Fernando Henrique Cardoso

Fernando Henrique Cardoso: Angústias e crença

É pena ver o governo mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar nosso destino

Fim e começo de ano são épocas de balanço pessoal, familiar, das empresas e mesmo do País. Sem maiores pretensões, direi umas poucas palavras sobre o mais geral: o que me preocupa ao ver o Brasil como nação.

Primeiro, a maior angústia coletiva: levantar o gigante de seu berço. Tarefa que vem sendo feita ao longo de gerações. É inegável que houve avanços, alguns consideráveis. Bem ou mal, de uma sociedade agrário-exportadora, que usava escravos como mão de obra, o País passou a dispor de uma economia urbano-industrial, baseada no trabalho livre. Para isso não só as migrações internas, como a imigração foram fundamentais. Com elas se acentuou nossa diversidade cultural.

Hoje somos uma nação plural, na qual a contribuição inicial dos portugueses se robusteceu muito, não apenas por havermos conseguido passar da escravidão para o trabalho livre, mas também por termos incorporado os negros à nossa sociedade (embora ainda de forma parcial) e em nossa cultura. Incorporamos também um significativo conjunto de pessoas vindas da Europa latina e de outros segmentos populacionais do continente europeu, além de árabes e asiáticos, sobretudo japoneses. E desde o início da colonização houve miscigenação com as populações autóctones.

Dado o mosaico, será que conseguimos de verdade criar uma nação consciente de seu destino comum e acreditar que ele seja bom? Esse é o desafio que explica parte de nossas incertezas. Hoje somos muitos, mais de 210 milhões de pessoas habitam o Brasil. Nossa força, como também nossas dificuldades se ligam ao tamanho dessa população: somos muitos, diferentes e desiguais. Não me refiro à desigualdade provinda da diversidade, que nos enriquece, mas da que mantém na pobreza boa parte dos nossos conterrâneos. Esta é outra fonte de nossas angústias: como envolver num destino comum, de prosperidade e bem-estar, tanta gente social, cultural e economicamente desigual? Se há algo a admirar nos Estados Unidos é que, como nação, e apesar de existirem as mesmas, e até maiores, diversidades e confrontos entre seus habitantes, eles conseguiram criar e transmitir o sentimento de que “estão juntos”. A crença nos valores da pessoa humana, da democracia e da liberdade, que a Constituição americana expressa, serviu de cimento para que os Estados Unidos avançassem.

Precisamos de algo semelhante. Um dos caminhos é o da educação. Enquanto tive poder de decisão, pendi para ampliar a inclusão dos jovens na pré-escola e no ensino fundamental. Não porque descreia da importância do ensino secundário e do superior (nem poderia, dada minha vivência como professor), mas porque nos dias de hoje quem é bom de verdade avança, mesmo que sozinho, e se torna “global”. Porém o que conta para a formação nacional é a média, e não a ponta de excelência. E a média não avança se a base da pirâmide não for ampla e sólida.

Até que ponto se conseguiu avançar?

Em certos setores, bastante: nos segmentos produtivos nos quais fomos capazes de introduzir ciência e tecnologia. Assim aconteceu especialmente na agricultura, que desde o passado se apoiou na tecnologia. O Instituto Agronômico de Campinas exemplifica bem o que ocorreu com a produção cafeeira. Por trás de cada produto em que a agricultura avançou sempre houve o apoio de alguma instituição de fomento e pesquisa.

Mesmo na indústria houve esforços consistentes no desenvolvimento de uma indústria de base moderna (aço, petroquímica) e na produção de bens de transporte tão sofisticados quanto aviões. A indústria extrativista, que era pouco eficiente, se agigantou (basta ver o que aconteceu com o petróleo). E tudo isso requereu melhorias na infraestrutura.

No mundo contemporâneo, a tradução de ciência em tecnologia se acelerou. E o Brasil tem mostrado dificuldade de acompanhar essa aceleração, o que tende a aumentar a distância entre nós e os países mais avançados, limitando as nossas possibilidades de desenvolvimento.

É essa a grande preocupação quanto a nosso futuro. Pouco se fez em algumas das áreas que mais avançam na era contemporânea: robótica, inteligência artificial, machine learning, todo um conjunto de tecnologias características da chamada indústria 4.0.

É pena ver o governo atual mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar no largo prazo o nosso destino como nação. Se, em vez de namorar o criacionismo e o “terra-planismo” – uma quase caricatura –, os que nos governam acreditassem mais na ciência, na diversidade e na liberdade; se, em vez de guerrear contra fantasmas (como o “globalismo” ou a penetração “gigantesca” do “marxismo cultural”), os que se ocupam da educação, da ciência e da tecnologia no Brasil voltassem sua vista para observar como se dá a competição entre as grandes potências e dedicassem mais atenção à base científico-tecnológica requerida para desenvolvimento de um país moderno, democrático e que preza a liberdade, estaríamos mais seguros de que nossas inquietações, com o tempo, encontrarão solução.

Espero que encontrem, pois os governos passam e as nações permanecem.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Cidadania e prosperidade

A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor. Voltemos a sonhar

Todo começo de ano, a mesma ladainha: feliz ano novo! É difícil escapar do lugar-comum e não pretendo dele me afastar (pelo menos neste início de janeiro). Tenho boas razões para manter certo otimismo, pois chego aos quase 90 anos – que cumprirei no próximo ano se os fados assim dispuserem – mantendo o bem-estar, o que supõe certa autonomia pessoal. E posso dizer, sem arrogância, que me sinto mais livre, mais à vontade, para dizer o que penso e o que me emociona. Já não serão amarras ideológicas ou partidárias que irão frear meus impulsos. Por certo, a família sempre há que tomar em consideração, assim como também os amigos. Quanto aos demais, importam, mas não tanto como a família ou os amigos.

Dito isso, justifico meu otimismo relativo. Nasci, em 1931, num Brasil mais pobre (nasci no Rio e lá vivi até os 9 anos). Era comum ver nas cidades pessoas usando tamancos, nos campos havia medo dos bichos-de-pé, o analfabetismo no País era avassalador, as classes médias altas compravam manteigas e queijos, bem como uvas e muitas outras gulodices mais, importados.

Automóveis usava quem os tinha: os ricos – e olhe lá – ou, então, os altos burocratas. O comum dos mortais usava o bonde. No Rio havia um reboque em cada bonde, chamado “taioba”, com passagem mais barata. Em São Paulo havia os “camarões”, mais fechados, e também havia o bonde duplo comum. Para ir a São Paulo (cidade para onde vim em 1940), ou ir de lá ao Rio, usavam-se mais frequentemente os trens, também com categorias de primeira e segunda classe. A grande renovação foi a chegada das “litorinas” (comboios menores e mais ágeis), cujo percurso – diurno – durava cerca de oito horas, enquanto os trens requeriam 12. Avião era para os valentes e milionários... De carro, quem podia, dividia a longa viagem de 12 a 14 horas ou mais e se alojava no meio do caminho num hotel ou em alguma fazenda de parente ou amigo. No verão chovia sem parar, tornando um lamaçal os trechos de terra do que veio a se chamar Via Dutra. E era via de pista única, com mão para ir, outra para voltar.

De lá para hoje as mudanças foram enormes. Tornamo-nos uma das dez maiores economias do mundo (embora na rabeira delas). A economia se industrializou e a de serviços cresceu. A agricultura e a mineração brilharam. O País se urbanizou: mais de dois terços da população vivem em cidades (ou em suas muitas periferias pobres). O analfabetismo não chega a abranger 7% da população maior de 15 anos e vem caindo há alguns anos. Universidades (pelo menos no nome) o País as tem às dezenas, e olha que as primeiras foram criadas nos anos 1930, embora houvesse antes escolas isoladas, mais antigas. E o Serviço Único de Saúde (SUS), por mais que seja criticado nas cenas em que as tevês mostram filas enormes, é uma realidade de dar inveja a muitos povos: o atendimento é universal e gratuito. Antes só eram acolhidos nos hospitais os membros de alguma categoria profissional ou os que batiam às portas das Santas Casas de Misericórdia. Naturalmente, os mais ricos pagavam e tinham atendimento melhor, mesmo no passado.

E temos democracia. Só se avalia o bem que representa respirar o ar da liberdade quando se perde tal possibilidade. Quem, como em meu caso, viu o País viver com ditaduras ou autoritarismos durante cerca de 25 anos, intermitentes, sabe que respirar a liberdade é algo essencial. O estudo e a prática profissional no exterior, bem como o exílio, me ensinaram a respeitar as instituições que provêm e garantem as liberdades individuais e os direitos, das pessoas e coletivos. Desejo, portanto, que continuemos a desfrutar a liberdade e a democracia.

Há mais, contudo. Escrevi que no passado a maioria das pessoas tinha piores condições de existência. Muitos ainda as têm. O modo de melhorar esta situação é conhecido: crescimento da economia e políticas públicas que levem a maior igualdade. Crescimento razoável e contínuo. Ficaram no passado as taxas de 7% e 8% ao ano de crescimento do PIB. Quanto mais amadurece uma economia, menores são as taxas médias de crescimento. Mas almejar crescer 4% ao ano durante uma década (e daí por diante) é possível e necessário. Mas não suficiente: também é preciso redistribuir a renda, oferecendo mais educação, saúde, emprego e o que seja necessário para a sobrevivência dos despossuídos (mesmo bolsas, para evitar tragédias). E também mudar as regras de tributação, não só para simplificá-las, mas para que elas pesem mais sobre quem mais pode e menos nos que mal conseguem consumir o necessário para sobreviver.

