Fusão

Sessão Deliberativa no plenário da Câmara do Deputados em agosto de 2022 - Elaine Menke/Câmara do Deputados

Regra eleitoral impulsiona novas fusões e extingue partidos tradicionais

João Pedro Pitombo | Folha UOL

O endurecimento das regras eleitorais no pleito deste ano impulsionou três novas fusões partidárias desde o fim da disputa, reduzindo para 20 o número de partidos que terão representação no Congresso Nacional a partir de 2023.

Ao todo, 23 partidos elegeram ao menos um deputado federal nesta eleição, número que já representava uma redução da fragmentação partidária comparado a 2018, quando 30 partidos tinham representação no Congresso.

Mas apenas 16 legendas —7 delas unidas em três federações— superaram a cláusula de desempenho, também conhecida como cláusula de barreira.

Sessão Deliberativa no plenário da Câmara do Deputados em agosto de 2022 - Elaine Menke/Câmara do Deputados

Outros 16 partidos não atingiram a cláusula, incluindo 6 que haviam superado o patamar mínimo de votos em 2018. Destes, 5 decidiram por fusões ou incorporações, que ainda devem ser avaliadas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Para cumprir a cláusula de barreira em 2022, os partidos deveriam conquistar ao menos 2% dos votos a deputado federal, com o mínimo de 1% dos votos em nove unidades da Federação, ou eleger ao menos 11 deputados em ao menos nove estados ou Distrito Federal.

Os partidos que não atingem esse patamar mínimo seguem existindo, mas sofrem restrições: ficam sem acesso ao fundo partidário, sem tempo de propaganda na televisão e no rádio e sem direito a uma estrutura de bancada na Câmara dos Deputados. Os deputados eleitos por esses partidos também podem trocar de legenda sem sofrer punições.

O movimento mais recente de incorporação partidária foi o anúncio de que PSC (Partido Social Cristão) será absorvido pelo Podemos. Caso a união se concretize, o novo partido terá 18 deputados e a oitava maior bancada da Câmara.

A incorporação marca o fim do PSC, um dos partidos mais tradicionais do campo conservador, fundado em 1985 e com mais de 400 mil filiados. Também será o segundo partido incorporado pelo Podemos em quatro anos —em 2018, a sigla já havia absorvido o PHS.

Presidente nacional do PSC, Pastor Everaldo diz que a incorporação foi a saída possível diante das novas regras partidárias e destaca que não haverá arestas na união entre as duas legendas.

"Temos a mesma base ideológica e os mesmos princípios que o Podemos. Sou um cara otimista, para mim está tudo ótimo", afirmou.

O PSC já abrigou Jair Bolsonaro entre 2016 e 2017, mas recuou do projeto de lançar o então deputado federal como candidato à Presidência. Ainda assim, teve um desempenho histórico em 2018 ao eleger dois governadores: Wilson Witzel no Rio de Janeiro e Wilson Lima no Amazonas.

Desde então, contudo, o partido perdeu parte de seus quadros, que migraram para legendas mais robustas como PL e União Brasil. A despeito de se alinhar a Bolsonaro na legislatura, optou por não fazer parte da coligação do presidente.

Outro partido tradicional que deixa de existir é o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), que decidiu por uma fusão com o Patriota para criar uma nova legenda que se chamará Mais Brasil.

Ligado à tradição do trabalhismo, o PTB foi criado em 1945 por Getúlio Vargas e se manteve ativo até 1965, quando foi extinto pela ditadura militar.

Foi refundado em 1979 em meio a uma disputa pelo nome da sigla entre Ivete Vargas e Leonel Brizola, na qual prevaleceu a sobrinha-neta de Getúlio. Desde então, a legenda se afastou do trabalhismo e se tornou uma sigla de perfil fisiológico.

Em 2021, deu uma guinada para o campo ultraconservador, flertou com falanges integralistas e iniciou um processo de expurgo de seus líderes comandado pelo presidente Roberto Jefferson, preso em outubro após atirar contra policiais federais.

