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Luciano Huck: Não será possível crescer sem um plano de metas ambiental

Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha

Sigo achando que no espaço de uma geração não iremos produzir tênis mais baratos que a China, tampouco componentes eletrônicos mais competitivos que Taiwan. Mas sigo também acreditando que nenhum outro país no planeta tem o potencial natural que o nosso.

Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha. Assim sendo, já está mais do que na hora de entendermos que pensar verde, além de fazer bem para nossa consciência, fará ainda mais pelos nossos bolsos. Já cheguei a tratar deste tema em outro artigo aqui nesta Folha, mas o noticiário e a conjuntura exigem que o debate vá adiante.

Minha curiosidade se divide entre os dois séculos e de tudo o que o mundo passou nestas últimas décadas.

Acabo de ler o livro “Brasil, Paraíso Restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Ele traz posições que permitem ampliar ainda mais o pensamento do futuro do Brasil como potência verde.

Está claro que a bússola mudou depressa na virada do milênio.

Duas décadas atrás, as nações guiavam-se pelas metas de crescimento da produção. Aprendemos a medir sucesso ou insucesso na economia por meio das taxas de crescimento do PIB.

Hoje muito se discute se esta métrica já não deveria ter ficado no século passado. Ainda não temos algo confiável e aceito por todas as economias do planeta como um marcador mais moderno, mais conectado com os anseios e necessidades das sociedades, países e do planeta como um todo. Mas vale registrar o que já esta acontecendo —e refletir sobre isso.

Na Alemanha, por exemplo, o rumo mudou de norte em 2005, quando o governo passou a perseguir o objetivo central de transitar para uma economia limpa. Desde então, todo o planejamento estratégico do país é montado para cumprir metas quantitativas relacionadas a combater o aquecimento global. A União Europeia passou a seguir o modelo a partir de 2007.

O crescimento da produção não foi esquecido. Mas foi inteiramente subordinado ao Plano 20-20-20: 20% de aumento na produção de energia renovável; 20% de diminuição no consumo de energia; 20% menos emissões de gases de efeito estufa.

A meta, adotada em 2007, foi cumprida antes do prazo de 2020. Neste ano, em plena crise da Covid, foi substituída por outra, ainda mais ambiciosa: o Green Deal. Esta meta central da União Europeia já não é apenas um instrumento de planejamento. Foram alocados 2 trilhões de euros —todo o plano de ajuda econômica para vencer a recessão— como instrumento para se alcançar uma economia sem emissões positivas em 2050.

Em pouquíssimas palavras: o futuro da economia da União Europeia está sendo associado à criação de uma economia limpa. Todo o dinheiro, todo o esforço econômico, toda a política social, todo o desenho de organização do mercado.

Mas isso não é só um fenômeno europeu. Vejamos a China. Se nas últimas décadas foi a grande vilã no litígio produção versus sustentabilidade, ela tem agora um objetivo central da ação econômica a que chamaram de “Uma Civilização Ecológica”.

O objetivo norteia o Plano Quinquenal 2016/2021, que centraliza a ação interna do governo: 10 das 13 grandes metas nacionais estão relacionadas ao meio ambiente. Já a política externa tem como norte o programa intitulado “Cinturão e Rota” – com o objetivo central de levar ao mundo a civilização proposta.

Essa nova bússola de grandes governos mostrou-se capaz de dar suporte a uma monumental mudança na avaliação para alocação de capitais privados, em escala planetária. A estimativa atual é a de que existe algo em torno de US$ 30 trilhões (cem vezes as reservas brasileiras) de investimentos privados que só podem ser aplicados em projetos que levem ao equilíbrio ambiental.

O roteiro para aplicação tem o nome de cláusulas ESG (Environmental, Social, Good Governance –Ambiental, Social e Boa Governança, em português). É acatado pelos maiores fundos de pensão, seguradoras, grandes fundos de investimento – e por uma infinidade de bancos e empresas. Todos optando voluntariamente por aportar dinheiro segundo essas cláusulas.

Os frutos das aplicações na economia real são cada vez mais visíveis. A produção de energia solar e eólica foi multiplicada por 150 entre 2000 e 2020. Neste ano, por causa da recessão, a previsão é de que as fontes renováveis como um todo superem o carvão –a fonte de energia mais comum desde o século 18, além de ser a mais poluente– na matriz elétrica mundial.

Nos Estados Unidos a mudança para o planejamento estratégico a partir de metas ambientais foi já adotada em 24 estados. O governo federal, sob Donald Trump, ficou de fora. Mas vale notar que o ponto número um do programa do candidato democrata Joe Biden é fazer exatamente o mesmo que a União Europeia e a China fazem.

E o Brasil? O país vive de opostos. De um lado é o país onde a natureza produz mais vida no mundo —e onde, ao longo dos séculos, empresários, empreendedores e pessoas de todos os estratos sociais moldaram uma matriz energética que é a mais limpa do mundo.

Do outro, é o país mais distante da adoção das metas nacionais de transição para uma economia limpa. O governo federal planeja e –pior– executa na direção contrária. Governos estaduais hesitam em abraçar essa agenda. Os candidatos a prefeito deveriam ter em seus programas como efetivamente pretendem melhorar a situação ambiental de sua cidade —mas em geral não têm.

Andamos na contramão do mundo por gosto, não por precisão. Não na economia real, mas no quadro institucional. A situação só não é pior porque, no setor privado, muitas grandes empresas têm se movimentado, saído da inação para ações concretas na tentativa de proteger nossa imagem mundo afora e a nossa economia.

