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De mão no seio a homicídio: Mulheres debatem violência política de gênero em evento da FAP

Encontro on-line será realizado na quinta-feira (15/4), com transmissão ao vivo no site e nas redes sociais da fundação

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Assassinato, assédio sexual, ataques com declarações machistas, interrupção de falas em plenário e falta de apoio dos partidos são formas de violência política de gênero contra as quais as mulheres travam árdua batalha no Brasil.

O assunto será debatido, na próxima quinta-feira (15/4), em encontro on-line da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania e sediada em Brasília. O evento será transmitido no portal e nas redes sociais da entidade, das 19h às 20h30 (veja mais detalhes ao final desta reportagem).

Confira o vídeo!



Sobram casos que exemplificam a guerra das mulheres na luta por direitos e respeito. Na última quinta-feira (8/4), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) voltou a fazer publicação machista em suas redes sociais, repetindo polêmicas contra deputadas na mesma linha de seu pai, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

“Portadoras de vagina”

 “Parece, mas não é a gaiola das loucas”, disse Eduardo, em apoio à declaração do deputado Eder Mauro (PSD-PA), feita durante sessão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. “São só as pessoas portadoras de vagina na CCJ sendo levadas a loucuras pelas verdades ditas”, continuou.

O colegiado da Secretaria Nacional de Mulheres do Cidadania, ao qual a FAP é vinculada, luta pela expulsão do deputado estadual de São Paulo Fernando Cury, do mesmo partido.

No dia 1º de abril, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aprovou, por unanimidade, uma resolução que determina a perda temporária do mandato dele, por 180 dias, no processo em que a deputada Isa Penna (PSOL) o acusou de importunação sexual.

Cury foi flagrado por câmeras de segurança, em dezembro de 2020, passando a mão no seio da deputada Isa Penna (PSOL), durante sessão na Alesp.

Três anos depois do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) – socióloga, negra e LGBT –, os assassinos não foram condenados, e o caso ainda é cercado de dúvidas.

Violência contínua

“Mulheres sofrem assédio, ataques, agressões, de maneira geral, ao cumprir função política, tanto durante a campanha quanto durante o mandato”, destacou a educadora e secretária nacional de mulheres do Cidadania, Tereza Vitale.

A especialista em desenvolvimento institucional e conselheira da FAP, Juliet Matos, que também é secretária nacional de mulheres do Cidadania, ressaltou que “o caso de Marielle Franco é emblemático porque acabou em assassinato”.

Além disso, de acordo com Juliet, as declarações machistas de Eduardo Bolsonaro são um ataque direto ao Legislativo e à democracia. “O meio político é reflexo da sociedade. A gente vive numa estrutura patriarcal e machista. Meio político é reflexo dessa violência”, observou.

“As mulheres são eleitas e, às vezes, têm mais votos do que alguns desses homens que não deixam colocar posicionamento. São interrompidas em suas falas. A interrupção é um desrespeito cultural que vem de machismo histórico, que tenta insistir na ideia de que o lugar da mulher é dentro de casa”, afirmou Juliet.

De acordo com Tereza, a violência também começa dentro dos próprios partidos políticos, porque não estimulam a participação das mulheres na política. “Colocam as mulheres [nas disputas eleitorais], prometem mundos e fundos e, depois, largam durante a campanha”, criticou.

Partidos violam cotas

Desde o ano passado, a Emenda Constitucional (EC) nº 97/2017 vedou a celebração de coligações nas eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, assembleias legislativas e câmaras municipais.

Um dos principais reflexos da mudança no ato do pedido de registro de candidaturas à Justiça Eleitoral, especialmente porque, com o fim das coligações, cada partido deverá, individualmente, indicar o mínimo de 30% de mulheres filiadas para concorrer no pleito.

Nas últimas eleições, porém, os partidos brasileiros violaram a obrigação legal de destinar 5% da verba que recebem do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, conhecido como Fundo Partidário, em programas que estimulem a presença de mulheres na política, de acordo com levantamento publicado pelo Estadão.

A regra foi desrespeitada em 67% das ocasiões, considerando quatro exercícios financeiros já julgados de 32 agremiações. Apenas os nanicos Democracia Cristã (antigo PSDC) e PSTU respeitaram a regra nos anos considerados.

Gravidade a ser combatida

Conselheira da FAP, gestora pública e ativista social, Raquel Dias afirmou que o mundo passa pelo desafio de se perceber com sua diversidade. “No Brasil, uma das grandes lutas pelo desenvolvimento social é a participação de mais mulheres em espaços decisórios de poder”, ressaltou.

De acordo com Raquel, a persistência da violência política de gênero é um grave fator a ser combatido. “A FAP dá um passo fundamental promovendo esse debate para nortear estratégias e caminhos que nos levem a enfrentar mais essa violência diária”, disse.

Confira, abaixo, a relação das participantes do evento online da FAP:

Tereza Vitalle: educadora, editora, secretária nacional de mulheres do Cidadania e se diz uma aprendiz do feminismo. Suas lutas centram-se na violência contra as mulheres e por mais mulheres na política;

Juliet Matos: acadêmica de gestão Pública, secretária nacional de mulheres do Cidadania, coordenadora regional do Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos Políticos e conselheira da FAP;

Pollyana Gama: pedagoga, escritora, ex-vereadora, ex-deputada federal e mestre em desenvolvimento humano. É especialista em neurociência pelo Instituto Albert Einstein, educação sistêmica pelo Idesv e liderança para primeira infância pelo Insper & Center on the Developing Child Harvard University.

Teresa Sacchet: professora do Programa de Pós-graduação do Núcleo de Estudos Multidisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (UFBA);

Michelle Ferreti: mestre em Ciências Sociais e administradora pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Atua há mais de 20 anos em temas ligados a políticas públicas, direitos humanos e desenvolvimento sustentável.  É uma das co-fundadoras e diretoras do Instituto Alziras, uma organização sem fins lucrativos comprometida em ampliar e fortalecer a presença de mulheres em toda sua diversidade na política brasileira

SERVIÇO
Evento: Violência Política de Gênero
Horário de transmissão: das 19h às 20h30
Onde assistir:
Site da FAP: www.fundacaoastrojildo.com.br
Facebook: https://www.facebook.com/facefap
Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCg6pgx07PmKFCNLK5K1HubA
Após o evento, o vídeo fica disponível nesses canais.