Neste ano, o PTB lançou Jefferson como candidato à Presidência, que teve candidatura indeferida e foi substituído por Padre Kelmon, que atuou como linha auxiliar de Bolsonaro. Na disputa pelo Congresso, teve um desempenho vexatório e elegeu apenas um deputado federal.

O Mais Brasil terá cinco deputados federais, quatro deles eleitos pela Patriota, legenda que em 2019 já havia incorporado o PRP.

Outros dois partidos que não atingiram a cláusula de desempenho e decidiram se unir são o Solidariedade e o Pros, ambos partidos criados na década de 2010 e que participaram de apenas três eleições para o Congresso Nacional.

Neste ano, as duas siglas fizeram parte da coligação de apoio a Lula, mas tiveram desempenho aquém do almejado: o Solidariedade conseguiu eleger quatro deputados federais e o Pros apenas três.

Com a fusão, a legenda manterá o nome de Solidariedade, mas será comandada por Eurípedes Júnior, hoje presidente do Pros.

O partido Novo é a exceção entre os partidos que atingiram a cláusula em 2018, mas não tiveram sucesso na eleição deste ano. A legenda não cogita fusão e deve se manter ativa mesmo com as restrições de acesso a fundo partidário e tempo de televisão.

A despeito de ter reeleito o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, que saiu das urnas fortalecido e cotado como possível candidato a presidente em 2026, a legenda elegeu apenas três deputados federais, contra oito da eleição de 2018.

Professor da Universidade Federal do Piauí, o cientista político Vítor Sandes afirma q ue a fusão ou incorporação são saídas encontradas por líderes partidários para driblar a cláusula de barreira e manter relevância no jogo político com acesso a recursos de fundos públicos para financiamento dos partidos.

"É uma forma de se fortalecer em um mercado eleitoral que é extremamente competitivo e garantir acesso a mais recursos. Diversos estudos apontam que quanto mais dinheiro os candidatos têm, maior a probabilidade de serem eleitos", avalia.

A cláusula de desempenho foi implantada em 2018 e ficará ainda mais rígida até as eleições de 2030. A partir daí, cada partido deverá ter ao menos 3% dos votos para a Câmara Federal, sendo ao menos 2% em nove unidades da Federação, ou eleger ao menos 15 deputados federais.

Desde a aprovação da cláusula de desempenho em 2017, sete fusões ou incorporações partidárias foram realizadas, reduzindo o número de partidos em atividade no país de 35 para 29 neste período.

Também foram aprovadas três federações partidárias para eleição deste ano, ferramenta que mantém as legendas vivas, mas obriga uma atuação partidária conjunta por ao menos quatro anos. PT, PC do B e PV atuarão em parceria, assim como PSOL e Rede, além de PSDB e Cidadania.

Para Vítor Sandes, a tendência é de uma redução ainda maior da fragmentação partidária caso as regras eleitorais sejam mantidas. A consequência deste novo cenário é um sistema partidário mais simples e coeso ideologicamente.

"Existe bastante pragmatismo entre os partidos. Mas, ao contrário do que diz o senso comum, a ideologia importa. Partidos mais próximos ideologicamente têm mais facilidade de se fundir porque conseguem pactuar consensos em relação às políticas que eles perseguem."

Matéria publicada originalmente na Folha UOL


Rafaela Felicciano / Metrópoles

Rixas dividem União Brasil e ala quer mudanças na direção do partido

Sandy Mendes | Metrópoles

Resultado da fusão entre PSL e DEM, o União Brasil nasceu em outubro de 2021 com a maior bancada da Câmara dos Deputados. Agora, um ano depois e após o pleito eleitoral de 2022, o partido expõe rixas internas para que haja mudanças na direção. O atual presidente da sigla é o deputado federal Luciano Bivar, que foi reeleito à Câmara pelo Pernambuco.

As críticas, que antes eram apenas a Bivar, também se estenderam ao seu vice, Antonio Rueda.

Conforme apurou o Metrópoles, internamente, os partidários do União Brasil questionam a legitimidade dos apoios e acordos políticos, falta de transparência e, em uma ala específica, criticam as posições de Bivar na resolução de problemas na sigla.