Assim estamos jogamos pela janela aquela que é uma oportunidade secular para avançar. No século 19, nos faltou carvão. Na maior parte do século 20, nos faltou petróleo. Não falta sol, nem vento, nem plantas que fornecem combustível que não produz efeito estufa. Temos tudo para a economia do século 21.

A matriz energética que a União Europeia, a China e, dependendo das eleições, os Estados Unidos querem para 2050 pode ser alcançada no Brasil em menos de uma década. O país tem a base real para ser a grande economia limpa do planeta.

Mas, no ritmo que a banda toca, corremos um seríssimo risco de sermos enquadrados pelas três maiores economias do mundo como um país irresponsável na luta pelo equilíbrio ambiental. Nos últimos anos, detentores de grandes capitais vêm tentando convencer as autoridades brasileiras que estão fazendo o pior negócio do mundo ao chutar o dinheiro ESG. Se houver união dos governos das três grandes economias nesse jogo de pressão, restrições mundiais à produção brasileira entrarão muito depressa no horizonte.

Temos de mudar, e mudar bem depressa. Não se trata de programa para um governo, mas para a Nação. Um sonho maior, um plano de metas ambiental. De braços dados com o melhor do setor privado para executar seu papel essencial para que a mudança aconteça. Ecoar as boas ideias. Na União Europeia e no programa de Biden, o investimento em transição ambiental surge como fonte de empregos e de uma economia de serviços na área rural. De maior justiça social.

O Estado brasileiro foi montado para resolver os problemas de desenvolvimento de 1950, concentrando capitais para grandes projetos. Este objetivo de futuro já ruiu. Perdemos tempo, mas –graças à nossa natureza fértil, enorme potencial energético renovável e diversidade de biomas– ainda temos oportunidade. Temos a sorte ser donos de um passe fundamental para a nova era. Não podemos desperdiçar. Precisamos mudar –pois nos interessa e nos orgulha– ou seremos mudados à força e com vergonha.

Infelizmente hoje o Brasil não lidera nenhuma agenda global, além da tragédia da Covid-19, mas estou seguro de que, com uma mudança clara de caminho, podemos exercer mais rápido que o período de uma geração o papel de grande Potência Verde do planeta. Um país altamente produtivo, de fato comprometido com o meio ambiente e gerando riquezas para combater suas desigualdades. Eu acredito.

*Luciano Huck, apresentador de TV e empresário


Ricardo Noblat: Bolsonaro antecipa votos do ministro que nomeou para o Supremo

Jamais se viu isso

Nunca antes na história deste país um presidente da República revelou com antecedência como deverá votar ministro indicado por ele para o Supremo Tribunal Federal. Pois foi o que fez, ontem à noite, Jair Bolsonaro a pretexto de defender o desembargador Kássio Nunes Marques, que não foi sequer sabatinado ainda no Senado como manda a lei. Sua nomeação depende disso.

Em sua conta no Facebook, Bolsonaro irritou-se com o comentário de um leitor insatisfeito com a escolha de Kássio: “Presidente, próxima indicação ao STF indica o Lula”. Primeiro, ele respondeu assim: “Ele tem mais de 65 anos. Estude e se informe antes de acusar as pessoas”. Em seguida, para alegria do Centrão, disse que a nomeação de Kássio “é completamente sem volta”.

Acrescentou: “Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada). É pró-armas nos limites da lei (ele é CAC). Defende a família e as pautas econômicas (quem duvida que aguarde as votações). Resumindo, ele está 100% alinhado comigo”. A ADPF 442 é a ação que tramita no Supremo pedindo a descriminalização do aborto. CAC é colecionador de armas.

Faltou dizer como Kássio votará o pedido de suspeição de Sérgio Moro que, segundo a defesa de Lula, comportou-se de modo parcial no processo do tríplex do Guarujá; as ações contra a Lava Jato; e o caso do senador Flávio Bolsonaro denunciado pelo Ministério Público do Rio por lavagem de dinheiro, organização criminosa e expropriação do salário de servidores públicos.

Bolsonaro ocupou grande parte do seu domingo a oferecer explicações nas redes sociais para seus devotos que não engoliram a nomeação do novo ministro. Em maio do ano passado, o desembargador Kássio liberou uma licitação do Supremo para a compra de lagostas e vinhos caros, derrubando a decisão de uma juíza federal que a vetara. Um devoto escreveu:

– Péssima escolha. Está criando cobras que lhe darão o bote.

Bolsonaro retrucou: “Aguarde, outra mentira”. Outro devoto lembrou o voto de Kássio contra a extradição para a Itália do terrorista Cesare Battisti, acusado por quatro assassinatos e que agora cumpre prisão perpétua. Bolsonaro retrucou: “[Kássio] participou de julgamento que tratou exclusivamente de matéria processual e não emitiu opinião ou voto sobre a extradição”.

Foi lacônico quando outro dos seus seguidores perguntou por que no sábado à noite ele foi à casa do ministro Dias Toffoli, do Supremo, comer pizza e assistir ao jogo do Palmeiras contra o Ceará: “Preciso governar. Converso com todos em Brasília. Um abraço”. Parte do domingo de Toffoli também foi gasto com respostas à pergunta se fez certo em confraternizar com Bolsonaro.

