Fernando Schüler

Fernando Schüler: É simplesmente falsa a oposição entre rigor fiscal e políticas sociais

Economia bem arrumada é um bem que interessa especialmente aos mais pobres

Concordo integralmente com os que consideram "absurda" qualquer comparação entre as histórias de vida e visões políticas de Dilma Rousseff e Bolsonaro. Dilma foi torturada no regime militar, Bolsonaro elogiou o torturador. Dilma simpatiza com Maduro, Bolsonaro com Alfredo Stroessner. São coisas muito diferentes.

O debate econômico é de outra natureza e serve como um alerta a Bolsonaro: caso ele ceda à tentação populista do gasto irresponsável e quebra da regra do teto, poderá levar o país a uma crise parecida com a que vivemos no governo Dilma.

O alerta deveria ser levado a sério por quem decide alguma coisa, à direita e à esquerda, em Brasília. À época do desastre, é bom nunca esquecer, a taxa Selic foi a 14,25%, a inflação passou de dois dígitos e o PIB caiu (2015/2016) mais de 7%.

Enquanto boa parte dos "Faria Limers" ganhavam uma grana legal sem quase nenhum risco (já ouviram falar dos "rentistas"?), a taxa de desemprego duplicou e 4,5 milhões de cidadãos "invisíveis" cruzaram para baixo a linha de miséria, segundo o IBGE.

A brigalhada política pode correr solta, mas a verdade é que o alerta serve pra qualquer presidente que vier daqui pra frente. O recado é o seguinte: uma economia estável, juros baixos, inflação sob controle e contas em dia é um tipo de bem público. Preservar essas coisas deveria ser a primeira preocupação do governo e do Congresso.

Uma economia bem arrumada é um bem que interessa especialmente aos mais pobres. Quem vive do trabalho, não tem o "mercado" para se proteger e precisa de crédito, no dia a dia, para tocar a vida. E isso só se faz superando o eterno falso dilema brasileiro entre realismo fiscal e políticas sociais.

É este o nosso atual dilema. Qual é a saída fiscal responsável para migrar do auxílio emergencial a um programa sustentável de transferência de renda?

O auxílio emergencial criou uma situação inédita no país. Conseguimos reduzir a pobreza extrema, em meio à pandemia e a uma queda histórica do PIB. Estudo do economista Daniel Duque, da FGV, mostrou que o benefício não só impediu a queda de renda dos 40% mais pobres, mas fez com que ela aumentasse.

A crise explicitou nosso drama social. Em 25 estados, há mais pessoas recebendo o benefício do que trabalhadores formais. No Nordeste, há 21 milhões de beneficiários contra pouco mais de 6 milhões de carteiras assinadas.

O dado que mais me chamou a atenção vem dos economistas Ecio Costa e Marcelo Freire, de Pernambuco. Nas suas projeções, o auxílio terá um impacto de 2,5% no PIB brasileiro. Com um forte efeito distributivo. Enquanto em São Paulo o efeito será de 1,4%, no Maranhão será de 8,5%.

É óbvio que Bolsonaro está com um olho na reeleição. Mas quem defenderia que a decisão correta, para o país, é simplesmente desarmar este programa todo e voltar aos parâmetros tradicionais do Bolsa Família?

O governo fala em R$ 300 para cerca de 20 milhões de beneficiários. Só não diz de onde sairá o recurso. Aumentar impostos ou cortar as deduções da classe média no Imposto de Renda não resolve o problema.

É preciso cortar despesa em caráter permanente de modo a preservar a regra do teto. Isso significa fazer reformas. E não passa de conversa fiada dizer que isso será fruto de "escolhas da sociedade". Não será. São escolhas duras que devem ser feitas por quem lidera o país.

Pode-se aglutinar programas já existentes, como o abono salarial, aprovar o projeto dizendo que ninguém ganha acima do teto salarial. Pode-se fazer uma reforma administrativa que valha já para os atuais servidores, como fez o governador Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul.

O cardápio é amplo. A confirmação do veto presidencial aos reajustes salariais, decidido pela Câmara, semana passada, serviu como uma luz no fim do túnel. É preciso ir muito mais adiante. Este é o exato momento em que o país precisa produzir um ajuste em seu contrato social. A questão é saber se nossa liderança política estará à altura do desafio.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Foto: Beto Barata\PR

Fernando Schüler: Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado

Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado

O documento lançado por um grupo de economistas, no início da semana, defendendo o teto de gastos e propondo “rebaixar o piso”, ou seja, reformas capazes de preservar e aprimorar o edifício de estabilização fiscal construído pelo país nos últimos anos, deveria ser lido e relido, em Brasília.

O argumento diz que, dada a atual trajetória fiscal, a preservação do teto de gastos é insustentável. O gasto obrigatório sobe a uma taxa superior à inflação, e tornará inviável o custeio da máquina pública logo ali adiante.

O mercado já precifica o problema. O sistema político é mais lento e aprecia um exercício de autoengano. Governo à frente. É pura ilusão pensar em um programa robusto de transferência de renda e uma agenda crível de investimento público sem encarar os temas difíceis do ajuste fiscal.

O problema é o governo se decidir a enviar ao Congresso a reforma administrativa. O tema está maduro. A pandemia escancarou a desigualdade entre o mundo protegido do alto funcionalismo público e o universo precário do emprego privado, que pagou sozinho a conta da debacle econômica.

As razões da reforma são autoevidentes. O Brasil gasta 13,5% do PIB com servidores e entrega serviços públicos de baixa qualidade. Sendo seus usuários fundamentalmente os mais pobres, a ineficiência do Estado funciona como um motor das desigualdades no país.

