foro privilegiado

Flavio Bolsonaro consegue adiar revisão de foro privilegiado

Flávio Bolsonaro é acusado de enriquecer desviando recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual

Mariana Schreiber / BBC News Brasil

Após mais de um ano de espera, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) adiou o julgamento previsto para esta terça-feira (31/08) que decidiria sobre o foro privilegiado concedido à Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na investigação que apura um suposto esquema de rachadinha - desvio de recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

O adiamento atendeu a um pedido apresentado na véspera pelo advogado de Flávio, Rodrigo Roca, sob a alegação de que estaria "impossibilitado de comparecer na sessão agendada". Ainda não foi anunciada nova data para o julgamento.

O pedido de postergação pode indicar uma insegurança da defesa sobre se há votos suficientes para mater o foro privilegiado, concedido no ano passado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). A decisão garantiu ao senador, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, o direito a ser julgado no próprio TJRJ, em vez de na primeira instância judicial, onde os casos tendem a andar mais rapidamente.

O julgamento do recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que contesta o foro concedido a Flávio havia sido marcado pelo novo presidente da Segunda Turma, ministro Kassio Nunes Marques, que chegou ao STF no ano passado por indicação de Bolsonaro. Como Marques tem tomado decisões alinhadas ao Palácio do Planalto, o fato de ele ter pautado o julgamento sobre o foro de Flávio poucas semanas após ter assumido a presidência do colegiado gerou, inicialmente, expectativas de que o placar seria favorável ao senador.

O cenário ficou mais otimista para Flávio com a transferência no início de agosto da ministra Cármen Lúcia da Segunda Turma para a Primeira Turma. Como o colegiado agora tem apenas quatro ministros (Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski), eventual empate favorece a defesa.

A Turma segue desfalcada porque ainda não foi aprovado um substituto para a vaga do STF aberta com a aposentadoria do ex-ministro Marco Aurélio. Jair Bolsonaro indicou seu ex-ministro da Justiça André Mendonça, mas sua nomeação depende de aprovação do Senado Federal.

Entenda a seguir em três pontos qual a controvérsia em torno do foro de Flávio Bolsonaro, qual pode ser o impacto desse julgamento e quais as acusações que pesam contra o senador.

1) Por que STF decidirá sobre foro de Flávio?

A investigação contra Flávio tramitou inicialmente na primeira instância judicial seguindo o entendimento firmado pelo plenário do Supremo em 2018, quando um julgamento da Corte limitou o foro privilegiado apenas a investigações relacionadas ao exercício do atual mandato do parlamentar.

No entanto, em junho de 2020, a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) atendeu a um recurso do senador e lhe garantiu o foro de deputado estadual nessa investigação, por dois votos a um. Com isso, o caso saiu das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, para a jurisdição do Órgão Especial do TJRJ, composto por 25 desembargadores, o que tirou agilidade do andamento investigativo e processual.

Embora o filho do presidente tenha no passado defendido o fim o foro privilegiado, sua defesa argumentou que Flávio não deixou de ter mandato político, já que passou de deputado estadual a senador. Na visão dos seus advogados, isso deveria manter o foro especial do filho do presidente, argumento que foi acolhido pela maioria da Terceira Câmara Criminal.

Logo após isso, o Ministério Público do Rio de Janeiro apresentou uma reclamação no STF, um tipo de recurso que questiona decisões que confrontam entendimentos já estabelecidos pelo Supremo (no caso, a restrição do foro privilegiado fixada em 2018).

O recurso foi distribuído para o ministro Gilmar Mendes, que optou por não dar celeridade a sua análise. O caso ficou cerca de nove meses parado em seu gabinete após manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR), sendo liberado para julgamento apenas no final de maio deste ano.

Nunes Marques
Nunes Marques é visto como um aliado de Bolsonaro no STF. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Além do recurso do Ministério Público, o partido Rede Sustentabilidade também apresentou ao STF uma ação mais ampla tentando reverter o foro concedido a Flávio, que deverá ser julgada pelo plenário do STF. Dessa forma, seja qual for o resultado do julgamento na Segunda Turma, ele ainda poderá ser revisto quando essa ação for analisada pela Corte.

Essa ação, porém, foi sorteada para relatoria de Nunes Marques, e segue parada em seu gabinete.

"Meu palpite: (a Segunda Turma do) STF vai confirmar foro de Flávio Bolsonaro no TJRJ. E o entendimento não durará um ano", opinou o criminalista Davi Tangerino, professor de direito penal da UERJ e da FGV-SP, em sua conta no Twitter, quando o julgamento foi marcado para esta terça.

2) Qual pode ser o impacto do julgamento?

A demora do STF em decidir sobre o foro de Flávio Bolsonaro teve o impacto de retardar o andamento do caso, já que o TJRJ decidiu, inicialmente, esperar que o Supremo julgasse o recurso contra o foro de Flávio. Esse é um dos fatores que explica o fato de até hoje o Tribunal não ter decidido se aceita ou rejeita denúncia criminal apresentada pelo Ministério Público em novembro de 2020 contra Flávio, Fabrício Queiroz (ex-assessor apontado como operador do esquema de rachadinha) e mais 15 pessoas.

O senador e seu antigo assessor são acusados dos crimes de organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.

Queiroz (à dir.) é ex-motorista e ex-segurança do hoje senador Flávio Bolsonaro
Queiroz (à dir.) é ex-motorista e ex-segurança do hoje senador Flávio Bolsonaro. Foto: Twitter

Mas, depois disso, outra decisão também afetou essa análise. Em fevereiro deste ano, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por quatro votos a um, anulou as quebras de sigilo fiscal e bancário do senador determinada em 2019 pelo juiz Flávio Itabaiana, por entender que ele não fundamentou adequadamente sua decisão. Com isso, parte das provas usadas na denúncia criminal contra Flávio foram anuladas.

O Ministério Público apresentou então uma nova denúncia, com provas que não teriam sido afetadas pela quebra de sigilo, como o acordo de delação premiada firmado por Luiza Souza Paes, que foi funcionária do gabinete de Flávio na Alerj e confessou o esquema de rachadinha.

