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Merval Pereira: O país do privilégio

Nada mais ignominioso do que as notícias que pipocam dando conta de que em diversos estados brasileiros está havendo fraude na vacinação contra a COVID-19. Pessoas que não fazem parte da primeira leva dos grupos de risco furam a fila para garantirem para si ou familiares o privilégio de serem vacinadas, numa pandemia que testa a nossa solidariedade como humanos e que depende da atitude de cada um para que o conjunto dos cidadãos possa sobreviver à crise sanitária.

No Brasil fragilizado pela desorganização de um governo incompetente, que deveria ser responsabilizado pelo retardamento do programa de imunização nacional, há alguns muitos mais iguais que os outros. O atraso na chegada das vacinas e dos insumos, devido a problemas causados por uma política externa nula, e uma ação descoordenada do ministério da Saúde entregue a um General que nem sabia o que era o SUS quando assumiu,  cada dia cobra o pedágio em mais de mil vidas, e é esse número alarmante de mais de 200 mil mortes que deveria fazer com que o governo fosse culpado pela negligência no trato da pandemia e os “espertos” de sempre fossem punidos vigorosamente.

O Ministério Público está investigando casos acontecidos em pelo menos 11 estados, em que o privilégio foi concedido a filhos, amigos, parentes de autoridades locais, sem falar nos prefeitos que furam a fila afirmando que estão dando o exemplo. Com o número ínfimo de  doses de vacina enviado para cada município, a valorização  do imunizante fez com que se criasse um criminoso mercado paralelo de prestígio, e logo veremos denúncias de pessoas que subornaram para serem vacinadas à frente das que estão na lista de prioridades.

Uma lista, aliás, que terá que ser refeita, pois não há vacinas para todo o grupo, e alguns municípios estão distribuindo literalmente meia dúzia de doses para os postos de vacinação. Centro da crise humanitária mais grave dessa pandemia, Manaus teve que suspender a vacinação para reorganizar as prioridades.  As doses de Coronavac que chegaram ao estado nesta semana são suficientes para vacinar somente 34% dos profissionais de saúde que atuam no estado, que sofre há dias com a falta de oxigênio e de insumos para vacinação. Mas as filhas do dono de uma das maiores universidades privadas de Manaus, no Amazonas, já estão protegidas pela primeira dose, pois não apenas furaram a fila, como exibiram seus troféus nas redes sociais. Médicas, foram contratadas pela Secretaria de Saúde na véspera da vacinação começar.

Não foi nem preciso investigar, elas, como várias outras pessoas em diversos estados, foram reveladas pelo próprio narcisismo, pois publicaram suas fotos nos “Insta” da vida sem nem mesmo notar que estavam se autodenunciando por um crime que deveria ser duramente castigado, assim como os responsáveis pela liberação de tal privilégio.

A perda da noção de pertencimento a uma comunidade, que deveria vir sempre antes da escolha individual, é um fenômeno da pós-modernidade, segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, e no Brasil ela é exacerbada pela síndrome do “você sabe com quem está falando”, sobre o que escreve com maestria o antropólogo Roberto DaMatta, que se espanta até hoje como os sinais de trânsito não são respeitados nas ruas do país.  

DaMatta escreve ensaios sobre nossas autoridades e celebridades que promovem “um espetáculo deprimente de racismo, machismo, ignorância, arrogância e injustiça por se considerarem superiores aos demais e, portanto, dispensados de obedecer às leis e às normas da boa convivência social”. O livro, ampliado e reeditado, continua contemporâneo, prova de nossa falência como sociedade.


Cristina Serra: Que vergonha, excelências!

Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas, e STF e STJ já estavam prontos para furar a fila da imunização

No Brasil, existem cidadãos comuns, como você, leitor, e eu. E existem castas, como o Judiciário, sustentadas com o dinheiro dos nossos impostos e adubadas com privilégios e mordomias que ofendem o simples bom senso. Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas e suas excelências do STF e do STJ já estavam prontas para furar a fila da imunização. As duas mais altas cortes enviaram os pedidos à Fundação Oswaldo Cruz, que os rechaçou.

Num momento de emergência sanitária e com autoridades incompetentes no comando da saúde dos brasileiros, as maiores instâncias do Judiciário deveriam ser as primeiras a dar o bom exemplo e aguardar sua vez na escala de prioridades, a ser definida de acordo com critérios científicos e levando-se em conta a vulnerabilidade de grupos mais expostos ao vírus. Mas as cúpulas do Judiciário preferiram se orientar pelo adágio mesquinho: farinha pouca, meu pirão primeiro. O que me lembra também o salve-se quem puder da primeira classe no convés do Titanic.

O STF pediu uma reserva de 7.000 doses para ministros e servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça. O STJ disse que enviou um “protocolo comercial”, que se refere à “intenção de compra” das doses para imunizar magistrados, servidores e seus dependentes. Sim, você leu direito. O STJ alegou que pretendia comprar as vacinas que, até onde se sabe, serão distribuídas gratuitamente pelo Plano Nacional de Imunização (vai saber quando). Seria um auxílio-vacina?

Não fosse a revelação pela imprensa e a negativa contundente da Fiocruz, talvez outras categorias já estivessem a reivindicar tratamento “isonômico”. A mentalidade da aristocracia do setor público brasileiro opera uma rota de colisão com qualquer projeto de sociedade menos desigual e mais justa. Regalias de toda sorte para uma elite “diferenciada” transformam em uma quimera o ideal de cidadania já alcançado por outros países. Data vênia, excelências, que vergonha!