Fernando Schüler

Fernando Schüler: O ódio e a tribalização cresceram durante a pandemia

A tribalização cresceu durante a pandemia

Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.

Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.

No mundo atual tudo se vulgarizou. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.

O hater tende a ser um dualista moral. Ele imagina, como tentaram mostrar Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em seu “The Coddling of American Mind”, que a vida é uma luta entre pessoas do bem e pessoas do mal, entre a verdade e o erro, e que ele representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.

O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe, mas ganhou escala infinita no mundo digital. Seu segundo esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Seu terceiro esconderijo é a tribo. Ele fala e escreve para a turma dos “especialistas na própria opinião”. Vive em uma banheira morna feita de viés de confirmação.

Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.

Em ambos, o sistema está prestes a ruir. A divergência é para que lado. A linguagem é surpreendentemente parecida. Os palavrões variam, mas são sempre abundantes. Há alusões a animais (gado, jumento) e à tediosa terminologia do século 20 (comunistas, neoliberais).

Como previsível, ambos os grupos consideram que o estranho e a barbárie ficam sempre do outro lado. A alusão ao debate politico brasileiro é lateral. O haterismo não depende de conteúdo. É um problema de forma.

Sua expressão mais banal é a falácia ad hominem, atestado mais claro de que alguém não dispõe de argumento nenhum. Curiosamente, ela é o pão de cada dia de nosso debate público. Para ver a enrascada em que nos encontramos. E lembrar de Umberto Eco.

Há uma ampla literatura sobre as raízes do haterismo na psicologia humana. Uma boa referência é o livro de Hugo Mercier e Dan Sperber, “The Enigma of Reason”. Sua tese diz que a mente humana evoluiu para guerrear por ideias, para justificar nossas ações, conduzir a tribo e destruir a tribo do outro.

O kantismo e sua racionalidade universalista, apelo à imparcialidade e à disciplina no “uso público da razão” seriam uma espécie de antinatureza. A razão iluminista pode expressar o que temos de melhor, mas é rara. Aqui no chão rondamos o estado de natureza.

A internet, por fim, piorou tudo. Sua marca é a reação imediata e não reflexiva. No mundo pré-digital, as instituições produziam alguma moderação nas opiniões. Seu tempo era diferente e nos obrigava a filtros e a algum tempo de espera.

Nas mídias sociais de hoje, muito antes de baixar a curva da raiva já tuitamos duas ou três vezes. Tudo em um ambiente de baixa empatia, destituído de pessoas de carne e osso, que olham na nossa cara, transpiram e com a qual podemos nos identificar.

Por fim, uma máquina de não esquecimento. O inferno de Nietzsche, feito da permanente lembrança de velhos ressentimentos. Estranho mundo em que os contextos mudam, mas as imagens e palavras estão lá congeladas no tempo. Cada gesto, cada erro ou acerto, tudo pronto a ser retirado do freezer, ao sabor da raiva da hora.

No início dessa crise, escrevi que a raiva e a tribalização da vida iriam crescer. As pessoas perderiam muito do contato pessoal e o país de cada um, pouco a pouco, se confundiria mais e mais com sua timeline.

Talvez tenha exagerado, mas temo que não.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Fernando Schüler: Renda básica lança luz sobre o desafio ético do nosso tempo

Eliminação da miséria é fronteira civilizatória, assim como foi, no século 19, o fim da escravidão

Thomas Paine foi o dos primeiros a propor, com algum detalhe, uma renda básica universal. Seu desejo não era nada simples: preservar os benefícios da civilização, sendo o maior deles a prosperidade, e corrigir seu maior erro: a miséria.

Em “Agrarian Justice”, escrito na França no anoitecer da revolução, ele defendeu ser um “direito de herança” que cada indivíduo recebesse um bônus, no início da vida adulta, e uma renda incondicionada, aos 50 anos.

Ideias como esta correram o mundo, muito depois de Paine. Nos anos 1990, Philippe Van Parijs (“Real Freedom for All”) popularizou a tese fundamental do movimento em favor da renda básica universal: livrando as pessoas da urgência econômica, elas poderão dizer “não” às múltiplas formas de humilhação social e darão um novo significado à ideia de liberdade individual.

Com argumentos distintos, a tese foi também cultivada pela tradição liberal. Hayek sugeriu uma renda mínima não universal e Milton Friedman é amplamente conhecido pela defesa de seu “imposto de renda negativo” para substituir os programas do “welfare state” convencional.

O tema ganhou relevo com a pandemia. Mais de 50 países já anunciaram modelos variados de transferência de renda, incluindo o Brasil, com o auxílio emergencial aprovado por unanimidade no Congresso.

Que isso migre de programas provisórios a políticas permanentes é um tema em aberto. O país que chegou mais perto de instituir a renda universal foi a Suíça. No plebiscito de 2016 a proposta perdeu por ampla margem, sob muitos argumentos.

Um deles dizia simplesmente que desvincular a remuneração do trabalho não é algo que faria bem à nossa sociedade. A mensagem subjacente: OK para muitas formas de proteção social, desde que se preserve um saudável equilíbrio entre responsabilidade social e responsabilidade individual.