No entanto, na segunda-feira da semana passada (23/08), o ministro do STJ João Otávio de Noronha, em decisão individual, acolheu recurso de Fabrício Queiroz e mandou suspender também a análise dessa nova denúncia, sob o argumento de que ela reaproveitava provas já anuladas.

Com esta decisão em vigor, seja qual for a determinação da Segunda Turma do STF sobre o foro do senador, o caso deve seguir parado na Justiça, ao menos até que a validade da nova denúncia seja julgada pela Quinta Turma do STJ.

Noronha também é visto como um aliado de Bolsonaro no Judiciário e chegou a receber elogios públicos do presidente no ano passado, quando presidia o STJ.

"Prezado Noronha, permita-me fazer assim, presidente do STJ. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário. Muito obrigado a Vossa Excelência", disse Bolsonaro, em cerimônia no Palácio do Planalto.

3) Quais são as acusações contra Flávio e o que diz a defesa?

As suspeitas envolvendo Flávio Bolsonaro vieram à tona no final de 2018 com a revelação de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontando movimentações vultosas de recursos por Fabrício Queiroz, que era funcionário do seu gabinete na Alerj.

Queiroz, antigo amigo de Jair Bolsonaro, é acusado pelo Ministério Público de ser o operador do esquema de rachadinha - ou seja, seria ele que gerenciava a contratação dos funcionários fantasmas, o recolhimento dos salários e o repasse desses valores ao filho do presidente.

Os promotores dizem ter levantado provas de que esse dinheiro era usado por Queiroz para pagar na boca do caixa contas da família de Flávio, como boletos do plano de saúde ou da mensalidade escolar das filhas. Além disso, afirmam que parte do recurso desviado era lavada através do investimento em imóveis e por meio de uma loja de chocolate que o senador possui em um shopping no Rio de Janeiro.

Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz negam que tenham desviado recursos do gabinete da Alerj por meio de funcionários fantasmas. A versão de Queiroz é que recolhia parte dos salários para conseguir contratar mais pessoas para atuar pelo mandato de Flávio no Estado do Rio de Janeiro. Ele nunca apresentou provas disso.

Já o hoje senador afirma que não tinha conhecimento do que seu ex-assessor fazia e nega ter sido beneficiado pelo esquema. Ele também se diz perseguido politicamente pelo Ministério Público.

Em julho, uma série de reportagens do portal UOL revelou gravações de pessoas que teriam atuado como funcionários fantasmas nos antigos gabinetes de deputado federal de Jair Bolsonaro e de deputado estadual de Flávio, aumentando os indícios de que a prática era adotada por ambos.

As novas revelações envolvem irmão de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe do quarto filho do presidente, Jair Renan Bolsonaro.

Em um áudio obtido pelo portal UOL, Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada de Bolsonaro, diz que seu irmão André foi demitido do gabinete do hoje presidente porque se recusava a devolver toda a quantia exigida pelo então deputado federal.

A reportagem informa que, após atuar por dois períodos no gabinete de vereador de Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) entre 2001 e 2006, André passou a integrar a lista de funcionários do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados em novembro de 2006, sendo demitido em outubro de 2007.

"O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6.000, ele devolvia R$ 2.000, R$ 3.000. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: 'Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'", diz Andrea na gravação obtida pelo UOL.

Em outro áudio, Andrea revela também que devolvia a maior parte do salário recebido por ela mesma como funcionária do gabinete de Flávio Bolsonaro. "Eu ficava com mil e pouco e ele ficava com sete mil reais, então assim, certo ou errado agora já foi, não tem jeito de voltar atrás", diz ela, que antes também foi funcionário do gabinete de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonaro também é suspeito de ter praticado rachadinha quando era deputado federal. Foto: Alan Santos/PR

Os áudios são de conversas ocorridas entre 2018 e 2019. O UOL preservou o sigilo da fonte que disponibilizou as gravações.

Na ocasião, a defesa do senador divulgou uma nota questionando a validade dos áudios revelados pelo portal UOL.

"Gravações clandestinas, feitas sem autorização da Justiça e nas quais é impossível identificar os interlocutores não é um expediente compatível com democracias saudáveis. A defesa, portanto, fica impedida de comentar o conteúdo desse suposto áudio apresentado pela reportagem", diz a manifestação assinada pelos advogados Luciana Pires, Rodrigo Roca e Juliana Bierrenbach.

A nota dizia também que Andrea Siqueira Valle "trabalhou na Alerj e cumpria sua jornada dentro das regras definidas pela assembleia".

"Flávio Bolsonaro, nas suas atividades parlamentares, não tinha como função fiscalizar e orientar a forma como a servidora usufruía do seu salário", acrescentam os defensores.

Os advogados alegaram ainda que Flávio Bolsonaro, quando era deputado estadual, "nunca recebeu informação ou denúncia de que havia qualquer irregularidade no seu gabinete ou em relação ao pagamento dos colaboradores".

"Portanto, não passa de insinuação e fantasia a ideia de que o parlamentar participou de qualquer atividade irregular. Esse é apenas mais um ingrediente na narrativa que tentam armar contra a família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro confia na Justiça e tem a certeza de que a verdade prevalecerá", concluía a nota.

Após as reportagens do UOL, a PGR abriu uma investigação preliminar para apurar eventuais crimes de Jair Bolsonaro. No entanto, caso as suspeitas se confirmem, ele só poderá ser denunciado após deixar o cargo, já que a Constituição impede que o presidente seja punido por eventuais crimes anteriores ao seu mandato.

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58389961


Elio Gaspari: Luiz Fux comeu a jabuticaba

Alteração no regimento do STF levou para o plenário questões penais que envolvem foro privilegiado

Ao alterar o regimento do Supremo Tribunal Federal levando para o plenário questões penais que envolvem maganos com foro privilegiado, o presidente do Supremo Tribunal, ministro Luiz Fux, limitou o alcance da jabuticaba das duas turmas da Corte. Com a provável chegada de Kassio Nunes à segunda turma, no lugar de Celso de Mello, Gilmar Mendes reinaria absoluto. Com o seu voto, o de Kassio, mais o de Ricardo Lewandowski, formariam maiorias automáticas, inclusive nos processos da família Bolsonaro.

