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Vinicius Torres Freire: Economia não tem bala para enfrentar o coronavírus

Apenas para amainar crise, BC teria de jogar taxa real de juros para zero

O Banco Central do Brasil indicou que também vai cortar os juros: a crise mundial deve causar mais danos do que uma alta daninha do dólar.

Entenda-se: taxa de juros menor em tese favorece mais desvalorização da moeda brasileira; um real rapidamente desvalorizado pode provocar alta de preços. Porém, o risco de a economia brasileira travar é maior do que o de termos alguma inflação por causa do câmbio.

Foi o que o BC disse em nota publicada no fim da tarde desta terça-feira (3). Disse daquele "jeito BC", de contador diplomata fazendo neurocirurgia. Mas disse.

Se o BC vai mexer mesmo na taxa básica de juros, são outros quinhentos. A próxima decisão agendada sobre a Selic ocorrerá em duas semanas. Até lá, o mundo pode ter entrado em colapso financeiro ou ressuscitado para a primavera do hemisfério Norte.

Como se sabe, o BC dos EUA, o Fed, deu um talho grande na taxa básica de juros deles, em reunião extraordinária, o que não acontecia desde a epidemia provocada pela grande finança global, a crise de 2008.

O BC do Brasil, por sua vez, disse "estamos atentos, mas vai indo que (por ora) eu não vou". Em vez de cortar a Selic, soltou uma nota que, em parte, chancela a redução que já ocorreu na taxa básica de juros na praça financeira.

O mercado já derrubou os juros. Quer dizer, os negociantes no atacadão de dinheiro levaram a taxa básica da praça financeira para a casa de 3,8% ao ano. Na prática, não havia tanta confiança de que o BC baixaria os juros desde o início de dezembro de 2019.

E daí? Caso o BC reduza a Selic de 4,25% para 4% vai fazer diferença notável? Vai aumentar a imunidade contra o choque da desaceleração da economia mundial? Hum.

Desde os anos 1990, a variação do crescimento da economia brasileira está associada em 60% da variação do crescimento da China, pelo menos. Claro que, desde 2012, no mínimo, fazemos besteira suficiente para nos destruirmos sozinhos. Isto posto, uma derrocada chinesa é um problema grande, ainda mais nesta economia brasileira já doente.

O preço das commodities, do ferro, petróleo ou comida que o país vende, vai sofrer. Apesar de uma economia fechada, o Brasil vai sentir ainda a falta de insumos que importa da China para alimentar as fábricas.

Corremos também algum risco de choque de confiança e de medo em geral, como no resto do mundo: medo de aglomeração, comércios, viagem, feiras etc.

Um corte de 0,25 ponto percentual ou até maior não deve evitar a pancada externa nem diminuir o medo da doença. O BC pode ajudar a conter algum estrangulamento financeiro, que não é visível, por ora.

No mais, pouco a fazer. A prestar atenção: se as expectativas de inflação não baixarem e o BC tomar medida mais forte (Selic a 3,5%?), a taxa real de juros vai a zero no Brasil.

Muito importante, para nós também, será a atitude dos governos dos países centrais.

Os bancos centrais deles vão ter de recorrer de novo a políticas ditas heterodoxas. Juros negativos em quase todo o mundo rico tornam nulo o efeito de política monetária convencional. Está na pauta repetir as mirabolâncias para amainar a crise de 2008 (imprimir muito dinheiro, em última instância) e ajudar até pequenos negócios.

Se essa coisa não passar, os governos do mundo rico vão ter de gastar: em obras, no sistema de saúde, nas contas dos doentes e suas famílias (é uma proposta de Elizabeth Warren, senadora democrata e candidata a presidente dos Estados Unidos).


Roberto Simon: Ironias do pinochetismo brasileiro

Novo culto a Pinochet revela mais do que ignorância histórica

Depois de “o nazismo foi de esquerda”, a nova temporada na série de falsificações históricas do bolsonarismo tem o ditador chileno Augusto Pinochet como herói principal. O pinochetismo é outra ideologia que, depois de bem velhinha, veio morar no Brasil: a direita chilena hoje no poder, a começar pelo próprio presidente Sebastián Piñera, tenta ao máximo se afastar do pesadelo dos anos Pinochet.

Não por acaso, quando Jair Bolsonaro atacou o pai da ex-presidente Michelle Bachelet, torturado e assassinado pela ditadura chilena, Piñera —recém-chegado de Brasília, no auge da crise dos incêndios na Amazônia— foi forçado a ir à TV se distanciar do aliado brasileiro.

A ironia maior é que Pinochet representa a antítese de vários valores que o bolsonarismo diz representar.

Aos lavajatistas roxos, por exemplo, vale lembrar que Pinochet foi talvez o líder mais corrupto da história do Chile. Quem descobriu isso não foi Cuba, mas o Senado e o Departamento de Justiça dos EUA —o mesmo que ajudou o Ministério Público brasileiro a derrubar o cartel das empreiteiras, na era petista.

Quando os EUA apertaram o cerco contra lavagem de dinheiro, no pós-11 de setembro, encontraram milhões de dólares de Pinochet em um arquipélago global de contas secretas e offshores. A investigação acabou por destruir o Riggs Bank, de Washington, que ajudava o ditador a esconder a fortuna.

Aos saudosistas do regime militar brasileiro: seis meses após o golpe no Chile, Pinochet já havia se tornado uma figura tão tóxica que o novo presidente Ernesto Geisel, por meio do Itamaraty, pediu explicitamente que não viesse à sua posse, em Brasília. Ele veio mesmo assim, mas Geisel recusou convites insistentes para uma visita oficial ao Chile.

As repressões chilena e brasileira colaborariam —agentes da Dina, a polícia secreta chilena, chegaram a ser treinados no Brasil—, mas o país terminaria por boicotar os planos mais ambiciosos de Pinochet, sobretudo na Operação Condor.

Trumpistas brasileiros talvez se esqueceram de que Pinochet ordenou um atentado terrorista no coração de Washington, com o carro-bomba que matou o ex-ministro Orlando Letelier e dois cidadãos americanos. Aliás, Ronald Reagan, herói conservador, tinha péssimas relações com o ditador.

Os EUA ajudaram a destruir a democracia chilena, em 1973, mas também pressionaram pela saída de Pinochet, em 1990.

Quem defende pena de morte a traficante faria bem em saber que a Dina, sob ordens de Pinochet, tornou-se um cartel da cocaína aliado aos narcos colombianos. Segundo o chefe da agência, Manuel Contreras, uma de suas inovações foi a chamada “coca negra”, supostamente à prova de cães farejadores.

Chicago Boys (ou “Oldies”) deveriam ver a nova literatura sobre história econômica do Chile. Resumo: Salvador Allende destruiu o país, mas o chamado “milagre chileno” é um mito e, sob a democracia, o Chile cresceu muito mais e acelerou a melhora de todos os indicadores sociais. Claro, isso foi possível porque a esquerda incorporou parte da agenda da direita —mas, pelas últimas notícias de Santiago, os custos desse programa foram gravemente subestimados.

E, mais ainda, como pode alguém que diz defender valores judaico-cristãos, a família e a castidade adular um regime que perseguiu líderes religiosos, desapareceu crianças e usou o estupro como arma?

Talvez o pinochetismo tupiniquim seja fruto da ignorância histórica, da política feita de memes e gritaria online —e espero que as informações acima tragam alguma luz. Mais provável, porém, é que Pinochet esteja sendo celebrado no Brasil de hoje justamente pelo que, de fato, foi: um assalto à democracia, ao Estado de direito, às liberdades e à condição humana.

*Roberto Simon, é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.