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Neca Setúbal: Brasil entra em 2021 com desafio urgente de diminuir desigualdades

Questões de raça e gênero, educação, saúde, meio ambiente e democracia são temas essenciais no país

Um dos principais desafios, entre os vários que o Brasil precisa enfrentar em 2021, são as suas desigualdades. Todos os dias elas impedem que a maior parte da nossa população, estimada hoje em mais de 211,7 milhões, tenha seus direitos assegurados e viva com dignidade e qualidade de vida.

Nossas desigualdades derivam em parte do racismo estrutural e da desigualdade de gênero, bem como da disparidade de renda e de acesso à educação e saúde de qualidade, que são temas que devem pautar o país com prioridade no próximo ano. Existe, por exemplo, uma interseccionalidade perversa entre raça e gênero que faz com que milhares de mulheres negras brasileiras fiquem à margem da sociedade, muitas delas líderes de família nas periferias urbanas, com pouca escolaridade, baixos salários e vivendo em situação vulnerável, vítimas de inúmeras violências. Para piorar, em 2020, a pandemia de coronavírus agravou ainda mais a dura realidade de quem já vive as desigualdades.

Primeiramente, todas essas urgências demandam que saíamos do discurso individual, da simples conscientização sobre o problema, e partamos para ações concretas no espaço público. Ou seja, é importante ser antirracista e antissexista num nível individual e desejar mais saúde e educação, mas isso só não basta. Dada a gravidade dos problemas, são necessárias ações —e ações no espaço comum—, sejam de cidadãos, governos de diferentes instâncias, empresas, organizações da sociedade, universidades, entre outros.

Neste ano, grandes corporações mostraram que é possível agir com intencionalidade para colocar negros e negras em cargos de chefia e o voto popular e democrático os elegeu para cadeiras em várias Câmaras Municipais. Mas é preciso mais: “É o momento de mover estruturas que foram criadas por pessoas brancas e de reestruturar o pacto social no qual vivemos. Para a mudança estrutural, é hora dos mais privilegiados cederem parte dos seus privilégios”, afirmou Thiago de Souza Amparo, professor da FGV Direito SP, no 11º Congresso GIFE, Fronteiras da Ação Coletiva, em novembro.

E, como nos alerta o filósofo camaronês Achille Mbembe, trata-se de “sair de si mesmo, tecer relações onde cada um é participante da sociedade e do universo”. Ou como convida o escritor moçambicano Mia Couto: “abrir as janelas para o mundo na chegada do novo para que fique impregnado de luzes, ruídos e sombras. É assim o nascer do tempo: apenas a vida nos defende do viver”. Significa, portanto, colocar-se na realidade e corresponsabilizar-se por ela, com ações para melhorá-la. Ou, como mostra a série de vídeos Enfrente, no canal do Youtube de mesmo nome, em que a Fundação Tide Setubal traz histórias de quem lidera transformações nas periferias, é preciso: “tecer a rede, furar a bolha, responsabilizar-se pelo outro. Criar ações para poder ser, em conjunto. A história é de cada um, o movimento é do todo”.

A área da Educação, brutalmente golpeada pela pandemia, segue como um desafio fundamental e estruturante no país. Em 2020, o coronavírus obrigou milhões de estudantes a terem aulas remotas, longe dos professores e colegas, e a enfrentarem a falta de internet, o que aumenta as desigualdades de aprendizado, uma vez que só uma parcela da população possui conexão adequada para acompanhar o ensino remoto. Não é possível falar de ensino híbrido para o próximo ano enquanto essa questão tecnológica não for uma pauta prioritária dos governos, ao lado das empresas de telecomunicações. Municípios pobres não conseguirão distribuir chips nem no curto prazo. Isso pode até ocorrer em grandes centros como São Paulo, mas não em localidades pequenas.

distanciamento social e a irregularidade nos estudos devido à falta de internet são muito preocupantes porque podem elevar os já altos índices de evasão escolar, sobretudo no ensino fundamental 2 e no ensino médio e em regiões periféricas, o que afasta mais ainda o Brasil dos países membro da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) em qualidade da Educação. Por isso, são necessárias agora políticas específicas de reforço e de recuperação escolar e uma especial atenção no acolhimento a professores, crianças e jovens na volta à escola porque a saúde emocional é algo fundamental neste momento.

Diante desse cenário, todos os profissionais da educação, tais quais médicos e enfermeiros, devem ser considerados como de atividades essenciais e serem vacinados contra a covid-19, com prioridade, para que ocorra uma retomada segura e cuidadosa das aulas presenciais no início de 2021, com condições adequadas que não representem riscos à comunidade escolar.

Além disso, o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) expira em 2020 e o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), em 2021, quando acabam suas metas. São dois mecanismos fundamentais para a melhoria da educação, que podem diminuir desigualdades. Se o novo Fundeb, recém-aprovado, já foi reconfigurado num bom formato, em que municípios mais pobres vão poder receber recursos, mesmo estando em estados ricos, reduzindo-se assim desigualdades regionais, o novo Ideb, se quiser avançar e aprimorar a educação básica, não deve focar apenas nas desigualdades de forma geral, isto é, nos alunos abaixo do nível adequado, mas adicionar a questão racial.

Uma equação muito simples do professor Mauricio Ernica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) ilustra de forma objetiva como os negros continuarão tendo a pior aprendizagem no país, se a questão racial for deixada de lado no Ideb. Supondo-se que, em determinada localidade, existam mil alunos no nível adequado, sendo que 500 são brancos e 500 são negros, e consegue-se melhorar a aprendizagem de 500 deles, colocando-os acima do adequado. Se 400 forem brancos e 100 negros, isso significa que a maioria dos negros ainda continua em um nível inferior. Ou seja, sem medir avanços por raça, o Ideb pode continuar a reproduzir nosso racismo por mais anos.

Em paralelo, a pauta do meio ambiente é também um desafio fundamental porque interliga o Brasil ao resto do planeta, tamanha a relevância das mudanças climáticas no globo. Ao mesmo tempo, é urgente proteger os povos indígenas e a rica biodiversidade da Amazônia e de outros biomas, como o Pantanal, vítima de inúmeros incêndios neste ano. Outra iniciativa necessária reside na mitigação dos efeitos do clima nas grandes cidades, que ocasionam enchentes e desastres, os quais atingem e prejudicam principalmente as populações mais vulneráveis, que vivem em condições insalubres, sem saneamento básico —um tema fundamental, dado que quase metade dos brasileiros ainda não possui esgotamento sanitário em pleno século 21.