Isso no varejo. No atacado, Fux fez muito mais, pois as turmas do Supremo são uma jabuticaba criada no século passado. Não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas. A Constituição diz que os ministros são 11, e 11 deveriam ser os ministros que decidiriam. Gilmar Mendes não gosta que se busquem paralelos na Corte Suprema dos Estados Unidos, mas lá só há turmas quando os juízes fazem ginástica no último andar do prédio.

A providência é tão cristalina que Gilmar Mendes não gostou, mas votou a favor da mudança, decidida por unanimidade.

A provável chegada de Kassio Nunes ao Tribunal, com seu currículo e seu percurso, obrigará Fux e seus colegas a trabalhar para recolocar a composição nos trilhos. Limitando o poder das turmas, a bola volta ao centro do campo, e as decisões que envolvem maganos com foro privilegiado vão para o plenário. A menos que se faça uma pirueta, muita coisa poderá acontecer em função dessa mudança, e mudará a qualidade da proteção de réus condenados por malfeitorias e roubalheiras. Aquilo que poderia ser resolvido com três conversas, precisará de pelo menos seis.

Paes e o óbvio
Com a segurança de um banqueiro alemão, doutor Eduardo Paes, ex-prefeito do Rio e candidato a um remake, anunciou: “Não faria a ciclovia da Niemeyer. É óbvio. É uma área frágil, entre o mar e a encosta. Morreram duas pessoas.”

Paes usa a expressão “é óbvio” de um jeito que os outros parecem bobos, e ele, esperto. O mar e a encosta já estavam lá quando ele resolveu fazer a ciclovia Tim Maia, “a mais bonita do mundo”, nas suas palavras. Quando ela desabou, em 2016, ele pontificou: “É óbvio que se essa ciclovia tivesse sido feita de forma perfeita, nós não teríamos essa tragédia, esse absurdo”. A ciclovia foi licitada, contratada e fiscalizada por seu governo.

Prefeito do Rio de 2009 a janeiro de 2017, Paes fez uma administração exuberante, com a Olimpíada (que deixaria um legado) e o Porto Maravilha. Resultou um Carlos Lacerda que deu errado.

Entre 1960 e 1965, Lacerda fez a adutora do Guandu e criou o parque do Aterro do Flamengo. Os dois estão aí até hoje. O legado da Olimpíada e o Porto viraram micos.

Paes disputa a prefeitura com Marcelo Crivella e seus parrudos e óbvios Guardiões comissionados.

Cadê?
Bolsonaro diz que acabou com a corrupção no governo. Como Lula diz que nunca houve corrupção no dele, vá lá.

Mesmo assim, falta explicar porque em agosto de 2019 o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets, coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria-Geral da União descobriu que o sistema estava viciado e mostrou que uma escola de Minas Gerais receberia 30.030 laptops para seus 255 alunos. Outras 355 deveriam receber mais de um equipamento para cada estudante.

O edital foi suspenso e depois cancelado. De lá para cá, passaram pelo MEC quatro ministros, e pelo FNDE, cinco presidentes. Nunca se explicou como o tal edital foi concebido, como tramitou nem quem foi seu patrono.

Detalhe: o jabuti foi percebido, interceptado e neutralizado pelos mecanismos de controle do governo de Bolsonaro, mas o dono do bichinho continua no escurinho de Brasília.

Prêmio Nobel
O ano de 2020 entrará para a história do Prêmio Nobel como aquele em que se quebrou a barreira do gênero na ciência. Duas mulheres ganharam o prêmio de Química e uma compartilhou o de Física. (Como dizia Larry Summers, o presidente de Harvard que foi defenestrado, as mulheres não têm aptidão para a ciência.)

Andrea Ghez, que ganhou o prêmio de Física, é neta de um judeu que foi para os Estados Unidos depois da promulgação das leis racistas do fascismo italiano.

O pai de Andrea nasceu em Nova York em 1938, quando o alemão Otto Hahn descobriu a fissão nuclear. Trabalhava com ele a cientista Lise Meitner. Por judia, foi demitida da universidade e teve que fugir da Alemanha; por mulher, foi esquecida. Hahn ganhou o Nobel sem reconhecer a participação de Meitner na descoberta.

Algum dia, Lise Meitner terá o devido reconhecimento. Se não for pela sua participação nas pesquisas da fissão, que seja pelo fato de que, em 1943, foi convidada para um projeto secreto anglo-americano. Ela sabia o que se queria e recusou a oferta: “Não quero ter nada a ver com a bomba.”

Em agosto de 1945, quando Hiroshima foi destruída, Meitner esfriou a cabeça caminhando por cinco horas e à noite anotou em seu diário: “Ninguém entendeu nada.”

Grande Witzel
Citando Gilberto Amado, um beija-flor de vaidade, o professor Joaquim Falcão resumiu a patetada de Kassio Nunes ao turbinar seu currículo:

“Ser mais do que se é, é ser menos.”

Turbinar currículo é um vício recente. A mania pegou Dilma Rousseff, Damares Alves, Ricardo Salles, Marcelo Crivella, Carlos Alberto Decotelli e Wilson Witzel.

Nesse grupo, quem brilhou foi Witzel. Em vez de fraudar títulos de universidades comuns ou até chumbregas, mentiu grande e anunciou-se diplomado por Harvard, onde nunca pisou.

Em tempo: o ministro Celso de Mello, em cuja cadeira Kassio Nunes quer sentar, foi um dos maiores juízes da Corte. Era apenas advogado, sem mestrado nem doutorado.

Destruição destruidora
A geração que nasceu depois de 1955, como Jair Bolsonaro, deve ter sido a única na História humana que financiou a criação de três polos de construção naval. Houve o de Juscelino Kubitschek, o de Ernesto Geisel e o de Lula. Três fracassos, muitas roubalheiras, um pior que o outro.

