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Cacá Diegues: Vai melhorar, sim

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Que a saliva não acabe nunca!

Depois de quase dois anos ouvindo absurdos políticos e assistindo desorientados às trapalhadas totalitárias do presidente; depois dos cerca de nove meses de uma pandemia de muitos mortos, para os quais as autoridades federais não deram a menor bola; depois de uma recuperação significativa de nosso PIB, que fez o Brasil ter agora, contados pelo IBGE, 199 mil milionários e 52 milhões de pessoas, um quarto de sua população, vivendo abaixo da linha de pobreza; depois de tanto susto e surpresa, os brasileiros foram enfim às urnas escolher seus administradores municipais. Menos, é claro, em Macapá, capital do Amapá, o estado sem luz.

Celebremos nesta eleição o sucesso do espírito democrático, um teste de nossa capacidade de escolher quem vai mandar na nossa rua pelos próximos quatro anos. Passaremos quatro anos explicando a nossos pares o que anda acontecendo e eles ainda não entenderam; ou nos declarando traídos por um governo municipal e uma câmara de vereadores de sacripantas e enganadores. Pois é disso que trata a democracia, o regime mais parecido com o ser humano. Ou, como dizia Churchill (ou não sei quem), o pior regime que existe, excetuando todos os outros.

Passei esses dias lendo o livro de Karla Monteiro sobre Samuel Wainer, “O homem que estava lá”, uma enciclopédia do que foi a política no Brasil durante os anos de vida do biografado. Pelo que a autora conta do período que conheci e vivi, só posso acreditar piamente no resto do tempo que ela aborda. Trata-se da vida de Samuel, de tudo e de todos que circularam à sua volta, desde que sua família, fugindo do antissemitismo em voga na Europa, chegou da Bessarábia quando ele tinha 8 anos de idade, até seu falecimento, com 68 anos, vítima de uma pneumonia da qual não cuidou. No dia de sua morte, em setembro de 1980, terminávamos “Bye Bye Brasil”, o filme em que, a seu pedido, Bruno, seu filho adolescente, fora nosso estagiário, sua porta para o cinema. Samuel Wainer foi um brasileiro que tive a sorte de conhecer. E de aprender o que ele entendia e pensava do Brasil. E ainda foi um dos primeiros, no país, a acreditar e promover o Cinema Novo.

Nesta semana assistimos também ao assassinato de Cadu Barcellos, um homem brilhante, um cineasta de talento, um cidadão generoso. Cadu foi diretor de um dos episódios de “5XFavela”, a versão de 2010 realizada por moradores de favela, e, aos 34 anos, se empenhava em fazer do Complexo da Maré um centro de cultura, criação e invenção. Cadu morreu sem fazer os filmes que só ele sabia fazer. De madrugada, numa esquina solitária da Avenida Presidente Vargas, foi assaltado e esfaqueado à morte. Os ladrões levaram tudo o que ele tinha: um celular e alguns poucos reais que guardara para o ônibus.

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Queremos incentivar a saliva, que ela não acabe nunca, tenha sempre mais um pouco, seja como líquido que escorre natural da boca, seja como lágrimas que jorram dos olhos. Ou até mesmo na forma de um beijo.

E foi como um beijo que vimos Kamala Harris cantar e dançar com um grupo de crianças nosso baile funk de favela em português das quebradas, rebolando como se fosse uma das nossas. O sereno Joe Biden é um Tancredo, que vem na frente para sossegar o coração de quem tem medo do novo. Mas Kamala Harris é o futuro que vai ser construído sobre o terreno que Joe Biden aplaina. É ela que parece dizer aquele trecho da encíclica de Francisco, em homenagem ao santo xará: “Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou (…) não nos turvará, o fato de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz”.

Segundo o IBGE, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo, com uma distribuição de renda pior que a dos africanos mais pobres. Cada vez que melhoramos no conjunto, são só os mais ricos que ficam mais ricos. Outro dia, policiais da 31ª DP, de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte do Rio, prenderam um homem que estava vendendo ossos humanos, retirados de túmulos no cemitério local. O homem declarou à polícia que estava desempregado, só roubava o que lhe era encomendado e que cobrava muito pouco pelo serviço. O delegado Fábio Souza o autuou em flagrante, por “vilipêndio de cadáveres”.