É neste ponto que o carro pega. O futuro de um país se joga com sonho e ação. Se olharmos para trás, veremos que o sonho se esvaeceu. Persiste, mas é menos nítido na imaginação das pessoas. A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor para todos. É o que desejo para 2020 e para daí em adiante: que voltemos a sonhar. Tenhamos mais grandeza, não no sentido da arrogância, mas da fé em nosso destino nacional. Precisamos de maior coesão e menos diferenças entre “nós” e “eles”, sejam quais forem os “nós” e os “eles”. Para tanto precisamos diminuir as desigualdades: elas começam no berço, mas se consolidam na pré-escola e no ensino fundamental. Daí por diante, nem falar...

E não devemos perder de vista que vivemos numa civilização científica-tecnológica. A batalha do futuro se dará no campo da educação e da cidadania. É preciso que estejamos “conectados”, sem perder os valores básicos: precisamos utilizar a razão e saber que ela, sem sentimento, se torna mecânica, autocrata. Desejo que 2020 aumente a consciência de que podemos melhorar. Para isso deveremos estar juntos. A melhoria de um, quando prejudica o outro, desfaz a base que precisamos prezar: nossa coesão como pessoas que vivem na mesma comunidade nacional.

Bom ano novo, com emprego, prosperidade, mais igualdade e cidadania.

* Sociólogo, foi presidente da República.


Fernando Henrique Cardoso: Basta de gols contra

Aparentemente, o presidente e seu círculo mais íntimo, parecem não haver entendido que não estamos mais na guerra fria

Estava na Argentina quando irromperam as queimadas no Brasil. A diplomacia a que me imponho por haver sido presidente me obriga a tratar com especial cuidado questões nacionais quando estou no exterior, ainda que em país irmão.

De volta a casa, não posso deixar de constatar, com preocupação, os graves danos causados pelo governo atual à imagem do País no exterior. É difícil contestar a avalanche de críticas e afirmações, nem sempre corretas, que deságuam nas mídias internacionais mais influentes. Isso porque o desaguisado presidencial é extenso: ataque a valores universais de proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos, demonstrações de menosprezo pela ciência e pela cultura, supostas relações com as milícias que compõem o trágico quadro de violência no Rio de Janeiro, casos de nepotismo, e por aí vai. Por que e para que tanto desatino?

Aparentemente, o presidente e seu círculo mais íntimo parecem não haver entendido que não estamos mais na guerra fria. Não há mais o confronto entre dois blocos ideológicos. Mesmo Donald Trump, capitaneando uma relação comercial belicosa com a China e pensando em levantar muros na fronteira mexicana, não se pauta pela lógica bipolar de um mundo dividido entre esquerda e direita. Nem a China. Muito menos a Europa. Qual o sentido, pois, de fazer desaforos ao presidente da França e sua esposa e em ressuscitar um nacionalismo anacrônico? Os mais velhos hão de se lembrar do ardor nacionalista que aflorou (à época com maior razão) diante do projeto de um think tank americano, Hudson Institute, que nos anos 1960 aventou a ideia estapafúrdia de transformar a Amazônia num grande canal de navegação alternativo ao do Panamá.

A reação dos europeus ao aumento das queimadas na Amazônia responde a motivos distintos e não se deu de forma uniforme. Há uma preocupação genuína com questões que têm impactos globais (mudança climática e extinção da biodiversidade). Existem também razões menos universais, como a defesa de interesses protecionistas, e motivações circunstanciais, como o receio de derrotas em eleições locais a se realizarem no próximo ano. Em lugar de reagir toscamente, negando dados empíricos e insultando cientistas e chefes de Estado de outros países, deveríamos ter reagido prontamente para combater as queimadas e mostrar, na prática, o compromisso soberano do Brasil com a proteção do meio ambiente. Não há meio mais eficaz de desinflar a conjectura inaceitável sobre conferir um estatuto internacional à Amazônia.

Nessas horas precisamos de bom senso e racionalidade, virtudes difíceis num país polarizado. Patriotismo não se mede por bravatas nacionalistas, sobretudo quando insultuosas. A proteção do bioma amazônico é, acima de tudo, do interesse do Brasil, um interesse coincidente com o dos demais países que compartilham esse bioma e também com o do planeta. Dadas as restrições fiscais, recursos do exterior são bem-vindos. Não nos falta capacidade para bem administrá-los, com transparência e em parceria com a sociedade civil, que pode e deve ser aliada, e não inimiga na preservação do meio ambiente e na realização de projetos de desenvolvimento.

Há queimadas que em parte são cíclicas, em parte são legais, mas em grande parte (é preciso avaliar o tamanho) são criminosas: derrubada ilegal de mata para queimá-la e transformar a floresta em pasto ou em áreas para grãos. Se nos faltassem terras, vá lá, caberia a discussão sobre o que fazer. Mas elas são abundantes e o agronegócio brasileiro, o que opera dentro da legalidade, não precisa depredar para ser competitivo. Ao contrário, só continuará a ser competitivo se não depredar, como prevê a Constituição e está estatuído nas leis.

Enquanto vozes lúcidas do agronegócio clamam por racionalidade, no governo há quem insista em distorcer os fatos. Como se fosse pouco negar a validade de dados científicos, busca-se transformar vítimas em algozes. Nessa linha, aponta-se a demarcação de terras indígenas – e não a atividade predatória, ilegal e não raro associada ao crime organizado – como o grande obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia.

É essa retórica de desinformação, insulto e incentivo a práticas ilegais, reiterada ao longo de oito meses, a principal responsável pela crise atual. De um lado, ela abriu a porteira para que os interessados no desmatamento ilegal se sentissem autorizados a tocar fogo no cerrado e na floresta. De outro, deu o pretexto para que a defesa de interesses protecionistas se revestisse da capa de legitimidade da preocupação ambiental. A retórica oficial tem sido danosa para os interesses do Brasil. Pode pôr em risco até mesmo o acordo do Mercosul com a União Europeia.

De positivo, nesse quadro, só há dois pontos a destacar: primeiro, a reação rápida e vigorosa de vários setores da sociedade brasileira; segundo, a prontidão das Forças Armadas em responder à situação de emergência provocada pelo descontrole das queimadas na Região Amazônica.

Com tanto horror perante os céus, como disse um poeta, devemos aguentar firmes (imprensa, Congresso, Judiciários, líderes empresariais e da sociedade civil) para não deixar que arroubos personalistas e interesses familiares comprometam o futuro do País.

Creio que foi Otávio Mangabeira quem disse: a democracia é como uma plantinha tenra, precisa ser regada todos os dias para crescer. Trata-se agora de preservá-la. Como mostram muitos livros recentes sobre a crise da democracia, a forma moderna de corrompê-la não passa por golpes militares, mas por atos governamentais que, quando não encontram reação à altura, pouco a pouco lhe vão arrancando as fibras.

O preço da liberdade é a eterna vigilância. É preciso nos mantermos atentos e fortes para que as instituições do Estado continuem a cumprir, com independência, as obrigações impostas pela Constituição.

* Sociólogo, foi presidente da República.


Fernando Henrique Cardoso: Falta fazer

Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade

No artigo anterior escrevi sobre o Plano Real. E no pós-Real? Muita coisa mudou na economia, na política e na sociedade. O pesadelo da inflação e da dívida externa ficou no passado. Políticas universais de educação e saúde se estruturaram e programas de transferência de renda para os mais pobres se estabeleceram. Houve alguma melhoria – nunca suficiente – na renda do trabalho. Falta ainda algo essencial: taxas de crescimento contínuas que – mesmo sem serem espetaculares – permitam oferecer mais emprego e renda. Para isso o ordenamento das contas públicas, conquista perdida nos governos do PT, é condição necessária. Os passos iniciais para sua recuperação foram dados com a reforma da Previdência.

Nem tudo, porém, depende só de nós. Exemplifico: foi o entendimento dos Estados Unidos com a China, levado a efeito pela dupla Nixon-Kissinger, que assentou as bases da estabilidade e do crescimento mundial nas décadas seguintes. Os benefícios plenos daquele entendimento se concretizaram depois que Gorbachev desencadeou um processo de mudança que resultou na Queda do Muro de Berlim e no colapso da União Soviética, facilitando a ampliação da União Europeia e pondo fim à guerra fria. Nesse contexto, aos poucos, a ideologia terceiro-mundista foi se debilitando, abrindo espaço para uma nova era de convivência entre os países: a da globalização. Com ela a pobreza mundial diminuiu, houve intensificação do comércio internacional e algumas nações da periferia mundial aproveitaram para se integrar às cadeias globais de valor.

Entre nós, os efeitos da estabilização e da maior integração econômica tornaram possível difundir políticas sociais inclusivas e introduzir tecnologias de ponta na agricultura, na mineração, nos setores financeiros, bem como em alguns processos industriais. Nossas exportações, que ainda são modestas, tiveram chance de expansão, em particular durante o boom das commodities. Em conjunto, isso deu a sensação de que “chegara a vez do Brasil”.

Infelizmente, a má condução da economia, na última parte do governo Lula e no de Dilma, mergulhou o País na pior recessão de sua História, da qual nos recuperamos lentamente, a despeito dos esforços do governo Temer. É cedo para ver se o atual governo logrará retomar o crescimento econômico e praticar políticas inclusivas.

O desaguisado inicial lança dúvidas sobre tal desfecho. Faltam estratégias que deem ao povo o sentimento de que “desta vez vamos”. Mais ainda. Na era da globalização as tecnologias de produção e comunicação estão sujeitas a renovações constantes. Tudo depende de avanços científicos e tecnológicos e da capacidade dos governos de os anteverem e criarem condições para sua vigência. Os sinais dados até agora são desanimadores.

O futuro é incerto: há retrocesso no plano internacional. Além de a vaga populista de direita ser crescente, o entendimento sino-americano tropeça na rudeza “trumpista”, com a qual fazem coro os autoritários da direita mundial. Abrem-se assim espaços para a reaproximação da Rússia com a China.