Agora o governo apresentou em regime de urgência um projeto de lei apelidado de BR do Mar, que vai na direção contrária e poderá resultar na destruição das empresas de cabotagem que existem no Brasil. Não houve debate, não se conhecem estudos técnicos e há o risco de se entregar esse mercado a um cartel de grandes empresas internacionais às vezes associadas a grupos brasileiros. A ideia da BR do Mar pode ter virtudes, mas levada a tapa no escurinho de Brasília, tem tudo para dar errado.

Guedes fatiado
O centrão está em marcha batida para fatiar o Ministério da Economia.

Há dois anos, Paulo Guedes prometia combater “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político”.

Está sendo obrigado a conviver com eles.


José Casado: Privilégios e impunidade

Disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta

Judiciário e Ministério Público perderam a bússola em disputas pelo foro privilegiado —mecanismo institucional que, para muitos, simplifica a rota da impunidade para poucos. Tem tribunal estadual anulando decisão do Supremo e procurador em luta contra procuradores, para garantir tratamento especial a políticos suspeitos de crimes comuns.

Há 55 mil agentes públicos nesse cercadinho judicial. Rio, Bahia e Piauí abrigam 11 mil privilegiados. A lista vai do presidente da República a vereador; de senador a reitor de universidade; de juiz a delegado.

Semanas atrás, o Tribunal de Justiça do Rio deu a regalia a um filho do presidente, Flávio Bolsonaro, político notório pelo talento para lucrar muito, várias vezes e rapidamente.

Era deputado estadual quando comprou uma quitinete na Prado Júnior, em Copacabana. Revendeu-a 60 semanas depois com o extraordinário lucro de 292%. A valorização na área havia sido de 11% (índice FipeZap). Fez mais 18 negócios assim na Barra, Botafogo e Laranjeiras.

Personagem do inquérito sobre rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio, o ex-deputado reivindicou no STF o foro privilegiado de senador. O juiz Marco Aurélio Mello rejeitou. Ele apelou ao tribunal estadual, que inovou. Deu-lhe o privilégio e transformou em letra morta a decisão do Supremo.

Procuradores do Rio recorreram contra a inovação da Justiça fluminense. Entrou em campo o procurador-geral, Augusto Aras, como relatou a repórter Bela Megale. Aras acha que o filho do presidente merece ficar longe do juízo de primeira instância. Agora, o procurador-geral batalha para derrotar os procuradores do Rio no Supremo. Quer ver rejeitada a decisão de Mello, que foi baseada na jurisprudência do próprio STF.

Há uma lógica de poder nessa aparente anarquia institucional — a de que alguns são mais iguais que outros. A disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta no serviço público: 80% dos beneficiários estão no Judiciário e no Ministério Público, mostra estudo de João Cavalcante Filho e Frederico Lima, consultores legislativos.


Merval Pereira: Mandatos cruzados

Surpreendente, devido às posições anteriores de contenção do foro privilegiado, mas nem tanto, pelas decisões recentes alinhadas ao governo Bolsonaro, o posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR), defendendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) recuse o recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que questiona decisão do Tribunal de Justiça do Rio a favor do foro privilegiado do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” não tem como prosperar se a jurisprudência do Supremo for seguida, como tem sido até hoje.

O caso mais emblemático é o do atual deputado e ex-senador Aécio Neves, cujos casos foram enviados para a primeira instância em decisões das Primeira e Segunda Turmas. No de Flavio Bolsonaro, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio fez com que as investigações voltassem para o STF.

Estavam na primeira instância pelo entendimento de que os casos ocorreram quando ele era deputado estadual, e, portanto, pela interpretação do Supremo de 2018 de que o foro privilegiado só serve para crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, não tinham nada a ver com o atual cargo de senador.

A grande discussão levantada tanto pela defesa de Flavio Bolsonaro quanto pela PGR é sobre “mandatos cruzados” ou “mandatos prolongados”, quando um político passa de um cargo para outro em eleições seguidas, que não estariam tratados na decisão do Supremo. “Da mesma forma que não há definição pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre ‘mandatos cruzados’ no nível federal, também não há definição de ‘mandatos cruzados’ quando o eleito deixa de ser representante do povo na casa legislativa estadual e passa a ser representante do Estado da Federação no Senado Federal (câmara representativa dos Estados federados)”.

Alegando que não há essa definição, a PGR diz que a reclamação do Ministerio Público do Rio é indevida pois “não pode ser usada para alcançar entendimento inédito” no STF. Essa falta de definição é questionada em particular por muitos dos ministros do Supremo, mas o ministro Marco Aurélio Mello já se pronunciou na ocasião, afirmando que a decisão "desrespeitou, de forma escancarada" o entendimento do STF sobre o alcance do foro privilegiado.

A Primeira Turma do STF, acompanhando por maioria o parecer do próprio Marco Aurélio, decidiu no ano passado enviar para a Justiça Federal de São Paulo inquérito que investigava denúncias de dirigentes da JBS sobre fatos ocorridos quando Aécio Neves era senador por Minas Gerais.

Os deputados estaduais são julgados pelos Tribunais de Justiça, mas deputados federais e senadores são da alçada do Supremo. Diferentemente de Flavio Bolsonaro, que mudaria de instância, Aécio Neves poderia alegar que continuava sob a jurisdição do STF, pois passou de senador a deputado federal.

Mas o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu que os casos aconteceram num mandato que já se esgotara e, portanto, o deputado mineiro já não não tinha foro privilegiado em relação a eles. Por esse entendimento majoritário no STF, tanto Aécio quanto Flavio não têm mais o mandato em que os fatos ocorreram, e portanto devem ser julgados como qualquer outro cidadão, na primeira instância.

Também os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em que o presente caso de Flavio Bolsonaro será julgado, enviaram inquéritos de Aécio para a Justiça Eleitoral. A maioria dos ministros do Supremo considera desnecessária a especificação cobrada pela Procuradoria-Geral da República, pois ambas as Turmas têm usado a mesma interpretação da legislação.