O Brasil é um país com larga experiência em transferência de renda e talvez seja um bom momento para imaginar que sua lógica possa evoluir e cumprir um novo papel civilizatório.

Uma possibilidade é a conversão de um programa de renda mínima, como o Bolsa Família, em um programa de renda básica. Na prática, a ampliação de sua abrangência, valores e condicionantes.

Em caráter substitutivo, isto é, eliminando gasto público não prioritário, incluindo-se subvenções empresariais e programas sociais menos eficientes, com o foco exclusivo na melhora da posição dos mais pobres.

O próprio Bolsa Família foi, historicamente, um avanço em relação a velhas políticas assistencialistas, como a rotineira distribuição de cestas básicas. A renda distribuída em um cartão magnético incorpora o direito de escolha e gera efeitos na economia (multiplicador de 1,78 no PIB, segundo Marcelo Neri).

E mais importante: elimina burocracia. Boa parte dos recursos públicos, em programas assistenciais, se perde na máquina requerida para prestar serviços e distribuir coisas. O conhecido tema da “captura pelos provedores”.

O que a crise do coronavírus fez foi colocar nossas tripas de fora. 43% de nossas crianças vivem em famílias abaixo da linha de pobreza. É um escárnio dar, em média, R$ 190 para os mais pobres dentre essas famílias enquanto continuamos pagando conhecidos privilégios para o andar de cima do setor público. E este é apenas um exemplo.

A renda básica é uma discussão real e crescente no mundo atual. Não acho que ela seja apenas um delírio de engenharia social ou uma panaceia capaz de equacionar o problema social.

Ela apenas lança luz sobre aquele que é o desafio ético do nosso tempo: a eliminação da miséria. É esta a nossa fronteira civilizatória, assim como foi, no século 19, o fim da escravidão.

Quem sabe as placas mais profundas de nossa sociedade, que parecem se mover nessa crise, ajudem a colocar em pauta um tema para o qual não há uma resposta clara, mas que merece ser discutido com informação e racionalidade.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Como em um filme de Pasolini

É falsa dicotomia imaginar contradição entre 'salvar vidas' e 'proteger a economia'

Bolsonaro dobra a aposta. Não se sabe exatamente baseado em que tipo de evidências, o presidente joga sua autoridade e o que lhe resta de credibilidade na tese de que a pandemia será passageira, no Brasil, e terá menos letalidade do que o quase-consenso da comunidade médica vem apontando.

O recente relatório apresentado pelo Imperial College, em Londres, aponta que, em um quadro em que nada de substancial for feito, a pandemia pode gerar mais de dois milhões de mortes nos Estados Unidos e pouco mais de meio milhão na Inglaterra.

O relatório fez com que o governo britânico adotasse decisões mais duras e incentivou a escalada de medidas de isolamento, no plano global. A Índia, com seus 1,3 bilhão de habitantes, entrou em lockdown nacional por 21 dias, tendo registrado apenas um quarto do número de mortes já identificadas no Brasil, em função da Covid-19.

Há uma tendência global nesta direção. O The New York Times, em editorial, fez um apelo ao presidente Trump para que lidere uma reclusão americana por duas semanas, de forma a interromper a espiral de contágio e permitir medidas mais focalizadas, daí para diante.

O mundo pode estar errado e Bolsonaro pode estar certo. Há uma vaga aposta na transmissão mais lenta, em climas quentes, e na ideia de que gente jovem e saudável dificilmente terá problemas, caso for contaminada.

Isto é obviamente equivocado. Bolsonaro não tem base técnica para fazer este tipo de afirmação e não deveria fazê-lo. Alguém pode chegar à Presidência da República seguindo sua intuição, andando na contramão e agindo de modo errático. Mas nada disso funciona para combater uma pandemia desta gravidade.

Não há qualquer dúvida de que medidas rápidas e duras de isolamento social são necessárias e já deveriam ter sido implementadas em larga escala no país.

Afirmar isto não significa que se deve desconsiderar os impactos econômicos da crise. É uma falsa dicotomia, típica de nosso debate político polarizado, imaginar que exista uma contradição entre “salvar vidas” e “proteger a economia”.

Thomas Friedman lançou esta discussão em um artigo recente, sugerindo uma abordagem em três etapas: o isolamento total, a realização massiva de testes e mapeamento de riscos, por região e perfis populacionais, e (no prazo que for tecnicamente adequado), o retorno coordenado ao trabalho.

Bastou apresentar estas ideias bastante óbvias para que fosse chamado de “darwinista social” e outros impropérios. Sua ideia mais elementar diz simplesmente que, respeitando-se a absoluta prioridade que se deve dar à preservação da vida, “o emprego e o estado geral da economia é também um tema de saúde pública”.

Se isto é verdade em uma economia como a americana, que vem de um ciclo de quase pleno emprego, o é ainda mais em um país como o Brasil, que ainda não se recuperou da brutal crise de 2015/2016, que levou (segundo dados do IBGE) mais de 4,5 milhões de pessoas a cruzarem, para baixo, a linha de miséria.

A pergunta óbvia: o que fazer se a taxa de desemprego no país aumentar em 50% e outros 4,5% de cidadãos somarem-se aos atuais 13,5 milhões de brasileiros em condição de miserabilidade? Que danos e quantas mortes isto irá produzir?