Imaginava-se em passado recente que no Ocidente predominariam os valores de um liberalismo progressista, com a aceitação das diferenças, a valorização da pessoa humana e o apoio a políticas sociais inclusivas. Acreditava-se que os mercados, instrumentos do êxito econômico, não implicariam o desfazimento da ação política e do papel dos Estados. Era o sonho da Terceira Via. Vê-se agora a revitalização de forças opostas a essa visão. Forças que não são liberal-conservadoras, normais nas democracias, mas reacionárias, atrasadas.

É nesse contexto que, com realismo e sem utopias regressivas, as agremiações políticas brasileiras terão de se reposicionar. Diante do liberal-autoritarismo é preciso insistir no liberal-progressismo. Este não pensa apenas nas pessoas e em sua liberdade (valor essencial), mas também no conjunto da população. Supõe, consequentemente, uma ação pública sinalizadora para os mercados e redutora de desigualdades da sociedade. Ações que, sem arbitrariedades políticas, promovam a capacidade e o bem-estar das pessoas, redistribuam renda e preservem o meio ambiente.

Há muito a pensar e fazer. Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade. Sem isso as nuvens do mundo, já carregadas, despejarão mais água na chama de um futuro melhor para o País e as pessoas.

Nossos partidos políticos ficaram aquém das expectativas. Sem falar na desilusão que foi o PT, mesmo o PSDB e o PMDB – um, social-democrata, o outro, democrático-popular – se enredaram na teia das corrupções, magnetizados pelo estatismo, fiador do patrimonialismo. A social-democracia envelheceu sem responder aos desafios das “sociedade em redes”: os contatos diretos voltaram a valorizar as pessoas, as novas formas de produção estagnaram a renda das classes médias e aumentaram as desigualdades. O populismo do passado, integrador das massas na política, deu passo à arrogância do populismo de direita, que espalhou o medo do imigrante, da violência e das mudanças.

Os movimentos políticos renovadores estão se organizando fora dos partidos. Entretanto, a democracia política requer formas institucionalizadas de ação. Que fazer? Renova-se a pergunta. Ainda haverá partidos capazes de se reinventar? A “nova política”dispensará partidos e será simbolizada apenas por líderes? Esse impulso carismático escapará de ser outra versão de fascismo? Duvido.

Chegou a hora de refazer percursos, de reconhecer erros e assumir, sem oportunismo, posições políticas condizentes com o estilo de produção, sociabilidade, comunicação e modo de agir contemporâneos. Em vez de aderir de corpo e alma ao “trumpismo” ou de sonhar com um estatismo caduco, é melhor agir em defesa dos interesses nacionais e populares, com postura não agressiva, mas altiva. Mãos à obra, repito.

*Sociólogo, foi presidente da República


BBC Brasil: Governo Bolsonaro é pior do que eu imaginava porque 'não vi nada' até agora, diz FHC

Ingrid Fagundez e Ligia Guimarães / BBC News Brasil

SÃO PAULO - No fim de 2018, quando perguntado sobre suas expectativas em relação ao governo de Jair Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era cauteloso: dizia preferir esperar as ações do líder recém-eleito para avaliar se seus "temores" se confirmariam.

Hoje, há três meses sob a nova administração, o tucano é mais taxativo. Bolsonaro, diz, é pior do que ele esperava. Quase cem dias depois da posse, o sociólogo de 87 anos afirma não ter visto "nada" do governo.

"Por que ele foi eleito? Ele falou temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse 'eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo'. Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?", diz, em entrevista à BBC News Brasil na sede do Instituto FHC, no centro de São Paulo.

Para o ex-presidente, a nova gestão está sem rumo. As falhas, na sua análise, são muitas: falta projeto para o país, falta aprender a se relacionar com o Congresso, falta até se comunicar com a população para explicar medidas consideradas fundamentais pelo governo, como a reforma da Previdência.

Ele cita a experiência do Plano Real, quando, como ministro, liderou a articulação em prol da aprovação da proposta. "Não tinha medo de bicho papão. Fui falar do Plano Real até no programa Silvio Santos", diz. "Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente."

Guedes sem sessão da CCJ, da Câmara; para FHC, ele age como professor com os parlamentares, não como político

Mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi duas vezes ao Congresso tratar da reforma da Previdência, esbarra no tom de "professor" ao falar com os parlamentares, diz FHC.

"Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né?

Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia 'mas não é meu terreno'.

Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo."

Distante das atividades do PSDB desde que deixou a Presidência ("nem sei onde fica o diretório"), mantém contato com alguns de seus pares na sigla. Os mais frequentes, diz, são o ex-governador Geraldo Alckmin e os senadores Tasso Jereissati e José Serra. "E o (governador João) Doria, mais raramente..."

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala bastante sobre seu exílio durante a ditadura, período em que perdeu seu pai, e foi aposentado compulsoriamente da USP. Como viu a divulgação do vídeo em defesa do golpe militar pelo Planalto?
Fernando Henrique Cardoso - É uma coisa historicamente inconsequente, né? E era também uma vontade que corresponde a esse tipo de coisa do [Donald] Trump, de idealizar o passado. Dizer "não foi assim, foi diferente". Quem passou pela época sabe. Começa pela imprensa.

Olha, trabalhei num jornal chamado Opinião, da imprensa nanica. Como é que se fazia? Você escrevia um artigo e às vezes vinha o redator-chefe e dizia "olha, essa frase não passa". Quantas vezes no jornal não saíam poesias, que era a maneira de dizer "fui censurado"?

Então você dizer hoje que não houve ditadura, que não houve um movimento de controle da liberdade, é completamente desassisado. Por que se diz? Porque a política não é feita por historiadores, é feita por personagens ativos, incentivando o medo.

BBC News Brasil - O senhor fica mais preocupado quando isso vem institucionalizado, quando vem do Planalto?
FHC - Sim, claro que preocupa. Mas se você comparar com o que aconteceu em 1964... Em 1964, havia Guerra Fria. Era uma realidade, não era uma invenção. Havia um alinhamento político ora para um lado, ora para o outro. Hoje não tem essa realidade. Mesmo que venha do Planalto, como você vai assentar essas coisas que o Planalto quer colocar como verdade? No passado, tinha [uma forma], porque de fato havia briga, havia União Soviética, hoje não tem.

Você vai dizer o quê? O perigo vem da China? A China está preocupada em vender o que produz.

BBC News Brasil - Ao falar sobre as novas versões históricas a respeito do golpe de 1964, o senhor disse que elas são prejudiciais para o futuro do país. Muito se discute hoje sobre ameaças à democracia brasileira. Vê esse risco?
FHC - Sobre o Brasil, quando as pessoas dizem o que você acabou de me perguntar, querem dizer o seguinte: há o perigo de um regime sem liberdade. Sempre há, você tem que prestar atenção. Mas não acho que possamos comparar com 64 porque em 64 havia um confronto real entre concepções do mundo ancoradas em Estados, simbolicamente a União Soviética e os Estados Unidos. Você tem diferenças no mundo hoje, mas não tem mais ideologias ancoradas só num Estado. É mais difuso.

Por outro lado, no passado, os partidos de esquerda e de direita tinham não só uma ideologia como se organizavam. Eles queriam representar interesses de classe. Não há isso no Brasil de hoje. Estive recentemente na Europa e era uma dificuldade, porque os jornalistas me perguntavam na pressuposição de que isso existia. E não há.

Quem votou por A, B ou C no Brasil, não votou numa concepção orgânica, votou numa pessoa que emitiu sinais que captaram um sentimento.

BBC News Brasil - O senhor está falando de Bolsonaro?
FHC - É. Ou de outro qualquer. Quem votou no Bolsonaro, por exemplo. Por que ele foi eleito? Ele falou de temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse "eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo". Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?

BBC News Brasil - Logo depois que o presidente Bolsonaro foi eleito, o senhor falou que as ações dele iriam desmentir ou confirmar os temores despertados no senhor na época. E hoje?
FHC - Meu temor não é só sobre o Brasil. Como eu disse, está difícil [em todo o mundo] a noção de representatividade e democracia. Aqui meu temor hoje é outro, é a falta de qualquer coerência.

BBC News Brasil - No governo?
FHC - No governo. Não estou com temor de que acabe a liberdade de imprensa. Não tem força para isso. Claro que vai depender da reação da sociedade, sempre. Não se pode fechar os olhos e dizer "deixa então". Tem que se opor, porque se não se opuser, as coisas vão se organizando.

Vamos falar em coisas concretas. Você tem uma enorme quantidade de militares no governo, em geral da reserva. Mas não tem um Exército, uma força armada no governo. Não houve uma tentativa de uma corporação tomar conta e dar um certo rumo. Não é a mesma coisa. Em 1964, houve uma ocupação com uma ideologia, tinha uma cabeça. O general Golbery [do Couto e Silva, um dos principais articuladores da ditadura militar] não era nenhum desinformado, ele tinha uma linha. Aqui não tem, é uma coisa mais precária.

Não acho que estejamos na ameaça concreta de uma força organizada tomar conta do poder. O que não quer dizer que não seja um risco, porque você precisa ter alguém para apontar um caminho. Com muita confusão, as coisas ficam difíceis, porque o mundo está avançando.

Qual é a briga dos Estados Unidos com a China hoje? Não é só comunismo e democracia. É quem domina melhor a tecnologia, o que faço com ela.

presidente diz que esperava "um caminho" do governo Bolsonaro, algo que não viu até agora

BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala que o Brasil sempre teme perder oportunidades. Estamos perdendo?
FHC - Estamos perdendo oportunidades. Num mundo difícil, confuso, você tem que ter algum objetivo e estratégia. Se nos perdermos no que se chama de "curto-prazismo", não acontece nada. O que vai ser daqui a dez anos? Daqui a vinte? O que eu quero fazer? Quero mandar o homem para Lua? Eu quero fazer o quê? [...] Alguma coisa mais concreta para que você possa orientar o sentimento e o comportamento das pessoas em uma certa direção.