Se houver, no entanto, uma mudança de entendimento da Segunda Turma, é certo que será preciso uma revisão do plenário, para dirimir dúvidas sobre os “mandatos cruzados”. Mesmo que a decisão futura do plenário não favoreça a tese do Tribunal de Justiça do Rio, que lhe deu foro privilegiado no STF, o senador Flavio Bolsonaro não perderia esse privilégio, pois a lei só retroage em benefício do réu, nunca contra.


O Globo: Veja o destino de alguns casos que hoje estão no STF, após restrição da prerrogativa

Foro privilegiado: Veja o que acontece com os processos de Aécio, Bolsonaro e outros políticos 

BRASÍLIA — O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na quinta-feira restringir o foro privilegiado para deputados e senadores. Agora, só serão processados na Corte os congressistas investigados por fatos relacionados ao mandato, cometidos durante o exercício do cargo. A decisão, tomada com os votos de sete dos 11 ministros do tribunal, vai provocar a transferência de inquéritos e ações penais para a primeira instância do Judiciário.

Ainda não há um levantamento de quantos processos serão afetados, até porque muitas situações, segundo o próprio autor da proposta, o ministro Luís Roberto Barroso, continuam em aberto. Ele reconheceu que em alguns casos será difícil definir se o crime cometido durante o mandato tem ou não relação com o exercício do cargo. Entre os 21 inquéritos com denúncia e ações penais que integram a Lava-Jato e seus desdobramentos no STF, dez devem permanecer na Corte, dez geram dúvidas sobre qual será seu destino e apenas um deve ser baixado.

Veja aqui o futuro de alguns processos e inquéritos de senadores e deputados que tramitam hoje no STF:

DESCEM PARA A 1ª INSTÂNCIA

Aécio Neves

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Em um dos nove processos a que responde no Supremo, o senador tucano é investigado por ter recebido da Odebrecht propina de R$ 5,2 milhões na construção da Cidade Administrativa, quando era governador de Minas Gerais (2003-2010). Pela tese aprovada no STF, o inquérito deixa a Corte e vai para a primeira instância.

Fernando Bezerra

O senador foi denunciado pela PGR pelo recebimento de R$ 41,5 milhões de propina de empreiteiras que executaram obras na refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. À época, ele ocupava cargos no governo estadual. Caberá a Edson Fachin mandar o processo para a primeira instância, como defende a proposta de redução do foro, ou para o TJ.

FICAM NO STF

Quadrilhão do PMDB

Em setembro de 2017, a PGR denunciou um grupo de senadores do PMDB, acusando-os de participar de uma organização criminosa que deviou dinheiro dos cofres públicos. Os alvos foram Edison Lobão (MA), Jader Barbalho (PA), Renan Calheiros (AL), Romero Jucá (RR) e Valdir Raupp (RO). Segundo a denúncia, a atuação criminosa deles é até os "dias atuais", ou seja, já durante o exercício atual do mandato.

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Romero Jucá

O senador é réu no STF por ter recebido R$ 150 mil da Odebrecht em doação eleitoral, em 2014. Em troca, teria usado o mandato para apresentar emendas em projetos que favoreceram a empreiteira. Como o caso é relativo ao mandato, seria mantido no Supremo mesmo com a alteração na regra. Ele é acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

DÚVIDA

Quadrilhão do PP

A PGR denunciou um grupo de parlamentares do PP por atuação na organização criminosa investigada na Lava-Jato que desviou dinheiro dos cofres públicos. O grupo, que inclui o presidente do partido, senador Ciro Nogueira (foto), teria atuado até 2014, antes do mandato atual. Casos ocorridos em mandatos anteriores são uma questão em aberto.

Jair Bolsonaro

O deputado responde a processo por ter afirmado, em 2014, que sua colega Maria do Rosário não servia para ser estuprada por ser feia. Sua defesa afirma que sua declaração está protegida pela imunidade parlamentar. Caberá ao Supremo decidir se o caso tem relação com a função e como fica a situação pelo fato ter ocorrido no mandato anterior.

 


Fernando Gabeira: O choro privilegiado

Se a maioria não consegue impor uma decisão, desperta uma certa compaixão...

Há coisas na democracia brasileiro que não entendo bem. Uma delas é essa possibilidade que o Supremo dá ao ministro com voto vencido de pedir vista e adiar a decisão da maioria. Talvez essa dificuldade se explique pelo fato de ter uma experiência parlamentar, na qual defendi causas minoritárias.

No Parlamento, depois que a maioria se manifesta, o resultado é proclamado e só resta ao perdedor fazer uma declaração de votos, o direito de espernear, como dizíamos no plenário. Daí não entendo por que o ministro Dias Toffoli pode adiar a proclamação de um resultado indiscutível numericamente. Tenho a impressão de que, se me fosse dada a chance de bloquear uma decisão majoritária, hesitaria.

De certa forma, eu me sentiria numa brincadeira que perdeu a graça. Se a maioria não consegue impor uma decisão majoritária, acaba despertando certa compaixão pela sua fragilidade.

Os defensores do foro privilegiado já perderam a batalha. Deveriam contentar-se com o choro e abrir mão de manobras protelatórias. Adiar a decisão apenas atrasa uma experiência que já foi decidida, no debate pela imprensa, nas redes sociais, nos movimentos cívicos e nas pesquisas de opinião.

Um grupo minoritário de ministros do Supremo não pode decidir o que é melhor para nossa experiência democrática. No Brasil, o atraso é tão entranhado nos costumes que se consagra até o direito de atrasar, que agora está sendo exercido pelo ministro Toffoli.

Mas não é só desejo de voto mais pensado. Ele tem algo articulado com os políticos, os principais interessados em manter o foro privilegiado.
Enquanto o STF pisa no freio, a Câmara se apressa a votar um projeto no mesmo sentido, restringindo o foro privilegiado.

Aí pode entrar um gato: a extensão do foro privilegiado aos ex-presidentes, algo que favorece Temer, Lula e Dilma, até Collor, quando deixar o mandato de senador. É realmente algo inédito no mundo: o País que derrubou dois presidentes no período de democratização conclui que devem ser protegidos também depois do mandato.