Resolver isso supõe um longo caminho de reformas e ninguém imagina que elas serão feitas na atual gestão federal. O que se espera é que o governo tenha a coragem de dar o primeiro passo. Em duas direções.

A primeira trata do RH do governo. Revisão das carreiras públicas, redução dos salários iniciais, flexibilização dos modelos de contratação, avaliação de desempenho e possibilidade de redução de jornada e vencimentos em situações de risco fiscal.

O segundo caminho distingue funções de Estado e serviços públicos concorrenciais (que vão da saúde até a gestão de parques). Diz que o governo deve se concentrar nas tarefas de regulação e deixar à sociedade e ao mercado a execução de serviços. Enquanto isto não andar, a ideia de melhorar a qualidade da entrega pública não passará muito de retórica.

Há sinais positivos no horizonte. Sou da época em que ainda se imaginava que o governo devia administrar aeroportos por se tratar de um setor estratégico. Hoje, precisamente por se reconhecer que eles são estratégicos chegou-se à conclusão de que o governo e sua burocracia não devem administrá-los.

A reforma é politicamente viável. Previsível seria vermos o chefe do Executivo pressionando o Parlamento a fazer a reforma, mas o que temos é o contrário. Rodrigo Maia “tentando convencer” o presidente a enviar o projeto.

O governo amplia sua base no Congresso e há uma frente parlamentar robusta tratando do tema. Quem patina é o governo. Em parte por falta de convicção, em parte por saber que o assunto lhe renderá mais uma montanha de detratores e nenhum voto.

Salim Mattar escreveu que o “establishment” feito de sindicatos, políticos e fornecedores forma uma barreira às privatizações. A pergunta é: algum dia foi diferente? As corporações sempre estiveram aí e a inércia do setor público sempre foi a mesma. Apesar disso reformas importantes foram feitas no passado recente.

O atual governo iniciou dizendo que encerraria o ciclo de governos sociais-democratas e faria tudo diferente. Talvez tenha acreditado no mito de que foi fácil fazer as privatizações dos anos 1990, que os leilões da Vale ou Embraer foram um passeio, o mesmo valendo para a reforma do Estado.

É bom que tenham descoberto que as coisas são mais difíceis, no Brasil, e que talvez a reforma administrativa seja a sua melhor chance, talvez a última, de deixar um legado.

Do contrário, nossos liberais-conservadores terão que reconhecer que, mesmo no terreno que propuseram como seu, fizeram pior do que os sociais-democratas dos anos 1990, cujo legado de reformas ainda é o melhor ponto de partida para as mudanças que o país precisa fazer.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Sedução populista ganha fácil do argumento difícil das reformas

A verdade é que o governo não tem convicção sobre temas de modernização do Estado, e não está sozinho nisso

A saída de Salim Mattar e Paulo Uebel não representa o fim da agenda liberal do governo, como li em alguns comentários, mas um atestado de que, na prática, ela andou muito pouco.

Sempre disse aqui que o governo Bolsonaro era produto de três pautas um tanto vagas. Na verdade, um conjunto de intenções no terreno do conservadorismo cultural, combate à corrupção e reformas liberais.

As duas primeiras se perderam há muito tempo. Barradas pelo Congresso e por sua própria inconsistência. A agenda liberal deu em quase nada. A lei da liberdade econômica talvez tenha sido seu único suspiro. A reforma da Previdência foi uma solução de compromisso e veio no embalo do governo anterior.

Agora caímos na real. Estamos a menos de dois meses da campanha eleitoral e a janela de oportunidades para aprovação de reformas vai se fechando. Vamos comemorar o ano novo com PIB negativo em 5,6% (última pesquisa Focus) e relação dívida/PIB acima de 96%, segundo a Instituição Fiscal Independente.

Diante desse cenário, o governo corre atrás de “espaço no orçamento” para esticar mais um pouquinho o auxílio emergencial e diz que irá aguardar até o ano que vem para enviar ao Congresso a reforma administrativa. Ainda nesta quarta-feira (12), naquele pronunciamento esquisito ao cair da tarde, imaginava-se que haveria algum anúncio objetivo sobre reformas, mas nada.

Nenhuma grande surpresa aí. Pra quem gosta de ler a política um pouco abaixo da histeria reinante, Bolsonaro sempre foi um político mais tradicional do que fez parecer. E está cada dia mais com a cara do centrão e da velha burocracia militar do que com a de Paulo Guedes. Nosso outsider é cada vez mais um insider.

O governo gostou dos efeitos políticos do auxílio emergencial. O apoio a Bolsonaro cresce nos setores de menor renda e a última pesquisa DataPoder mostra que a aprovação e a desaprovação ao governo andam empatadas em 45%.

Quanto à reforma administrativa, o entorno da Presidência parece ter descoberto o óbvio: há muita conversa, mas pouca gente de fato preocupada com o tema em meio à pandemia. A MP 922, das contratações temporárias, caducou, e a PEC emergencial, que entre outras coisas previa a possibilidade de redução de jornada e salários dos servidores, nunca andou no Congresso.

A verdade é que o governo Bolsonaro não tem convicção sobre temas de modernização do Estado. E não está sozinho nisso. Os sinais que vêm do Congresso são bastante claros.

Exemplo foi a votação do novo Fundeb. Ao invés da reforma que iria desbloquear o orçamento e dar autonomia a estados e municípios, sob a lógica do “mais Brasil, menos Brasília”, a Câmara aprovou, sob a batuta da pressão corporativa e com o apoio do governo, a vinculação constitucional de no mínimo 70% dos recursos do fundo para gasto com pessoal.