“Eu sou um cara que gosta de unir as pessoas, que todo mundo se divirta. Confraternizar. Foi uma confraternização, ninguém falou de trabalho. Não estávamos aqui para discutir assunto sério”, disse o ministro. Nos bastidores, ele tem dito que é preciso manter a harmonia entre os Poderes e que não há nenhum prejuízo de que a cúpula deles se reúna com alguma frequência.

Quanto mais Toffoli tenta justificar a cena de promiscuidade explícita com Bolsonaro, mais escandalosa ela fica. Só grandes amigos se abraçam com tanto carinho. Isso nada tem a ver com harmonia entre os Poderes. Impensável que um ministro da mais alta Corte de justiça seja tão íntimo do presidente da República que pode justamente ser alvo de muitas de suas decisões.

Nada faltou na cena reveladora das entranhas do poder que serviu para reforçar a convicção de que a independência dos tribunais é coisa para inglês ver. Toffoli e Bolsonaro sem máscara em meio à pandemia; abraçados quando se recomenda o distanciamento; à porta da casa do ministro e não dos gabinetes oficiais de um ou do outro; observados por um policial sem máscara.

À tiracolo de Bolsonaro, Kássio, focado em conquistar a simpatia dos futuros colegas e o voto dos senadores que poderão lhe abrir as portas do tribunal. Presente ao regabofe, Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado. É ele que presidirá a sessão para aprovação do nome de Kássio. Empenhado em se reeleger, suplica ajuda a Bolsonaro e faz tudo para agradá-lo.

São favas contadas no Senado a aprovação de Kássio. A sabatina será mera formalidade. Desde sua fundação no século XIX, o Senado só recusou cinco indicações para ministro do Supremo, todas feitas por Floriano Peixoto, o segundo presidente da República do Brasil que passou à história como “o marechal de ferro”, tantas foram as revoltas que esmagou durante seu governo.

No final de maio último, um dia depois de o Supremo fechar o cerco contra o “gabinete do ódio” comandado pelo vereador Carlos, o Zero Dois, Bolsonaro perdeu as estribeiras e afirmou que “ordens absurdas não se cumprem”. Em tom exaltado, criticou a operação da Polícia Federal que atingiu seus aliados no âmbito do inquérito das fake news. Por fim, gritou: “Acabou, porra!”.

De lá para cá, trocou de arma. Descobriu que a melhor forma de vencer o Supremo é cooptar o maior número possível dos seus integrantes, expondo suas fraquezas. Está se dando bem até aqui.


Oliver Stuenkel: Por que a derrota de Trump seria um desastre para Bolsonaro

Vitória de Biden poderia ameaçar o ambiente global que a presidência dos EUA ajudou a criar para o projeto político do brasileiro

Um animado debate teve início no Brasil a respeito de como uma vitória de Joe Biden nas próximas eleições presidenciais dos Estados Unidos afetaria as relações entre os dois países. Para alguns, o forte alinhamento ideológico do presidente Jair Bolsonaro com o presidente Donald Trump levaria inevitavelmente a um recuo significativo nas relações bilaterais, enquanto outros creem que o pragmatismo de ambos os lados e uma preocupação dos EUA com a crescente influência da China impediriam uma ruptura.

Além de afetar as relações bilaterais em si, uma vitória de Biden poderia ameaçar o ambiente global que a presidência de Trump ajudou a criar para o projeto político de Bolsonaro. Com o presidente brasileiro abertamente fazendo campanha pela reeleição em 2022, outra pergunta se insinua: como o resultado da eleição americana afetaria a sorte política de Bolsonaro?

Uma possível derrota de Trump em novembro traria três desafios domésticos para o presidente brasileiro.

Em primeiro lugar, Trump é muito popular entre os defensores de Bolsonaro e, entre seus principais fãs, a ideia de que o presidente brasileiro goza de acesso privilegiado à Casa Branca tem sido um trunfo político essencial para o ex-capitão do Exército.

Ainda assim, numerosos analistas políticos apontaram que a parceria Trump-Bolsonaro produziu poucos benefícios concretos para qualquer um dos envolvidos – Bolsonaro não fez jus às promessas de ajudar a derrubar Maduro ou a reduzir a influência chinesa na América Latina, enquanto os setores agrícola e siderúrgico ficaram sem obter um acesso privilegiado ao mercado americano.

Mas, para a maioria dos apoiadores de Bolsonaro, o mais importante eram a narrativa e as fotografias lado a lado. Para eles, Trump e Bolsonaro romperam com a tradição política e tiveram a coragem de enfrentar os globalistas e as elites esquerdistas de todo o mundo. Uma vitória de Biden eliminaria assim um dos trunfos políticos de Bolsonaro e dividiria seus apoiadores entre aqueles que defenderiam uma radicalização e ruptura com o novo governo americano e aqueles que optariam pelo pragmatismo, protegendo os elos entre brasileiros e americanos.

Essa decisão não seria facilitada pelo fato de o filho de Bolsonaro, o congressista Eduardo, um político poderoso com ambições presidenciais, quase certamente preservar seus elos existentes com Steve Bannon, de quem se espera que volte a trabalhar imediatamente para injetar nova energia na direita populista para atacar o governo de Biden. Além disso, uma vitória de Biden pode servir como modelo de como vencer um governante populista nas urnas, energizando uma série de candidatos centristas que desafiarão Bolsonaro em 2022.

Pode parecer uma questão menor, mas a política externa radical de Bolsonaro foi fundamental para satisfazer uma parte importante do seu eleitorado, que votou no político que cumpriu sete mandatos como deputado na expectativa de uma ruptura completa com o passado. Não é coincidência o fato de o filho do presidente, Eduardo, ter sido voluntário para chefiar uma comissão do congresso para questões de relações internacionais e segurança nacional.