É previsível que este tema não interesse e pareça mesmo irritante para a classe média alta que possui poupança ou se sente segura em seus empregos, em particular no setor público. E muito menos aos mais ricos, que irão desestressar em Miami, quando tudo passar.

Consequências não intencionais da ação, na expressão há muito consagrada por Robert Merton, nunca parecem interessar para aqueles que não irão pagar a conta depois da tempestade. A solução para a crise que vivemos começa quando nosso sistema político resolver se desligar do “modo internet” e do clima de permanente campanha eleitoral em que se meteu.

Ou então terminaremos como naquele filme de Pasolini, com sua estranha mistura de nonsense e divertimento sádico, em meio à tragédia.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Não há contradição entre a agenda emergencial e a agenda de reformas

Não há contradição entre a agenda emergencial e a agenda de reformas

A gripe espanhola, no final da primeira grande guerra, matou perto de 50 milhões de pessoas. Seria algo como 220 milhões nos dias de hoje. Por muitas razões, o que ocorreu naquele ano e meio de pânico global é muito diferente do que vivemos hoje. Mas há lições a aprender.

A sugestão é do historiador americano John Barry, autor de "The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History", um dos mais completos livros sobre a gripe espanhola.

Suas indicações focam os aspectos intangíveis da pandemia. Não se trata do número de máscaras ou leitos hospitalares disponíveis, em que pese tudo isso seja crucial.

Seu primeiro ponto diz que tendemos a desprezar o risco e perder rapidamente o senso de disciplina que uma pandemia exige. "As pessoas precisam assumir a responsabilidade e persistir. O fator decisivo é o esforço voluntário e o comportamento individual", afirma Barry.

Lendo isso pensei nas milhares de pessoas que mal saem de casa, proíbem os filhos de frequentar o playground do edifício, mas não dispensam a diarista de andar uma ou duas horas no transporte coletivo para chegar em casa.

A segunda lição, sustenta Barry, é "dizer a verdade". O argumento é simples. A confiança é a base da ação coletiva, é disso que trata o enfrentamento de uma pandemia. Confiar no que as autoridades estão dizendo não resolve o problema, mas é o primeiro passo.

Decisões rápidas, informação clara e padronizada, envolvendo o governo federal e os estados, fariam uma enorme diferença, mas desconfio que não temos uma elite política preparada para isto. Quando o presidente diz que vai manter sua festinha de aniversário, mesmo depois da patética atitude do último domingo, temos um sinal nessa direção.

Nosso problema, no entanto, está longe de ser o que diz ou deixa de dizer o presidente. O poder de informar está espalhado no mundo digital, e a responsabilidade também é difusa. Cada um pode achar graça em tirar uma lasquinha política com a crise ou fazer de conta que nada de mais está acontecendo, mas a conta será paga por todos.

O desafio da ação coletiva é o mesmo no mundo político. Rodrigo Maia acerta ao dizer que as pautas de combate à pandemia são prioritárias no Congresso. As medidas emergenciais anunciadas até agora pelo governo são tímidas, ainda que na direção correta. Mas esse não é o ponto.

A questão central é que será um enorme equívoco se o Congresso, em nome da emergência, abrir mão de avançar, e com ainda mais rapidez, nas reformas fiscais que o país precisa fazer.

A razão é que o país não tem espaço fiscal para fazer o que deve ser feito para combater uma crise que está apenas se iniciando. É preciso zerar a fila do Bolsa Família, ampliar o atendimento no sistema de saúde, aumentar o investimento público em infraestrutura.

Não é exatamente esse o sentido da PEC Emergencial e dos fundos públicos? Ou do plano Mansueto, de recuperação fiscal dos estados? A verdade é que não há contradição entre a agenda emergencial e a agenda de reformas, e aqui pouco importa se o protagonismo é do governo ou do Congresso. A crise serve exatamente para que um novo patamar de consenso possa ser obtido.

O senador Mitt Romney propôs dar US$ 1.000 mensalmente a cada cidadão americano enquanto durar a crise. O Brasil ensaia fazer algo nessa linha, oferecendo um beneficio equivalente ao do Bolsa Família para quem não dispõe de outro benefício público.

É muito pouco. A cara de um país quebrado. País que, mesmo com uma imensa tragédia humana batendo à porta, teima em não fazer a lição de casa que precisa fazer.

Vivemos uma situação inédita de emergência. Situações como esta revelam o que somos de melhor e o que somos de pior. Nosso pior já conhecemos. O bate-boca inútil, o ódio político, a procrastinação nas decisões difíceis.

O melhor esperamos que o Congresso saiba fazer. Agir com a responsabilidade e a capacidade de antecipação que o país requer nestes tempos difíceis.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: No debate do Fundeb, não faz sentido congelar a Constituição em um só modelo

Garantia de direitos não é sinônimo de gestão estatal de serviços

O debate em torno do Fundeb está em pauta no Congresso. Ele não diz apenas respeito ao financiamento da educação brasileira, mas também à definição sobre como se fará a gestão de nossas escolas. Isto é: como se fará para garantir que o direito à educação básica, inscrito na Constituição, seja efetivo.

