima.

Ao se sentar na cadeira, será apresentado a outro tipo de corrupção sistêmica, aquela que ofende os direitos dos cidadãos. Ele entrará num governo em que o futuro ministro da Defesa, general da reserva Augusto Heleno, disse que “direitos humanos são basicamente para humanos direitos”. Desfolhando as mazelas da criminalidade nacional, acrescentou: “É um absurdo tratar isso como uma situação normal. É situação de exceção que merece tratamento de exceção”.

Quais tratamentos de exceção Moro sancionará, ninguém sabe.

O futuro governador do Rio de Janeiro, oficial da reserva da Marinha, singra um discurso apocalíptico e anuncia que “não vai faltar lugar para colocar bandido, cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto-mar.” Pura demagogia, e Witzel conhece a história dessas cadeias flutuantes. Elas se chamavam “presigangas” e eram usadas na Colônia e no Império. A última “presiganga” de que se tem notícia funcionou no navio Raul Soares, onde puseram presos políticos em 1964.

Os discursos repressivos de hoje têm amplo apoio popular, o que os torna mais perigosos, pois quando ficar demonstrada a vacuidade do palavrório, os demagogos mudarão de assunto.

Sergio Moro diz que a sua prioridade será o combate à corrupção e ao crime organizado. Por falta de experiência na área criminal do andar de baixo, descobrirá isso quando cair sobre sua mesa o caso de alguma roubalheira que usava um posto de gasolina da Baixada Fluminense para lavar dinheiro da corrupção e do tráfico. Puxando os fios, como ele fez em Curitiba, será fácil descobrir poderes que se instalaram no século passado, sobreviveram à ditadura, aninhados nos desvãos dos DOI e ressurgiram com a redemocratização, sambando na avenida e negociando nos palácios.

Hoje, como sempre, os ferrabrás ganham desenvoltura quando sentem-se amparados pela opinião pública. Alguns ministros da Justiça, como Seabra Fagundes e Milton Campos, sentiram o cheiro de queimado e foram-se embora. Outros, como o professor Luís Antônio da Gama e Silva, redator do AI-5, inebriaram-se. Cada um escolhe seu caminho, e Moro escolherá o seu.

Pode-lhe ser útil a lembrança do que ocorreu com Carlos Medeiros Silva quando se sentou naquela cadeira, em 1966. Um coronel que servia no gabinete apresentou-se:

— Ministro, vim conhecê-lo. Sou o representante da linha dura aqui no ministério.

Medeiros era um mineiro miúdo e discreto. Cioso da autoridade, sobretudo da sua, respondeu:

— Coronel, agradeço muito seus relevantes serviços, mas o senhor está dispensado. Agora, o representante da linha dura aqui sou eu.

O ‘Posto Ipiranga’ contatou Moro
“Isso já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, disse o general da reserva Hamilton Mourão na última quarta-feira.

O vice-presidente eleito referia-se à primeira sondagem da equipe do candidato Jair Bolsonaro para atrair o juiz Sergio Moro. O intermediário, segundo o general, foi Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do capitão.

Segundo Moro, “isso não tem uma semana”. Portanto, teria acontecido depois do dia 27 de outubro. Mourão falou em “semanas”. Quantas?

Moro e Guedes prestariam um grande serviço à moralidade pública se esclarecessem a data precisa desse contato, até porque o próprio presidente eleito mostrou-se confuso ao tratar do episódio.

O esclarecimento seria desnecessário para qualquer outra pessoa, mas Moro interferiu no processo eleitoral no dia 1º de outubro, quando liberou um trecho da colaboração do ex-ministro petista Antonio Palocci. Foram 11 páginas de parolagem que ganharam a previsível repercussão, pois faltavam seis dias para o primeiro turno.

O “contato” teria ocorrido “durante a campanha”, o que é esquisito, mas seria jogo limpo. Se ele aconteceu antes da liberação do depoimento de Palocci, teriam sujado o jogo, e a conduta de Moro deveria ser analisada pelo Ministério Público e pelo Conselho Nacional de Justiça.