É na política externa que Bolsonaro pode implementar uma pauta caótica e revolucionária, sem enfrentar tantos limites constitucionais quanto ao mexer na política doméstica, onde o congresso e a Suprema Corte representam obstáculos formidáveis à radicalização. Demonizar a ONU e o globalismo, orgulhar-se de não conversar com o presidente da Argentina ou duvidar da mudança climática ainda seriam atitudes muito populares entre os bolsonaristas, mas, com Biden na presidência dos EUA, o custo disso será muito mais alto no exterior. Com o recuo das preocupações globais com Trump, ao menos inicialmente, um Ocidente muito mais unido tentaria restaurar as relações transatlânticas e a cooperação multilateral.

Finalmente, uma vitória de Biden complicaria um terceiro trunfo político que ajudou Bolsonaro a conservar o apoio de seus seguidores radicais: uma recusa obstinada em ceder à pressão internacional e doméstica diante da mudança climática. A estratégia do presidente de manter o controverso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em meio a incêndios descontrolados e aumento do desmatamento levou muitos a descreverem Bolsonaro como um estrategista imprevisível e incoerente.

Mas uma análise cuidadosa de sua estratégia política indica que o ex-capitão do Exército segue um conjunto de princípios bastante claro, acreditando que é preferível pagar o custo econômico da não ratificação de acordos comerciais ou mesmo de boicotes contra produtos brasileiros do que perder o apoio político do pequeno produtor rural, do garimpeiro, dos grileiros e madeireiros, parte da base de apoio mais leal a Bolsonaro, todos beneficiados pela desregulamentação ambiental.

Com os EUA de Biden mudando de lado e, possivelmente, alinhando-se à Europa no que tange ao desmatamento na Amazônia, o cálculo político de Bolsonaro provavelmente se tornaria insustentável. Ignorar os apelos dos europeus pelo combate ao desmatamento na Amazônia é uma coisa; enfrentar uma aliança entre EUA e Europa que ameaçaria isolar o Brasil economicamente em decorrência do seu fracasso em proteger a maior floresta tropical do mundo já é outra bem diferente. Tanto Salles quanto o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, são muito populares entre a base eleitoral de Bolsonaro, mas podem ter os cargos ameaçados.

À espera de novembro. Se eleições em outros países raramente afetam diretamente a dinâmica política no Brasil, as eleições americanas de 2020 têm um significado especial para a maior democracia da América Latina. Nunca antes um líder brasileiro fez de sua semelhança e amizade com seu equivalente americano um elemento tão central de sua personalidade política.

Apesar de suas muitas diferenças – Trump tem um relacionamento problemático com as forças armadas, enquanto Bolsonaro venera os militares – o presidente brasileiro estimulou ativamente a ideia segundo a qual ele seria um “Trump dos trópicos”. Em um gesto talvez simbólico dessa estratégia, Bolsonaro certa vez transmitiu um vídeo ao vivo pelo Facebook no qual assistia a uma hora de discurso de Trump. Assim, não surpreende que poucos líderes no mundo torçam tanto pelo presidente americano nas próximas eleições quanto o brasileiro Jair Bolsonaro. / Tradução de Augusto Calil

*É colunista da revista Americas Quarterly e professor de Relações Internacionais da FGV em São Paulo


Luiz Sérgio Henriques: Duas nações, uma crise

Sinais de alarme soam diante da devastação que Trump e Bolsonaro têm promovido

Poucas vezes um evento terá tanta relevância além das fronteiras de um país quanto as iminentes eleições norte-americanas, a indicar como, acima das reivindicações exclusivistas de soberania nacional da parte de atores deliberadamente cegos ou orgulhosamente obtusos, os processos de interdependência terminam por impor sua lógica e tornar menos dessemelhantes realidades originalmente distintas. É como se – considerando Estados Unidos e Brasil – o sistema político de cada qual se destacasse das respectivas matrizes históricas, individualistas num caso, organicistas no outro, e apresentasse o mesmo problema, de tal modo que, sinalizando futuras e cada vez mais frequentes influências recíprocas, os resultados americanos de novembro viessem a condicionar vigorosamente as coisas por aqui.

Em tese, a matriz anglo-saxã asseguraria, com razoável grau de previsibilidade, a boa saúde da democracia na América, enraizando-a em indivíduos livres e acostumados à participação na vida pública. Em contrapartida, ibéricos como somos, tenderíamos à arquitetura social “barroca”, perdido o indivíduo numa totalidade que não domina e frequentemente o esmaga, pelo menos na versão pessimista tantas vezes predominante. Estruturalmente liberal-democratas, os americanos; intimamente autoritários e às voltas com autoritarismos, condenados a regar monotonamente a mirrada planta da democracia, nós, brasileiros.

O fato é que o sistema político das duas grandes nações, por artes de um mundo que parece ignorar particularismos, encontra-se desafiado por uma questão análoga. Como efeito do abrasileiramento dos EUA ou da americanização do Brasil, ambos se tornaram casos de manual dos procedimentos em curso de “morte das democracias”, com a corrosão das suas normas escritas e não escritas, das suas regras e dos seus valores. Os sinais de alarme soam diante da devastação que, quase em paralelo, Donald Trump e Jair Bolsonaro têm promovido em circunstâncias já de si muito difíceis. E como advertem os estudiosos, a obtenção de um segundo mandato por líderes desse tipo configuraria uma situação ainda mais perigosa, sem exclusão da possibilidade de crises institucionais.