BBC News Brasil - Mas em relação aos temores que o senhor mencionou, esses três meses foram melhores ou piores do que tinha imaginado?
FHC - Acho que piorou no seguinte sentido: não vi nada.

BBC News Brasil - É pior do que o senhor esperava?
FHC - É.

BBC News Brasil - O que o senhor esperava?
FHC - Um caminho. Vamos pegar uma coisa concreta. O setor econômico do governo parece ter um caminho, posso concordar ou não, mas é um caminho. Só que não vi esse caminho se transformar numa realidade congressual. E vivemos numa democracia, não adianta eu saber. Tem que fazer com que os outros estejam de acordo e votem do meu lado. Não vejo organização no Congresso para isso.

Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né? Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia "mas não é meu terreno". Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo. Só se transforma num processo quando você atua sobre os outros e tem o consentimento, a adesão dos outros.

Nos outros setores, [fora o econômico] você não vê nada. Você uma coisa idílica... Escola Sem Partido. Não tem que ter partido em escola mesmo, não cabe, mas traduzem isso de uma maneira antiquada. Todo mundo tem ideologia mesmo, de um jeito ou de outro. Você influencia o aluno queira ou não queira, mas você não pode organizadamente inculcar uma ideia no aluno. Sou contra isso aí. Mas a ideia do Escola Sem Partido é outro partido. Então, você vai tirar o evolucionismo e botar o criacionismo... Tenha paciência.

BBC News Brasil - O senhor citou recentemente a possibilidade de queda de um presidente que não entende como se articula o Congresso. O senhor está falando de Bolsonaro? Vê risco de queda?
FHC - Sempre existe. Sempre fui, pessoalmente, muito renitente à ideia de impeachment. Lembro-me do caso do presidente Lula, por causa do mensalão. Quando o tema veio à baila, eu era contrário. Não porque tivesse dúvida quanto ao mau procedimento e ao combate do mensalão, mas digo "meu Deus, vamos colocar para fora da Presidência um homem que foi líder sindical, ganhou as eleições, que tem enraizamento popular"? Isso deixa uma marca na história.

Na minha cabeça, naquela época, eu comparava com Getúlio Vargas. Eu era menino no tempo do Getúlio, quando derrubaram o Getúlio. Vocês não imaginam a tensão que havia na política brasileira, na vida brasileira, entre Getúlio e anti-Getúlio, nas famílias, era uma coisa insuportável. Eu disse "bom, vamos repetir isso aqui?". Historicamente não é bom.

No caso da Dilma Rousseff, nunca fui fanático pelo impeachment, embora houvesse elementos, como havia no caso do Lula. Porque você tem que pensar que é uma coisa complicada. Depois da Constituição de 88, eleitos pelo voto direto foram o Collor, que sofreu impeachment; eu, que consegui (concluir dois mandatos); o Lula, que conseguiu, mas está na cadeia. A Dilma sofreu impeachment. E agora o Bolsonaro.

É uma coisa complicada do ponto de vista nacional. Por que alguns conseguiram? Eu fiquei oito anos, na verdade fiquei dez porque no tempo do Itamar eu tinha muito controle. O Lula ficou mais que oito, porque no tempo da Dilma ele tinha controle. Por quê? Porque, de maneiras diferentes, tanto eu como o Lula conhecíamos as forças da sociedade. Se você não entender a diversidade e necessidade de ter apoio, você perde a força. E quando é o impeachment? Quando não tem apoio.

BBC News Brasil - Apoio que se consegue com articulação política.
FHC - É, articulação. É uma questão em todos os governos, não só no Brasil. Mesmo nas ditaduras você tem que ter apoio. Pega a ditadura aqui no Brasil, não tinha apoio? Tinha. Pode não ser o apoio que você deseja, não é voto, mas tem que ter apoio em alguns grupos da sociedade. Aqui temos um regime democrático, que precisa de voto, e os parlamentares nesse regime têm peso. E temos tremenda dificuldade hoje com uma fragmentação partidária sem tamanho; quando você não tem essa fragmentação é mais fácil discutir o apoio.

Como você discute apoio? A pior maneira feita aqui foi comprar, com dinheiro, que é insustentável e corrompe tudo, não só as pessoas como as instituições. Mas você tem que negociar: você está de acordo? Quem está do meu lado? Se você estiver de acordo, você vai ser ministro. Mas no Brasil se criou a ideia de que fazer acordo é crime, corrupção. Aí não tem como governar, só com a ditadura. Como é que faz? Quem ganhou manda?

Sempre disse isso: tem que ser com base em um programa. Quando não tem programa, e esse programa não tem apoio da sociedade, o governo fica muito frágil, e o Congresso derruba.

BBC News Brasil - O senhor vê esse risco para Bolsonaro, de não terminar o mandato?
FHC - Espero que não, porque o Brasil precisa de continuidade, precisa que as instituições se reforcem. Então não torço por esse lado, nem estou vendo que isso possa ocorrer já. Não gostaria que isso ocorresse, na verdade, por questões históricas. Mas acho que o governo tem que andar depressa.

Costumo fazer uma comparação grosseira, do cavalo e o cavaleiro. O Congresso e o Executivo é a mesma coisa. O Congresso fica te olhando lá: "esse cara não sabe montar a cavalo, e se não sabe, vou dar um pinote". E de repente dá um pinote e te tira. Então você tem que estar o tempo todo tentando convencer o Congresso e o povo de um certo caminho.

Como é que você convence o Congresso? Tendo apoio popular fica mais fácil, porque o Congresso pensa na própria eleição. Segunda parte: você tem que compartilhar o poder e ter objetivos - o que estou propondo, o que vou fazer. Pega uma coisa essencial para o Brasil, a reforma da Previdência. Por que é essencial? Porque daqui a pouco o governo vai ter que emitir moeda, volta a inflação.

Já no meu tempo tentamos fazer [a reforma da Previdência], conseguimos um pouquinho. Cada um fez um pouquinho. Pouco a pouco, até no momento atual, a população começa a entender isso.

Para fazer uma reforma você tem que gastar muita saliva, e explicar muito para a população o porquê, para ganhar o apoio. Para o Congresso também te apoiar. O caminho mais fácil é você cooptar o Congresso, seja com cargos, seja com dinheiro. Mas não é o melhor. O melhor é você ter capacidade política para ganhar a luta na agenda. O que eu fiz no tempo do Real? Eu falei.

BBC News Brasil - O senhor disse em entrevistas que, no processo de aprovação do Plano Real, assumiu o papel de articulador como ministro da Fazenda quando o presidente Itamar Franco preferiu ficar de fora. Esse é um modelo que poderia funcionar para a reforma da Previdência? Guedes poderia ser o "FHC" de Bolsonaro?
FHC - Não do jeito que ele está pensando. Ele tem que ser político.

Eu era senador, então eu ia às bancadas todas do Congresso e discutia inclusive com a oposição, não tinha medo de bicho papão, os enfrentava. E eu falava na televisão. Vou dar um exemplo: eu fui convidado uma vez para falar sobre o plano Real no programa Silvio Santos. Cheguei lá no barracão na marginal do rio Tietê, onde era o estúdio. Silvio estava em uma salinha fazendo maquiagem e me chamou lá. Ele me dizia: repete. Eu repetia. Ele falava "ih, vai ser um desastre, não vão entender nada".

Ele acabou a maquiagem e entramos em um salão do auditório. Ele me disse "olha, minha audiência tem uma idade mental de 12 anos. Em média". Ele foi lá e deu um show. Explicou muito melhor e mais apropriadamente do que eu seria capaz, para o auditório dele, o que era o Plano Real, a URV. Mas fui lá falar com ele. A questão de obter apoio implica em explicar.

BBC News Brasil - E no que o senhor vê falhas em Guedes? Ele foi falar no Congresso…
FHC - Sim, foi lá responder, respondeu bem, como um professor. Não falei como professor, falei como político. Se você falar como professor é uma coisa: quem entende é quem está na aula. E quem não está em aula? Não estou dizendo que Guedes não seja capaz, estou falando que, até agora, não vi ninguém que explicasse dessa maneira.

Sendo líder, você tem que traduzir de maneira que as pessoas sintam. Está faltando isso. Não é propaganda, é a crença de que o líder vai fazer aquilo. Alguém vai ter que assumir esse papel. Vou dar um exemplo que eu gosto muito, do Lula, no Palácio da Alvorada, falando sobre poluição.

"[Ele disse:] a poluição, vocês sabem, vem lá de cima. A Terra é redonda e ela gira. Se ela fosse plana, a poluição seria um problema deles, porque são eles que poluem. Mas como ela gira, cai na nossa cabeça; então nós temos que proteger o meio ambiente". Ele explicou. Fundamento científico zero, mas a maneira de dizer "atenção, porque isso pega em você também" é assim.

BBC News Brasil - O governo está gastando saliva nos lugares errados?
FHC - Sou prudente nessas coisas. Acho que tem que dar um pouco de tempo ao tempo para ver como o governo vai atuar. O estilo de comunicação que vejo no presidente é a internet. Não é minha área, não sei dizer se está funcionando, se não está funcionando.

Mas quando sai da internet e vai falar, é um estilo mais "o homem comum". Pode pegar? Pode. Mas precisa falar, repetir, de uma maneira mais fácil, mais direta. Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente, que a gente saiba que quando ele está falando, está falando pelo governo. Isso não é só aqui, é no mundo todo onde há democracia.