No Senado fomos ainda mais criativos. Ao invés de reformas para abrir o mercado e incentivar a competição, resolvemos tabelar juros. Limite de 30% de juros no cartão de crédito e cheque especial. Lendo o projeto me senti quase um argentino. Menos mal que se trata de uma ideia que não irá prosperar na outra Casa do Congresso.

Juntando tudo, novo Fundeb, volta da CPMF, malabarismos para esticar o auxílio emergencial, tentativas de driblar a regra do teto, reformas e privatizações em ponto morto, o governo Bolsonaro vai mostrando o que sempre foi: um governo errático, sem projeto, seduzido pela hipótese de um populismo morno capaz de conduzi-lo vivo até 2022.

No fim das contas, ao menos não teremos que escutar mais que o governo Bolsonaro é “ultraneoliberal”, como li tempos atrás, e outras bobagens. Bolsonaro fará cada vez mais um governo tradicional. Com alguma sorte preservará a regra do teto e conseguirá emplacar algumas reformas de médio alcance, como foi o novo marco do saneamento básico.

Um projeto mais ousado de modernização do Estado ainda está para ser construído. Por enquanto, como observou Salim Mattar na sua carta de despedida, os liberais são um bicho estranho na máquina pública. E cabem (diria que com alguma folga) num micro-ônibus.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: O Supremo é o editor da sociedade?

Foi exatamente contra a ideia do 'Estado editor' que surgiu o conceito moderno de liberdade de expressão

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências […] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: O lado sombrio do mundo melhor

Cancelar não tem a ver com justiça, mas com poder; em regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente

Tentaram “cancelar” Steven Pinker. Ele é um intelectual com jeito de roqueiro das antigas. Linguista em Harvard, autor de alguns livros monumentais (“Os Anjos Bons de Nossa Natureza” e “Iluminismo Agora”). Sua ideia-força é a de que estamos melhorando, como civilização, seja na redução global da violência, respeito a direitos, incidência da guerra. Isso irrita muita gente.

Uma carta assinada por um grupo de acadêmicos pedia à Associação Americana de Linguística (LSA) sua destituição das listas de membros prestigiados. O caso virou símbolo (e uma ótima síntese) do que define a cultura do cancelamento.

Em primeiro lugar era um grupo grande. Algumas centenas de assinaturas. Para cancelar você precisa de muita gente. Gente gritando, como nas antigas praças de execução pública. A carta contra Pinker também fazia questão de dizer que não era um cancelamento. Perfeito. Ninguém cancela dizendo que está cancelando. A turba está apenas fazendo “justiça”.

Havia também o anacronismo. Pinker era acusado por alguns tuítes feitos anos atrás (o primeiro deles em 2015), mas tudo curiosamente apresentado como “no exato momento” em que ocorrem as mobilizações antirracistas.

E por fim, a pretensão de verdade. Pinker era acusado de “deturpar” fatos. Na cultura do cancelamento não há a ideia de “divergência”. Ele poderia ter apenas uma outra visão ou simplesmente estar sugerindo a leitura de um artigo no The New York Times. O jogo é: eu sei o que você deveria ter dito e as palavras que você deveria ter usado. E sei porque tem uma multidão do lado de cá que vai fazer você entender isso.

No final não funcionou. A LSA disse que não iria cancelar Pinker e que não era sua missão “controlar a opinião de seus membros”. Pinker se deu bem. Não fosse um cara renomado talvez fosse demitido ou coisa pior, como tantos outros.

Há quem veja nas técnicas de cancelamento uma saudável “supervisão” da sociedade sobre os indivíduos (para que andem na linha, imagino). A tese seria a mesma que sustenta a lógica do derrubamento de estátuas: dado que haja uma multidão (do lado “certo”, obviamente) disposta a jogar alguma coisa no lixo, é justo que ela seja jogada.

O cancelamento não tem a ver com justiça, mas com poder. Em regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente. Pede-se à universidade que o descontrate, à TV que o demita, ao jornal que não o publique e ao evento que o “desconvide”.

Essa lógica virou feijão com arroz no mundo público. Contra ela se formou um grupo de intelectuais que vão de Noam Chomsky a Deirdre McCloskey. Publicaram um documento curto que vai direto ao ponto: “editores são demitidos por publicar artigos controversos; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos temas; professores são investigados por citar obras de literatura em sala de aula”.

No final, sugerem que “precisamos de uma cultura que deixe espaço para experimentação, riscos e até erros”. Não vai rolar, pensei. A lógica do cancelamento é feita exatamente para que você não arrisque. Diga apenas o que pode ser dito. E o erro é uma impossibilidade, dado que há sempre uma “intenção” e algo indesculpavelmente grave em tudo que é dito.

Difícil não perceber como tudo isto é uma reedição da antiga lógica da “patrulha”. Ela apenas ganhou escala. E não é feita pelo Estado ou pela direção do partido, mas pela multidão. A multidão patrulheira. Suas armas são a difamação e a pressão econômica.

Há dois riscos envolvidos nisso tudo. O primeiro é a distração sobre aquilo que realmente importa combater. O segundo é o cultivo da conformidade e do medo na cultura pública. Medo dos temas que não devem ser tratados, dos livros ou dos dados que não se deve citar e das perguntas que não devem ser feitas.

Talvez seja um ponto onde Pinker errou. O teórico que gosta de mostrar, com uma infinidade de dados, que o mundo sempre melhora talvez precise reconhecer que, ao menos em um aspecto —bastante sombrio— estamos piorando.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Céticos ou infalíveis. Quem somos nós?