Após o primeiro turno, em 2 de outubro, parte da bancada defendeu mudanças na coordenação.

Um outro fator que influenciou os partidários a defenderem uma troca no partido foi o aceno de Luciano Bivar a Lula. Ele defendeu um apoio ao ex-presidente no segundo turno contra o atual presidente Jair Bolsonaro. Antes, o PSL foi reduto do chefe do Executivo. Bolsonaro foi eleito em 2018 com apoio de Bivar e de todos do então partido.

O presidente deixou a sigla após desavenças com Bivar. Isso também provocou uma debandada dos seus aliados, durante a janela partidária, para o seu novo partido, o PL. Com a junção ao DEM, o União chegou a ser a maior bancada da Câmara dos Deputados. Agora, com a última eleição, serão a terceira.

“Maus olhos”

A tentativa de levar o partido a apoiar Lula contra Bolsonaro foi vista com “maus olhos” pela ala que veio com o DEM. Segundo os partidários, o aceno ao petista se dá pelo almejo de Luciano Bivar a presidência da Câmara.

Depois de não conseguir emplacar a senadora Soraya Thronicke no segundo turno, o União Brasil escolheu não definir apoio oficial a nenhum dos candidatos. Apenas liberaram os diretórios.

Ao lado do presidente Bolsonaro, o governador reeleito de Goiás, Ronaldo Caiado, afirmou que a “maioria do partido” estava com o presidente. “A decisão pessoal dele [Luciano Bivar] não pode ser determinante quando se fala em maioria, a tese partidária não é o rito imperial do presidente, é da maioria. O presidente do partido pode ter a opinião dele, mas a maioria do partido já se declarou favorável [a apoiar Jair Bolsonaro]”, disse.

A estratégia de neutralidade foi, para além de desagradar os filiados, não mexer na estrutura da campanha na Bahia. Lá, o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto concorre ao governo. Declarar apoio a Bolsonaro seria ruim para ele, uma vez que o estado é majoritariamente lulista.

Do outro lado, aliados da cúpula que comanda a sigla afirmam que o movimento de querer mudar a direção não tem força para ser levado adiante. Isso porque, do ponto de vista deles, se trata de uma questão política “cabeça-quente” e que deve “esfriar” em breve.

Fusão com PP

No dia 19/10, os partidos do União se reuniram em Brasília para tratar da possível fusão da sigla com o PP. Antes, era discutido a possibilidade de fusão. Em uma espécie de “confraternização” e recepção para os eleitos, o clima esquentou após o ex-ministro Mendonça Filho, agora eleito deputado federal por Pernambuco, pediu para que os parlamentares não se manifestassem sobre o possível casamento com o PP ou sobre a eleição para presidência da Câmara.

Mendonça também não está feliz com Bivar. Segundo ele, o presidente lhe privou de 25 dias sem propaganda na TV e lançou um outro candidato pelo União para enfrentá-lo em sua base eleitoral com o objetivo de ter mais votos e assim ficar com a vaga. Pelo pleito, os dois entraram na Câmara.

Em resposta, Luciano Bivar disse que filiados foram liberados no segundo turno para fazerem as melhores composições regionais. “Mas todos sob o guarda-chuva comum que é a democracia”, afirmou. “Não podemos correr riscos com a democracia. Queremos votar domingo e também daqui a quatro anos”, disse.

O partido deve reunir ainda os novos governadores, senadores, deputados eleitos e reeleitos em 15 dias, logo após o resultado das eleições, para debater o cenário e se posicionar.

Matéria publicada originalmente no Metrópoles


Paulo Fábio Dantas: Fusão na direita, campanha na esquerda, hora H no centro

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno seria, a meu ver, o argumento mais lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via

A maioria das pesquisas está indicando que se a eleição fosse hoje, Lula ganharia no primeiro turno. Portanto, Bolsonaro estaria fora e ninguém da chamada terceira via decolaria. Esse é o retrato atual da realidade. Em resposta a interpretações fatalistas sobre o sentido dessa informação real, o pré-candidato Ciro Gomes lembrou que pesquisa é retrato, a vida é filme. Esta coluna tem argumentado na mesma linha há algum tempo e cheguei a usar essa mesma imagem a que o pedetista recorreu agora. Porém, as fotografias do momento têm sua relevância e vão se tornando cada vez mais persuasivas, à medida que vai ficando menor o tempo que nos separa da eleição. Daí não poderem ser ignoradas.

