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Geraldo Brindeiro: A Constituição e as provas obtidas por meios ilícitos

Mensagens capturadas em crimes praticados por ‘hackers’ são juridicamente inválidas

A Constituição federal garante a brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade dos direitos e liberdades fundamentais. Dentre tais garantias estão a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, do domicílio, do sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.

O Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência no sentido de que só excepcionalmente, mediante autorização judicial fundamentada, é possível, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, a interceptação de comunicações telefônicas. E a lei define como crime, sujeito a pena de reclusão de dois a quatro anos, e multa, “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”.

A Constituição estabelece que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Provas obtidas mediante violação de garantias constitucionais e por meio de crimes são juridicamente inválidas. Essa norma constitucional é inspirada em precedentes históricos da Suprema Corte dos Estados Unidos relativos à exclusionary rule, fundada na 4.ª Emenda à Constituição americana, que garante “the right to remain free of unreasonable searches and seizures”. E na jurisprudência denominada fruits of the poisonous tree, expressão usada pela primeira vez pelo justice Felix Frankfurter no seu voto no caso Nardone v. United States (1939), para significar que as provas derivadas de atos ilegais (without proper warrant and no probable cause) estão contaminadas na origem, não podem ser usadas no processo. Tal jurisprudência decorre ainda da observância do postulado do due process of law.

As provas autônomas, isto é, obtidas de fontes independentes (independent source doctrine), são juridicamente válidas e podem ser utilizadas no processo. Esse é o entendimento das Supremas Cortes dos Estados Unidos e do Brasil. No julgamento do Recurso de Habeas Corpus n.º 90.376/RJ, observou o eminente relator, ministro Celso de Mello, in verbis: “Se, no entanto, o órgão de persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova – que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal – tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária”.

São também consideradas juridicamente válidas, segundo a jurisprudência de ambas as Supremas Cortes, podendo ser utilizadas no processo as provas obtidas mediante “encontro fortuito”, isto é, por meio de interceptação telefônica licitamente conduzida, porém relativas a terceiros interlocutores não diretamente investigados (inevitable discovery doctrine).

E se a conversa tiver sido gravada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro – por ele próprio ou com a ajuda autorizada de terceiro – não há que falar de interceptação telefônica. Não há interceptação ou captura (seizure) pelo próprio interlocutor relativamente a conversa telefônica por ele realizada, sobretudo quando há investida criminosa do outro contra ele. Não se configura nessas circunstâncias invasão ilegítima de privacidade do outro interlocutor, observado o princípio da proporcionalidade. Provas obtidas na gravação para legítima defesa do interlocutor são juridicamente válidas e podem ser usadas no processo.

Finalmente, nas hipóteses de provas obtidas por meio de interceptações telefônicas ilegais, com a captura de mensagens mediante crimes praticados por hackers, evidentemente tais supostas provas – mesmo se não adulteradas – são juridicamente inválidas e inadmissíveis no processo, conforme a Constituição. Se houve anteriormente condenação criminal com base em provas de crimes obtidas licitamente, e de forma autônoma, comprovando a materialidade e autoria dos crimes, com maior razão as provas ilícitas, além de inválidas juridicamente, se admitidas, seriam absolutamente inúteis.

O Supremo Tribunal Federal deverá examinar em breve questão jurídica análoga no julgamento de habeas corpus impetrado com o intuito de anular sentença penal condenatória por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro praticados por ex-presidente da República. A Procuradoria-Geral da República opinou pela rejeição do pedido, no qual a alegação de suspeição do juiz fora originalmente fundada no fato da aceitação do cargo de ministro da Justiça. Reiterou o parecer diante da pretensão do impetrante de utilizar publicação de conversas telefônicas obtidas ilicitamente por meio de crimes praticados por hackers. E em pronunciamento mais recente concluiu pela inadmissibilidade do habeas corpus por estar solto o réu e não demonstrarem as mensagens conluio ou suspeição, ainda que fossem lícitas e autênticas. O ministro Edson Fachin e a ministra Cármen Lúcia votaram pelo não conhecimento do habeas corpus.