Só a ideia de que somos infalíveis justifica a morte em nome de uma ideia

Não discuto aqui o texto e muito menos o direito que o jornalista tinha de escrever um artigo desejando a morte do presidente. Inúmeras vezes defendi nesta coluna a cultura da primeira emenda e não seria diferente agora.

O que me impressionou foi a quantidade de gente que veio depois do artigo para racionalizar o desejo de morte. Não se tratava de vociferar na internet sobre prender e arrebentar. Eram discussões aparentemente sérias sobre uma possível “solução lógica”, isto é, para além da paixão política, para justificar o fim de um desafeto político.

Por óbvio, o desafeto poderia ser qualquer um. O raciocínio aqui independe de preferência política. E o ato de matar apenas uma vontade. Ninguém tem (ao menos ainda) a prerrogativa de realmente liquidar o outro. Em um episódio de “Black Mirror” criaram umas abelhinhas que faziam o trabalho. Por aqui, imagino, seriam outros bichos.

Lendo essas coisas tive a nítida intuição de que havíamos chegado ao fundo do poço. Fim da linha de um tipo obsessivo de polarização política. Talvez o extremo do que fala Bari Weiss em sua carta de renúncia ao The New York Times.

A diferença é que aqui fomos muito além da “autocensura” ou da negação do outro. Nos colocamos a especular sobre sua simples eliminação.

Há um lado nonsense nisso tudo. Nossa jovem democracia tropical discutindo a morte lógica. Talvez não devesse me surpreender. O ódio político é um traço comum das democracias polarizadas e é possível pensar o desejo de morte como sua consequência extrema.

Sua premissa é uma ideia há muito conhecida da filosofia: a recusa do princípio da falibilidade. Significa o seguinte: dado que detenho a verdade e que minha razão seja tão completa, eu “sei” que ele deve morrer. Sei porque a razão, ela mesma, me revela.

John Stuart Mill, no século 19, levou esse debate ao estado da arte em “On Liberty”. Mill diz que as verdades humanas são, em sua maioria, “apenas meias verdades”, e que “enquanto todo mundo sabe que é falível, poucos acham necessário se precaver contra sua própria falibilidade”.

A suposição é simples. Eliminar a posição do outro só faria sentido se alguém tivesse “absoluta certeza” da verdade. Mill talvez mudasse de ideia se tivesse conhecido nossos alegres donos da verdade tropicais. Mas acho que não. Acharia graça que um século e meio depois ainda não aprendemos.

Mill tratava da supressão de opiniões, e é disso que trata o debate político. A ideia de que alguém é capaz de dizer se uma ideia ou decisão (ou pior: alguém) é “útil” perante o tribunal da história. Recorrer ao princípio da utilidade não passa de um truque. “A utilidade de uma opinião”, dizia Mill, “é, em si mesma, uma questão de opinião tão aberta à discussão quanto a própria opinião”.

Camus viu o espectro mais sombrio da nossa época nesta pretensão de infalibilidade. Nossa tragédia política, dizia, começou quando alguém concluiu que era justo “matar um homem em nome de uma ideia”.

A ideia da morte útil e racional. Todos os regimes totalitários, sem exceção, de inspiração nazifascista ou comunista, lançaram mão deste utilitarismo grosseiro (essencialmente implausível nas sociedades abertas), sob muitas formas retóricas, para justificar a morte.

Ainda lembro da inscrição que li no campo de concentração de Dachau, perto de Munique, em que o regime justificava experiências médicas com judeus dizendo que era lógico matar um judeu num laboratório desde que isto pudesse salvar 300 jovens alemães no campo de batalha.

Nada com essa dramaticidade está em jogo em nosso mundo trivial. Mas resta a pretensão de que alguém tenha uma maquininha de calcular utilidade e possa decidir “sem emoção” se um desafeto político merece ou não sumir do mapa.

Era uma das coisas que Hayek chamaria de “arrogância fatal”. Um mal contra o qual o melhor remédio continua sendo o bom e velho ceticismo sobre a verdade e a razão.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Novo Fundeb. Por que engessar os recursos da educação?

É preciso dar autonomia aos gestores, definir modelos de gestão com base em dados e na realidade local

Há um ponto que deveria merecer especial atenção na proposta do novo Fundeb que está para ser votada no Congresso. Trata-se da obrigação de que um mínimo de 70% do valor do fundo seja gasto com os servidores públicos da educação.

Num primeiro momento, a ideia parece boa. Para muitos municípios, isso nem mesmo faz muita diferença, a curto prazo, pois o gasto com pessoal vai bem além desse percentual. O Brasil, porém, é grande, e a Constituição é feita para o longo prazo.

Ao longo do tempo, o efeito disso será péssimo. Em um momento que o país toma consciência de que precisa avançar na reforma do Estado, vamos incentivar ainda mais comprometimento de gastos com pessoal e engessar, na Constituição, a aplicação dos recursos da educação.

A Constituição foi sábia em criar um sistema misto de gestão educacional. Conforme explicita o artigo 213 da Carta, os recursos para a educação devem ser destinados às redes próprias, podendo também o ser às escolas filantrópicas, ou seja, públicas não estatais.

A Constituição não estipulou nenhuma hierarquia aí. Apenas criou a opção, de forma que cada gestor (envolvendo governadores, prefeitos, secretários e conselhos de educação) pudesse decidir, à luz da realidade local, qual o melhor modelo para a gestão.

Isso foi feito porque o Brasil é um pais continental e diverso. A ideia sempre foi permitir a avaliação de modelos e oferecer autonomia ao sistema. No atual debate, a pergunta é bem mais simples: como saber se daqui a dez ou vinte anos, nos 5.570 municípios brasileiros, será ainda preciso aplicar 70% ou 80% dos recursos com pessoal?