Um modo vesgo, no entanto, de considerar as boas notícias que pesquisas têm dado a Lula é ver, ao lado delas, como face reversa de uma mesma moeda, o que seria a “surpreendente” resiliência dos índices de intenção de voto em Bolsonaro. Essa surpresa é desatenta ao fato de tratar-se de presidente no cargo, manejando, sem senso de limites, recursos que o cargo lhe disponibiliza, não poucas vezes avançando em direção à ilicitude.  Comparativamente, sua performance pré-eleitoral tem sido menos atípica do que as derrocadas abissais acontecidas, em contextos bem diversos, nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O argumento de que os crimes de responsabilidade do atual incumbente são incomparavelmente mais graves que os dos seus predecessores é veraz, mas não cancela a lógica do que está diante dos nossos olhos. É o exercício (o normal e o arbitrário) do poder a explicação para que, apesar dos seus crimes, Bolsonaro ainda conserve apoio político no Congresso e nível de aceitação popular para ir ficando no cargo, mesmo que a cada dia adicione, à sua maligna pobreza de espírito, a condição de alma penada. Vistas as coisas sob esse ângulo, boa parte da surpresa se dissolve. Entretanto, esse não é o ângulo político mais habitualmente adotado nas análises e sim o ângulo do espanto indignado.

Resulta, desse ângulo habitual, outra leitura imprecisa da fotografia do momento. A indignação conecta-se à legitima vontade, animada pelo impacto imediato das pesquisas, de que se faça uma espécie de justiça política, expondo o presidente golpista a uma derrota eleitoral acachapante, infligida pelo seu mais conspícuo oponente. Seu golpismo e sua antipolítica serem rejeitados pela opinião pública e pela esmagadora maioria da população não é bastante. Mesmo se essa condenação for capaz de nos livrar de sua presença nefasta na cena, não morre o desejo de execução explícita da sentença, pelo gesto redentor do voto na urna. Trata-se de desejo social que, além de compreensível, é politicamente positivo. Só não se pode dizer que as pesquisas estão a indicar que esse clímax coletivo ocorrerá.

O que aparece em todas as fotografias atuais (e nunca é demais lembrar que a vida é filme) é a vitória de Lula no primeiro turno. Elas mostram, além de uma virtual consagração do petista, duas virtuais inviabilidades: a primeira – de uma candidatura agregadora e competitiva da chamada terceira via - é apregoada aos quatro ventos por inúmeras análises que são música para Lula e o PT e, ao menos, unguento para o bolsonarismo. Mas a segunda – a virtual inviabilidade do próprio Bolsonaro chegar a um segundo turno - costuma ficar obscurecida pela imaginação desse duelo épico, sonhado por alguns, temido por outros. Mas apesar de desejos legítimos e vieses analíticos, as fotos não mentem.

Digo mais: das duas inviabilidades mostradas nas fotografias vejo a de Bolsonaro como maior porque a ele não basta ficar resiliente. Até para simplesmente ir ao segundo turno, precisa reverter o quadro declinante atual e ganhar pontos, o que, dado aquilo que mostram a tragédia social do país, o estágio atual e as perspectivas da economia, o relativo isolamento político do presidente e sua rejeição crescente junto ao eleitorado, parece ser bem mais difícil do que a duvidosa terceira via decolar. A prevalecer a visão dos céticos, de que tendem a ser mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, Lula já poderia estar pensando em qual alfaiate contratar. E como o fatalismo anda em alta e o pragmatismo é previdente, forma-se fila para conseguir assento na suposta arca de Noé.