A vida é mesmo meio como um jogo de perde-ganha. Quanto pior agora, melhor será daqui a pouco. Vai melhorar. Vai melhorar, sim. Tenho certeza de que vai melhorar. Acho que sim.


Bruno Boghossian: Agro descobriu que o atraso de Bolsonaro é um mau negócio

Empresários preferiram se aliar a ONGs ambientalistas, alvos do presidente

Quando os presidenciáveis desfilavam em campanha, há dois anos, a turma do agronegócio acreditou ter feito uma escolha óbvia. Empresários se aproximaram do candidato que prometia afrouxar fiscalizações, e a bancada ruralista declarou apoio àquele que prometia atropelar as leis ambientais.

O namoro durou pouco. Antes de tomar posse, Jair Bolsonaro abriu a primeira crise com o setor. O presidente eleito causou pânico entre produtores ao dizer que mudaria a embaixada de Israel para Jerusalém. Exportadores de carne criticaram a ideia, com medo de perder bilhões em negócios com países árabes.

O governo não conseguiu levar a provocação adiante, mas manteve a sabotagem. Em março, Eduardo Bolsonaro acusou o governo chinês de ser responsável pela propagação do coronavírus. O líder da bancada ruralista precisou lembrar que a China responde por até 40% das exportações do agronegócio brasileiro.

Além das trapalhadas nas relações exteriores, o lobby do agronegócio ficou incomodado com a omissão destrutiva do governo na Amazônia. Ninguém virou ambientalista da noite para o dia, mas os empresários perceberam que ter um Bolsonaro no poder era um mau negócio.

Em julho, eles cobraram medidas para frear a devastação e as queimadas. O presidente continuou fingindo que os incêndios eram fogueiras de São João e acusou ONGs de produzirem propaganda negativa. “Vocês sabem que as ONGs não têm vez comigo. A gente bota para quebrar em cima desse pessoal”, afirmou.

O desastre bolsonarista é tão grande que alguns empresários escolheram ficar ao lado dessas organizações. Gigantes como JBS e Marfrig se uniram a WWF, Imazon e outras entidades para pedir ações do governo contra o desmatamento.

O agronegócio se deixou seduzir por Bolsonaro e não se incomodou com o fato de que aquele político representava o que havia de mais rudimentar e atrasado na área. Agora, os empresários querem deixar o presidente sozinho no século passado.


Míriam Leitão: Desmatamento e esperança

A defesa do meio ambiente recebeu, esta semana, reforços importantes. Empresas unidas a ambientalistas foram dizer ao governo que este é o momento de mudar de rumo. E, mais do que apelos, levaram propostas concretas de como fazer essa mudança. O governo, contudo, dobrou a aposta no seu descaminho. O vice-presidente se atrapalhou nas declarações, o presidente Bolsonaro piorou o seu negacionismo. Foi ao Pantanal e não viu a queimada, mas a fumaça o buscou até no avião. Os dois lados foram claros. Eles estão bem distantes um do outro.

A coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura já seria importante só pela parceria inédita que representa, mas além disso levou uma lista de coisas práticas a fazer. Eles acham que é preciso punir quem comete crime ambiental, na mesma linha da entrevista do executivo da Marfrig, Roberto Waack, ao GLOBO, ontem. Propõem a suspensão dos registros do Cadastro Ambiental Rural que estão em florestas públicas. Parece incrível que se tenha que propor que não se legalize o roubo da terra pública, mas assim é o país. Eles sugeriram uma ação superimportante: criar unidades de conservação e de uso sustentável em 10 milhões de hectares próximas às áreas que estão sob maior pressão. Foi exatamente assim que se conseguiu, no passado, inverter a curva do desmatamento.

Querem que haja total transparência — e isso de fato é o mínimo — nas autorizações de desmatamento. Sugerem a suspensão de todos os processos de regularização fundiária em terras nas quais tenha havido desmatamento ilegal depois de julho de 2008, data do Código Florestal.