Há uma coleção de ineditismos na conduta de Trump que requer algum esforço analítico maior. No plano externo, quem jamais imaginaria o afastamento entre EUA e seus aliados tradicionais, os países do Ocidente democrático, além da admiração de Trump por dirigentes autoritários, incluído o agora arquirrival Xi Jinping? Quem suporia, há alguns anos, a aliança tácita com Vladimir Putin em chave antieuropeia, minando um projeto de superação de rivalidades que conduziram, só no século 20, a uma prolongada “guerra civil continental” entre 1914 e 1945?

O lema “America first”, que sintetiza a retirada das instâncias multilaterais, a começar pela ONU, pode ter uma leitura realista de que todo governante deve cuidar antes de tudo do próprio país e estaria arruinado se não o fizesse. Mas deve-se entendê-lo mais adequadamente como sintoma de renúncia ao universalismo dos valores liberais trazidos audaciosamente ao mundo pela revolução americana – afinal de contas, uma moderna guerra de libertação nacional. Renúncia, portanto, que explicita incapacidade de direção dos processos globais e recuo para um horizonte “corporativo”, que aquele país, sob Trump, só tem abandonado de tempos em tempos em favor de ações erráticas e unilaterais.

O mesmo déficit de hegemonia ocorre internamente. Poucas vezes, como agora, ocupou a sala de comando um governante voltado apenas para o próprio gueto de fiéis, a bradar contra a diversidade social, os avanços culturais e as oposições políticas, entendidos todos eles como diferentes expressões de um “inimigo interno” que ameaça o excepcionalismo e o “manifesto destino” americano. A deslegitimação dos adversários, que está no coração do conservadorismo “revolucionário”, é uma traição aos princípios liberal-democráticos e implica, em perspectiva, a substituição da persuasão por meios autocráticos de mando – por uma ditadura, em suma. Mesmo um moderado como Joe Biden aparece como cavalo de Troia da revolução de esquerda que ameaçaria o americano comum. E já há quem monte cenários em que Trump denunciará os resultados caso lhe sejam adversos, ou se recusará a deixar o poder. Nada mais “latino-americano”, na velha conotação, que, por óbvio, mencionamos sem subscrever.

Difícil imaginar que a convergência de crises apague os sinais de batismo das duas sociedades. O mundo globalizado, ao contrário do que pensam os detratores, não é uma abstração vazia na qual sumam as combinações particulares de liberdade e igualdade, indivíduo e comunidade. Contudo, seja no mundo “ibérico”, seja no “anglo-saxão”, o requisito para despontarem a diferença e a multiplicidade é a universalidade da democracia. Sem ela, como o comprovam cotidianamente Trump e Bolsonaro – o original e o rascunho –, não equacionaremos a atual e aguda crise civilizatória. Na verdade, nem sequer a perceberemos.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Ribamar Oliveira: Bolsonaro disse não a Guedes duas vezes

Resta a questão de saber por que o ministro voltou a insistir na proposta dos 3 Ds, mesmo depois de ela ter sido vetada pelo presidente

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de não aceitar a proposta de deixar sem correção os benefícios previdenciários e assistenciais, manifestada de forma agressiva em rede social na terça-feira, terá consequências importantes na política fiscal do governo. Bolsonaro rejeitou, pela segunda vez em menos de um ano, a proposta dos 3 Ds do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que deseja fazer a desindexação das despesas orçamentárias, a desvinculação das receitas e desobrigar o governo a realizar gasto.

Em novembro de 2019, o governo encaminhou ao Congresso Nacional o que chamou de Plano Mais Brasil, constituído de duas PECs que tratam de novas regras fiscais. Guedes tentou incluir nelas a desindexação do salário mínimo e dos benefícios previdenciários e assistenciais. O piso salarial e os benefícios não teriam correção por dois anos, o que abriria espaço no teto de gastos da União para mais investimentos públicos.

Bolsonaro foi contra a medida, como o próprio ministro da Economia revelou na época. Por isso, os textos da PEC Emergencial (186/2019) e da PEC do Pacto Federativo (188/2019) estabelecem, explicitamente, que será preservado o poder aquisitivo do salário mínimo.

Agora, o ministro e sua equipe voltaram a insistir na tese dos 3 Ds, negociando diretamente com o relator da PEC 188, senador Márcio Bittar (MDB-AC), para incluir na proposta a desindexação dos benefícios previdenciários, pelo mesmo prazo de dois anos, que tinha sido apresentada ao presidente Bolsonaro em novembro do ano passado e rejeitada.

A diferença é que, na nova versão dos 3 Ds, a desindexação dos benefícios previdenciários foi apresentada como uma maneira de garantir espaço no teto de gastos para o novo programa social do governo Bolsonaro, chamado de Renda Brasil - uma espécie de Bolsa Família turbinado.

É impressionante que uma autoridade do Ministério da Economia tenha proposto a criação de uma nova despesa obrigatória de caráter continuado (o Renda Brasil) mesmo com o governo tendo que reduzir, todo ano, os investimentos públicos para manter o teto de gastos em pé, pois as despesas obrigatórias não param de aumentar.

Originalmente, o objetivo dos 3 Ds era abrir espaço no Orçamento da União para ampliar os investimentos e sustentar o teto de gastos por mais alguns anos. Fazer a desindexação dos benefícios previdenciários para criar nova despesa obrigatória é uma contradição em si.