Há temas que mereceriam especial atenção no parecer apresentado pela deputada Professora Dorinha, relatora da PEC do Fundeb. Um deles é a determinação de que no mínimo 70% dos recursos do fundo sejam aplicados, nos estados e municípios, no pagamento de “profissionais da educação em efetivo exercício”.

Mais do que criar um engessamento impróprio para um país continental e diverso como o Brasil (como saber se daqui a dez anos, nos 5.570 municípios brasileiros, será esse o percentual requerido?), a redação parte da premissa, que parece implícita no projeto, de que a oferta da educação básica será necessariamente estatal.

Caso aprovada, teríamos uma contradição com o artigo 213 da Constituição, que trata do uso dos recursos públicos para a educação. O parecer sugere que o referido artigo trata a gestão via parcerias com o setor publico não estatal (escolas filantrópicas, confessionais e comunitárias) como “exceção”, e não como uma possibilidade aberta aos gestores das redes públicas de educação.

Há um claro equívoco aí. As restrições estabelecidas pelo constituinte para esse tipo de gestão por contratos são bastante precisas e dizem respeito à natureza filantrópica, isto é, sem fins lucrativos, das instituições. A condicionante mencionada no parecer, relativa à falta de vagas nas redes públicas, diz respeito ao mecanismo de oferta de bolsas de estudo.

De modo resumido, a Constituição determina que modelos de bolsas (ou “voucher”) são excepcionalidades. Parcerias e contratos de gestão com instituições sem finalidade lucrativa são uma opção aberta aos gestores públicos.

É este o sentido dado pelo artigo 213: recursos serão destinados ao sistema A, podendo ser dirigidos ao sistema B. Fosse o contrário, o constituinte o teria explicitado. Como ocorreu com a saúde pública. O artigo 199 da Constituição prevê que as instituições privadas poderão participar “de forma complementar” do Sistema Único de Saúde.

No âmbito da educação, o modelo é misto, estatal ou não estatal, desde que com escolas sem fins lucrativos. A questão central é saber como essa escolha será feita. É com isso que deveríamos nos preocupar. Em saber o que funciona, a partir do que a Constituição faculta, em vez de tentar fixar a qualquer custo o monopólio deste ou daquele modelo de gestão.

Modelos de gestão evoluem através do tempo. O Brasil é exemplo disso. Após a Constituição de 88, criamos a lei das concessões, em 1995; das organizações sociais, em 1998; das PPPs, em 2004, e ainda recentemente instituímos o novo marco da sociedade civil, com a lei 13.019/14, que permite um amplo espaço de colaboração entre setor público e o terceiro setor.

Ou seja, o próprio ordenamento legal brasileiro evoluiu, ao longo das últimas três décadas, gerando novas alternativas de gestão. Essas alternativas são usadas hoje na saúde pública, área ambiental, social, saneamento básico e virtualmente em todas as atividades que não integram as chamadas funções exclusivas de estado.

Por que essas alternativas deveria ser excluídas, prima facie, da educação? Com base em que evidência empírica? Não me parece que elas viriam dos ótimos resultados que nosso modelo de monopólio estatal vem apresentando, não é mesmo?

Congelar um modelo de gestão da educação pública no texto da Constituição é um equívoco para o país. Garantia de direitos não é sinônimo de execução estatal de serviços, nem o seu contrário. Precisamos estar abertos ao que se passa no mundo, saber o que funciona, observar dados empíricos não apenas na teoria, mas na prática.

Reescrever desse jeito a Constituição brasileira é uma enorme precipitação. O Congresso deveria refletir sobre isso.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: A dupla face do reacionarismo brasileiro

Movimento é uma mistura de conservadorismo de costumes com estatismo econômico

Há um duplo reacionarismo no debate brasileiro. O primeiro deles é de base cultural. Poderia chamá-lo de “conservadorismo de costumes”, mas sempre que faço isso alguém lembra que o termo conservadorismo é mais amplo, que há a grande tradição de Burke a John Kekes.

Não é disso que estamos falando. É algo bem mais caseiro. Não se trata de Oakeshott, mas de Marcelo Crivella. O “militante de sua nostalgia”, na frase de Mark Lilla. Aqui pelos trópicos, seu grande momento foi a censura à revista com o beijo gay, na Bienal do Livro.

Luc Ferry criticou essa visão dizendo ser um absurdo supor que a natureza deva definir a ética. Perfeito. Hayek, em seu clássico “Porque Não Sou Um Conservador”, ironizou a posição que aplaude a gradual evolução dos costumes no tempo, mas decide que o raciocínio só vale para o passado. Em algum momento tudo deveria ser congelado.

São críticas elegantes, que vão muito além do que merece o nosso conservadorismo de programa de auditório. Ele é legítimo e expressa a visão de uma parcela relevante do eleitorado, mas é um tigre sem dentes no mundo real da política. Rodrigo Maia nem sequer coloca seus temas em pauta no Congresso.

O segundo reacionarismo brasileiro diz respeito ao Estado e à economia. Ele tem apoios na academia, nos sindicatos e na intelectualidade bacana. Faz menos barulho, mas é mais efetivo.