O vice-presidente Hamilton Mourão, sobre quem está depositada a expectativa de que o governo entenda do que está se falando, deu sinais mistos. Ele recebe e ouve de forma polida. Mas acusou um “opositor” de dentro do Inpe de divulgar os dados. Erro crasso, porque os dados são públicos, uma conquista de governos passados. Democracia, como se sabe, combina com transparência. Qualquer pessoa pode buscar esses dados no site do Inpe. Na sexta-feira, ele deu um estranho sinal. Defendeu a criação de uma nova agência de governo, que concentre os sistemas de monitoramento por satélite na Amazônia. Citou como exemplo a ser copiado o NRO (Escritório Nacional de Reconhecimento) dos Estados Unidos. Ou seja, o governo tentará tomar dos cientistas para entregar aos militares o trabalho que hoje é executado pelo Inpe. Já que não pode controlar a agência de controle, que tal desmontá-la? Tem sido assim em outras áreas do governo.

O presidente em seu desvario disse que o Brasil está de parabéns em sua política ambiental mesmo numa semana em que se acumularam evidências de que está tudo errado, que o crime está avançando e destruindo um bem coletivo. Ontem em Sinop foi a mais um ato de campanha muito antes do seu tempo. Falou com produtores agrícolas do Mato Grosso repetindo a ideia de que as críticas que fazem ao Brasil são de competidores internacionais. Uma sandice porque, ainda que fossem, o mais inteligente seria não lhes dar motivo, até porque estaríamos, antes de tudo, defendendo nossos próprios interesses.

É muito mais que apenas uma briga comercial. Esta semana houve também uma carta de oito embaixadores de países europeus entregue ao governo Bolsonaro. Dizem que está difícil importar alimentos do Brasil por causa do desmatamento. Eles são compradores de produtos brasileiros. Minimizar os alertas, alegando que a Europa importa relativamente pouco do Brasil, é não entender a lógica da economia atual. Os consumidores pressionam as empresas que tomam decisões que nos afetam. O que acontece na Europa certamente se espalhará por outras regiões. Se o projeto é fazer do Brasil um país pária, é por aí mesmo o caminho.

Sob os gritos de “mito”, Bolsonaro entregou títulos de regularização fundiária. A verdade sobre o assunto já escrevi aqui para os leitores. Este governo, no ano passado, distribuiu apenas seis títulos. Nos governos anteriores, a média era de três mil por ano.

O Brasil vive uma tragédia ambiental de enorme dimensão. Há pressões internas e internacionais para que o governo mude sua desastrosa política ambiental. Esta semana os recados foram mais claros. E mais uma vez o governo não deu qualquer motivo para se ter esperança.


Merval Pereira: Nova postura

Fortalecer a “autoridade e a dignidade” do Supremo Tribunal Federal (STF), retirando-o das disputas políticas e mantendo relações com os demais poderes “harmônicas, porém litúrgicas”, parece ser o objetivo central da gestão do ministro Luiz Fux, que tomou posse ontem como presidente do STF.

Essa postura é uma guinada em relação aos últimos anos presididos por Dias Toffoli, que se aproximou excessivamente, na visão de muitos, do Palácio do Planalto e das manobras políticas, na tentativa de protagonizar acordo entre os Três Poderes que resultaram apenas em uma imagem distorcida do Supremo.

Para tanto, Fux definiu que Executivo e Legislativo têm que arcar com as conseqüências políticas das próprias decisões. Em seu discurso de posse, Fux foi enfático ao falar da corrupção, fazendo referência elogiosa à Operação Lava-Jato, que sofre ataques dentro do próprio Supremo:
“Esses corruptos de ontem e de hoje é que são os verdadeiros responsáveis pela ausência de leitos nos hospitais, de saneamento e de saúde para a população carente, pela falta de merenda escolar para as crianças brasileiras”.

A base de sua gestão nos próximos dois anos foi definida num discurso comovido e comovente, em que ficou clara sua alegria de ter chegado ao posto mais alto da carreira jurídica, mas também o desejo firme de não envolver o Supremo em questões que levem a uma “judicialização vulgar e epidêmica”.