BBC News Brasil - Mas o presidente tem declarado que ele já fez sua parte ao entregar a proposta ao Congresso. Disse que, por ele, nem seria favorável à reforma.
FHC - Acho que ele está errado. Isso está errado. É porque ele vem de uma corporação e todas as corporações ficam com preocupação quando muda a Previdência, eu entendo. Sou de uma família que tem muitos militares. Você não imagina a dificuldade que eu tive com a reforma da Previdência, [com] minha irmã, meus irmãos. [Eles diziam:] 'meu pai contribuía, tenho direito'. E o que eu dizia? Eu lavo as mãos? Alguém vai ter que botar a mão na massa.

BBC News Brasil - Como os empresários e o mercado têm percebido o governo nessa situação?
FHC - Não tenho tanta familiaridade, mas o que posso dizer é: o mercado e o Congresso têm uma conversa de surdos. Um não entende o outro e adivinha, aposta. Muitas vezes o mercado aposta que vai haver tal coisa que é inviável, e o Congresso é absolutamente insensível ao nervosismo do mercado. Então é por isso que precisa de alguém que faça pontes, explique.

BBC News Brasil - Na semana passada, a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de "aprendiz de presidente", dizendo que faltava a ele conhecimento sobre o próprio emprego. O senhor concorda?
FHC - Não estou lá próximo para saber como ele tem desempenhado. O que vi foi em Davos, [quando] perdeu uma oportunidade. Agora foi lá para Israel e prometeu que ia abrir uma embaixada, recuou para abrir um escritório, provavelmente desagradou aos dois lados. Nos EUA, ele foi muito pró, foi pró demais.

Acredito que tem que se dar tempo ao tempo. A verdade é que ele esteve por muitos anos no Congresso. Eu tive escolinha de presidente: porque eu fui líder [durante o governo] Sarney, depois veio Itamar que era meu colega, vi [a política] mais de perto. Não é necessário isso, o Lula nunca foi tão perto e aprendeu. A Dilma não aprendeu. Para você ver que tem alguma coisa que depende do estilo da pessoa. Mas acho que é cedo para dizermos "é assim". E temos um ministro do Exterior que quando fala, complica, né... (risos).

BBC News Brasil - O senhor já declarou que não está vendo oposição ao governo.
FHC - Só de dentro do próprio governo.

BBC News Brasil - Durante a eleição, o senhor disse que não apoiaria nem Bolsonaro nem o PT, por tratarem-se de "dois extremos", e foi criticado por não ter se posicionado. Só se disse oposição em janeiro.
FHC - Eu nunca apoiei o Bolsonaro, não era isso. Mas estou em uma situação difícil. O PT deu com os burros n'água, levou o Brasil a um desastre enorme. As ideias não mudaram, eu não quero.
Por outro lado, eu não acreditava também no voluntarismo do Bolsonaro. Mas nunca apoiei. Não torço contra o Brasil, nunca. Não é que necessariamente vai fazer bobagem, vamos ver. Tomara que não faça. Se fizer, eu estou contra.

BBC News Brasil - Mas na sua análise dos primeiros três meses…
FHC - É como eu disse, não vejo caminho.

BBC News Brasil - Nesta semana, Paulo Vieira de Souza, acusado pelo MPF de ser operador de políticos do PSDB de São Paulo, assumiu ter quatro contas na Suíça. O senhor acha que o PSDB pode voltar a se diferenciar dos outros partidos em termos de ética?
FHC - Vamos ver, eu leio toda hora "o Paulo Preto é operador do PSDB". Não é verdade. Quem é o tesoureiro do PSDB? Não sei, não é uma figura importante, nem o Paulo Preto jamais foi ligado a um tesoureiro do PSDB. Pode ter sido usado por pessoas do PSDB, o que é diferente de constituir o elo entre a corrupção e o partido.

Agora, houve casos que comprometem o partido, a crítica recai, todo o sistema foi alcançado por essas críticas. Qual vai ser o futuro dos partidos? Ou se renovam efetivamente e têm lideranças que expressam essa renovação ou vão continuar o que são: máquinas de fazer voto.

BBC News Brasil - O senhor já disse que não gosta de ver o presidente Lula preso.
FHC - Nem ele, nem nenhum.

BBC News Brasil - Agora vai fazer um ano da prisão dele. Como vê esse processo?
FHC - Uma coisa é o sentimento pessoal: não gosto de ver pessoas que eu conheço na cadeia. Mas, no Brasil, as regras existem. Está preso porque foi condenado em segunda instância. Antigamente pela Constituição diziam que você só poderia ser preso quando o processo transitasse em julgado.

O Supremo Tribunal voltou [com] uma interpretação que já existia e diz o seguinte: [trânsito] em julgado quer dizer o quê? Quando você vai em segunda instância e é a última na qual se apresentam provas sobre o fato. A partir daí, a interpretação é jurídica.

Então pode prender, e depois apela da cadeia em questões jurídicas. O Lula está preso de acordo com essas regras. Não posso ser contra as regras, seria contra a democracia. Ele não está preso arbitrariamente.

Houve um arbítrio agora? Houve. Quando prenderam o presidente Temer, arbitrariamente, porque não havia, a meu ver, a necessidade de daquele espetáculo.

BBC News Brasil - A bandeira Lula Livre, que a esquerda defende, é uma arbitrariedade na opinião do senhor?
FHC - É uma bandeira, né, de luta política. Acho que a partir de certa idade, digamos, de 70, 75 anos, deveria ficar preso em casa. Mas aí tem que ser uma regra, não é para A, B ou C, não é porque foi presidente, é porque tem a idade.

BBC News Brasil - Há uma crítica em relação à Lava Jato, da espetacularização das prisões.
FHC - No caso do Lula, ele foi condenado.

Vou dar um exemplo de um que é do meu partido. Eduardo Azeredo, foi governador de Minas Gerais. Foi condenado a 21 anos de cadeia. O que o Eduardo Azeredo fez? Houve um alguém... Um ex-ministro do Lula (Walfrido Mares Guia) e um presidente de uma importante federação empresarial (Clésio Andrade) fizeram um contrato com o governo dele para usar o dinheiro na campanha dele. Está errado. Preso está ele, não estão os outros. Está injusto.

Mas ele está preso porque foi condenado, não posso sair por aí [dizendo] "libere ele". É um momento triste do Brasil. Necessário, porque a corrupção contaminou tudo, os partidos, as lideranças, a máquina pública, as empresas. Necessário. Tem abuso? Pode ter, mas qualquer [abuso] tem que ser coibido.


Fernando Henrique Cardoso: E agora?

É preciso reconstruir a confiança entre sociedade e poder. Não parece que o presidente atual tenha essas qualidades

Fazer campanha é uma coisa, governar é outra. O novo governo mal começou, por isso tenho sido cauteloso ao falar dele. Dei algumas entrevistas na França e participei de discussões. Num diálogo na Maison de l'Amérique Latine sobre o último livro de Alain Touraine, quatro ou cinco ativistas pertencentes a um "coletivo" levantaram uma faixa. Nela se lia: "Lula livre!" e algo sobre os "golpistas". Como não fui eu quem mandou prender Lula, foi a Justiça, e jamais participei de golpe algum, vi o "ato" com fleuma. Mas, de ato em ato, se vai formando no subconsciente das pessoas e da mídia a convicção de que houve um golpe no Brasil que destituiu Dilma Rousseff. Estaríamos agora, com a eleição de Bolsonaro, caminhando para o fascismo... As perguntas feitas por alguns jornalistas tinham esse pano de fundo. Que o governo é "de direita" é certo, assumidamente. Que haja fascismo, só com má-fé. Os que ouviram na TV Globo as declarações do general Mourão podem eventualmente discordar, mas nada há de fascismo nelas.

No governo existem tendências autoritárias e gente que vê fantasmas no "globalismo". Também há pessoas que, contra os supostos males da "ideologia de gênero", advogam que meninos usem roupas azuis e meninas, cor-de-rosa. Mais grave, existem pessoas do círculo familiar do presidente que parecem ter relações bem próximas com as milícias cariocas. Já houve quem dissesse, e é certo, que a democracia é como uma planta tenra, precisa ser regada todos os dias. Cuidemos, pois, para evitar o pior. Que a essas tendências se oponham outras, abertamente democráticas.

O governo atual é consequência do medo (da violência que se espraiou), do horror à corrupção política (a Justiça e a mídia mostraram que ela é epidêmica) e da ansiedade pelo "novo". Que temos culpa no cartório, os do "antigo regime", é inegável. Se não culpa pessoal, culpa política. Nesse caso, de pouco adianta bater no peito.

É preciso reconstruir os laços de confiança entre a sociedade e o poder, o que requer liderança e ação institucional. Não parece que o presidente atual tenha as qualidades para tanto. Mas também as oposições estão em jogo: se simplesmente se opuserem a tudo ou aderirem acriticamente ao governo, pobre democracia.

O PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o porquê disso, bem como atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito, a própria "social-democracia" é datada. Ela correspondeu ao que de melhor poderia haver nos marcos do capitalismo industrial, ao longo do século 20: a conciliação entre a "lógica do capital" e os valores da liberdade e da igualdade, do ideal democrático. A expressão dessa conciliação foram os Estados de bem-estar construídos nos países industriais avançados, nos quais se inspiraram líderes e partidos latino-americanos que chegaram ao poder depois do predomínio do autoritarismo na região.

A resposta aos novos desafios é mais difícil – não só no Brasil e na América Latina, também nos "países centrais" – do que foi a resposta social-democrata na época do desenvolvimento capitalista urbano-industrial. Como dar ocupação e renda à maioria da população em economias globalizadas, em que o aumento de produtividade dependerá cada vez menos de mão de obra não especializada e mais de conhecimentos, habilidades, capacidades de adaptação e invenção que podem ser oferecidos por trabalhadores especializados ou máquinas inteligentes? Mesmo que se possa assegurar uma renda mínima decente a todos, como resolver a questão da ocupação das pessoas marginalizadas do mercado de trabalho? São questões para as quais não existem respostas prontas. Mas tampouco o liberalismo econômico as tem. É ilusão acreditar que o crescimento da economia contemporânea solucionará por si os novos desafios da “inclusão social”.