Por trás de tudo isso, reside algo essencial a todos os avanços de que o Brasil precisa no próximo ano: a democracia. A pandemia mostrou o quanto as instituições democráticas foram importantes para garantir dignidade aos brasileiros mais desassistidos, como no caso da renda emergencial, proposta pelo Congresso Nacional —que, na verdade, poderia e deveria se tornar perene, uma “renda cidadã”, como já provam matematicamente muitos economistas. Por isso, mais do que nunca, em 2021, durante a recuperação dos terríveis efeitos da covid-19 na vida da população, os brasileiros precisam contar com o pleno funcionamento das instituições democráticas.

Ao mesmo tempo, a sociedade civil se conscientizou e se mobilizou durante este ano, de uma maneira poucas vezes vista, trazendo para si muita responsabilidade e demonstrando solidariedade, e no campo das instituições filantrópicas, como fundações e institutos, aumentaram significativamente as doações, inclusive de forma conjunta e colaborativa. Esse comportamento valoroso precisa ser de longo prazo, não só emergencial e pontual, para que ocorra um combate às desigualdades mais duradouro, estruturante e interligado às políticas públicas, mas sem a perda da autoria e do protagonismo da sociedade, que sempre deve cobrar os governantes. Organizações da sociedade podem realizar novas iniciativas junto com o governo, levando modelos, de pesquisas e de avaliação de projetos de grande escala, para subsidiar e aprimorar as políticas públicas, porém sem perderem seu lugar importante de crítica, pressão e advocacy.

Num Brasil contemporâneo perpassado por tantas polarizações, disputas maniqueístas de ideias e narrativas e saídas individuais, um desafio que se impõe é o da escuta ativa e do diálogo franco. Parece que tem sido cada vez mais difícil nos escutarmos uns aos outros, aprendermos com pontos de vista distintos dos nossos, sem fazermos generalizações e julgamentos, e chegarmos a novos consensos, o que de fato pode gerar mais avanços coletivos. Recentemente, fazendo releituras de Paulo Freire à luz do momento atual, revi como ele já propunha construirmos conhecimento a partir da experiência própria de vida de cada um e da experiência de outros — como os lavradores pernambucanos que ele atentamente escutava.

Isso me fez relembrar de como teóricos africanos e negros também valorizam a escuta e a oralidade e de como jovens pretos e pardos relatam o quanto aprenderam e aprendem em conversas memoráveis com suas avós e bisavós, que sobreviveram num Brasil excludente e racista, pois acredito que somos a soma de encontros que vamos criando ao longo da vida e, como afirma Cris Bartis, cocriadora do podcast Mamilos, existe uma “importância de deixar acontecerem rachaduras nas nossas certezas para que infiltrações possam entrar”. Assim, mais do que um desafio, nutro um forte desejo de que possamos dialogar mais em 2021 para forjarmos um Brasil mais inclusivo, justo, equitativo e democrático, onde todos, e não só uma minoria, tenham a oportunidade efetiva de se desenvolver e prosperar, voltando a ter esperanças no nosso país, tão potente e diverso.

Neca Setubal é doutora em psicologia da educação (PUC-SP), mestre em ciências políticas e socióloga (USP), educadora, presidente dos conselhos da Fundação Tide Setubal e do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) e fundadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).


El País: Na cidade com mais feminicídios no Brasil, 89% das vítimas são pretas e pardas

A Agência Pública foi até Ananindeua, no Pará, onde se registrou o maior índice do país em 2015

A sala está quente, abafada. O pequeno ventilador que gira no canto da mesa não dá conta de vencer os quase 40ºC que o termômetro marcava naquele começo de tarde no Pará. Os minutos de silêncio, timidez e hesitação precedem o peso dos depoimentos que viriam a seguir. Cada mulher sentada naquela roda sabe que não será fácil reconstituir as lembranças da violência sofrida durante anos. Algumas delas ainda vivem com seus agressores.

Elas estão reunidas na sede do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cram) em Ananindeua, cidade da zona metropolitana de Belém. São mulheres diversas em idade, raça, classe e história, todas atendidas pelo serviço. Apesar das diferenças, todas têm algo em comum: o fato de estarem vivas para contar o que viveram significa que venceram as estatísticas.

A cidade que mata mais mulheres

Pública mergulhou nos registros do Ministério da Saúde para encontrar a cidade brasileira com mais mortes violentas de mulheres e a evolução desse número em dez anos (de 2005 a 2015 – último ano com dados disponíveis no sistema). Essa categoria inclui mortes por violência por diversos meios, como sufocamento, arma de fogo, objetos cortantes ou mesmo agressões sexuais*. Nesse recorte, Ananindeua foi o município com a maior taxa de morte de mulheres em 2015, com 21,9 homicídios para cada 100 mil. A segunda colocada, Camaçari, na Bahia, teve uma taxa de 13. A escalada da taxa de mortes de mulheres em Ananindeua ao longo dos anos também chama atenção: em 2005, foram apenas três mortes por agressões por 100 mil mulheres na cidade paraense – aumento de 730% em uma década.

Ananindeua aparece também entre as cidades com as maiores taxas de homicídio da América Latina e Caribe, segundo o Observatório de Homicídios. No último Mapa da Violência, que traz os homicídios por armas de fogo no país, de 2012 a 2014, ela fica em sétimo lugar no ranking.

Mortes a cada 100 mil habitantes mulheres. Fonte: DataSUS
Mortes a cada 100 mil habitantes mulheres. Fonte: DataSUS

Para obter mais detalhes do contexto em que essas mulheres foram mortas, a Pública pediu à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), via Lei de Acesso à Informação (LAI), os Boletins de Ocorrência (B.O.) de mortes de pessoas do sexo feminino em 2015 nos municípios de Belém e Ananindeua, decorrentes de agressões externas. O pedido especificava que, caso o nome das vítimas e dos agressores estivessem protegidos pelos excludentes das informações pessoais da LAI, poderiam vir tarjados no material a ser enviado. Ainda assim não obtivemos o acesso.

Segundo a pesquisa no DataSus, em 2015 morreram em Ananindeua 40 mulheres por armas de fogo, 12 por objetos cortantes, três por força corporal e uma por sufocamento. O recorte de raça também salta aos olhos: em dez anos, das 343 mulheres assassinadas, 306 eram pardas e negras e 35, brancas.