Para o novo presidente do STF, é preciso “deferência aos demais Poderes no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e a vigilância na tutela das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Afinal, o mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. Para justificar esta nova postura, o novo presidente do Supremo advertiu em seu discurso que “(…) a intervenção judicial em temas sensíveis deve ser minimalista, respeitando os limites de capacidade institucional dos juízes, e sempre à luz de uma perspectiva contextualista, consequencialista, pragmática, porquanto em determinadas matérias sensíveis, o menos é mais”.

Na sua visão, o Tribunal tem tido “um protagonismo deletério”, muito devido ao excesso de demandas de políticos e governantes: “(…) alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário, instando os juízes a plasmarem provimentos judiciais sobre temas que demandam debate em outras arenas que não o Judiciário”.

Os cinco eixos de sua gestão, alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, definem bem seus objetivos: 1) a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) a garantia da segurança jurídica conducente à otimização do ambiente de negócios no Brasil; 3) o combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos, 4) o incentivo ao acesso à justiça digital, e 5) o fortalecimento da vocação constitucional do Supremo Tribunal Federal.

Falou com especial ênfase no combate à corrupção, “que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país”. Fux afirmou que não admitirá “qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção”, e advertiu: “Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro, como ocorreu no Mensalão e tem ocorrido com a Lava Jato.”

Esclarecimento
O General Richard Nunes, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, manda mensagem esclarecendo que o Exército não gastou nada com o aumento da produção de cloroquina, que já fabricava para outros fins, como tratamento de lúpus e malária.

A encomenda não saiu do orçamento do Exército, que foi ressarcido do gasto extra. Ele lembra que não compete ao Laboratório do Exército analisar se a cloroquina tem ou não efeito sobre a Covid-19, função de outros órgãos.


Rubens Barbosa: Defesa – uma questão de segurança nacional

PND e END respondem aos novos desafios de um mundo em rápida transformação…?

Depois de pouco mais de 30 anos, o mundo volta à era de competição entre superpotências, com o declínio da dominação dos EUA e o crescimento tecnológico, comercial e militar da China. Como evitar que a crise entre os EUA e a China seja transplantada para a América do Sul e interfira no interesse nacional? Como o Brasil deveria tomar posição, em termos de defesa, em seu entorno geográfico e área de influência? Qual seria o papel do Brasil como uma das dez maiores economias do mundo, a quinta em território e a sexta em população? Como enfrentar o déficit de inovação tecnológica em face da rápida obsolescência dos equipamentos militares e dos projetos especiais das três Forças?

Os documentos Política (PND) e Estratégia Nacional de Defesa (END) procuram responder aos desafios percebidos pelo atual governo e mostrar, em linhas gerais, o planejamento das prioridades para a defesa do País. Voltados prioritariamente para ameaças externas, eles estabelecem objetivos para o preparo e o emprego de todas as expressões do poder nacional.

Os objetivos gerais mencionados na PND são: garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial; assegurar a capacidade de defesa para o cumprimento das missões constitucionais das Forças Armadas; promover a autonomia tecnológica e produtiva na área de defesa; preservar a coesão e a unidade nacionais; salvaguardar as pessoas, os bens, os recursos e os interesses nacionais situados no exterior; ampliar o envolvimento da sociedade brasileira nos assuntos de defesa nacional; contribuir para a estabilidade regional e para a paz e a segurança internacionais; incrementar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua inserção em processos decisórios internacionais.

A END, por sua vez, orienta os segmentos do Estado brasileiro quanto às estratégias e medidas que devem ser implementadas para que esses objetivos sejam alcançados. Trata das bases sobre as quais deve estar estruturada a defesa do País, assim como indica as articulações que deverão ser conduzidas, no âmbito de todas as instâncias dos três Poderes, e da interação dos diversos escalões condutores dessas ações com os segmentos não governamentais.

Os documentos apresentados ao Congresso Nacional para exame e deliberação respondem aos novos desafios de um mundo em rápida transformação e à perda de protagonismo no entorno estratégico? É importante ressaltar, de inicio, a dificuldade de examinar essa matéria, pela falta de uma cultura de defesa e pelo fato de os objetivos nacionais carecerem de uma grande estratégia, com visão de médio e longo prazos. Além disso, em tempos de paz, sem ameaça de conflito plausível e iminente, qual deveria ser a atividade principal da Defesa: preparação para operação de combate ou melhoria da logística de defesa para aumentar sua capacidade de dissuasão?