A ação do Judiciário está contaminada pela onipotência. Felizmente o Supremo Tribunal Federal derrubou todos os atos relacionados com o arrastão realizado em 17 universidades de nove estados nas últimas semanas. Todas as ações foram determinadas por juízes.

No início de outubro completou-se um ano do suicídio de Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina mandado para a cadeia por uma magistrada e proibido de entrar na instituição.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, pretendia votar em Bolsonaro, mas digitou 13. Resolveu fazer uma assinatura da “Folha de S. Paulo”, para entender como o presidente eleito acabará com o jornal de Octávio Frias de Oliveira e de seus filhos.

Lendo o que disseram Jair Bolsonaro e seus oráculos, o governo pretende cortar a publicidade oficial de jornais e emissoras que mentem. Por cretino, Eremildo teme que acabem aqueles que recebem publicidade oficial para mentir.

Mercado e ‘mercado’
Paul Volcker acaba de publicar nos Estados Unidos um livro de memórias. Nele conta a sua épica batalha para derrubar a inflação de dois dígitos no final do século passado. É uma ode ao serviço público, escrita por um funcionário que, aos 91 anos, ainda usa o roupão que comprou em 1953.

Com 2,01 metros, Volcker foi para a direção do Fed em 1979. Ganhava US$ 110 mil anuais e mudou-se para Washington com US$ 57.500. Alugou uma quitinete de estudante e, uma vez por semana, levava para a casa da filha suas roupas sujas. A mulher do homem mais poderoso da finança mundial, diabética e sofrendo de artrite reumática, ficou em Nova York, teve que arrumar um emprego e alugou um dos quartos do apartamento do casal.

Para a turma do papelório:

Volcker refere-se dezenas de vezes ao mercado. Num trecho, lidando com o que seria a credibilidade do presidente do Fed na praça, escreveu “mercado”, entre aspas. Quem vive no Brasil sabe como são diferentes o mercado e o “mercado”.

Para quem está de olho em um cargo na ekipekonômica de Bolsonaro:

Um dia Volcker foi chamado à Casa Branca e levado para a biblioteca (onde não haveria grampo, acredita). Lá, diante de um silencioso presidente Ronald Reagan, o chefe da Casa Civil, James Baker, disse-lhe: “O presidente ordena que você não suba os juros antes da eleição”.

Volcker conta: “O que fazer? O que dizer? Fui-me embora, sem abrir a boca.”

Reagan já morreu, mas o chefe da Casa Civil, Baker, que está vivo, contestou apenas o fraseado e a palavra “ordena”. De qualquer forma, os juros ficaram onde estavam.


El País: Educação, o primeiro ‘front’ da guerra cultural do Governo Bolsonaro

Adepta do Escola sem Partido, futura gestão cogita revisionismo sobre a ditadura, além de incentivar vigilância a professores para “expurgar Paulo Freire” das escola

Antes mesmo de ganhar a eleição, Jair Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores. Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.

Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a “doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.

Na Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto, adiada. "Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático", prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).

Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais, onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas semelhantes.

De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC), os casos de denúncias por suposta "doutrinação ideológica" têm crescido no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais. Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.

Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte. “Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco. Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.

Paulo Freire e os grandes males
O plano de governo em educação é considerado vago em vários pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a equipe de Bolsonaro explícita bem suas prioridades. Aponta que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”

Cara não está sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional) Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.

Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o criacionismo no ensino de ciências. “Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa”, afirmou Souto.

Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor aposentado da Unicamp. “Enxergam qualquer pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já a  educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.

Os obstáculos para colocar as ideias em prática
Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Por muito tempo nossas instituições de ensino foram tomadas por ideologias nocivas e inversão de valores, pessoas que odeiam nossas cores e Hino. Hastear uma bandeira do Brasil não tem relação com política, mas com o orgulho de ser brasileiro e a esperança de tempos melhores.

Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um rompimento institucional com o Conselho.”

Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro, cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”

PAGAR POR UNIVERSIDADE PÚBLICA DEPENDE DE MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO
No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.

Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).