Seu mote é a defesa do Estado. Sua paixão são as autarquias e repartições públicas. O status quo de nossas escolas e hospitais estatais quebrados, dos quais todos que têm recursos, incluindo-se aí a elite pensante, fogem como o diabo da cruz.

Sua pedra de toque é a rejeição de qualquer ideia de reforma do Estado. Foi assim nos anos 1990, à época da emenda 19 à Constituição e da criação das organizações sociais; foi assim com a Lei de Responsabilidade Fiscal; foi assim mesmo quando Lula, em 2003, fez a mini reforma da Previdência com o apoio da oposição, do DEM e do PSDB.

Mais recentemente foi assim com as reformas que o país fez a partir de 2016. A ridícula negação do déficit previdenciário, a defesa do velho imposto sindical. A lista é grande e conhecida. Sua última façanha é cruel: a recusa de que os estudantes possam fazer sua carteirinha pela internet, sem custos. Tudo para alimentar, ainda que pareça risível, os cartórios do movimento estudantil oficial.

Ninguém percebeu, entretidos que andamos com bobagens do dia, mas um episódio na última semana reuniu os dois reacionarismos brasileiros. O prefeito Crivella resolveu reestatizar os servidos de atenção à saúde no Rio de Janeiro, extinguindo os contratos de gestão com as organizações sociais.

A medida foi elogiada pelo PSOL. Encontro do bispo com Marcelo Freixo, com tudo que tem direito. Engorda a máquina, abre concurso, põe o sistema sob o mando político. Tudo que soa “progressista” em dia de comício, mas inferniza a vida das pessoas comuns na segunda-feira pela manhã, na fila do posto de saúde.

O próximo teste para a modernização brasileira é a reforma administrativa. As hesitações de Bolsonaro são previsíveis. Bolsonaro foi, no passado, uma síntese do reacionarismo brasileiro: conservador nos costumes, estatizante na economia. De uns anos para cá se aproximou de posições liberais, ainda que pareça sem sentido chamá-lo de um político liberal.

A reforma começou mal. Ela deveria ter sido apresentada logo após a aprovação da reforma da Previdência. Não foi. Deveria abranger não apenas os futuros servidores, mas também os atuais; deveria abranger todos os Poderes, sem distinção, para ter força moral e capturar o apoio da sociedade.

De qualquer modo, é uma reforma a ser feita. O debate nem sequer iniciou mas já milita no Congresso a Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público, com o velho discurso do “desmonte do Estado.” A nostalgia no Brasil não tem lá grande criatividade, mas não duvido que possa ganhar o jogo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: O protagonismo do Congresso

Esse é o melhor caminho de que dispomos para conduzir as reformas

Um dos mantras preferidos do governo é afirmar a autonomia do Congresso. Quem gosta do governo diz que se trata de respeito às instituições; quem não gosta diz que é desleixo ou incompetência. Ambas as opiniões valem pouco em um debate complexo como esse.

É fato que o Parlamento assumiu um novo protagonismo na democracia brasileira. O governo não perdeu propriamente a condução da pauta política. Estão aí o plano Mais Brasil e as três PECs, bem como o projeto de autonomia do Banco Central. E Rodrigo Maia já disse que a reforma administrativa não anda se o governo não assumir a paternidade.

Mas estamos diante de um novo modelo. A equação anterior, em que o governo distribuía a máquina púbica para obter maioria no Congresso, simplesmente se esgotou. Em nosso quadro de extrema fragmentação partidária, tudo ficou caro demais. Haverá tempo para um diagnóstico cuidadoso disso tudo.

O conceito que bem define o novo cenário é a corresponsabilidade. Podem-se buscar outros nomes, mas é disso que se trata. Equação feita de tensões e maiorias provisórias. Consensos construídos a cada projeto. Foi o que se viu nesta semana, no acordo em torno do orçamento impositivo.

A pergunta é se tudo isso faz bem à democracia e favorece a governabilidade do país. Para a democracia não me parece haver dúvidas. O argumento da coalizão majoritária, nos moldes praticados desde a redemocratização, parte de duas premissas frágeis.

A primeira atribui demasiada racionalidade ao Executivo. É o argumento do Executivo-príncipe. Quando lembro do plano Collor, dos desmandos fiscais de meados da década passada, ou mesmo da atual "agenda conservadora", o argumento me parece perturbador.

Uma das funções essenciais do Parlamento é exatamente conter o Executivo. Isso é bom para a democracia. Não há lógica em quem ataca dia e noite a agenda do governo e, ato seguinte, reclama que o governo não tem maioria no Congresso.

A segunda fragilidade é atribuir virtude aos instrumentos constitucionais colocados à disposição do presidente para formar base, no modelo habitual de coalizão. Distribuir emendas e cargos aos deputados amigos é reproduzir cansativamente nosso surrado patrimonialismo político.

Pode-se conceber, em abstrato, a ideia de uma coalizão em bases programáticas. Quando, exatamente, isso aconteceu? Em momentos de ruptura, como no governo Itamar? No primeiro mandato de Fernando Henrique, como li recentemente? É possível que no futuro andemos nessa direção, mas não sem uma mudança de incentivos institucionais. A reforma política que não está no horizonte de ninguém.