Resta a questão de saber por que o ministro Paulo Guedes voltou a insistir na proposta dos 3 Ds, mesmo depois de ela ter sido vetada pelo presidente Bolsonaro no ano passado. A explicação mais plausível é que o ministro da Economia não vê ganhos de espaço no teto de gastos apenas com as medidas de ajuste fiscal que estão definidas na PEC 188. Elas recaem, basicamente, sobre os servidores públicos.

Se as despesas obrigatórias ultrapassarem 95% do total das despesas primárias do ano (não incluem o pagamento de juros e as amortizações da dívida), nenhum dos poderes da República poderá conceder aumento de salário, reajuste ou qualquer tipo de vantagem aos servidores, criar cargos, alterar estrutura de carreira, realizar concurso público, criar ou majorar auxílio e criar qualquer despesa obrigatória, entre outras medidas, de acordo com a PEC 188.

Dito de forma mais direta, os representantes do Judiciário teriam que adotar as medidas de ajuste da PEC 188, pois o teto de gasto é individualizado por Poder e por órgão. As medidas restritivas, como a não concessão de reajuste ou qualquer outra vantagem se aplicariam também a juízes, procuradores e militares. Ou seja, não apenas os servidores civis dos três Poderes seriam penalizados. É fácil entender a dificuldade política para a aprovação da PEC.

A decisão de Bolsonaro ao rejeitar a ideia de não corrigir os benefícios previdenciários terá, portanto, impacto direto sobre o teto de gastos. Aprovada a PEC 188, com o seu texto original, o presidente terá que impor sacrifícios aos servidores, incluindo os militares, se quiser preservar o teto de gastos. As medidas terão que ser tomadas com urgência, pois, pelos cálculos de quase todos os analistas, para manter o teto de gastos já em 2022 as despesas discricionárias (investimento e custeio da máquina administrativa) terão que ser cortadas ao nível de paralisia dos serviços públicos.

Há pessoas otimistas acreditando que, mesmo com a oposição de Bolsonaro, o Congresso poderá manter a proposta da desindexação dos benefícios previdenciários no novo texto da PEC 188, que deverá ser apresentado pelo relator Márcio Bittar. É difícil acreditar que os senadores e deputados possam ser mais realistas do que o rei, ou seja, que aceitem o ônus de uma medida impopular, mesmo contrariando o presidente da República. Tudo isso, às vésperas das eleições municipais.

De olho na inflação

O Ministério da Economia alterou algumas de suas previsões para a economia neste ano. De acordo com o Boletim MacroFiscal, da Secretaria de Política Econômica (SPE), a previsão para a inflação medida pelo INPC subiu de 2,09% para 2,35%. Este dado é de grande relevância para as despesas públicas, pois o INPC corrige o salário mínimo, que é a base dos benefícios previdenciários e assistenciais. Corrige também os benefícios previdenciários acima do piso.

O anexo de riscos fiscais do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2021 estima que para cada aumento de 0,1 ponto percentual do INPC, a despesa da União sobe R$ 768,3 milhões. Como a previsão da SPE para o INPC subiu 0,26 ponto percentual, a despesa da União no próximo ano foi elevada em mais de R$ 1,9 bilhão.

É um acréscimo significativo, principalmente porque as despesas orçamentárias para 2021 estão no limite do teto. Isto significa que, se a previsão da SPE se confirmar, o Congresso terá que cortar ainda mais o investimento e o custeio programado no Orçamento do próximo ano para manter as despesas dentro do teto.


Pablo Ortellado: Defund Bolsonaro

Será que ação de desinvestimento de empresas pode mesmo conter ou reduzir o desmatamento?

Uma campanha iniciada por ativistas brasileiros, mas orientada para o público internacional, pede o desfinanciamento de quem se beneficia das políticas ambientais de Bolsonaro.

A principal peça de propaganda da campanha é um vídeo em inglês mostrando cidades e produtos europeus com focos de incêndio, evidenciando que as queimadas amazônicas estão diretamente implicadas no consumo.

A expressão "defund", que aparece ao final do vídeo, remete à demanda de ativistas do Black Lives Matter, nos Estados Unidos, que pedem o desfinanciamento da polícia depois dos sucessivos casos de abuso contra cidadãos negros.

A campanha brasileira, porém, não pede o boicote de produtos e serviços brasileiros —estratégia utilizada com sucesso para derrubar o apartheid na África do Sul e com menos êxito na campanha BDS, que combate a ocupação da Palestina por Israel.

A campanha também não pede o boicote de produtos específicos, como o que esteve na origem da "moratória da soja" em 2006 e que levou os maiores traders a criarem a rastreabilidade da cadeia produtiva do setor para se desimplicarem no desmatamento.

Se a expressão "defund" pede desinvestimento, a orientação na figura de Bolsonaro aponta para uma ampla política ambiental complacente com o crime que beneficia parte do agronegócio, da pecuária, do extrativismo de madeira e da mineração na região amazônica.

Mas será que uma ação de desinvestimento de empresas pode mesmo conter ou reduzir o desmatamento?

Para que o consumo de produtos se desimplique no desmatamento é preciso que se estabeleça a rastreabilidade das cadeias produtivas, para que as empresas consigam diferenciar os fornecedores que estão envolvidos no desmatamento, daqueles que não estão.