E nós, aqui, vamos empurrar a questão da equidade para debaixo do tapete e rezar para que o "mercado" resolva tudo? É a tal tipo de visão que os social-democratas vão aderir? Ou os setores da sociedade fortemente comprometidos com a democracia, com as liberdades e com ideais de maior igualdade e dignidade humana terão forças para atualizar o ideário e abrir caminhos novos? A ver... É esse o enigma que nos espera. Diante dele, xingamentos e conceitos historicamente esvaziados(como o de fascismo) são insuficientes tanto para explicar o que acontece na sociedade quanto para apontar os rumos do futuro.

Nessa falta de rumos tanto o governo como as oposições estão enredados. Até o momento a agenda governamental é a da campanha: bandido bom é bandido morto, cadeia para os corruptos, adesão a outro pensamento único, o de Trump, e assim por diante. Mas a solução para os problemas da criminalidade, da violência, da corrupção, do lugar do Brasil no mundo não admite respostas singelas.

É preciso retomar o ritmo positivo da economia, o que depende de equilibrar as contas públicas e assegurar a solvência do Estado. Por isso, entre as múltiplas questões em pauta a reforma da Previdência prima. Seu andamento depende não apenas de coordenação política no Congresso, uma tarefa complexa, mas também de o governo definir um rumo claro a seguir e convencer a sociedade de que essa reforma é um passo necessário. Não se põe em marcha tal processo sem uma visão convincente sobre para onde se quer conduzir o País.

Esse desafio é não só do governo, mas do País. Portanto, as oposições têm papel em seu encaminhamento e solução. Jogar fora a "pauta social" e substituí-la por outra, "econômica", não nos conduzirá pelo bom caminho. Aderir ao governo para obter vantagens políticas repugna ao eleitorado. Mantenhamos nossas crenças, tomemos posições claras, sem adesismo ao governo nem irresponsabilidade com o País. Sobretudo, imaginemos, critica e criativamente, como atualizar o ideário da social-democracia, cujas fronteiras não se limitam ao PSDB.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Novo ano, novos desafios

Espero que o novo governo ache rumos melhores do que alguns membros apontam

Ao iniciar o ano, as pessoas estão cheias de esperança, querendo o melhor para si e para o País. É também o que eu desejo para os leitores e para todos os brasileiros. Contudo os desejos não substituem os fatos, e estes podem impedir que aqueles se realizem em 2019. Certamente torço para que o Brasil encontre um rumo melhor. Mas um olhar realista se impõe.

Comecemos olhando para o mundo. Desde o fim da guerra fria e, especificamente, desde que, no início da década de 1970, Henry Kissinger convenceu o então presidente Richard Nixon a visitar a China e a normalizar as relações com aquele país, vivemos um período de relativa tranquilidade no sistema internacional. O entendimento sino-americano visou de início a isolar a União Soviética, rival da China no mundo comunista. À medida que aquela foi declinando, dissolvendo-se em 1991, o mundo assistiu à crescente complementaridade econômica entre a maior potência mundial, os Estados Unidos, e a potência em ascensão, a China.

Com a Pax americana, coadjuvada pela China, os conflitos se tornaram localizados. A ambição que motivou a formação das Nações Unidas, a de pôr um ponto final nas grandes guerras mundiais, ficou ainda mais próxima da realidade com o colapso do mundo soviético, iniciado com a simbólica queda do Muro de Berlim, em 1989.

Sob a liderança de Deng Xiaoping, ao final dos anos 1970, os chineses compreenderam que seu país precisaria reformar-se e abrir-se ao mundo para prosperar. De Deng Xiaoping até o atual líder chinês, Xi Jinping, todos sustentaram uma política externa orientada para evitar a chamada "armadilha de Tucídides": a colisão e ao final a guerra entre a potência hegemônica e a emergente. As lideranças chinesas falavam de uma ascensão pacífica e de um "socialismo harmonioso", juntando o regime de partido único e o Estado socialista com a integração financeira e produtiva ao mundo capitalista. A China abriu-se às multinacionais que quisessem disputar seu mercado ou exportar, desde que aceitassem as regras do poder. E mais: tornou-se a maior detentora de papéis do Tesouro americano.

Há sinais, contudo, de que a Pax global começa a ser ameaçada não propriamente pela guerra convencional ou atômica, permanecendo um cenário remoto, mas por uma crescente disputa pela liderança tecnológica, da qual a guerra comercial ora em fase de escaramuças é o aspecto mais visível. A disposição de Trump de desmantelar a ordem liberal vigente visa a impedir que a China assuma a dianteira na corrida tecnológica nas áreas de inteligência artificial e computação quântica. Sob Xi Jinping os chineses já não escondem suas ambições na corrida tecnológica, mesmo no campo militar disputam o controle de parte do Pacífico. Mais do que na interferência online nos processos políticos dos Estados Unidos e da Europa, como os russos, a China aposta na sua capacidade no terreno tecnológico para o sucesso econômico e bélico. Ainda não conhecemos os desdobramentos dessa disputa, mas parece que a ordem liberal pós-guerra fria está ficando para trás, com riscos para a paz mundial.

O Brasil tem um novo governo. Fala-se muito que o País, na esteira da onda conservadora no mundo, virou à direita. Será esse o sinal enviado pelo eleitorado, que em sua maioria votou por repúdio ao PT, à falta de segurança pública e à podridão política, sem, entretanto, algum conteúdo ideológico definido? Se o novo governo deslizar para a direita, será menos porque o eleitorado assim decidiu e mais porque os vencedores assim pensam.

Pensam? Depende: na economia o governo é liberal, nos costumes, reacionário e, quanto à visão do mundo, basicamente anacrônico, a julgar pelo que disseram alguns de seus membros. Dos militares pouco ou nada se ouviu a respeito. Subscreverão as teses do futuro chanceler? Ou a norma de que sem objetivos e sem preparação não há guerra a ser ganha?

Para concluir, diante do quadro internacional, quais devem ser os objetivos básicos de um país como o Brasil, grande, populoso, diverso e excêntrico, isto é, distante dos polos do conflito? Acelerar o crescimento da economia, em bases socioambientais sustentáveis, para dar melhores condições de vida ao povo, preservar o acervo de boas relações que o País construiu ao longo do tempo, afirmar (e praticar internamente) valores que nos são caros, a começar pela democracia. Para isso, por que tomar partido diante de um eventual choque de interesses entre a China e os Estados Unidos ou de quem quer que seja? Por que tomar partido nas disputas que dividem os Estados Unidos e a Europa? Melhor será, penso, cuidar de manter nossa influência na América do Sul, região a que pertencemos, e, sem entrar em briga graúda, participar mais amplamente dos fluxos globais de comércio, informação, criatividade e desenvolvimento, para obter a melhor inserção possível no mundo.

É, no mínimo, anacrônico pensar que a disputa por poder e influência no sistema internacional se dê entre gladiadores comunistas e capitalistas, cruzados da fé cristã contra cosmopolitas sem fé e sem pátria. A luta real é por mais ciência e tecnologia, para melhorar a qualidade dos empregos e da vida em sociedades que não devem nem podem mais se encerrar em si mesmas nem se agarrar dogmaticamente a identidades étnicas, religiosas, etc., fechadas e excludentes. A ideologia que se insinua é tão distante dos interesses permanentes de um país como o Brasil quanto o foi a que ela pretende substituir.

Por isso espero que o novo governo encontre rumos melhores do que os que, com estridência, apontam alguns de seus membros. À oposição cabe criticar impulsos ideológicos, alertar para os riscos de alinhamentos automáticos e contribuir para que os interesses reais do Brasil e de sua gente prevaleçam na definição e implementação das políticas, externa e interna.

*Sociólogo, foi presidente da República


Folha de S. Paulo: 'Creio que o AI-5 passou para não voltar', diz FHC sobre o decreto de 1968

Por Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Fernando Henrique Cardoso estava em sua casa, no bairro do Morumbi (zona sul de São Paulo), quando escutou o anúncio do Ato Institucional número 5, na noite de 13 de dezembro de 1968. Lembra-se perfeitamente da voz do ministro da Justiça, Gama e Silva, que havia sido seu colega no Conselho Universitário da USP, informando em cadeia nacional de rádio e televisão as medidas que iriam endurecer a ditadura militar.

Fazia apenas dois meses que Fernando Henrique voltara ao Brasil e a ministrar aulas na Universidade de São Paulo, após um exílio imposto pelo golpe de 1964. Percebeu o que estava por vir, pegou o carro e se dirigiu à Cidade Universitária (zona oeste), onde se organizavam protestos. O AI-5, que fechou o Congresso, acabou com o habeas-corpus e concedeu poderes ilimitados ao Presidente, teria logo consequência mais direta em sua vida: em abril de 1969, com 37 anos, seria aposentado compulsoriamente da universidade. Aos 87, o ex-presidente do Brasil relembra nesta entrevista à Folha esse "clima horroroso" de 50 anos atrás.

De que movimentos o sr. participava para ser considerado pelos militares um "subversivo" e ter sido obrigado a se exilar após o golpe de 1964?
Na época de 1964, eu era professor da USP, só participava do debate público. Era acusado pelas ideias, não pela ação. Exercia certa liderança, fundara no passado a associação dos docentes e havia sido eleito, então, representante dos professores assistentes.