Perfil racial das mortes em Ananindeua. Fonte: DataSUS
Perfil racial das mortes em Ananindeua. Fonte: DataSUS

Com cerca de meio milhão de habitantes, Ananindeua é apontada também como a cidade com pior saneamento básico do país, entre outros maus indicadores sociais que se associam em um quadro de violação de direitos humanos, como explica Luanna Tomaz, professora da Ufpa e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Mulher e Relações de Gênero Eneida de Moraes (Gepem-Ufpa). “É uma cidade que fica ao lado da capital [Belém], que cresceu de forma desordenada, que tem muitas áreas pobres, precárias em termos de saneamento básico e urbanização. Grande parte das pessoas trabalha em Belém e só volta para dormir na cidade, que tem a BR passando no centro e várias regiões distantes, de periferia. Tem muitos problemas estruturais, e esse conjunto de fatores pode ser um dos indicadores para esses altos números de violência.”

Nesse cenário de violência generalizada, a violência entre quatro paredes é a principal responsável pelas agressões contra as mulheres, de acordo com a defensora pública de Ananindeua Luciana Guedes: “A grande maioria das mortes de mulheres aqui é resultado da violência doméstica. São cometidas dentro do núcleo familiar. Nós observamos isso não só pelas mulheres que chegam pedindo ajuda como nos casos em que a Defensoria atende os homens nesses crimes. Nós tivemos recentemente em Ananindeua a primeira condenação de feminícidio do Pará [cometido em 2015], e isso é bem simbólico”, afirma. E acrescenta: “Ananindeua é um município muito, muito pobre. A educação é muito ruim, a saúde é muito ruim, e, na minha opinião, a falta de políticas públicas ainda é o grande vilão da história. Isso se reflete nos nossos atendimentos aqui na Defensoria. Na área criminal, o volume de atendidos é muito grande e a solução não é só colocar PM na rua. É um ciclo de violência que não vai se quebrar enquanto faltar vontade política do Estado e da prefeitura [ambos do PSDB]”.

Luciana planeja montar um núcleo de atendimento especializado na Defensoria para dar conta da demanda espontânea: “Nós atendemos um grande número de mulheres que chegam todos os dias, às vezes com o B.O. que fizeram na Delegacia da Mulher em Belém, às vezes depois de serem mal atendidas em delegacias comuns na cidade e às vezes sem nada, só porque não sabem aonde ir.”

A fragilidade da rede de proteção apontada pela defensora aparece de forma recorrente na fala das mulheres vítimas de violência com quem conversamos para a reportagem.

A Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) mais próxima fica no centro de Belém, a cerca de 50 minutos de ônibus de Ananindeua, o que dificulta a denúncia – muitas mulheres disseram não ter o dinheiro do transporte ou com quem deixar os filhos, além de perder o dia de trabalho na viagem – e sobrecarrega a própria delegacia, conforme a delegada Janice Maia: “A Deam Belém foi feita para atender a zona metropolitana. A gente atende Belém e as cidades próximas como Ananindeua, Marituba etc. São muitas vítimas e a gente acaba não dando conta de atender todos. Ananindeua é uma cidade enorme, tem muitos habitantes, depois de Belém é de onde recebemos mais mulheres. É necessária uma Deam local, e ela já está sendo pensada. Existem muitas delegacias na cidade e teoricamente todas podem fazer o atendimento, mas a vítima prefere vir para cá porque aqui damos um atendimento mais especializado”.

Delegacia da mulher de Belém, no prédio do Propaz Mulher
Delegacia da mulher de Belém, no prédio do Propaz Mulher KLEYTON SILVA

A delegada explica que a aplicação da medida protetiva, que nos casos de Belém sai em 24 horas, assim como as providências quando ela é descumprida pelo agressor são mais difíceis em Ananindeua por causa da distância entre as duas cidades: “Em Belém, nós temos a facilidade de ter tudo aqui no mesmo prédio, mas nos outros municípios não. A medida protetiva tem que ir fisicamente para lá. O policial tem que sair daqui, atravessar a cidade e entregar na vara de lá. Se a mulher narrar uma quebra de medida, é mais fácil quando é de Belém porque a gente já fala com o Judiciário, pergunta se ele foi notificado, se não foi… Para os outros municípios, tem que ter esse deslocamento, tem que enfrentar o trânsito. Já dificulta nosso trabalho. É preciso mais veículos, mais policiais”.

Na prática, isso significa que uma moradora de Ananindeua que tenha sofrido qualquer tipo de violência ou ameaça de morte e não queira ser atendida por policiais homens em delegacia comum – ou que tenha sido mal atendida em uma – precisa se deslocar em uma viagem de cerca de uma hora até o centro de Belém, encarar uma fila, fazer o B.O. e voltar para casa para esperar pela medida protetiva (se for atendida no mesmo dia). Caso o agressor descumpra a medida – e a mulher continue viva –, ela deverá voltar a Belém (novamente caso não queira ou não possa ser atendida em uma delegacia comum) e avisar as autoridades competentes para que sejam tomadas providências.

Na cidade com mais feminicídios no Brasil, 89% das vítimas são pretas e pardas

“Quando eu cheguei sozinha na delegacia em Ananindeua, ninguém me deu atenção. Nem as próprias mulheres me deram atenção. Eu pensei: ‘O que eu tô fazendo aqui se nada vai ser feito?’. A escrivã pergunta: ‘Ele bateu? Como bateu? Tem marca?’. Pega no seu braço assim: ‘Ah só isso? Isso aqui? A senhora tem certeza que quer denunciar? Não quer tomar uma água?’. Isso faz a gente entender o quê? Que é perda de tempo estar ali. Pra muitas mulheres que voltam pra suas casas, que não denunciam, é justamente por isso. Porque elas se deparam logo com essa barreira. Eu não tenho família, não tinha pra quem pedir ajuda. As mulheres voltam pra casa e são agredidas novamente e novamente. Por isso hoje muitas mulheres falam: ‘Nem vou denunciar porque não vai dar em nada mesmo’. A mulher acaba que desiste”, diz A**, que durante alguns anos sofreu agressões físicas e chegou a ser mantida em cárcere privado pelo companheiro, na roda de conversa no Cram (sua história completa está em uma das animações abaixo).