Uma iniciativa recente dos três maiores bancos do país, Itaú Unibanco, Bradesco e Santander, está se comprometendo a criar a rastreabilidade da cadeia produtiva e impedir o financiamento de agentes econômicos que promovem o desmatamento, começando pela agropecuária.

É preciso aguardar para ver se o compromisso ambiental do setor financeiro é duradouro e busca mais do que apenas projetar uma boa imagem.

Mas o caminho para asfixiar financeiramente o desmatamento parece ser mesmo o de estabelecer a rastreabilidade das cadeias produtivas e pressionar as empresas a comprarem apenas de fornecedores certificados.

O Estado brasileiro poderia jogar um papel decisivo no financiamento e na implementação da rastreabilidade, mas ele parece decididamente comprometido com o desmatamento.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Carlos Andreazza: Reforma pastel de vento

O governo apresentou uma carta de intenções

O governo apresentou a reforma administrativa. Apresentou? Que reforma? Li. Reli. E só achei capa. Ou melhor: só encontrei sumário. Estão lá, enunciados, os capítulos; inclusive os impopulares — que a turma do Ministério da Economia chamou de “politicamente sensíveis”. Há até boas ideias; bons princípios sobre a necessidade de redimensionar um Estado obsoleto, de existência atual não injustamente percebida como para tão somente se autossustentar. Mas é apenas isto o que se anunciou como reforma remetida ao Parlamento: um índice do que virá. Um dia. Porque carne mesmo, matéria — os capítulos do livro: não vieram.

Já sabíamos que a reforma prometida há mais de ano — travada e boicotada pelo próprio presidente corporativista da República —só atingiria os servidores do futuro. Impacto fiscal imediato: zero; e bote década até que algum efeito haja. Ok. Sabia-se. Soubemos na semana passada, porém, que a reforma administrativa prometida há mais de ano, e desde então prontíssima como parte de operosa linha de montagem de projetos — vendida como pujante e revolucionária —, não estava pronta. Ou, se um dia pronta esteve, mais não está.

O governo apresentou uma carta de intenções. O programa de uma reforma administrativa adiada. O Ministério da Economia tem se especializado nisto: em lançar fatia; a primeira sendo sempre mui modesta. Foi assim também com a tributária. Não deixa de ser estratégia politicamente esperta. Mostra-se aquele pedaço miúdo — com a promessa de que o bolo todo virá à mesa. Um dia. E o pessoal engole. Para o funcionamento intestinal do mercado: mata a fome e faz girar.

“Você está sendo muito duro com a proposta” — dirá um leitor. Não estou. (Que proposta, aliás?). “A reforma cria categorias e limita as carreiras que terão mantida a estabilidade” — argumenta-se. Jura? E onde está a lista que discrimina os que serão prejudicados e os protegidos? “Calma. Isso virá numa etapa posterior.” Entendi. “A reforma reduz salários iniciais, define formas para avaliar desempenhos e reestrutura cargos.” Uau! Que capitalista! Regras para mérito e para otimizar funções. E ainda reduz os salários de partida. Onde está isso? Quero ler. “Calma. Apenas numa fatia adiante.” Certo.

Compreendi. Temos a ousada reforma vou enfrentar os problemas e tocar em questões delicadas, mas só depois de amanhã; o sumário indicando que, quando (e se) baixar, a lâmina liberal-guedista cortará apenas dos futuros servidores, como médicos e professores, que não compõem carreiras ditas de Estado; resguardados todos os tipos graúdos, os que ganham mais. Coragem padrão.

Ante toda a propaganda sobre a robustez do que seria um projeto, o que se apresentou foi uma palestra sobre reforma administrativa, destinada a jogar para a galera. Soprou-se o apito. Evidente está que essa é a PEC de um governo que lava as mãos. “Me pressionaram para entregar. Aí está. Fiz a minha parte. Agora é com vocês.” Um movimento narrativo para alimentar a tia do zap.

Uma jogada que, na prática, cria um sistema de travas primoroso. Conforme explicaram os técnicos do ministério: se a primeira fase andar, envia-se a seguinte. Mas como se avançará na aprovação do sumário de um livro sensível, sem que se conheça a íntegra do texto? Quem passa cheque em branco assim? Como se levantam os fundamentos de uma casa sobre terreno pantanoso, se ignorados são os cálculos de engenharia para a construção que virá acima? Difícil fazer progredir o que se desconhece.

Qual é, a propósito, a lógica de não entregar de uma vez os projetos de lei complementar — que regulamentarão o edifício —, senão para ou disfarçar a incompetência (a incapacidade de formular um projeto complexo) ou, tendo dado já o recado para inglês ver e operar, garantir que a coisa avance lentamente, ou mesmo não avance? Diga-se que gente muito boa defende que não seria necessária uma PEC para tratar dessa matéria; sendo também certo que, por sua própria natureza, uma PEC exigirá mais tempo…

Mas o governo fez a sua parte, né? Não. Não fez. Sua parte seria entregar um projeto de reforma que não fosse parte acanhada. Há um ano, quando se falava em estoque de projetos e fila para execução imediata, engatando uma reforma na outra, jamais se mencionou que esse desfile seria em fatias. Trata-se de novidade. Algum vigor se perdeu. Alguma baixa hormonal na libido liberal houve. Fato. A realidade se impõe. Essa não é — nunca foi — a agenda do governo. (Mas o governo fez sua parte.)