Apesar disso, não se pode ainda descartar que Bolsonaro vá a um segundo turno amparado em seus resilientes adeptos, mesmo que seja só para tomar uma surra eleitoral. Isso poderá ocorrer se a soma de votos dados a candidatos da chamada terceira via crescer um pouco, o suficiente para garantir a realização do segundo turno, mas sem que, por força da fragmentação desse campo, qualquer dos seus nomes ultrapasse Bolsonaro. Uma pesquisa Ibope da última quinta-feira, por exemplo, mostra que quando se admite um cenário com Sergio Moro candidato, Lula segue com intenções de voto suficientes para ganhar no primeiro turno, porém com menos folga, aproximando-se da margem de erro.

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno para provocar arruaças no atacado ou a granel seria, a meu ver, o argumento mais forte e lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via com a obstinação que estamos vendo. O único contra-argumento possível, ao mesmo tempo realista e normativo (coisa risível para muitos),  é o de que um candidato de terceira via chegar ao segundo turno - ganhando ou perdendo para Lula - faria muito bem ao país, não só porque deixar de se classificar ao segundo turno seria uma contundente derrota política para Bolsonaro, como porque uma candidatura com postura e programa liberal-democráticos é contraponto à maré populista que tensiona o mundo atualmente, com a pretensão de minar a democracia representativa do constitucionalismo liberal e “refundar” a democracia em bases soberanistas. Esse é o sentido político que teria, neste momento, a agregação máxima possível entre centro-direita e centro, chame-se isso de terceira via, ou não.

Como evidência de que o inusitado é componente sempre possível de dada conjuntura política (sendo mais provável quando são conjunturas críticas) há gente na esquerda insinuando (ao menos em ambientes informais) que a iminente fusão DEM-PSL é biombo de uma conspiração para ressuscitar a jamais nascida candidatura do ex-juiz Sergio Moro. 

Talvez o desejo íntimo que subjaz a essa especulação seja o de que o justiceiro mítico, hoje opaco, cumpra o desiderato de distorcer e desqualificar a ideia de terceira via, sem direito a apelação. Mas conjecturar sobre uma candidatura que, se fosse possível, só interessaria a Bolsonaro (na medida em que facilitaria haver segundo turno) é um diletantismo que não ajuda a esquerda. A Lula, não tendo ele nada de amador, não deve agradar a hipótese dessa torcida crescer na sua cozinha. Se Moro entrasse no jogo – e isso poderia se dar mais por uso solitário de um atalho partidário como o do Podemos - até poderia mesmo jogar um jato de água na terceira via, mas poderia também, e mais provavelmente, jogar outro jato na chance, hoje muito real, de Lula vencer no primeiro turno. E Lula deve ter motivos para querer essa vitória antecipada, não por mera vaidade, ou por receio de efeitos colaterais da jactância morista, mas porque a vitória consumada em primeiro turno dar-lhe-ia tempo de usar disputas de segundo turno nos Estados para fazer alianças conciliatórias. Elas seriam imprescindíveis para dar estabilidade mínima a um governo seu, que não será, nem de longe, o futuro cor de rosa que ele tem prometido em sua performance populista nostálgica, até aqui a escolhida para o vôo sollo no primeiro turno.

Noves fora a insólita suposição de que políticos profissionais, dentre os quais o próprio presidente do Congresso Nacional, possam servir de agentes do projeto pessoal de um ex-juiz, carrasco da “política dos políticos” e com prestigio cadente,  a discussão da fusão dos dois partidos, além de objetivos pragmáticos ligados ao interesse de reeleição de deputados – interesse intrínseco a políticos que atuam numa democracia - sinaliza a disposição da direita brasileira de se reorganizar para fazer valer a sintonia momentânea que seu modo de pensar guarda, em muitos pontos, com o da maioria do eleitorado brasileiro, como foi demonstrado nas três diversas eleições realizadas de 2016 para cá. Tal inclinação conservadora do eleitorado não contradiz a imensa rejeição a Jair Bolsonaro, cuja atitude destruidora de instituições é uma antítese da atitude conservadora. Misturar duas coisas distintas para enxergar na rejeição uma evidente guinada do eleitorado à esquerda, ou mesmo ao centro, seria, no mínimo, uma imprudência analítica.   