Durante o mandato presidencial, já são de certa forma blindados. Só podem ser processados por crimes posteriores à sua posse. Assim mesmo, quando são acusados por crimes cometidos durante o mandato, a investigação é submetida à Câmara, onde a maioria é hostil à Lava Jato.

Estamos todos atentos, embora a atenção nem sempre baste para inibir os políticos desesperados. Eles nem se importam mais com as consequências para a democracia.

As coisas podem não ser tão simples como se pensa. Num programa de televisão, Gustavo Franco, ao lançar seu livro sobre a história monetária no Brasil, afirmou que o mercado acha que qualquer dos candidatos favoritos no momento continuará a reconstruir o País.

No caso do PT, o mercado tem esperanças de que, vitoriosa, a esquerda volte a se encontrar com a classe média e abrande sua linha. Não tem sido esse o discurso do PT. Lula afirmou várias vezes que vai estabelecer o controle social da imprensa. Em quase todas as análises, a esquerda conclui que foi derrubada porque não soube radicalizar.

Pelo menos no discurso, o caminho aponta para a Venezuela. Além do mais, tenho minhas dúvidas quanto à reconciliação com a classe média. Acho, sinceramente, muito improvável, mesmo com a ampla admissão dos erros e das trapaças.

No caso de Bolsonaro, tudo indica que caminha para uma visão liberal na economia, dura na repressão ao crime e conservadora nos costumes. É formula que tenta conciliar o avanço do capitalismo com as tradições que ele, naturalmente, dissolve na sua expansão global.

Tanto para os eleitores de Trump como para os de Bolsonaro, há uma força nostálgica em movimento. Voltar atrás, no caso americano, explorando carvão, tentando ressuscitar áreas industriais arruinadas. No caso brasileiro, voltar aos tempos do regime militar, durante o qual não houve escândalos de corrupção nem a violência urbana.

O Brasil de hoje é muito diferente do País dos anos 1960. E também não é o mesmo dos anos 1990, quando o PT chegou ao poder.

O economista Paulo Guedes, que deverá ser o homem da economia na campanha Bolsonaro, afirmou que, ao se encontrarem os dois, uniram-se ordem e progresso. Se entendemos por ordem o combate à corrupção e uma política de segurança eficaz, tudo bem. Mas a eficácia não se mede pelo número de mortos, e sim pelas mortes evitadas. E o progresso? Assim como está no lema da Bandeira, é bastante vago. Muitos o associam ao crescimento econômico.

Mas tanto os marxistas como os liberais tendem a uma visão religiosa do mundo, abstraem a limitação dos recursos naturais, algo que envolve todas as espécies. Num contexto de campanha radicalizada, qualquer das hipóteses terá muita dificuldade em governar um País dividido. E no processo de reconstrução será preciso encontrar alguns pontos que unam a Nação para além de sua clivagem ideológica.

Na sua entrevista ao Roda Viva, Gustavo Franco deu uma pista que me pareceu interessante: ao invés de falarmos tanto em reformas, sempre empurradas com a barriga, por que não buscar uma sociedade de inovação? Essa história de deixar as coisas apodrecendo, mas só mexer nelas em reformas, tem de ser substituída por uma ideia de inovação permanente.

É esse o mundo em que vivemos. Se não nos adaptamos a ele, seremos, de certa forma, engolidos.

A campanha eleitoral ainda nem começou. Fala-se num candidato de centro. De fato, suas chances serão boas. No entanto, na política não se trabalha apenas com chances, mas também com a encarnação da proposta, o candidato.

O PSDB, com Alckmin, fala em choque de capitalismo, algo que vi e ouvi em 98. De choque em choque, vai acabar a energia. Um mesmo empresário alemão levou 56 dias para abrir uma empresa em São Paulo e apenas 24 horas para abrir outra nos EUA. Que tal segurar os fios e experimentar o choque antes de aplicá-lo no País?

 


Merval Pereira: Proteção especial

Além da discussão própria do tema polêmico, a restrição do foro privilegiado terá um capítulo especial que certamente ganhará destaque: a definição sobre o alcance da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), se e quando houver um desfecho consequente do caso. Pela visão do relator, o ministro Luís Roberto Barroso, a decisão abrange todos os cargos que têm hoje foro privilegiado, que passaria a valer apenas para crimes acontecidos durante o mandato e em consequência dele.

O ministro Dias Toffoli, que pediu vista do processo, já anunciou que não devolverá os autos até o início do ano que vem, isto é, depois do recesso do Judiciário. Como alegou que sua obstrução tem como objetivo permitir que o Congresso decida sobre o caso, já que entende que cabe a ele alterar a legislação em vigor, o mais provável é que, enquanto a Proposta de Emenda Constitucional estiver tramitando na Câmara, o ministro Toffoli nada fará.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, já marcou um encontro com a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, para combinar uma ação conjunta que não provoque um choque entre Poderes, como explicou Maia. Tudo leva a crer que o assunto morrerá em alguma gaveta até que o panorama político esteja desanuviado, pois é impossível antever a Câmara empenhada em acabar com o foro privilegiado para seus componentes e também para os senadores.

O que pode acontecer, isso sim, é que na Comissão Especial da Câmara que analisará a questão sejam feitas tantas alterações quantas sejam necessárias para acomodar todos os interesses, até mesmo, no limite, a ampliação do foro privilegiado para os expresidentes, que poderiam ser transformados em senadores vitalícios, como acontece em outros países.

Essa seria, inclusive, uma saída para Lula desistir de se candidatar à Presidência, única instância, no momento, para que ele escape das consequências de uma condenação definitiva. A decisão do STF que já tem a maioria, mas foi esterilizada pelo pedido de vista obstrutivo de Toffoli, não terá, ao que tudo indica, consequência prática, já que ou a Câmara engavetará o tema, ou fará uma emenda constitucional que a tornará inócua.

Ainda mais que o ministro Luís Roberto Barroso, após a sessão, tomou a iniciativa de anunciar que a decisão, que já tem a maioria de sete votos, tem validade para todos os casos de foro privilegiado, e não apenas para deputados e senadores, como previsto.