A única concretude deste manifesto de adiamentos é aquela porção — aquele queijinho (azedo, no caso) caído lá no fundo do pastel de vento —que dá poder ao presidente para manipular, sem o aval do Congresso, autarquias e fundações federais, aí incluídos Banco Central, Cade, agências reguladoras e universidades. Ou seja: o que não é promessa concentra força na mão do Executivo e consiste numa espécie de reforma administrativa liberal a serviço da autocracia.

Menos Brasília. Mais Planalto. Parabéns.


José Roberto Mendonça de Barros: Implicações do PIB do segundo trimestre

Definitivamente, o País não estava “voando”

Os resultados da evolução do PIB foram muito variados, mas o pior de tudo é que o índice do produto voltou dez (isto mesmo: 10) anos atrás. É melancólico.

Outra surpresa que se observou foi que o período de janeiro a março foi revisado para baixo: ao invés de uma queda de 1,5%, o que se viu foi um encolhimento de 2,5%. Definitivamente, o País não estava “voando” no começo do ano, como tantas vezes mencionou o ministro da Economia.

Será muito difícil conseguirmos repetir uma queda de tal magnitude (-9,7%), decorrente de uma causa totalmente inesperada vinda da área da saúde, que provocou uma parada súbita no sistema econômico.

Os segmentos que mais sofreram foram aqueles dependentes de aglomerações, tais como restaurantes, viagens e serviços correlatos (a chamada cadeia da hospitalidade, que inclui os serviços criativos), que caiu mais de 40%, e, de outro lado, os segmentos industriais que foram obrigados a fechar as fábricas, como automotivo, máquinas e equipamentos.

O tombo da indústria de transformação reforça a crescente fragilidade do setor, o que torna mais longe ainda a possibilidade de que ele volte a liderar o crescimento. Chama a atenção a elevação da assimetria entre empresas, em que uma nata de companhias ajustadas e capitalizadas segue avançando e aproveitando a desvalorização cambial para reforçar sua competitividade, enquanto a maioria das empresas vê seus balanços piorarem e seus produtos envelhecerem, sem fôlego para competir com a importação, mesmo descontando-se a perda de valor da moeda brasileira.

Só os setores de recursos naturais tiveram desempenho favorável: o agronegócio e o petróleo. O agronegócio, em qualquer comparação, e o petróleo, quando comparado com o mesmo trimestre do ano anterior, uma vez que a Petrobrás suspendeu a produção em mais de 40 plataformas no início da pandemia. Além deles, apenas setores que sempre investiram bastante em tecnologia foram bem no período. Menciono aqui o setor financeiro e as empresas preparadas para venda pela internet.

Sem nenhuma surpresa, o investimento, que já vinha fraco, foi desastroso. Vai ser difícil retomar um crescimento sustentado, após a natural ocupação da capacidade de produção depois da liberação das unidades de produção.

As transferências recebidas por mais de 70 milhões de pessoas alavancaram, a partir de maio, o setor de cimento (reformas), móveis e utilidades domésticas. Isso nos levou a uma leve melhora em nossa projeção de crescimento para o ano: de -5,4 para -4,8%.

Olhando adiante, não dá para ver uma recuperação em V, uma vez que as transferências irão começar a cair nestes próximos meses e serão ainda mais reduzidas no ano que vem, quando o coronavoucher estará encerrado. Além disso, muitas empresas ainda irão sair do mercado e/ou diminuir ainda mais o contingente de seu pessoal. Com isso, a renda das famílias provavelmente será reduzida quando comparada com o auge de maio a agosto e o emprego líquido não crescerá muito. Assim, projetamos uma expansão de apenas 2,2% para o ano que vem.


A demanda internacional de alimentos está aquecida. O ponto forte decorre dos grandes volumes de transferências para as famílias, que ainda ocorre em praticamente todos os países do mundo. Com isso, a procura por alimentos se mantém forte.

Ademais, muitos países, perante a pandemia, tentaram elevar suas importações para constituir estoques de emergência. Do lado da oferta, tanto China como Estados Unidos têm tido problema nos últimos anos. Gripe suína, guerra comercial e problemas climáticos estão prejudicando a produção deste ano, pressionando a oferta e provocando uma apreciável elevação nas cotações de Chicago. Tudo isso se traduz em preços e renda bastante elevados no Brasil.

Isto sugere que os setores de recursos naturais continuarão a puxar nosso crescimento e, por conta disso, temos que levar adiante importantes avanços da bioeconomia, de sorte a contribuir para o fim das queimadas ilegais e para a criação de novos produtos, inclusive materiais, vindos do setor agropecuário.

Este caminho exige uma integração entre o setor agro, a indústria e os serviços de tecnologia. Uma consequência importantíssima é que temos que mudar a lógica da representação empresarial: de federações para coalizões em torno de projetos específicos.

Voltaremos a esses pontos num futuro próximo.

*Economista e sócio da MB Associados.


Demétrio Magnoli: O único consenso nacional

A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária

‘Já enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’ António Guterres, secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate sobre o tema foi virtualmente interditado.

As escolas particulares de Manaus reabriram há 35 dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas revelam riscos muito baixos. Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.

Um fator relevante é psicossocial: os pais temem por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados, é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente, o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se meu filho for o ponto fora da curva?

O medo tem um contexto. A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”. No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista — apenas virando-a pelo avesso.

Na prática, como quarentenas prolongadas são insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos, escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de “toda uma geração” de brasileiros sem voz.

Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo, flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do PT à prefeitura de São Paulo.

Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir escolas com segurança nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais, equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.

Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui, a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.

Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.