As outras acenam com a cabeça, concordando. R., que ainda mora com o marido agressor, diz: “Eu prefiro sumir, sair de casa quando ele tá violento. Nesse feriado de abril que teve, eu apanhei muito. Aí eu fui na delegacia do bairro fazer um B.O. e eles me disseram que só poderiam me atender no horário comercial, de 8h ao meio-dia e das 14h até as 17h. Eu só poderia voltar quatro dias depois. Fui em outra delegacia e também não me atenderam. Eles não dão continuidade. Eu não tenho condição de ir até Belém pra voltar com um papel. Vai ser pior. Aí eu acho melhor eu sumir mesmo, saio um pouco de casa e, quando ele se acalma, eu volto. Já tive minha cara quebrada, meu nariz quebrado, pedaço da orelha arrancado. Tenho marca, mordida, sofri violência moral, sexual”. Ela diz que ainda não deixou a casa porque não tem família nem renda suficiente para sustentar a si e ao filho com necessidades especiais. Também não conseguiu que o marido saísse da casa. Então vai convivendo com a violência.

“É muito difícil para as mulheres quebrarem o ciclo de violência”, diz a coordenadora do Cram, Rosana Moraes. “Porque eles agridem, pedem perdão, ficam bons por um tempo e depois começam tudo de novo. Muitas vezes acabam com a autoestima delas, as agressões são psicológicas e patrimoniais também. Por isso é tão importante que essas mulheres sejam acolhidas de forma correta por toda a rede de enfrentamento à violência, para que se sintam fortes para sair dela.”

A jornalista e ativista da Rede de Mulheres Negras do Pará Flávia Ribeiro, que também mora em Ananindeua (veja entrevista com ela no fim da página), conta que já acompanhou uma mulher à Deam de Belém e que a demanda dela não foi atendida nem lá nem em qualquer outra instância do Estado: “Ela estava sendo ameaçada de morte pelo vizinho. Foi na delegacia e eles recomendaram que ela se afastasse de casa. Mais um papelzinho com o Boletim de Ocorrência. Ela não falou com nenhuma assistente social. A mulher chegou lá e teve que recontar essa história um milhão de vezes. Depois disso esse vizinho entrou de novo na casa dela, bateu, quase matou. Ela levou uma facada no rosto e teria que fazer várias cirurgias para recriar os nervos. Levou facada no pescoço, na mão. Consegui uma advogada em um grupo feminista, consegui uma audiência para ela em um órgão público e, quando ela chegou lá, novamente não foi atendida. Nem medida protetiva conseguiu. Ela se mudou. A casa que ela construiu e em que morava há não sei quantas décadas teve que deixar. E os vizinhos estão lá”.

Falta estrutura para proteger as mulheres de Ananindeua

A Delegacia da Mulher em Belém divide espaço – em um prédio novo e bonito – com a Polícia Militar, assistência social e psicológica, atendimento médico, perícia, Ministério Público e Tribunal de Justiça, em um projeto chamado Pro Paz Integrado Mulher. Segundo a coordenadora do serviço, Raquel Cunha, em 2015 a unidade atendeu 706 mulheres apenas de Ananindeua. Por lá, segundo ela, as mulheres recebem atendimento social e psicológico e, apesar da alta procura, ninguém volta para casa sem atendimento.

Inaugurado em 2014 pelo governo do estado, existem atualmente seis unidades do programa no Pará, com orçamento anual previsto de R$ 564 mil para Belém e cerca de R$ 30 mil para as outras unidades – pouco mais de R$ 2.500 mensais. A Pública pediu informações sobre outras fontes de renda dos centros integrados, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

As mulheres com quem conversamos que precisaram do serviço dizem que a fila é grande em Belém e que elas voltaram várias vezes até conseguir atendimento. Uma delas, que não quis se identificar, disse que, quando tomou coragem para procurar ajuda, foi até o prédio do Pro Paz e esperou das nove da manhã às seis da tarde, até que desistiu e voltou para casa.

Segundo a Segup, a Deam de Ananindeua deve começar a funcionar nos primeiros meses de 2018, e, enquanto isso não acontece, a Polícia Civil pôs em prática o projeto “Mulher respeitada é mulher empoderada”, que leva delegacia móvel aos bairros da cidade duas vezes por mês, registrando Boletins de Ocorrência, pedidos de medidas protetivas e instauração de inquéritos policiais. “Ademais, tal projeto conta também com a Ação Cidadania, que realiza atendimento com assistentes sociais, atendimento jurídico, testes rápidos de saúde e serviços de embelezamento como corte de cabelo, limpeza de pele, manicure e pedicure, maquiagem, entre outros”, afirma a diretora de Atendimento a Grupos vulneráveis, Aline Boaventura.

O Cram, que também é um serviço do Estado, tem sido uma peça de resistência e talvez a única referência no enfrentamento da violência contra a mulher em Ananindeua. Mas as profissionais reclamam da falta de recursos e do descaso do poder público: “A coisa está cada vez pior. Nós estamos há três anos aqui e não há uma placa de identificação na porta. Nós pedimos um banner que fosse, e até hoje não conseguimos. A justificativa para a falta de recursos é sempre a crise, a crise. O Cram existe desde 2010 e essa crise existe desde essa época para nós”, diz a pedagoga Rita Viegas. “Somos quatro aqui: duas assistentes sociais, eu e a psicóloga, que adoeceu e não veio ninguém para substituir. Antes nós tínhamos um carro para atender às demandas, mas faz três anos que ele foi para o conserto e nunca mais voltou. Esse ventilador eu trouxe de casa porque a gente não estava aguentando o calor aqui dentro.” A assistente social Kellen Santos continua: “A gente queria ver o reconhecimento ao nosso trabalho, ter um local adequado para trabalhar, com infraestrutura. Estamos com essa falta da psicóloga, que para nós é muito difícil. A gestão fala que está tudo muito bem, que o Pro Paz é maravilhoso, mas aqui não tem o Pro Paz e o Cram está esquecido. Temos essas rodas de conversa mensalmente e, se a gente quer um bolo, uma água, um café para servir para as mulheres, a gente tem que tirar do bolso”. Kellen termina com uma frase que ouviríamos outras vezes e ficaria marcada como um grande fator para o alto número de mortes de mulheres em Ananindeua: “É como se a gente aqui não existisse”

*Nota sobre metodologia da pesquisa:

Para chegar à situação de Ananindeua, levantamos no DataSUS todas ocorrências de mortes de pessoas dos sexo feminino causadas por agressões em todos os municípios brasileiros de 2005 a 2015 (último ano com dados disponíveis no sistema). Em seguida, comparamos o número de mortes com a população feminina do município no ano correspondente, segundo dados do IBGE de população residente. A partir daí, alcançamos o valor da taxa de morte de mulheres por agressões, que é baseada no número de ocorrências a cada 100 mil residentes do sexo feminino. Excluímos do ranking final cidades com menos de 100 mil habitantes, visto que nelas pequenas variações no número de mortes de mulheres produziam uma alteração distorcida na taxa de mortalidade. Nesse recorte, Ananindeua foi o município com mais de 100 mil habitantes com a maior taxa de morte de mulheres por agressões em 2015, último ano do levantamento.