Me surpreende que o Congresso Nacional, que foi capaz de aprovar um conjunto expressivo de reformas, desde as reformas trabalhista e previdenciária até o recente marco do saneamento básico, arrisque agora a produzir um engessamento inédito na educação brasileira.

Engessamento que expressa um traço de nossa cultura corporativa, de que o acesso dos cidadãos a serviços suponha que eles sejam prestados diretamente pela máquina pública.

Trata-se da velha confusão brasileira entre o público e o estatal. Serviços públicos podem ser oferecidos de modo concorrencial, via contratos, com medição de resultados e, sempre que possível, dando poder aos cidadãos para que façam as suas escolhas.

Na educação brasileira este tema é especialmente atual, dado os resultados pífios que o modelo estatal tem mostrado, cronicamente, seja no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), seja no exame do Pisa, realizado a cada três anos pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).

Ele também é atual porque há alternativas ao modelo tradicional que o próprio país vem produzindo. Em todo o Brasil, mais e mais crianças estudam em escolas filantrópicas de ótima qualidade, lado a lado com seus pares de famílias de maior renda.

Cria-se algo essencial para quem leva a sério o tema da igualdade de oportunidades no Brasil: permitir que alunos mais pobres estudem nas mesmas escolas em que estudam os alunos de classe média.

Estas experiências ainda não possuem escala, dada nossa fixação no modelo estatal e aos entraves burocráticos que criamos. É isso que está em jogo no desenho do novo Fundeb.

Não vai aqui rigorosamente nenhum veto a este ou àquele modelo, seja estatal ou não estatal. Esta avaliação precisa ser feita pelos gestores em todo o país, como faculta a Constituição, com base em dados e na realidade local.

O erro é tomar o modelo estatal como o único possível, sem qualquer análise comparativa e contra todos os sinais que nos chegam da realidade da educação brasileira.

É este o erro que o Congresso corre o risco de cometer na votação do novo Fundeb. Todos sabemos que a pressão corporativa é forte e o lobby das famílias mais pobres é inexistente. Elas certamente optariam por dispor dos mesmos direitos à escolha educacional hoje disponíveis à classe média e aos mais ricos no Brasil.

Não se trata de um luxo, como escutei tempos atrás, mas do exercício de direitos fundamentais que nenhum de nós concordaria em abrir mão.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: É bom para a democracia que a política defina relações pessoais e hábitos de consumo?

Das relações pessoais ao consumo, cada vez mais espaços são definidos pela política

Quase todo mundo tem uma história pra contar sobre desavenças que surgiram, nos últimos anos, em função da brigalhada política. Tempos atrás vi um tuíte de uma filha dizendo que o pai era um homem bom e que o “perdoava”, mesmo tendo ele votado no candidato que ela detestava.

O filósofo Robert Talisse comenta que encontrou mais de 40 milhões de entradas digitais com instruções sobre como escapar dos temas politicamente delicados e sobreviver aos encontros familiares no Dia de Ação de Graças americano.

Achou curioso não ter encontrado nenhuma vez a sugestão simples de que talvez a própria celebração entre as pessoas fosse mais importante do que as crenças políticas de cada um.

A partir desse incômodo ele escreveu “Overdoing Democracy”, um livro que faria bem ser lido por aqui. O ponto de Talisse é o que ele chama de “saturação política da vida social”. A ideia obsessiva de que “tudo é política” e é ela que deve pautar nossas relações pessoais, hábitos de consumo e juízos sobre qualquer coisa.

Lendo o livro me veio à mente o tema das identidades. A percepção de que, para além da retórica habitual, não é o gênero ou cor da pele que define o respeito, em regra, no mundo público, mas a opção política.

Neste episódio do ex-ministro Decotelli, li uma crítica dizendo que ele talvez até merecesse o tombo que levou não pelas omissões no currículo, mas porque era evangélico e renegava a religiosidade de seus antepassados. E era bolsonarista.

Seu problema era “político”. Escolheu errado. O autor destilava seu ódio com uma estranha pátina de virtude autoconcedida. Estranha, mas crível. Sua tribo iria entender do que ele estava falando. E isso bastava.

A saturação política invade também os espaços de consumo. Dias atrás observei gente bacana distribuindo listas de empresas a serem boicotadas, dado que seus proprietários manifestavam esta ou aquela posição política. Comer um cachorro-quente se tornava um gesto político. A estratégia impor um custo, fazer “calar a boca” de fato parecia funcionar.

Para o fanático político há sempre algo mais em jogo do que uma escolha eleitoral. Este é o ponto de Talisse. Se tudo é política, cada gesto remete a uma “totalidade”, sacou? O gosto por um desenho, o trecho de um filme, tudo pode ser imensamente grave. Não dá pra deixar passar, não é mesmo?

Mesmo o passado anda saturado de política, como mostra a atual onda iconoclasta. Isso não é novo, mas agora ganhou escala. O sujeito cruzou anos pela estátua do Borba Gato, em Santo Amaro, mas subitamente passa a enxergá-la como um ator político. Não é mais a imagem de um tempo que se foi. Ela se põe em movimento, incomoda, agride. E também precisa calar a sua boca.

Qual seria exatamente o problema com a saturação política? Alguns diriam que é a chatice. Tendo a concordar com isso quando dou uma olhada nas discussões de alguns grupos de WhatsApp nos quais (não me perguntem por que) estou incluído.

Mas a coisa vai muito além. Há bens valiosos que se perdem nesse caminho. O respeito humano é um deles (o respeito às escolhas políticas de Decotelli é só um exemplo). Há a perda da empatia, da capacidade de levar à frente projetos comuns com quem se discorda.