Quanto à governabilidade, Christopher Garman sugere uma visão positiva do protagonismo parlamentar. As restrições da PEC do Teto e o avanço do Parlamento sobre a execução orçamentária tornariam racional para a liderança legislativa apoiar a agenda reformista, além de algum incentivo à responsabilidade fiscal.

Boa tese, ainda que enfrente um problema de ação coletiva. É preciso coordenar a ação de uma base fluda de 17 partidos, 400 parlamentares e uma profusão de interesses paroquiais. Com a execução obrigatória de emendas e sem cargos no varejo, para que mesmo lealdade ao governo?

A melhor posição para o parlamentar seria a do "caroneiro". Podendo colher um ganho coletivo com as reformas e deixar que os outros assumam o ônus de medidas impopulares, por que não? Não foi por isso que estados e municípios ficaram de fora da reforma da Previdência?

Não penso que exista um modelo comparável globalmente para saber o destino da atual experiência brasileira. O governo Bolsonaro não é minoritário no Congresso. É apenas inorgânico, mas com uma agenda que vem se mostrando majoritária nos temas cruciais.

Seu maior erro seria precisamente tentar fazer o que até hoje nunca se dispôs ou teve capacidade para fazer: vincular o apoio à agenda econômica à lealdade ao governo. Sua melhor chance é manter a distância e a fluidez da base, ao contrário do que muitos pregam.

Por fim, um dado pragmático. O governo não irá mudar seu modo de condução política. Se o protagonismo do Congresso não é o melhor caminho para a viabilidade das reformas nestes tempos de incerteza, diria que é o único caminho do qual dispomos.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Ódio do bem

Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro

Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais.

Fundamentalmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo?

É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir daí achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitãozinho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”?

No caso de Holiday, a Justiça não caiu nessa conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime no Brasil, independentemente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da Justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou.

Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso parece que colou.

Há muito o que aprender com essas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocientista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano.

Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerante e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fakenews vinham apenas de um lado do jogo.

Fascinante é esse fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilização, que nem sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância. E durmo tranquilo.

Tudo isso vem de muito longe, mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracias polarizadas. Li um estudo recente mostrando como a polarização não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilidade moral.

Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidencial; quem não gosta, ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi.
A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivamente, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarização política?

A resposta é simples: coletivamente não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativo. Em seu clássico dos anos 1950, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarização. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnantes”.

Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto.

Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicamente pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituições, consensos provisórios vão se produzindo.

Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 1930, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonismo do Congresso em nossa democracia.

É possível que este seja apenas um experimento brasileiro. É possível que a contaminação do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale a pena pensar a respeito.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Quem é Deirdre McCloskey, uma liberal em tempo integral

Livre fluxo de ideias e inventividade humana, não capital, geopolítica ou educação formal, estão na base da prosperidade

Deirdre McCloskey visita o Brasil nesta semana. Concorde-se ou não com suas ideias, é alguém que merece atenção. Ela é autora de uma trilogia monumental, “Bourgeois Virtues”, sobre a formação do mundo moderno, e recentemente lançou “Why Liberalism Works”, com um bom resumo de suas visões, ainda sem tradução no Brasil.

Não faço ideia da razão pela qual a palestra que daria na Petrobras foi cancelada. O que é irrelevante, visto que todos, como sempre, já sabem de tudo, não é mesmo? Mas o episódio me dá uma boa pista sobre como começar explicando quem é a sra. McCloskey.

Em primeiro lugar, é uma liberal em tempo integral. Não brinca com essa história de separar a liberdade econômica das liberdades na cultura e nos costumes. O liberalismo nasce do direito de dizer “não”. Ponto. Seu vértice é a “igualdade de consideração e respeito.”

Vem daí seu horror a qualquer forma de reacionarismo, à esquerda e à direita, e seu mau humor com o bolsonarismo. Em especial sua ideia de inflexionar políticas públicas para a “maioria cristã”, real ou imaginária.

O liberalismo, na sua visão, não se situa em algum ponto intermediário entre esquerda e direita. Socialistas e conservadores gostam do Estado, por diferentes razões. Liberais gostam do fluxo espontâneo da vida. Isso vale tanto para quem quer enquadrar aplicativos de transporte na CLT, padronizar as escolas ou dizer que tipo de arte vale e qual a estrutura “verdadeira” de uma família.

Sua visão do mundo atual contrasta com o catastrofismo reinante em boa parte do universo intelectual. Em 200 anos, diz ela, a renda média cresceu perto de 30 vezes, e a miséria foi virtualmente extinta no mundo avançado. Nos anos recentes, o avanço migrou para o mundo em desenvolvimento. A igualdade cresceu entre os países. Entre o início dos anos 1990 e 2015, segundo dados do Banco Mundial, caiu de 36% para 10% o número de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, sendo a China a maior responsável por esse resultado.

É no acesso a bens essenciais para o bem-estar, no entanto, que a qualidade de vida e um sentido básico de igualdade vêm avançando mais rapidamente. O Serviço de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostrou que “em 1901, um domicílio americano gastava em média 42,5% de sua renda com alimentação, contra apenas 13,2% em 2002”.

Os dados são amplamente conhecidos e deixam muita gente nervosa. Eles põem água fria na retórica de que estamos nos tornando uma enorme Gotham City, povoada por palhaços abandonados e bilionários malvados.