O sr. foi oficialmente expulso ou recebeu algum tipo de ameaça e decidiu partir?
Fui obrigado a deixar o país em 1964 porque tentaram me prender e a Justiça militar abriu um processo contra mim. Em Santiago, trabalhei na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], da ONU [Organização das Nações Unidas], e fui professor na Universidade do Chile, de 1964 a 1967. De lá fui para a França a convite de Alain Touraine [sociólogo] para criarmos um departamento na Universidade de Paris (Nanterre), onde fiquei entre 1967 e 1968.

O sr. e dona Ruth já tinham filhos quando foram para o exílio?
Sim. Um tinha nove anos e as outras, meninas, sete e cinco.

Por que decidiram voltar em 1968? Foi consequência do aparente fortalecimento dos movimentos de oposição, marcado pelas grandes passeatas?
Voltei porque um catedrático da USP morrera deixando uma vaga. Eu estava, desde 1964, fora da USP, pois a reitoria se negou a conceder-me licença. Além disso, o clima político parecia desanuviar-se, o que com o AI-5 não ocorreu.

Da sua volta até o anúncio do AI-5, como foi a vida em São Paulo, as aulas na USP e o clima na universidade?
Eu morava no Morumbi [zona sul] em uma casa que começamos a construir quando fui para Santiago. Ganhei o concurso para a cadeira de ciência política da USP em outubro de 1968. Nessa época não sofri qualquer processo. Houve sim acusações internas à USP, por parte de outros professores. Logo depois, em abril de 1969, fui aposentado compulsoriamente pelo AI-5, aos 37 anos.

O sr. se recorda do momento do anúncio? Onde estava e qual foi a sua sensação?
Recordo-me perfeitamente da leitura do decreto do AI-5 e da voz do ministro Gama e Silva, da Justiça, o Gaminha, que havia sido meu colega no Conselho Universitário. Eu estava em minha casa e logo percebi o que aconteceria. Peguei o carro e fui para a faculdade. Em seguida começaram as aposentadorias compulsórias.

Com o AI-5, o que mudou na sua vida? As consequências foram imediatas ou o sr. só seria afetado a partir do seu afastamento compulsório da USP?
As consequências gerais foram imediatas. Até a minha compulsória, eu fora eleito por alunos e professores diretor do Departamento de Sociologia, estávamos fazendo uma reforma curricular, mas o clima passou a ser de protestos abafados e mesmo abertos. Um dia fomos cercados pela polícia na Cidade Universitária. Mas disso já havíamos provado em 1964 na rua Maria Antonia [sede na USP na Vila Buarque, região central]. Basta dizer que houve "guerra" entre provocadores e alunos da filosofia, com coquetéis molotov -um atingiu minha sala e queimou documentos. A partir do AI-5, eram notícias vagas de reações, medo e repressão. Embora voltasse a ser convidado a dar aulas na França e em Yale, resolvi ficar em São Paulo e fui um dos fundadores do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], instituição que continua existindo. Posto para fora da USP e trabalhando no Cebrap [que reuniu intelectuais afastados de suas funções pela ditadura], o clima era horroroso. Qualquer carro que parasse em frente à casa já se pensava na polícia política. Sabia de pessoas, às vezes amigos, presos e mesmo torturados ou mortos, como o [jornalista Vladimir] Herzog.

O sr. nunca mais voltou a ser professor da USP?
Só voltei a dar um curso, durante um semestre, depois da lei de anistia [1979]. Não regressei mais à carreira pois estava dirigindo o Cebrap, dando aulas eventualmente no exterior (École des Hauts Etudes [França], Cambridge [Inglaterra], Stanford e Berkeley [Estados Unidos], em períodos distintos) e meus ex-alunos ocupavam, com brilho, as funções que eu e outros deixáramos. Eu sempre gostei de não repetir experiências, buscar novos desafios.

O sr. já tinha àquele momento alguma intenção de entrar na carreira política?
Não tinha, embora a política não fosse experiência distante: meu pai, que era militar (chegou a general), era também advogado e foi deputado federal por São Paulo. Minha participação foi consequência das lutas contra a ditadura (SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], jornais "nanicos" como "Movimento" e, sobretudo, "Opinião", a Comissão de Justiça e Paz etc.). Foi Ulisses Guimarães quem me levou a ser candidato ao Senado em uma sublegenda do MDB, não para ser eleito, mas para somar votos a quem seria reeleito, Franco Montoro. Eu nem sabia que o segundo colocado, como fui, seria o suplente do titular... Montoro eleito governador, tornei-me senador. Na época estava dando aulas em Berkeley.

O AI-5 é algo enterrado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim?
Espero e creio que sim, o AI-5 passou para não voltar. E ainda bem.


Fernando Henrique Cardoso: Um novo caminho

Há espaço para propostas que juntem modernidade e realismo, sem extremismos

A última eleição foi um tsunami que varreu o sistema político brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da Constituição de 1988. Ruiu graças ao modo como se formaram os partidos, o sistema de voto e o financiamento das campanhas. A vitória da candidatura Bolsonaro funcionou como um braço cego da História: acabou de quebrar o que já estava em decomposição. Há muitos cacos espalhados e há a necessidade de reconstrução. Ela será feita pelo próximo governo? É cedo para dizer.

O sistema político-partidário não ruiu sozinho. As fraturas são maiores. Antes, o óbvio: a Lava Jato mostrou as bases apodrecidas que sustentavam o poder, sacudiu a consciência do eleitorado. Qualquer tentativa de reconstruir o que desabou e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos partidos, começando pelo PT, sem eximir o MDB e tampouco o PSDB e os demais. Na sua maioria, os "partidos" são sopas de letras, e não agremiações baseadas em objetivos e valores. Atiraram-se na captura do erário, com maior ou menor gula.

Visto em retrospectiva, é compreensível que um sistema partidário sem atuação na base da sociedade se desmonte com aplausos populares. Os mais pobres encontram nas igrejas evangélicas – e em muito menor proporção na Igreja Católica e em outras religiões – recursos para se sentirem coesos e integrados. O povo tem a sensação de que os parlamentos e os partidos não atendem aos seus interesses. O eleitorado, contudo, não desistiu do voto e imaginou que talvez algo "novo", inespecífico, poderia regenerar a vida pública.

Não foi só isso que levou à vitória o novo presidente. Basta conhecer mais de perto a vida dos mais pobres nas favelas e nas periferias carentes de quase tudo para perceber que pedaços importantes do território vivem sob o domínio do crime organizado, violência que não se limita a essas populações, pois alcança partes significativas da população urbana e rural.

Inútil imaginar outros motivos para a vitória "da direita". Não foi uma direita ideológica que recebeu os votos. Estes foram dados mais como repulsa a um estado de coisas em geral e ao PT em particular. O governo foi parar em mãos mais conservadoras, e mesmo de segmentos abertamente reacionários, não pelas propostas ideológicas que fizeram, e sim pelo que eles simbolizaram: a ordem e a luta contra a corrupção. Não venceu uma ideologia, venceu o sentimento de que é preciso pôr ordem nas coisas, para estancar a violência e a corrupção e tentar retornar a algum tipo de coesão social e nacional.

Enganam-se os que pensam que "o fascismo" venceu. Enganam-se tanto quanto os que veem o "comunismo" por todos os lados. Essa polarização marcou a pugna política em outra época de antes da 2.ª Grande Guerra, ao fim da qual foi substituída pela polarização entre capitalismo liberal e socialismo.

Os problemas básicos do País continuarão a atazanar o povo e o novo governo. Este não será julgado nas próximas eleições por sua ideologia "direitista", mas por sua capacidade, ou não, de retomar o crescimento, diminuir o desemprego, dar segurança à vida das pessoas, melhorar as escolas e os hospitais, e assim por diante.

Com isso não quero justificar a "direita", dizendo que se for capaz de bem governar vale a pena apoiá-la, mas também não posso endossar a “esquerda”, quando ela deixa de reconhecer seus erros, conclama a votar contra tudo o que o novo governo propuser, sem considerar o que realmente conta: quais os efeitos para o bem-estar das pessoas, para o fortalecimento dos valores democráticos e para a prosperidade do País.

As mudanças pelas quais passamos, aqui e no mundo, são inúmeras e profundas. Pode-se mesmo falar numa nova "era", a da conectividade. Se houve quem escrevesse "cogito ergo sum" (penso, logo existo), como fez Descartes, se depois houve quem dissesse que o importante é saber que "sinto, logo existo", em nossa época, sem que essas duas afirmativas desapareçam, é preciso adicionar: "Estou conectado, logo existo". Vivemos a era da informática, das comunicações e da inteligência artificial, que sustentam o processo produtivo e formam redes entre as pessoas.

As novas tecnologias permitem formas inovadoras de enfrentar os desafios coletivos, assim como acarretam alguns inconvenientes, como a dificuldade de gerar empregos, a propagação instantânea das fake news, a formação de ondas de opinião que mais repetem um sentimento ocasional do que expressam um compromisso com políticas a serem sustentadas em longo prazo. Elas dependem de instituições, partidos, parlamentos e burocracias para serem efetivas.

As questões centrais da vida política não se resumem, no mundo atual, à luta entre esquerda e direita. No passado o espectro político correspondia a situações de classe, interpretadas por ideologias claras, assumidas por partidos. Na sociedade contemporânea, com a facilidade de relacionamento e comunicação entre as pessoas, os valores e a palavra voltaram a ter peso para mobilizar politicamente. Isso abre brechas para um novo populismo e uma exacerbação do personalismo. O desafio está em recriar a democracia. O que chamo de um centro radical começa por uma mensagem que envolva os interesses e sentimentos das pessoas. E essa mensagem, para ser contemporânea, não deve estancar num palavreado "de direita" nem "de esquerda". Deve, a despeito das divergências de classe que persistem, buscar o interesse comum capaz de cimentar a sociedade. O País não se unirá com o ódio e a intransigência cultural existentes em alguns setores do futuro governo.