A área de influência do Brasil, como definido na PND, abrange América do Sul, Antártida e Oceano Atlântico até a costa ocidental da África. A referência à integração regional amplia o entorno por incluir a América Central e a América do Norte. Não há referência nos documentos às consequências para o Brasil do fim do Conselho de Defesa, com o desaparecimento da Unasul, nem ao status de aliado estratégico dos EUA extra-Otan, tendo em mente as restrições do Brasil à nova doutrina dessa organização, que ampliou sua atuação para o Atlântico Sul. Nem aos objetivos da designação de oficial-general para o Comando do Sul, com sede em Miami.

As rápidas transformações tecnológicas exigem um esforço para estimular a Base Industrial de Defesa a pesquisar para complementar as aquisições externas. As três áreas ressaltadas na END (cibernética, energia nuclear e espaço) deveriam merecer estímulos, como ocorre nos EUA e na Otan, para que a produção nacional supere as vulnerabilidades cada vez maiores de nossos materiais bélicos e responda aos novos desafios de inteligência artificial. A política de defesa deve nortear a política militar. As políticas de defesa e militar deveriam enquadrar-se dentro de uma política mais ampla: a política externa, que define o lugar do Brasil no mundo.

O documento menciona diversas vezes a criação de uma carreira civil, como a de analista, por exemplo, no Ministério da Defesa, mas até agora não se levou adiante essa política, que iria arejar a discussão hoje restrita ao meio militar das três Forças. Nessa mesma linha, a criação de um Centro de Defesa e Segurança, iniciativa do então ministro Raul Jungmann, anunciada recentemente, deverá trazer contribuição importante para o debate sobre os temas de defesa e de segurança nacional.

Por sua importância, a PND e a END deveriam ser elaboradas por um conselho de alto nível integrado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e por representantes da Câmara dos Deputados, do Senado e do Itamaraty. O resultado deveria ser amplamente debatido pelo Congresso Nacional – ao contrário do que vem ocorrendo desde 1996, quando foram apresentados pela primeira vez – e por think tanks da sociedade civil que examinassem as prioridades para a defesa e os meios para alcançá-las.

*Presidente do IRICE


Bruno Carazza: Não faço mais previsões

Como em tudo o mais, 2020 será imprevisível eleitoralmente

Em 2018 eu passei boa parte da campanha eleitoral argumentando que o fim das doações empresariais e a criação do fundão eleitoral iriam beneficiar os grandes partidos e seus caciques regionais, levando a uma baixa renovação do Congresso. Abertas as urnas, saí com uma lição e um alento. O aprendizado foi que cada eleição tem a sua dinâmica própria, e não é recomendável fazer prognósticos olhando pelo retrovisor. Se algo me serviu de consolo, foi que o oráculo de analistas e cientistas políticos muito mais experientes e gabaritados falhou igualmente - embora não faltem por aí profetas do acontecido que, diante do resultado das urnas, tascam sempre o famoso “eu já sabia”.

Reza a lenda entre políticos e cientistas sociais que as eleições municipais são uma prévia dos pleitos estaduais e federal que ocorrerão dois anos depois. A explicação faz sentido: realizadas no meio dos mandatos do presidente, governadores e congressistas, as escolhas de prefeitos e vereadores funcionam como uma grande pesquisa nacional sobre o desempenho dos mandatários atuais, além de se prestar à construção de plataformas de apoios e articulações locais que serão de grande valia logo à frente.

A partir de segunda-feira (31/8), partidos em todo o país começam a fazer as suas convenções para a escolha dos candidatos. Trata-se do primeiro movimento oficial de um jogo que tem muito a revelar sobre as alavancas e engrenagens da política brasileira atual, com componentes pessoais, institucionais e conjunturais.