Deirdre vai na contramão desse discurso, argumentando que são exatamente políticas de abertura e inclusão ao mercado que vêm retirando milhões de pessoas da miséria, mundo afora.

Ela não vê problema na desigualdade econômica ou na multiplicação do número de bilionários, desde que sua riqueza venha da competição, da inovação, da melhora da vida dos outros, e não da captura do Estado.

Perguntei-lhe qual a sua ideia mais original. Ela não pensou muito para mencionar a tese de que é o livre fluxo de ideias e a inventividade humana, não o capital, a geopolítica ou a educação formal, que estão na base da prosperidade.

Seu foco são as ideias e a narrativa. A virada para o século 19 assistiu a uma mutação em vastas regiões da Europa e na América. O homem comum, o padeiro, o comerciante, o inventor de coisas ganhou dignidade, e sucessivas barreiras foram quebradas. Uma narrativa honrando o “inovismo”, termo que ela por vezes usa no lugar de capitalismo, cumpre aí um papel vital. Coisa que vai muito além do terreno econômico, invadindo a cultura, os direitos, o sexo e os estilos de vida.

Deirdre chamava-se Donald e resolveu trocar de sexo, no final dos anos 1990. Fez de si mesma um exemplo dessas coisas. Seus filhos não a perdoaram. Tem um neto que nunca conheceu. Em algumas noites tristes, costumava estacionar o carro perto da casa do filho mais velho e observar seus amores, solitária.

Com o tempo, parou de fazer isso. Tornou-se uma professora bem-humorada com um evidente gosto para desafiar o senso comum. Ela parece saber que, na vida pessoal ou intelectual, a liberdade cobra seu preço. E que é preciso seguir vivendo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Nova rebelião das massas desafia democracia digital

Homem comum dispõe hoje de poder muito maior de fazer barulho, e destino é incerto

Luiz Felipe Pondé escreveu uma coluna provocativa, dias atrás, e a certa altura se referiu a uma mulher com quem conversou em sua recente visita à China. Ela tem 30 anos e abriu um restaurante com o marido. Diz gostar de viver em um país seguro e estável, sem as confusões que enfrentam no dia a dia seus irmão de Hong Kong. Confusões típicas das democracias atuais.

“A ideia que trocamos facilmente liberdade por estabilidade é fato”, diz Pondé. A frase é de um intelectual sabidamente cético em relação à crença iluminista no progresso moral e na fidelidade humana aos valores universais da liberdade e da democracia.

Certo ou errado, ele tem um ponto. Se é verdade que a democracia liberal é um sistema vitorioso no mundo moderno, também é verdade que ela vive um momento de mal-estar. E que o sucesso chinês, prometendo uma sociedade aberta e de mercado, ainda que sem democracia, é de longe o maior desafio vivido em nossa época pelas democracia liberais.

O Brasil é exemplo disso. Uma pesquisa internacional coordenada pelo professor Dominique Reynié e divulgada recentemente mostrou que 73% dos brasileiros concordariam com a ideia de um pouco mais de ordem, mesmo que ao custo de menos liberdade. O segundo maior percentual entre 42 países pesquisados.

É evidente que não se sabe bem de que liberdades estamos falando. Os dados foram colhidos no momento em que o país vinha de uma enorme crise ética, radicalismo político, desemprego nas alturas e em meio à explosão da violência urbana. Parece plausível que exista uma demanda difusa por ordem.

David Brooks se referiu a um fenômeno parecido, na democracia americana, sugerindo que as pessoas estão “exaustas” da confusão e da guerra política. Brooks vê dois campos em guerra. Simplificando, são os eleitores de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, mais jovens e presos às soluções tradicionais da esquerda, e os entusiastas de tipos como Trump, desejosos de um líder forte que restaure valores e ponha ordem na casa.

Ambos alimentam uma leitura alarmista do mundo atual, tendem a apoiar programas irrealistas e possuem um vezo autoritário. Estão muito convencidos de que são os missionários do lado certo e esquecem que a democracia é basicamente um modo frágil de “resolver diferenças com pessoas de quem discordamos”.

O pulo do gato é a ideia de que esses dois campos radicalizados formam uma minoria na grande sociedade, mas são amplamente dominantes no debate público. Haveria uma imensa maioria relativamente silenciosa e exausta do bate-boca político e da sensação de permanente instabilidade e paralisia, que surge daí.

Há muitas evidências nessa direção. Se é verdade, como mostrou o Pew Research Center, que a distância entre as posições ideológicas dos grandes partidos americanos mais do que dobrou desde os anos 1990, também é verdade que se trata de um debate comandado por tribos entrincheiradas no universo das mídias sociais.

Para essas pessoas, a política se tornou um tipo de entretenimento. Pensava nisso quando relia Ortega y Gasset e sua tese cruelmente atual sobre a “rebelião das massas”. A inédita erupção da multidão na cena pública. O homem-massa avesso ao comedimento, dono de uma autoconfiança vulgar, que fala sobre tudo “cego e surdo como é, impondo as suas opiniões”.