**Os nomes das mulheres vítimas de agressão entrevistadas nesta reportagem foram abreviados para preservar suas identidades

Colaborou Martha Jares

"O PODER PÚBLICO SÓ NOS VÊ QUANDO VIRAMOS ESTATÍSTICA"

A jornalista e ativista Flávia Ribeiro
A jornalista e ativista Flávia Ribeiro KLEYTON SILVA

A jornalista e ativista Flávia Ribeiro mora em uma das áreas consideradas mais violentas de Ananindeua, o Distrito Industrial. Ela também acompanha de perto a questão da violência de gênero, especialmente da mulher negra, como integrante da Rede de Mulheres Negras do Pará, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e da Rede de Ciberativistas Negras. Em conversa com a Pública, ela dá sua interpretação do dado sobre o alto número de mortes de mulheres em sua cidade: “O poder público não está nos vendo. Ele só vê a gente quando a gente tomba. Aí a gente vira estatística”.

P: O que diz para você esse dado que mostra Ananindeua como a cidade com mais mortes violentas de mulheres do Brasil?

R: Eu acho assustador. Mas, embora seja assustador, não é incrível no sentido de “não acredito”. A gente sabe que a violência lá [a entrevista aconteceu em Belém] é muito grande. Eu moro em uma área periférica que é o Distrito Industrial, uma das áreas mais violentas da cidade. Eu moro em um conjunto e a maioria trabalha e estuda, mas lá a gente convive com áreas de invasão, tenho vizinho traficante, outro que é policial, uma boca… A gente convive com todo mundo, mas sente a violência. E, no meu trabalho com o movimento negro, a gente sabe que nem todas as mortes são publicadas. Tem muitas mortes que acontecem por lá e ninguém fica sabendo. Não sei nem se entra para o número, para essa estatística. Esse dado é perfeitamente crível.

P: E o que você acha que está acontecendo?

R: Um total abandono por parte do poder público. Não só a respeito da política de mulheres, que é praticamente inexistente. Pode até ter alguma coisa no papel, mas, andando por lá, a gente sabe que não tem nada.

P: Em Ananindeua não tem quase nada da rede de proteção à mulher, né?

R: Olha, acho que no Pará. A gente não sente a presença do Estado. A gente acabou de fazer a Marcha das Mulheres Negras aqui em Belém e, antes disso, a gente fez uma campanha que era de 75 dias de ativismo contra o racismo. As pessoas perguntavam: “Mas por que vocês estão fazendo isso?”. Porque a gente está morrendo. Cada pessoa negra que você está vendo aqui é um desafio à estatística. A mulher negra é a que mais morre de violência obstétrica; a criança negra é a que mais morre; aumentou em 54% o número de mortes da mulher negra; e tem um genocídio do homem negro acontecendo. Toda vez eu digo em palestras que a gente tem que se organizar porque o poder público não está nos vendo. Ele só vê a gente quando a gente tomba. Aí a gente vira estatística. Política pública não nos contempla – tanto é que a [Lei] Maria da Penha não nos contemplou. Se não for voltado para a população negra especificamente, não vai nos contemplar. Política universal não nos contempla. Um dia desses, eu vi uma entrevista com um policial militar que dizia “tem que fazer Boletim de Ocorrência”, mas as pessoas não fazem porque não acreditam. Várias amigas acham que podem ser agredidas pela polícia. Elas acham que podem ser destratadas, desconsideradas. E vai fazer o que com o papel? Só formar dado de novo? O que eu vou fazer lá?

P: Estivemos no Propaz e na Delegacia da Mulher de Belém e nos disseram que, apesar da grande demanda, tudo está funcionando, que as mulheres de Ananindeua são atendidas, que ninguém volta para casa sem atendimento.

R: Vou te contar só um caso. A Artemis [organização que atua com a promoção da autonomia feminina e prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres] recebeu uma denúncia de uma moça de Marituba que foi estuprada pelo vizinho e foi procurar a Deam. Ela estava sendo ameaçada de morte pelo vizinho. Ele tinha uns 18 anos e ela uns 37. Ele estava ameaçando ela e as filhas. Ela foi na Deam e eles recomendaram que ela se afastasse de casa. Mais um papelzinho com o Boletim de Ocorrência. Ela não falou com nenhuma assistente social. A mulher chegou lá e teve que recontar essa história um milhão de vezes. A escrivã estava conversando e entrou alguém para perguntar se ela queria merendar. Aí ela teve que parar aquela história de violência porque a escrivã estava com fome, ou não; alguém só foi oferecer. Depois disso, esse vizinho entrou de novo na casa dela, bateu, quase matou, ela levou uma facada no rosto e teria que fazer várias cirurgias para recriar os nervos. Levou facada no pescoço, na mão. E essa moça não falava com a gente. Quem falava com a gente era a patroa dela. Porque ela trabalhava num motel de segunda a sexta e, nos fins de semana, dava diária na casa dos donos do motel. Então ela trabalhava todos os dias. Ela não tinha celular e não queria falar sobre isso. Então, era o tempo todo a gente falando com a patroa sobre a situação dela. Até que chegou um momento em que eu disse: “Olha, não admito que ela desista”. Consegui uma advogada em um grupo feminista, consegui uma audiência para ela em um órgão público. Demorou um tempo para ela ser atendida e, quando ela chegou com a patroa, disseram que não se enquadrava nos atendimentos e ela não foi atendida. E nem medida protetiva conseguiu. Ela se mudou. A casa que ela construiu e em que morava há não sei quantas décadas, teve que deixar. E os vizinhos estão lá. Esse é o atendimento que ela teve na Deam. Eu também já fui lá segurar a mão de uma preta que tinha sido agredida pelo namorado e eles mal olham para as mulheres. Primeiro que chega lá e a gente tem que lidar com policiais militares homens. Eu entendo que é uma questão de segurança. Mas eu também entendo que a gente tem que ter outro meio de atender essa mulher. E nesse caso dessa moça, que era estudante universitária, veio do interior e não tinha família, ela queria a medida protetiva. É um prédio lindo pintado de rosa, lilás, mas é um elefante branco. A medida protetiva da minha amiga não tinha saído uma semana depois e só saiu porque a gente insistiu, voltou, foi atrás.