Há bens essenciais à democracia que a obsessão política leva com a água do banho. A capacidade de agir com imparcialidade e respeitar regras que não deveriam depender da lealdade política. A liberdade de expressão é um bom exemplo, mas está longe de ser o único.

O problema é a solução proposta por Talisse. Ele fala em cultivar a humildade intelectual e virtudes como a “amizade cívica”, capaz de cruzar fronteiras políticas. Sugere que cada um veja a si como vê a seus inimigos. Como “irracionais, imunes a evidências e assim por diante”.

A tese é boa. A democracia, para funcionar bem, precisa preservar espaços protegidos da própria política. Há um longo aprendizado a ser feito aí, visto que por ora parecemos caminhar alegres e obsessivamente na direção oposta.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: A democracia não deve conviver com a violência e o medo

O STF, assim como o governo, erra ao tomar opinião como delito

Talvez não devesse, mas me surpreendo que o tema da liberdade de expressão tenha se tornado central em nosso debate. Joel da Fonseca definiu bem a questão: devemos punir ideias agressivas e violentas? Sua resposta é negativa e veio com uma provocação: “me preocupo mais com a ‘justiça’ das redes do que com as falas violentas que ela busca punir”.

Minha resposta também é negativa. Ela vem na trilha da primeira emenda americana. Me parece também a linha de Hélio Schwartsman dizendo que a democracia aceita “quaisquer críticas, em quaisquer termos, mas não admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la”.

O debate me fez voltar ao inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo. Muita gente que respeito me diz não ver ali nenhum problema e que o ponto é simplesmente dar um basta a este “bando de fascistas”. Há quem pense diferente. No mínimo a falta de clareza sobre o que exatamente se está pretendendo punir.

Resolvi conferir com um pouco mais de detalhe. Voltei ao documento em que o ministro relator do inquérito apresenta sua lista de “mensagens ilícitas” exemplificando como atua a “associação criminosa” que se investiga.

São 25 mensagens. Três delas trazem referência a intervenção militar ou coisa do gênero (“passou a hora de contarmos com as forças armadas!”, me pareceu a mais dura); seis delas usam termos de baixo calão e xingamentos (“canalhas”, “vagabundos”, “crápulas) e 16 não passam de opinião política mais ou menos contundente.
Metade dirige-se não apenas ao Supremo, mas a outros Poderes e lideranças, ou simplesmente às instituições.

A que conclusão devemos chegar? O primeiro ponto é não julgar essas coisas a partir do gosto pró ou contra o governo. Se alguém quer fazer isso, boa sorte. De minha parte, não faço.

Se o STF erra ao punir opinião, erra também o governo ao tentar enquadrar na Lei de Segurança Nacional uma charge associando o presidente à suástica nazista. A pergunta é sobre direitos. Sobre nossa capacidade de separar o que é um crime e o que é retórica odiosa ou ideias que julgamos politicamente insuportáveis.

Vamos repetir: dois terços das “mensagens ilícitas” citadas no inquérito não passam de opiniões (dessas que a internet anda abarrotada) sobre o STF e as instituições.

Podemos fazer de conta que não, mas é evidente que há um problema aí. Não acho que isto expresse os limites que desejamos para a liberdade de expressão em nossa democracia. Não me refiro a ameaças de “estuprar” ou “enforcar” quem quer que seja. A lei brasileira é bastante clara sobre como lidar com essas coisas.

Me refiro exclusivamente ao tema da opinião. Individual ou organizada, não importa. Opinião de grupos mais ou menos articulados, visto que é um direito que pessoas de esquerda ou de direita se organizem, combinem “levantar” hashtags para defender as ideias (corretas ou não) que julgarem conveniente defender.

Penso que o Brasil tem uma Suprema Corte da qual deve se orgulhar, por muitas razões. Mas talvez lhe esteja faltando um exercício de autocontenção. Considerar que ministros cumprem uma função pública e estão sujeitos à crítica pública. Da mesmíssima forma que as demais autoridades da República.

E mais: no contexto de uma sociedade que tende sistematicamente a abusar da palavra. Pelo excesso, pelo grotesco, pela irresponsabilidade. E para tudo isso encontra um antídoto: a irrelevância.

A democracia não pode conviver com a ameaça direta e objetiva de violência. Mas igualmente não deve conviver com o medo. O medo de exercer a crítica, por ácida e contundente que seja.

Não deveríamos deixar que a paixão política, que por vezes parece a única variável orientando o debate público, obstrua nossa defesa dos direitos mais elementares. Direitos dos quais, tenho certeza, a maioria de nós não gostaria de abrir mão.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Desafio é como distinguir demandas legitimas de transformação social da simples intolerância

A estátua de Mahatma Gandhi amanheceu coberta por uma caixa metálica, dias atrás, na Parliament Square, em Londres. O monumento foi inaugurado em 2015 para homenagear o líder pacifista indiano, mas agora há uma campanha para retirá-lo de lá sob a acusação de racismo.

Um dos colegas de praça de Gandhi é Jan Smuts, ex-primeiro-ministro segregacionista da África do Sul. Smuts também circula em uma lista de derrubamentos, mas tem merecido menos atenção. Churchill é o mais famoso da praça e já foi devidamente vandalizado.

A menção a Gandhi não vem por acaso. Valeria o mesmo para as diversas estátuas de Cristóvão Colombo queimadas ou decapitadas em cidades americanas, ou para o nosso padre António Vieira, gentilmente vandalizado no centro de Lisboa.