Ortega y Gasset escreveu essas coisas nos anos 1920. Diria que vivemos hoje uma segunda rebelião das massas. A primeira levou, nos extremos, à barbárie. O destino da atual é incerto. O homem comum dispõe, agora, de um poder muito maior de fazer barulho. E novamente a democracia liberal se vê desafiada.

Diferentemente de Pondé, tendo a cultivar um sereno otimismo iluminista. O tempo e o senso do ridículo irão esvaziar a fúria inútil das tribos digitais e voltaremos logo adiante a prestar atenção ao que diz a jovem empreendedora chinesa que meu amigo encontrou em Pequim.

Ela ecoa, à distância, a maioria silenciosa imaginada por Brooks, que deseja apenas um pouco de ordem e previsibilidade para tocar a vida. Prestar atenção em sua exaustão é o melhor caminho para que muita gente não venha a se cansar, ali adiante, da própria democracia.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Pode zoar todo mundo, só não pode chutar a santa

A ilusão é imaginar que a intolerância venha deste ou daquele lado do campo político

Elena Landau disse algo interessante, em uma entrevista recente. Não dá pra ser um liberal pela metade. Isto é, defender a liberdade econômica, mas ser avesso às liberdades no terreno da cultura e dos costumes.

Acho que a Elena quis dizer o seguinte: no plano pessoal, você pode professar a religião que quiser e escolher o tipo de vida que deseja levar, desde que isto não danifique a liberdade dos outros. O que você não pode é usar a força ou recorrer ao Estado para promover suas crenças, sejam elas ligadas ou não à religião.

Não é pouca coisa. Ronald Dworkin escreveu um belo texto, fruto de uma conferência dada no Metropolitan Museum, em Nova Iorque, em que se pergunta se um Estado liberal pode apoiar as artes. Sua resposta é sim, mas com uma condição: apoiar de um modo geral, sem tomar partido por esta ou aquela corrente estética ou visão de mundo.

A Lei Rouanet sempre pretendeu agir desse modo, e não sei se sempre conseguiu. De qualquer maneira recomendo a leitura do texto de Dworkin para o pessoal que lida com cultura, hoje no país.

Essas coisas vão longe. Um estado liberal deveria impedir a ideologização de livros didáticos, deveria proibir o governo de fazer propaganda de si mesmo ou de seus projetos com dinheiro público, deveria se abster de comandar emissoras de comunicação ou escolher a escola em que os pais devem matricular os filhos. E não deveríamos ser obrigados a votar. A lista é longa, e é certo que estamos muito longe disso, aqui pelos trópicos.

Este tema emergiu com força, no Brasil, com a polêmica envolvendo o filme de final de ano do Porta dos Fundos, com o Jesus gay. Afora toda a conversa fiada em torno do filme, que no final imagino lhe ter dado ótima publicidade, a pergunta que ficou no ar é bastante direta: caberia ao Estado fazer alguma coisa para proibir o filme? Há algum delito sendo cometido ali?

Fábio Porchat escreveu um artigo dizendo o seguinte: a lei divina vale para os indivíduos, não para o país. Cada um pode ter a sua própria lei divina. O sujeito pode, inclusive, proclamar a si mesmo como o autor da referida lei (está cheio por aí, em particular nas redes sociais), mas os outros tem direito de zoar do jeito que quiserem. Entendi que o limite que não pode ser ultrapassado é o da violência: pode esculachar, ridicularizar, mas não invadir terreiro, jogar coquetel molotov e coisas do tipo.

O ponto é que, numa sociedade liberal, o critério deve valer para todos. Não dá pra fazer uma listinha e dizer: você pode zoar esses grupos, sejam regionais, étnicos, comportamentais, religiosos, o que for, e esses outros aqui, na coluna da esquerda, você não pode.

Foi por essas razões que os americanos consagraram, ao longo do tempo, a Primeira Emenda à Constituição. O Congresso não criará leis restringindo a liberdade de expressão. Ponto. Imagino que seja um pouco isso que o Fábio queira dizer. Pode zoar todo mundo, sem problemas, só não pode chutar a santa.

O Brasil anda muito longe disso tudo. E não apenas por um problema legal. A revolução digital fez explodir, no mundo da política, o fenômeno das guerras culturais. Passamos a imaginar que alguém, algum grupo de opinião, alguma vertente religiosa, ideológica ou estética vai ganhar o jogo e pautar a vida pública em uma grande sociedade plural, como a brasileira.

Não vai. Essa é a boa notícia. A má notícia é que as pessoas continuarão tentando. A guerra cultural é uma dança sincronizada de pequenos donos da verdade, que se retroalimentam, e a grande ilusão é imaginar que eles pertencem a este ou aquele lado do espectro político.

Sempre acho graça do sujeito que se apresenta como paladino da democracia, campeão da tolerância, da “compreensão do outro”, mas que não pisca o olho pra sair chamando de fascista, e daí para baixo, a quem diverge, mesmo que no detalhe, de sua pequena lei divina de todos os dias.

Não sei se isso irá mudar, algum dia, ou é um fenômeno que veio para ficar, na democracia digital. De qualquer jeito, meu desejo para 2020 é o de um país com menos raiva, que vocifere menos e vá aprendendo devagarinho a rir um pouco mais de si mesmo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.