Por isso, o pragmatismo que guia a iniciativa da fusão está longe de ser evidência de aproximação dos dois partidos a uma estratégia eleitoral de Bolsonaro ou mesmo do governo, se é que alguma estratégia desse tipo existe como plano A do golpista e da alcateia que o cerca. Parece, ao contrário, ser um modo de ambos os partidos se sentirem material e politicamente fortes para se afastarem de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, DEM e PSL freiam o ímpeto de um concorrente de peso – o PSD de Gilberto Kassab – que vinha nadando de braçada, a oferecer boias e botes a náufragos da canoa governista. Nesse mar de águas turvas chega agora um navio de resgate maior. É previsível que o PSD coopere.

A operação, se de fato for consumada, mudará muita coisa (além do que a simples hipótese da fusão já muda) não apenas no palácio ou nas piscinas que o circundam, mas também em todos os campos e quadrantes partidários da política. São muitas - senão todas, exceto as duas nubentes – as forças que torcem ou operam para que a ideia malogre. É previsível que não só o governo, mas interesses distintos joguem firme, oferecendo vantagens, em alianças estaduais, à reeleição de deputados e senadores para atrapalhar a fusão e, se isso não for possível - como parece não ser - para reverter, ou ao menos reduzir, seus efeitos.

O diagnóstico e um dos prognósticos do ex-prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, em entrevista a “O Globo”, são precisos: “DEM migrou para a direita e fusão com PSL será confusa”.  Bom de análise, como de hábito, o Maia original não tenta matar o mensageiro da má (para ele) notícia e faz várias observações perspicazes e realistas sobre possíveis percalços da fusão, sem deixar de admitir, porém, chances de êxito e relevância dos efeitos. Apenas deixou de completar seu raciocínio, por compreensíveis razões políticas que não desqualificam em nada a sua análise. É fato, sim, que o DEM desistiu de ter, ao menos nesse momento, o centro como aliança prioritária (até porque o tipo de reação do outro Maia, o Rodrigo, à sua sucessão na Câmara, tornou mais difícil esse caminho, que já era problemático) e resolveu olhar para a direita. A fusão com o PSL expressa essa escolha. Mas para o raciocínio analítico se completar é preciso ver que esse olhar para a direita, por mais confusões que haja a resolver na sequência, está sendo mais eficaz para tirar o DEM da órbita de Bolsonaro. Tudo bem, é pedir demais a Cesar Maia que, além de bom analista ele seja um político desprendido (contradição em termos) e um pai insolidário.

Quem quer realmente uma dita terceira via tem de saber que o relógio está contra ela e que não dá para perder tempo reclamando da fusão de um partido médio da centro-direita com uma direita mais explícita. Se a agregação não ocorrer pelo centro, tende a ocorrer mesmo pela direita. Será um desfecho sub ótimo, do ponto de vista do centro, que não tem sentido demonizar, a não ser que o sentido seja não o de agregar, mas o de concorrer com a centro-direita. Ademais, o DEM não está queimando seus navios ao se distanciar do centro. O aval à circulação do nome de Luiz Mandetta é demonstração disso. Mas as tranças que Rapunzel joga, ainda que como seu plano B, cairão no vazio se o centro democrático não for capaz de provar que agrega mais do que a direita.  Se não for capaz precisará considerar, com realismo, que essa agregação que a fusão e suas implicações conservadoras insinuam é, ainda assim, um desfecho mais interessante para si e para a democracia do que a guerra de fim do mundo do virtual segundo turno revanche de 2018 e melhor mesmo que o cenário, menos regressivo, de Lula vencendo no primeiro turno, tal como aparece nas fotos do momento. Há três coisas mais importantes hoje do que tentar imaginar agora quem, afinal, vencerá ou perderá as eleições. São elas a garantia de que as eleições aconteçam dentro das regras, a possibilidade de que aconteçam de modo civilizado, com o país já livre do espectro da reeleição de Bolsonaro e a inclusão, desde já, na agenda política, do debate da pauta do país, enfim, do que se quererá no pós-Bolsonaro.