João Pereira Coutinho associou nosso tempo a uma certa revivescência medieval. A época pré-iluminista das inquisições. Diria que vivemos uma Idade Média mais bem educada. As multidões de hoje não se reúnem mais em praça pública para amaldiçoar algum infiel ardendo na fogueira.

As bruxas em geral queimam na internet e não importa muito a ideologia. Na vida real (ao menos por enquanto e com algumas tristes exceções), a multidão derruba apenas estátuas e vandaliza espaços públicos.

Coutinho estaria errado se a raiva popular estivesse sempre do lado certo da história. O antirracismo contemporâneo, por exemplo, na trilha de Martin Luther King. As multidões trariam consigo o germe da razão e do progresso moral. Saberiam escolher entre a civilização e o que deve ir para o lixo da história.

De minha parte sou cético. Se alguém quer entregar à multidão irada a decisão sobre proibir um filme, retirar a palavra a um orador ou derrubar uma estátua, boa sorte. Só lembre-se que um dia desses a multidão pode errar e sua fúria se voltar exatamente contra as ideias que mais prezamos. Não foram poucas vezes que isso aconteceu, e nem muito longe daqui.

É exatamente por isso que inventaram essa coisa quase insuportável chamada liberdade de expressão. Exatamente a coisa que está no centro do debate atual e que vem desafiando a nossa democracia.

Há um lado curioso nisso tudo. Nos anos 1990 muita gente imaginava que a internet iria aproximar as pessoas e melhorar o debate público. Ocorreu o contrário. Cresceu a paixão tribal no mundo do pensamento.

Numa expressão, a tecnologia nos medievalizou. Os riscos disso tudo são evidentes. O mais óbvio é a perda de referência. A incapacidade de distinguir entre demandas legítimas de transformação social, como o antirracismo, e a simples intolerância.

Barack Obama acertou na mosca pedindo que os movimentos antirracistas que incendiaram os EUA não “racionalizassem” a violência. Mencionou uma velha senhora que teve a loja de rua destruída e disse que todos sabiam como aquilo tudo estava fadado a terminar.

E arrematou: “Se queremos a justiça e a sociedade funcionando sob um código ético mais exigente, precisamos nós mesmos agir desse modo”. Obama é o cara que disse, um dia após a eleição de Trump, que a democracia era assim, um jogo de vitórias e derrotas em que todos ganham, no longo prazo. Mas pouca gente entendeu, como sempre.

Outro risco é a contaminação das instituições. Não há que se esperar muito da multidão digital. Por vezes ela irá acertar, por vezes errar, e mesmo sobre o erro e o acerto não haverá acordo. A paixão e o ódio político serão o feijão com arroz das democracias.

No Brasil atual me surpreende (em que pese não deveria) que tenhamos ressuscitado a “famigerada” Lei da Segurança Nacional, assinada pelo general Figueiredo em 1983. Para alguns, a lei que era um entulho autoritário se transformou em instrumento da democracia; para outros, que com ela simpatizavam, se tornou ferramenta do arbítrio. Num e noutro caso, o apelo indignado à liberdade de expressão.

Não deixa de ser uma perfeita imagem do nosso tempo. Não vejo chance de essas coisas mudarem, e o máximo que me permito é acreditar que nossas instituições e liderança pública não irão embarcar nesse jogo. Acreditar com cada vez menos força, confesso.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: A liberdade de expressão exige tolerância a ideias que detestamos, mas qual o limite?

Acordo sobre opiniões nunca foi uma tarefa simples nas sociedades abertas

"Instituições não são a democracia", diz o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em um tuíte, semanas atrás. O deputado segue fazendo considerações sobre o sentido da democracia ("é a vontade popular") e termina com uma afirmação: "Quem tem atacado tanto o Estado de Direito quanto a vontade popular é o STF".

A frase acima consta no despacho do ministro Alexandre de Moraes como exemplo de mensagens ilícitas ou fraudulentas (as expressões poderiam variar aqui: falsas, odiosas, agressivas) que justificam a operação policial realizada na quarta, no inquérito das fake news.

Outra mensagem diz simplesmente: "Doria e STF trabalhando em conjunto para matar o povo de fome". Essa não sei de quem é, o que é irrelevante. Há milhares de frases como essa, todos os dias, na internet. Aliás, há pouco mais de 30 anos, quando comecei a prestar atenção à política, escuto gente atribuindo a fome ou a miséria a esta ou àquela autoridade.

Outra mensagem parece mais globalizada: "Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!". Sabe-se lá o que a frasista queria dizer com isso. Imagino que tenha a ver com a defesa de algum tipo de iliberalismo. Mas é só um palpite.

Há frases bem sem gracinha, do tipo "a maioria dos juízes nunca foi juiz", e, pasmem, "não querem se reformar". Há frases mais pesadas. Palavrões, que me permito não citar aqui, e bobagens, em regra mal escritas e de gosto duvidoso.

Discordo de todas aquelas frases e, ao contrário daquelas pessoas, tenho a Suprema Corte brasileira em alta conta. Dias atrás elogiei o ministro Celso de Mello pela sua recusa em proibir uma passeata exprimindo precisamente o tipo de ideias que as tais mensagens expressam.

Celso de Mello o fez com afirmação simples e precisa: não cabe ao Supremo ou à Justiça a "proibição estatal do dissenso".

Pois é o que nossa Suprema Corte faz agora. Já havia feito quando interditou uma publicação da revista Crusoé, por ser caluniosa ou falsa. À época, muita gente protestou, com razão. Houve editoriais de jornais respeitáveis. Agora os ventos mudaram.

O despacho do ministro diz suspeitar que as mensagens compõem uma complexa rede de pessoas que expõe "a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulentas, a independência dos poderes e o Estado de Direito".