O próprio Barroso, durante o julgamento, ao ser questionado pelo ministro Alexandre de Moraes, disse que a decisão que estava sendo tomada só se referia a parlamentares federais, pois estava em julgamento o caso de um ex-prefeito que se elegera deputado federal, levando seu processo para o STF depois de ter passado pela primeira instância e pelo STJ, no que a Justiça está chamando de gangorra judiciária.

Depois da sessão, porém, Barroso alegou que naquele momento não pensara no assunto, mas que uma análise mais apurada indica que a decisão deve valer para todos os milhares de servidores que têm foro privilegiado. Barroso lembrou que o ministro Celso de Mello e a própria presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, em um aparte ao voto do decano, falaram sobre a possibilidade de juízes do Supremo serem julgados pela primeira instância da Justiça.

Cármen Lúcia chegou a dizer que essa seria uma maneira de demonstrar que o STF valorizava o sistema judiciário brasileiro. Essa ampliação da abrangência da decisão do Supremo certamente ajudará a paralisar o processo, até que a Câmara tome a sua decisão. Ou fará com que ministros mudem seus votos.

Mas tudo só acontecerá, ao que tudo indica, com o novo Congresso, já que, se a Câmara alterar a PEC, ela terá que retornar ao Senado, onde já foi aprovada em termos bastante radicais, que acabam com o foro privilegiado de todos, com exceção do presidente da República e seu vice, e presidentes da Câmara, Senado e do STF.

Correção
A votação do STF sobre restrição do foro privilegiado na quinta-feira estava em 6 a 0 quando o ministro Toffoli pediu vista, e não 6 a 1 como escrevi na coluna de ontem. O ministro Celso de Mello deu seu voto mesmo depois do pedido de vista, fazendo o placar de 7 a 0. O 7 a 1 metafórico ficou por conta de Toffoli que, embora não tenha votado, interrompeu o julgamento, fazendo com que sua posição isolada até aquele momento prevalecesse sobre a maioria de sete votos.

 


Eliane Cantanhêde: Estouro da boiada

 

Revisão do foro vai livrar o Supremo do peso e jogar 90% na primeira instância

Vem aí um grande estouro da boiada com o fim anunciado do foro privilegiado para deputados e senadores em caso de crimes comuns e anteriores ao mandato. O Supremo se livra de cerca de 800 privilegiados, a vida dos juízes de primeira instância vai mudar um bocado e muitos parlamentares vão começar a refletir se vale mesmo a pena disputar a reeleição.

Os advogados terão muito trabalho e seus honorários polpudos estão garantidos. O primeiro cálculo é em que casos vale ou não a pena tirar seus clientes poderosos do Supremo para enfrentar a primeira instância nos Estados. Para alguns investigados, pode ser o paraíso. Para outros, o inferno. Depende das relações que tenham na Justiça local e, obviamente, o caráter e compromisso de cada juiz.

Em tese, um juiz amigão pode ajudar bastante, mas um que seja amigão do adversário pode ser tentado a usar sua prerrogativa de autorizar quebra de sigilos telefônicos, fiscais e bancários. E há muitas dúvidas de ordem prática.

Antes de pedir vista, o ministro Dias Toffoli já antecipou algumas dessas dúvidas em perguntas ao relator Luís Roberto Barroso que vão virar uma enxurrada de embargos, petições e questionamentos ao STF. Por exemplo: o que acontece com o deputado acusado de receber propina como prefeito, mas que continuou recebendo na Câmara?

Hoje, há um sobe e desce de instância dependendo de qual mandato o político tem em cada momento. Mas, apesar do adiamento do resultado final e das dúvidas, o fato é que o Supremo deu um passo não apenas para acabar com um de tantos privilégios e tornar a Justiça mais igual, como também um passo de reencontro com a opinião pública.

Note-se que o STF é dividido ao meio, mas a decisão é inegavelmente majoritária. Ao decidir antecipar o seu voto, o decano Celso de Mello teve a evidente intenção de sedimentar uma decisão praticamente consensual e dar uma resposta, e um alívio, para a sociedade. Foi um sinal, um símbolo.

A decisão é comemorada de Norte a Sul por movimentos de combate à corrupção e por cidadãos e cidadãs exaustos com a extensão e os valores desviados do público para o privado. Entretanto, a questão não é tão simples assim. Os princípios de igualdade são inquestionáveis, mas todos sabemos o quanto, entre o discurso e a prática, vai uma distância enorme. Passada a festa, vai ficar claro que acabar ou revisar o foro não é uma panaceia para todos os males da Justiça nacional.

O que move a ira da sociedade contra o foro privilegiado é principalmente a lentidão do Supremo, mas a Corte julgou, condenou e mandou prender rapidamente no mensalão, enquanto o ex-governador Eduardo Azeredo está sendo julgado até hoje em Minas, seu Estado, por eventos de 20 anos atrás.

Já era previsto um placar com margem folgada (considerando o ministro Ricardo Lewandowski, que está de licença) e o pedido de vista. Se houve uma surpresa foi a força da argumentação dos vitoriosos e o isolamento de Toffoli e de Gilmar Mendes.

Eles foram acompanhados em parte por Alexandre de Moraes, criando uma situação curiosa: Gilmar tem relações diretas com o presidente Michel Temer, Toffoli teve um encontro em particular com Temer às vésperas da votação e Moraes foi ministro da Justiça do atual governo, que o indicou para o STF.

O presidente trabalha para manter o foro privilegiado tal como está? E com que objetivo? A resposta pode estar no Congresso, que vota simultaneamente uma emenda à Constituição que revisa o foro não só para parlamentares, mas para quase todas as autoridades, até mesmo juízes. E pode fazer o contrário com ex-presidentes: hoje, eles não têm foro privilegiado, mas passariam a ter. Já imaginaram Lula sem Sérgio Moro nos calcanhares?

 


Merval Pereira: Foro pode ser adiado

Mais uma vez, pode ser que manobras regimentais impeçam que o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre restrições ao foro privilegiado se conclua hoje, até mesmo por novo pedido de vista. A justificativa dos que não querem uma decisão definitiva é que o Congresso está tratando do assunto e não caberia ao STF legislar, se imiscuindo em um assunto que diz respeito ao Congresso.