Para quem não possui ânimo nem conexão governista e também está fora da órbita petista, assim desejando continuar, não existe outra opção além da de persistir fazendo política em dois planos. Um é o da frente democrática ampla, para defender, ao lado da esquerda, a democracia e o processo eleitoral dos perigos - não mais eleitorais, mas ainda institucionais – de desestabilização que o bolsonarismo, mesmo politicamente batido, pode causar através do fomento a um caos social e/ou à violência política. Outro é o da articulação e mobilização pré-eleitoral com foco na maior agregação possível do centro com a centro-direita, através de uma candidatura e de um programa capazes de dialogar também com forças de direita, de centro-esquerda, com pragmatismos do tipo centrão e, principalmente, com os eleitorados dos respectivos campos onde se situam essas forças.

Como já disse e nem precisava dizer, é um roteiro de duvidoso êxito. Acrescento que de complexa execução também e por esses dois motivos, é legitimo considerá-lo improvável. Mas mesmo que os vaticínios se confirmem, há aquela hipótese de agregação desse campo a partir de uma força de gravidade vinda, não dele mesmo, mas de uma estratégia de uma direita de vocação governista ainda não inteiramente desprendida de Bolsonaro, mas em trânsito a uma posição de centro direita, justamente para se desvencilhar dele. Em torno desse script do conservadorismo democrático circula a hipótese, por exemplo, da candidatura de Rodrigo Pacheco. A seu favor, a maleabilidade requerida em operações políticas delicadas, a postura não doutrinária em economia, além do discurso irretocável, tendo em vista os cânones do constitucionalismo liberal. Contra ele, a escassa penetração do seu nome em áreas populares e a percepção desfavorável da sociedade em relação ao Parlamento e a parlamentares em geral, variáveis cuja incidência só seria neutralizada pelo impacto de seu envolvimento positivo num fato ou processo politicamente decisivo.  Isso dá lugar a afinidades eletivas (embora não a nexos necessários) entre a ideia de sua candidatura e a hipótese de um impeachment com caráter e dimensões de processo cívico. Mas se o Senado seria o lócus decisivo desse eventual processo, é preciso que sua deflagração seja combinada com Artur Lira e “sua” Câmara. Nesse ponto a incerteza reina.

Independentemente do que cada eleitor, ou grupo de interesse, decida a respeito do seu voto ou apoio, uma via como essa (que não seria mais terceira, mas substituta da primeira via) pode ser vista também como boa notícia para o país, ainda que tenda a estar aquém da plataforma reformadora de cunho social-democrático, que a situação crítica da maioria dos brasileiros requer. Mas isso seria questão a debater e decidir na urna, possibilidade que é horizonte benigno em si, depois de tantos sustos tomados e tantos riscos corridos. Quem leu entrevista recente do ex-ministro Tasso Genro constatará que uma reflexão como essa não pode ser cancelada, simploriamente, como anti-lulismo. É uma reflexão orientada, ao mesmo tempo, por fatos e pelo compromisso com a democracia.

Mas costuma ser mais efetiva na esquerda uma atitude anti-liberal que vincula, tensa e pragmaticamente, o chamado lulo-petismo ao PSOL e a políticos como Guilherme Boulos, a partidos e quadros de organizações de esquerda sem expressão eleitoral, a ativistas de movimentos identitários e a analistas militantes do esquerdismo acadêmico. Trata-se de um maciço ideológico empenhado em não admitir que o "capitalismo" se saia bem da crise provocada por seus contrastes e potencializada pela emergência da extrema-direita global. Crise que é vista, por esses olhos gauche, em chave chinesa, como risco e oportunidade. Por essa ótica Biden pode ter sido aliado tático, mas já é e sempre será adversário estratégico, contra o qual vale até (para alguns mais ousados) ver algum sentido de libertação na luta do Talibã. Nisso acaba dando o fato da 'esquerda ocidental" - especialmente a dos campi universitários e a do hemisfério sul – ter, aos poucos, trocado o Manifesto Comunista (um texto que não xingava e sim analisava criticamente o capitalismo do seu tempo) pela atemporalidade, ou temporalidade recorrente, em aspiral, do I Ching. Filosoficamente, a escolha é livre e nela nada há de ruim. Politicamente, é apenas péssima.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-baile-de.html