Trata-se, sem tirar nem por, de punir o delito de opinião. Opinião individual ou organizada, não importa. Opiniões "perigosas" para a República. Opiniões, repito, que inundam as redes sociais, no Brasil e mundo afora, todos os dias.

O Estado brasileiro, pela mão de nossa Suprema Corte, se prepara para assumir a função de reguladora do grau de risco que uma frase ou grupo de frases podem trazer à República, às instituições ou à ideia mais geral da democracia.

É um caminho. Conhecendo o histórico do STF em defesa da liberdade de expressão, intuo que muitos de seus membros se sentirão incomodados ao passar os olhos por aquelas mensagens toscas e imaginar que alguém possa considerar que sua expressão não esteja garantida pela Constituição brasileira.

Ela está. Isso foi perfeitamente consagrado na histórica decisão tomada pelo próprio Supremo, quando da revogação da Lei de Imprensa.

O ministro Ayres Britto foi direto: "Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas".

Isso não exclui, por óbvio, o direito de resposta ou à reparação, sempre a posteriori. O que é estranho ao nosso ordenamento institucional, ao menos até agora, é a ideia de um Estado praticando um controle prévio e genérico de opinião, arbitrando o falso e o verdadeiro.

Isso pode mudar. O país pode migrar para um modelo de tutela do Estado sobre a opinião pública. Nesse caso, será preciso definir claramente quais são as ideias erradas, e quem faria esse controle na imprensa e nas redes sociais.

O problema aí é sempre o mesmo: as ideias erradas costumam sempre habitar o outro lado do mundo político, e um acordo sobre essas coisas nunca foi uma tarefa simples nas sociedades abertas.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Fernando Schüler: Governo sabe que voluntarismo de Bolsonaro se esgotou e por isso precisa negociar

Bolsonaro percebeu que precisa de suporte político e algum nível de pactuação

Boa parte de nossa crônica política passou ano e meio reclamando que Bolsonaro não formava sua base no Congresso, que vinha com essa conversa mole de “nova política”, que era impossível governar daquela maneira. Mostrei dias atrás que o experimento do governo sem coalizão produziu alguma funcionalidade, no primeiro ano do governo, mas depois desandou. A pandemia foi sua pá de cal.

Bolsonaro parte então para um novo arranjo, de maneira surpreendentemente agressiva, com foco em uma articulação com os partidos do centrão. O professor Carlos Pereira escreveu um bom artigo descrevendo a nova estratégia como um “modo de sobrevivência”. Observei a ele que há algo um pouco além disso no arranjo: a disputa pela sucessão de Rodrigo Maia.

Controlar a presidência da Câmara significa dar o ritmo da agenda política, no Congresso, o que inclui admitir ou não pedidos de impeachment. Sérgio Abranches observou, acertadamente, que a nova coalizão não terá nada de programático.

Diria apenas que houve muito pouca aliança programática, no Congresso brasileiro, desde a redemocratização. E que este mesmo centrão foi o que aprovou temas difíceis e cruciais para o país, como a PEC do Teto e as reformas trabalhista e previdenciária.

Se o governo de fato conseguir organizar minimamente uma coalizão no Congresso, fazendo as concessões habituais na máquina pública (cuja extensão por ora ninguém consegue prever), tudo dependerá do governo fazer a parte mais difícil (Marcos Mendes descreveu isso com precisão dias atrás): apresentar uma agenda consistente de reformas.

Não me refiro aqui a Paulo Guedes, mas ao governo. É constrangedor assistir ao ministro da Economia mover uma montanha para fazer valer o óbvio no tema da contrapartida de estados e municípios ao auxílio federal. E mais constrangedor ainda é perceber que há um jogo de cena nisso tudo.

O presidente pode vetar as concessões feitas pelo Congresso, que são um enorme tapa na cara de milhões de pessoas, no mundo privado, que perderam seus empregos e andam por aí sem saber o que fazer. A pergunta é se ele fará algum esforço real para que o veto seja mantido.

O fato é que o governo está fragilizado. Não é apenas a má condução da pandemia, o cansaço com as tropelias presidenciais ou a paralisia da pauta econômica. Vivemos o fim de um modo voluntarista de governar. Daí os sinais bastante claros de um governo crescentemente disposto a fazer concessões e recuar em suas pretensões de agenda.

A fragilidade do governo veio, em grande medida, da força de contenção das instituições. Algo que tenho enfatizado aqui e que ganhou escala nos tempos recentes. O governo sofreu uma sucessão de reveses no Supremo. A concessão de autonomia a estados e municípios para impor isolamento, o veto à expulsão dos diplomatas venezuelanos e à posse do delegado Ramagem na chefia da Polícia Federal são exemplos disso.

Contido pelo Supremo, isolado no Congresso e percebendo sua popularidade declinar, resta a Bolsonaro negociar. Sinais disso vimos na reaproximação com Rodrigo Maia (que também percebe sua base balançando pela ação do governo e muda de tom) e no encontro que Bolsonaro comanda nesta quinta-feira (21) com os governadores (onde tudo pode acontecer, inclusive coisa nenhuma).

Isso não significa que Bolsonaro deixará de ser um político errático e avesso aos bons modos, nem que a oposição subitamente se disporá ao diálogo. Mas abre espaço a alguma solução de compromisso.

Bolsonaro sabe que seu modo voluntarista de governar encontrou um limite. Ele precisa de suporte político e algum nível de pactuação.

Se ele será capaz de fazer isto e reconstruir algum padrão de governabilidade, digo que não sei. Já há gente demais por aí que sabe de tudo, de modo que me permito, em meio a esta pandemia triste, a solidão da dúvida.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.