Foi assim em maio, quando o ministro Luís Roberto Barroso, relatando o caso de um prefeito, propôs alterações no regime de foro especial por função. Já havia uma emenda constitucional tramitando no Senado, e a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, não colocou o assunto na pauta antes, esperando uma decisão do Congresso.

Como a tramitação da emenda constitucional não progredia, pois, além da análise da Comissão de Constituição e Justiça, seriam necessárias duas votações para encaminhar o projeto para o Senado, a presidente do Supremo recolocou-o na pauta daquele mês.

A proposta afinal aprovada no Senado é bem mais ampla que a decisão que o STF poderá tomar, pois o caso em pauta apenas restringe o foro privilegiado, mas não o extingue no processo em que o relator, ministro Luís Roberto Barroso, aproveitando o caso de um prefeito de Cabo Frio, defendeu a interpretação restritiva do foro privilegiado.

Imediatamente, o Senado colocou em discussão uma proposta de emenda constitucional muito mais rigorosa do que a defendida por Barroso. Enquanto o ministro propôs que o foro privilegiado só abrangesse crimes cometidos durante o mandato, e em decorrência do mandato, a proposta do senador Álvaro Dias, relatada por Randolfe Rodrigues, acaba com o foro privilegiado, sendo exceções o presidente da República e seu vice, o presidente do Supremo Tribunal Federal e os presidentes da Câmara e do Senado.

Como muitos desconfiavam, a intenção dos senadores ao aprovar em primeiro turno o fim do foro privilegiado para todos os níveis não era resolver a questão através de uma emenda constitucional, mas fazer o Supremo Tribunal Federal (STF) retirar de sua pauta o tema e ganhar tempo para controlar o processo decisório.

No julgamento do STF, o recém-chegado ministro Alexandre de Moraes pediu vista, mas três ministros anteciparam seus votos — a própria presidente Cármen Lúcia, a ministra Rosa Weber e o ministro Marco Aurélio Mello, todos acompanhando o relator, com pequenas alterações. Queriam demonstrar que não concordavam com o pedido protelatório de Moraes.

Somente agora o ministro devolveu o processo, que voltou à pauta para a sessão de hoje. Não por acaso, a proposta de emenda constitucional que está na Câmara, depois de passar no Senado seis meses, deu o primeiro passo ontem, ao ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça. Terá ainda que passar por uma Comissão Especial para depois ir a plenário, em duas votações.

Embora o deputado Efraim Filho, relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, tenha comemorado a aprovação por unanimidade, é previsível que outros seis meses, pelo menos, serão gastos na tramitação do projeto, sem contar com os meses de recesso de fim de ano e o Carnaval. Com o início das campanhas eleitorais, provavelmente este assunto não será tratado pela Câmara no próximo ano, mas é provável que hoje, na reunião do plenário do Supremo, algum dos ministros peça vista novamente, alegando justamente que o Congresso já está tratando do assunto.

Enquanto isso, tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes. Com a possibilidade de que o foro privilegiado seja até ampliado para os ex-presidentes, num acordão suprapartidário para beneficiar diretamente Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer.

 


Cristovam Buarque: O foro jurídico privilegiado aos políticos deve ser abolido de imediato

República deve ser o sistema social e econômico que assegura a todos os mesmos direitos, mas a brasileira usa foro privilegiado para políticos, rompendo as bases republicanas, até porque estes processos se alongam tanto que prescrevem antes do julgamento, deixando impunes os “nobres da República”. Para corrigir esta deformação bastaria aprovar as reformas da Constituição propostas pelo senador Álvaro Dias e pelo deputado Rubens Bueno, eliminando o foro privilegiado que protege políticos com mandato. Mas isso não bastaria para fazer uma República, porque o regime brasileiro apresenta outros privilégios incompatíveis com o espírito e a prática republicana.

Se a República é o regime dos direitos iguais, é preciso quebrar o foro privilegiado à vida, que assegura a alguns o direito de manter-se vivo por comprar os serviços de saúde, enquanto outros morrem por falta do dinheiro necessário. O Brasil não será republicano enquanto prevalecer a atual indecência do "foro privilegiado na saúde", que permite a um brasileiro com renda igual ou superior a dez salários mínimos ter a chance de viver sete a oito anos mais do que aquele com renda igual ou inferior a dois salários mínimos.

É preciso acabar também com o foro privilegiado que restringe o acesso à educação de qualidade apenas para quem pode pagar por uma boa escola privada ou para os poucos que conseguem entrar em uma das instituições de ensino públicas de qualidade, como as federais. Especialmente no mundo contemporâneo, a República exige que seja ofertada a mesma qualidade de ensino a todos, desde o nascimento e ao longo de toda a vida, guardadas as diferenças pelo talento, pela vocação, pela persistência e dedicação aos estudos de cada um, não pela renda da família ou a cidade onde vive. Além de ser indecente socialmente, a desigualdade no acesso à educação é uma estupidez econômica, porque impede a República de beneficiar-se do mais promissor de seus recursos: o cérebro educado e com pleno desenvolvimento das potencialidades de cada brasileiro.

O foro jurídico privilegiado aos políticos deve ser abolido de imediato, mas é preciso eliminar também os outros foros privilegiados pela renda no direito de viver e no direito de desenvolver o potencial intelectual de cada brasileiro, cidadão republicano, não mais súdito de um imperador como até 1889.

Além do foro jurídico, a consolidação da República exige fazer as reformas necessárias para pôr fim, no tempo possível, aos demais foros privilegiados. Para isso, é preciso responsabilizar a República pela implantação de um sistema educacional que assegure a mesma chance educacional a cada criança brasileira.

Apesar de o país ter então 6,5 milhões de analfabetos, quando a República brasileira foi proclamada, escolhemos uma bandeira com um lema escrito. Cento e trinta anos depois, a “república” tem quase o dobro daquele número. Tudo seria diferente, se no lugar de "ordem e progresso" tivessem escrito "educação é progresso", sem foros privilegiados.