A gente fez um protesto no dia 8 de março de 2015 lá na frente contra o mau atendimento na Deam e se formou um grupo, e a delegada abriu a possibilidade de se falar sobre raça.

P: As mulheres que sofrem agressão em Ananindeua vão para a Delegacia da Mulher de Belém?

R: Algumas vão até as delegacias de bairro porque não foram bem atendidas na Deam. Conheço alguns casos. Inclusive casos em que as mulheres foram melhor atendidas nessas delegacias de bairro. Já tive conversas com delegadas que não admitem recorte de raça, por exemplo. Elas não admitem que é inconsciente, não é “você é preta não vou lhe atender”. Ela [profissional] olha para a mulher e pensa: “Ela já deve ter um monte de filhos, já deve estar acostumada, aguenta mais. Dá licença”.

P: A delegada da Deam disse que esse alto número de mortes de mulheres pode estar relacionado ao tráfico de drogas em Ananindeua. Mulheres de traficantes, dívidas de droga. Faz sentido isso para você?

R: Quando a polícia relaciona alguma morte com a droga, é um caso assim… A mãe da mulher que morreu é vizinha de um traficante. Caso encerrado. Não interessa quem morreu, não é ninguém. Acerto de contas.

P: Isso é uma justificativa oficial então…

R: Nossa. Muito. Tem relacionamento com o tráfico de drogas porque tem um vizinho traficante. Digamos que eu tenha um primo que morreu que era traficante. Então, se alguém na minha família morrer, caso encerrado. A gente não tem mais o que justificar. É tráfico de drogas. Tinha vínculo com o tráfico. A gente está falando do outro, de alguém negro, pobre e periférico que não sou eu. “Nossa, que violência, né?” Eu sempre falo que já não me impressiono com o machismo e com o racismo. Eu me impressiono com os olhos arregalados de quem não sabe que existe o machismo e o racismo. “Não sabia! Isso acontece em pleno século XXI?” Eu fico, gente! Que “privilegiozão da porra” que essa pessoa deve ter para desconhecer que existe racismo e machismo! É sempre a mesma expressão, os olhos arregalados: “Séeeerio que vocês são seguidos em loja? Eu nunca ouvi falar disso!”. Todas as pessoas negras deste país. Independente da roupa. Porque eu vou no shopping com meu iPhone na mão, com a chave do meu carro e eu sou seguida. E tem gente que segura a bolsa perto de mim. Do mesmo jeito que a gente é perigoso, quando a gente morre vira estatística e ninguém liga mais. Aí fica uma morte para minha mãe chorar. O Estado não se importa, não.

E as pessoas não estão mais com vergonha de se anunciar machistas, racistas, homofóbicas. O que está acontecendo para eles acharem que podem? Como a gente vai reagir?

P: Como é a polícia em Ananindeua? Porque o que eu costumo escutar é que, da mesma forma que existe a ausência do Estado, existe a presença ostensiva e violenta da polícia…

R: Também é assim. A gente tem aqueles “bons policiais” que têm uma boa relação com a comunidade e tentam ajudar aqui e ali. Mas de maneira geral é violenta. Principalmente quando eles vão baculejar, param a molecada na rua. Quem é essa molecada? Quem são essas pessoas? O meu vizinho branco nunca foi revistado pela polícia, ele não sabe o que é isso. Eu, por exemplo, quando sou parada numa blitz, abaixo o vidro para eles verem que eu sou mulher, porque eu sei que eles nessa hora estão procurando homem preto. Tenho a cadeirinha da minha filha no banco de trás.

As violências vão interseccionando. Eu sou uma mulher negra, no meu trabalho eu sou jornalista e consigo circular em espaços de pessoas brancas, com empresários. Mas lá eles me olham e sabem que eu sou uma mulher negra. Em outros espaços, eu estou no movimento negro, mas os homens negros é que ganham espaço. Eu sou mulher negra. Em todos os espaços, eu sou mulher negra. E se eu fosse lésbica, trans, essas características não iriam me deixar. Gorda, periférica. São marcadores de opressão.

A questão da mulher negra é tudo que atinge também o homem negro, porque o genocídio é do meu irmão, do meu filho, meu parente. Questão de gênero: falamos da mulher negra porque é quem mais sofre violência. Nós estamos brigando para ter uma dimensão de humanidade que o homem tem, porque o homem negro não tem medo de ser estuprado. O racismo é democrático, pega a pessoa negra. Ele pode interseccionar com o machismo. A gente quer a dimensão de humanidade da mulher branca porque a mulher branca tem medo de ser estuprada, mas morre menos do que a mulher negra. E o homem branco, que tudo foi feito por ele, para ele, em qualquer momento da história vai ser bem recebido. Todos os heróis são homens brancos, todos os livros falam de homens brancos, tantas conquistas. A gente também quer o homem branco discutindo com a gente. Já que vocês se dizem aliados, então vamos discutir os espaços de privilégio, usar os privilégios para inserir pessoas negras. Vamos discutir machismo, racismo e, principalmente, vamos escutar, né? Tem momentos em que para realmente mudar alguma coisa é isso: fechar a boca e escutar.

 


Tereza Vitale: Mulheres na política. Para que? Por que?

Muitas pessoas não conseguem perceber a importância das mulheres estarem no poder, delas ocuparem espaços no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. Para muitos homens essa é uma questão desnecessária, e muitas mulheres têm grande dificuldade de se perceberem ocupando esses espaços, que, historicamente, são dominados pelos homens. Elas só se veem trabalhando em casa e eles fora de casa! E a divisão sexual do trabalho fica restrita a esses papéis tradicionais de gênero. Aquilo que foi “ensinado” é o que prevalece. Poucas e poucos se libertam destes papéis pré-fabricados ao longo dos séculos.

Mas, a necessidade de as mulheres auxiliarem no sustento familiar levou muitas delas a perceberem que podem mais, muito mais do que reproduzir, cuidar, limpar, “estar”. Perceberam que podem “ser”, podem fazer e acontecer. Podem ser donas de seu nariz, de seu corpo, de suas vontades, de sua vida. Podem ter objetivos sem estar atreladas a casamento. Mas que este pode ser uma relação muito saudável se houver respeito recíproco. Além de saudável, pode ser uma relação feliz! UFA, que coisa boa, ser feliz, se realizar na vida sozinha ou acompanhada! Ter um companheiro ou uma companheira…

Esta introdução é para dizer que as mulheres avançaram neste quesito “sair de casa” em busca de sonhos, de objetivos para criar sua própria história de sucesso pessoal. Que as formas de ser assim ou assado também se modernizaram, que hoje as opções são inúmeras, que os meios de comunicação colaboram para conhecermos o mundo além do nosso portão, da nossa escola, da nossa vizinhança. Mas e na política? Elas se alçam à vida política?