Não é que meu palpite para 2018 estivesse totalmente errado. Muitos “donos” de partidos, bem como seus filhos, filhas e esposas conseguiram se eleger. O problema foi a confluência de duas forças que apareceram com potência máxima naquele ano e levaram a uma renovação maior do que eu previa: a indignação popular contra políticos tradicionais, que cobrou seu preço de figurões envolvidos nas investigações da Lava-Jato, e o efeito Bolsonaro, em cuja onda se elegeram dezenas de candidatos novatos e desconhecidos.

Neste ano saberemos a quantas anda o poder desses dois fatores. O efeito midiático das investigações de corrupção, que foi determinante para o desempenho ruim dos maiores partidos da Nova República (MDB, PSDB e PT) em 2018, perdeu muito do seu ímpeto. Por outro lado, o bolsonarismo chega a seu primeiro pleito municipal sem partido - o Aliança pelo Brasil não conseguiu obter as assinaturas necessárias para o seu registro - e sem o elemento surpresa que tanto o ajudou dois anos atrás.

E por falar em Bolsonaro, interessa saber como as redes de transmissão em massa de mensagens pelas redes sociais vão atuar em nível municipal, principalmente depois das ações judiciais e das medidas internas promovidas pelas gigantes de tecnologia sob o pretexto de conter a disseminação de “fake news”.

Outra incógnita diz respeito à conjuntura econômica e social nestes tempos de covid-19. Em que medida a gestão da crise de saúde por parte do presidente, governadores e prefeitos afetará os resultados das urnas? E de que forma os efeitos econômicos gerados pela política de distanciamento social, o alívio dado pelo auxílio-emergencial e as centenas de milhares de mortes vão se relacionar na decisão de voto do eleitor?

Ainda sobre o coronavírus, as eleições deste ano também lançam dúvidas sobre a eficácia das velhas táticas de campanha. Mesmo com a flexibilização gradativa das medidas de isolamento, sem vacina uma parcela considerável da população ainda não se sente segura a aglomerar. Isso afeta bastante o corpo a corpo com eleitores, marcado por comícios, reuniões e visitas. Fazer campanha em tempos de covid será um interessante experimento social.

E já que o assunto é estratégia, não podemos perder de vista o poder de dinheiro nas eleições. Graças ao fundão eleitoral, os campeões de voto em 2018 ficarão com a maior parcela do bolo de R$ 2 bilhões a ser distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral: PT e PSL, cada qual com R$ 200 milhões, estarão bem à frente de MDB (R$ 150 mi), PP e PSD (R$ 140 mi cada), PSDB (R$ 130 mi) e DEM (R$ 120 mi) - para ficar só nos principais agraciados. Transformar dinheiro em votos é a maior missão desses partidos.

Com relação às outras fontes de recursos, temos uma certeza e duas dúvidas. Graças a uma mudança nas regras de financiamento, candidatos somente poderão custear 10% de seus gastos com recursos próprios. Resta saber se isso será suficiente para conter o poderio de candidatos ricos na hora do voto. Aliás, a crise econômica vai limitar o volume de doações de pessoas físicas, de pequenos doadores que doam por vaquinhas virtuais a grandes aportes feitos pelos bilionários donos das maiores empresas brasileiras?
Do ponto de vista institucional, a disputa deste ano traz também uma outra inovação. A proibição de coligações entre partidos para os cargos legislativos deve levar a um número recorde de candidatos a prefeitos e vereadores, causando uma pulverização que tornará a escolha ainda mais difícil para os eleitores.

Por fim, as eleições municipais deste ano serão importantes para aferirmos se haverá crescimento nas urnas de duas forças não partidárias que vêm ganhando importância nos últimos anos e assumiram um importante protagonismo durante o governo Bolsonaro: os “partidos” evangélico e militar. Com ideologia clara, formação de quadros, penetração em diversas legendas e presença disseminada por todo o território nacional, esses dois grupos têm todas as condições para ampliar sua representatividade na política brasileira.

Como não poderia deixar de ser, 2020 será um ano imprevisível também em termos eleitorais. É totalmente incerto como esse conjunto de fatores irá definir o futuro da política brasileira em 2020 e além. Mas eu já aprendi a lição: em eleições, não faço mais previsões.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.