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DOUTOR EM DIREITO POR YALE, PROFESSOR DA UNB, FOI PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA (1995-2003)


Geraldo Brindeiro: A Constituição e a defesa do regime democrático

Os ministros do STF são os guardiães da vontade do povo expressa na Assembleia Constituinte

A Constituição estabelece que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, por intermédio de representantes eleitos ou diretamente. A soberania popular é norma constitucional. E o voto direto, secreto, universal e periódico é cláusula pétrea. Na democracia representativa, contudo, as maiorias são eventuais. Daí a importância da preservação das liberdades e dos direitos fundamentais – não apenas no período eleitoral, mas durante todo o mandato dos eleitos. O eleitorado – sobretudo as novas gerações de eleitores – precisa ter garantida a plenitude das liberdades e do acesso às informações dos governantes para avaliar seu desempenho e votar livremente nas eleições seguintes.

No regime presidencialista – adotado no Brasil desde o início da República, nos moldes do presidencialismo originário dos Estados Unidos da América – a maioria elege o presidente da República e os membros do Congresso Nacional para exercerem o poder durante os respectivos mandatos. Na República e na democracia, portanto, por definição, o poder político é temporário e limitado. Deve ser exercido, durante o mandato eletivo, com o devido respeito à Constituição e às leis do País e observado o princípio da separação dos Poderes – que é também cláusula pétrea, assim como a Federação e os direitos e garantias individuais.

Na célebre obra De l’Esprit des Lois, em 1748, Montesquieu criou a doutrina da separação dos Poderes exatamente para evitar a concentração de poder e preservar as liberdades e os direitos fundamentais. E nos The Federalist Papers, escritos durante o período de realização da Convenção de Filadélfia, que deu origem ao presidencialismo e à Constituição americana de 1787, James Madison foi além e preconizou a adoção do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) para realizar o controle recíproco dos Poderes no exercício de suas funções constitucionais, evitando abusos e excessos do que denominou majority tyranny (Federalist n.º 51). Finalmente, Alexander Hamilton observou ainda que a garantia da supremacia da Constituição é responsabilidade do Poder Judiciário em razão da natureza de suas funções: “… the judiciary, from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution” (Federalist n.º 78).

O Poder Executivo dirige a administração pública (“holds the sword”), o Poder Legislativo controla as finanças do Estado (commands the purse) e prescreve as normas legais (“prescribe the rules”…) e o Poder Judiciário julga de acordo com a Constituição e as leis (“The interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the courts”).

Os ministros do Supremo Tribunal Federal – tal como os justices da Suprema Corte americana – não são eleitos pelo voto popular. São, todavia, os guardiães da vontade do povo expressa na Assembleia Constituinte e formalizada na Constituição. E sua nomeação transcende o mandato do presidente que os nomeou após prévia aprovação do Senado. A vitaliciedade garante sua independência para realizar os julgamentos. A vedação de atividade político-partidária lhes confere isenção e imparcialidade ao interpretar a Constituição e as leis do País, sem estar adstritos às contingências de mandato eletivo, o que assegura a estabilidade jurídica e a promoção do bem comum, e não de interesses de facções políticas.

No livro A Preface to Democratic Theory, Robert Dahl observa que James Madison, ao referir-se ao princípio republicano, preconiza a necessidade de instituição “that will blend stability and liberty” de maneira a assegurar os interesses comuns e permanentes da comunidade (Federalist n.º 63). Alexander Bickel, professor de Yale, na obra The Least Dangerous Branch – The Supreme Court at the Bar of Politics, argumenta que, desde Marbury versus Madison em 1803, quando a Suprema Corte criou o judicial review, esta tem a última palavra sobre a interpretação da Constituição. E observa que a Suprema Corte tem mantido contínuo colóquio com as instituições políticas para alcançar acomodação e compromisso sem abandono de princípio, destacando o caráter contramajoritário do seu papel. Laurence Tribe, professor de Harvard, no livro On Reading the Constitution argumenta que interpretar a Constituição não é reescrevê-la. E a despeito de teorias de interpretação e hermenêutica com alto grau de abstração dos princípios e normas constitucionais, é preciso estabelecer linha divisória entre o que a Constituição diz e o que o intérprete deseja que ela diga, sob pena de violação da vontade do povo manifestada na assembleia constituinte. Alexander Hamilton já observara que não se deve supor que o Judiciário seja superior ao Legislativo, mas sim que o poder do povo expresso na Constituição é superior a ambos.

O governo democrático deve respeitar a liberdade de expressão e de imprensa, admitir críticas e garantir o acesso de todos às informações governamentais. Não há democracia sem liberdade, pluralidade de ideias e de partidos políticos e tolerância recíproca na convivência e na diversidade. E a Constituição estabelece que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. E ao Ministério Público, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.

*Doutor em Direito por Yale, professor da UNB, foi Procurador-Geral da República (1995-2003)