NÃO! As mulheres são mais que 50% da população. São mais de 50% dos eleitores. E sub-representadas na vida política… A democracia exige igualdade de gênero no sistema político e o Brasil ocupa o ridículo 158º lugar entre 188 países do mundo.

Na América Latina está em último! Pasmem! É um país injusto com as mulheres e podemos ampliar este leque: além da desigualdade de gênero, temos a de classe e a de raça na política. Como dizem, nossos poderes são de homens, brancos e de classe média(alta).

Portanto, a democracia está bem longe de ser completa. A desigualdade de gênero é estrutural. A quem interessa mudar essa realidade? Aos partidos políticos? Acho que não! Estamos nessa luta há anos e nada melhora. As leis que temos a nosso favor vêm carentes de sansões e sabemos que por isso não são cumpridas em partes ou na íntegra. Há sempre um jeitinho para escamotear o que é de lei e o que é de extrema importância para as mulheres que fazem política: os míseros 5% do fundo partidário que deveriam ser empregados em programas de promoção às mulheres na política.

Uma boa pergunta: Por que as mulheres na política? O que altera? Se justiça democrática é sinônimo de paridade na política, se essa paridade significa ocupação de espaços de poder e se temos uma questão complexa que é a política ser um espaço masculino, é dever de todos proporcionar às mulheres condições de participação em igualdade de condições, nesses espaços masculinos. É necessária a preocupação e a realização de ações que as aproximem da oportunidade de discutir e tomar decisões.

Elas começam a se interessar, se percebem como alguém que pode fazer a diferença nas discussões. E fazem mesmo, a diferença! Temos uma visão diferenciada de mundo, não pelo simples fato de nascermos mulher, mas pelo fato de nos tornarmos mulher. Essa já era a fala, pela constatação, de Simone de Beauvoir, lá atrás, na obra O segundo sexo, no final da primeira metade do século passado (1949). É a inserção social que nos faz diferente do homem e a diversidade de pensamento, como todo tipo de diversidade, leva as situações a serem enriquecidas.

Dizem: mas elas são poucas. Poucas as que gostam da política, poucas que se dispõem a deixar suas casas para irem discutir política. Por isso, poucas mulheres na política! Concordo com essas teses, em parte. Mulher não deixa sua casa e seus afazeres por besteira. Por isso, a valorização de seu papel é importante. Por isso, a política tem que ser discutida, por isso é importante a discussão cidadã do papel da política nas nossas vidas. Tudo a nossa volta é política e ela se resume à nossa real participação: na escola, na nossa rua, no nosso bairro, nossos locais de estar diariamente… tudo é movido pela política! Se nos furtarmos dessa questão, outros estarão resolvendo nossa vida à nossa revelia. Sem nossa participação não vale nem reclamar!

Uma mulher incentiva a outra a participar. E cada vez mais teremos mulheres nos partidos discutindo no mesmo tom e à mesma razão que os homens. Basta um empurrãozinho… e lá estarão elas participando em pé de igualdade. Assim estaremos incentivando as mulheres a chegarem ao Parlamento. Incentivando candidaturas pra valer e incentivando que mulheres votem em mulheres. Esta é outra questão cultural que temos que “atacar”. Se as mulheres são mais que 50% dos eleitores e não temos mulheres que nos representem como parlamentares, essa conta não fecha. Cadê nossos votos? Foram para os homens!

E nossas teses não são para se votar em mulher porque é mulher, simplesmente. Ninguém pede isso quando incentiva medidas afirmativas como as cotas, p.e., queremos que as mulheres candidatas estejam bem preparadas para a política para fazer valer nosso “voto em mulher”. Isto é óbvio!

E uma das prerrogativas para que elas se tornem candidatas em pé de igualdade com os homens, está sob a responsabilidade dos partidos. Elas têm menos recursos financeiros, menos tempo livre pra correr atrás destes recursos, menos influência em coligações. Todos estes entraves são combatidos por nós quando lutamos pela reforma política que abarque o sistema eleitoral em nosso favor. O ideal, para alterar este quadro, menos lentamente, é o financiamento público de campanha e a lista fechada com alternância de sexo. Tendo maior controle sobre as candidaturas e a aplicação do financiamento de campanha garantiríamos mais sucesso para eleger mulheres.

Sem estes artifícios, que chamamos de medidas afirmativas (cotas para vagas em candidaturas, financiamento público, lista fechada), demoraremos dois séculos para alcançar a paridade de representação nos parlamentos. Dois séculos!!!!!!
Em outubro próximo, nossas eleições serão municipais. Uma oportunidade única para as candidaturas de mulheres. Trata-se do poder local! O Poder que está bem perto das mulheres. Do Local onde vivem, do Local onde está sua família, do Local em que vão e voltam…, ou seja, podem trabalhar com uma plataforma eleitoral bem conhecida, de seu inteiro domínio.

Para as candidatas à prefeita, as políticas públicas para as cidades são voltadas ao transporte coletivo, para a educação infantil e ao ensino fundamental, ao atendimento à saúde além de voltar-se ao ordenamento territorial do solo urbano e à proteção do patrimônio municipal.

A prefeita, que é a representante do Poder Executivo municipal, tem que trabalhar em conjunto ao Poder Legislativo municipal, que é a Câmara dos Vereadores, cuja atribuição é elaborar leis de competência dos municípios, e fiscalizar a atuação e gerenciamento dos recursos do orçamento. Uma fiscalização não só em relação ao bom uso dos recursos públicos, mas também quanto ao atendimento adequado às demandas dos habitantes do município.

Tudo bem!!!! Homens e mulheres podem perfeitamente cumprir essas agendas municipais. Mas por que nos interessa que a mulher esteja nos representando nos municípios? Qual a diferença? Por que os homens não nos representam?

Espera-se que as mulheres defendam pautas específicas que nos dizem respeito. O que chamamos de Plataforma das Mulheres. Homens também podem se comprometer com nossa pauta, mas deles esperamos menos, bem menos…


Tereza Vitale é integrante da Coordenação Nacional de Mulheres do PPS

Fonte: www.pps.org.br