Há espaço para propostas que juntem a modernidade ao realismo e, sem extremismos, abram um caminho para o que é novo na era atual. Esse percurso deve incorporar a liberdade, especialmente a de as pessoas participarem da deliberação dos assuntos públicos, e a igualdade de oportunidades que reduzam a pobreza. E há de ver na solidariedade um valor. Só juntos poderemos mais.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica

Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.

Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.

Não se trata de esperar sem fazer nada, nem de assumir a posição fácil de criticar tudo o que o governo faça. A possibilidade de se criar um “centro” não amorfo implica tomar partido com base em valores e na razão.

Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituição. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservação dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservadorismo.

A onda conservadora concentra-se principalmente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidade e sua valorização, que é constitutiva da democracia, embora se recuse a transformar a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferências, sexual ou sobre o que seja, divergentes do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferência religiosa: há que respeitá-la integralmente, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.

A radicalidade de um centro progressista não se limita, contudo, aos aspectos comportamentais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemente com a “nova matriz econômica”?

Sem fundamentalismos desnecessários e mesmo contraproducentes, o “centro progressista e radicalmente democrático” deve incorporar ao seu credo uma visão mais liberal, sem medo de ser tachado de “elitista” ou “direitista”.

Sem cair, por outro lado, na apologia do “individualismo possessivo”, porque o mercado não é a única dimensão da vida nas sociedades contemporâneas. A ideia de que se pode comandá-lo ou regulá-lo com mão de ferro é irrealista. E o realismo não é de direita nem de esquerda, é um requisito para o bom governo. Este, por sua vez, não se resume à adequação eficiente entre meios e fins. É preciso crer numa “utopia, viável”: a da busca de uma sociedade aberta, decente e, portanto, mais igualitária. A sociedade civil, em sua pluralidade de opiniões, tem um papel crítico na construção de tal tipo de utopia.

Num artigo de jornal não cabem demasiadas considerações sobre os valores que poderão dar arrimo a um centro que não se confunda com a fisiologia de “centrões”, nem se perca na vacuidade das indefinições. Mas é preciso deixar no ar a pergunta: que movimentos e partidos poderão materializar o radicalismo de centro?

Comecemos com a autocrítica. Também o PSDB, ainda que vitorioso em Estados expressivos, se desfigurou nas últimas eleições. Será capaz de se remontar? Francamente, não sei. E os demais partidos e movimentos de renovação, que rumos eles tomarão para sobreviver?

Se for o da adesão oportunista ou o da crítica indiscriminada a tudo o que o novo governo fizer, de pouco servirão para a retomada do rumo democrático e progressista. É cedo para apostar. A paciência histórica é boa conselheira e não se confunde com inação. A consolidação de um novo movimento requer desde já a pavimentação de alianças, não só no círculo político, mas principalmente na sociedade, para formar um polo aglutinador da construção de um futuro melhor. E como as eleições de outubro mostraram, não basta ter boas ideias, é preciso que elas circulem nas redes que conectam as pessoas e mobilizam corações e mentes.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Sejamos radicais

Devemo-nos unir para evitar que o povo tenha de escolher entre o ruim e o menos pior

O Brasil exige: sejamos radicais. Mas dentro da lei: que a Justiça puna os corruptos, sem que o linchamento midiático destrua reputações antes das provas serem avaliadas. Não sejamos indiferentes ao grito de “ordem!”. Ele não vem só da “direita” política, nem é coisa da classe média assustada: vem do povo e de todo mundo. Queremos punição dos corruptos e ordem para todos, entretanto, dentro da lei e da democracia.

O País foi longe demais ao não coibir o que está fora da lei, o contrabando, o narcotráfico, a violência urbana e rural, a corrupção público-privada. Devemos refrear isso mantendo a democracia e as liberdades antes que algum demagogo, fardado ou disfarçado de civil, venha a fazê-lo com ímpetos autoritários.

Só com soldados armados se enfrentam os bandidos, eles também com fuzis na mão. Se não há mais espaço para a pregação e a condescendência, tampouco queremos, entretanto, que a arbitrariedade policial prevaleça.

O Brasil tem pressa: chega de governos incompetentes. Não se trata só da falta de dinheiro, mas da má gestão aliada às vantagens corporativas e partidárias. Não há crescimento da economia nem empregabilidade sem investimento público e privado. Precisamos reintegrar nossa economia aos fluxos de criatividade e às cadeias produtivas mundiais. Assim como precisamos melhorar a infraestrutura para escoar a produção.

Não haverá adesão aos valores básicos que mantêm a coesão social sem crescimento contínuo da economia e sem respeito ao meio ambiente. Crescer de modo sustentável a 4% ao ano por 20 anos assegura melhor distribuição de renda e oferece mais emprego do que picos ocasionais de 6% ou 7% de crescimento em um ou dois anos, seguidos de mergulhos de 1 a 3 pontos negativos a cada três anos.

Nada disso se conseguirá sem que a educação seja o centro das atenções governamentais e populares.

Sem reformas, a da Previdência acima de todas, pelos danos que a legislação previdenciária atual causa ao Orçamento público, e sem uma “reforma moral” nas nossas práticas políticas, eleitorais e partidárias, nosso destino nacional estará comprometido por décadas.

Um Congresso com 26 partidos torna o País ingovernável. Um governo que tem quase 30 ministérios, cujos titulares são desconhecidos até pelos cidadãos mais bem informados, é incapaz de se haver com os desafios do futuro. Há que reconhecer que o sistema político que montamos em 1988 se exauriu.

A Constituição preserva, e isso deve ser mantido, tanto a intangibilidade e os limites sociais da propriedade privada como os direitos humanos fundamentais. Mas ela não abriga atos de violência nem de desordem continuada.

Entende-se a motivação dos sem-teto, como também a dos sem-terra. Mas fora da lei o que era propósito de reconstrução se transforma em instrumento de deterioração. Há que dar um basta a tanta desordem. Façamo-lo com a Constituição nas mãos, antes que outros o façam, em nome da ordem, mas sem lei.

É este o radicalismo de que precisamos: decência na vida pública, crescimento da economia, salários mais condizentes com o custo de vida, seriedade no trato das finanças públicas, reformas em nome da igualdade social e regional e um serviço público que atenda às demandas básicas das pessoas: moradia, transporte, saúde, educação e segurança. Que os governos se unam à iniciativa privada se for necessário e lhe cedam o passo quando for mais racional para assegurar o atendimento às necessidades do povo.

Um programa simples como esse requer autoridade moral dos que vierem a nos comandar. Só com ela haverá força para dar rumo seguro ao País. Só assim levaremos adiante as reformas, incluída a da Constituição, sem que os poderosos se tornem suspeitos de estar a serviço das oligarquias políticas, econômicas e corporativas.

É para isso que precisamos formar um Polo Popular e Progressista. Por popular entenda-se que respeite a dinâmica dos mercados, pois vivemos num sistema capitalista, mas que saiba que ela não é suficiente para atender às necessidades de toda a população. Por progressista entenda-se que esse bloco seja consciente das transformações produtivas e políticas do mundo, tenha coragem de viver nele tal como ele é e preserve a crença no Brasil como nação.

Ou participamos ativamente das mudanças do mundo contemporâneo ou seremos irrelevantes. Pior, perderemos o que de melhor podemos tirar dele: sua capacidade de renovar-se tecnológica e politicamente.

Na campanha eleitoral que se aproxima os temas centrais estão se delineando: o desprezo aos partidos e à classe política, que advém da descoberta de que as bases do poder apodreceram pela corrupção, só poderá ser ultrapassado se o povo perceber que há alternativas à desmoralização de tudo e de todos.

O grito dos desesperados por emprego e renda não se resolve só com assistencialismo. Este é necessário para a sobrevivência das pessoas. Mas a dignidade delas requer medidas que restabeleçam a confiança na economia, no investimento e no emprego, dando-lhes um horizonte de futuro.

O medo da violência reinante e a perda de oportunidades econômicas tornam o eleitorado suscetível às pregações de “mais ordem”. Empunhemos essa consigna, mas sem substituir a lei pelo arbítrio. Ordem na lei e com bases morais sólidas.

Não é pedir demais que alguns candidatos em disputa no próximo dia 3 de outubro subscrevam essas diretrizes. Qual deles passará ao segundo turno depende do empenho de seus respectivos partidários e da decisão do eleitorado. Unamo-nos desde já, entretanto, em torno desses princípios com a firme disposição de chegar ao segundo turno. Se dois de nossos candidatos lá chegarem, tanto melhor: será o povo que dirá qual deles há de conduzir-nos nos próximos anos. Não devemos arriscar, porém. Se for o caso, devemo-nos unir ainda no primeiro turno para evitar que o povo tenha de escolher entre o ruim e o menos pior.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi presidente da República.


Fernando Henrique Cardoso: Rumos, não só lamentos

O País precisa de renovação, mas com conhecimento, visão, honestidade, esperança

Passei uma semana em Nova York para participar de um evento sobre novas tecnologias para a medição da ingestão de drogas por condutores de caminhão pelas marcas deixadas nos cabelos. Tendo exercido por muitos anos a presidência da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, da qual continuo a ser membro, achei útil difundir os aperfeiçoamentos na medição do seu uso continuado para coibir que os adictos a tal prática ocupem funções em que esse hábito possa ser daninho ao bem público e à vida de terceiros.

Defender uma política não repressiva aos usuários de drogas não significa ser partidário de seu uso. Nem se devem tratar os usuários como criminosos (tratamento a ser dado aos narcotraficantes) nem deixar de restringir as possibilidades do uso das drogas, a começar pelo tabaco, hoje praticamente expulso dos locais de trabalho, estudo e mesmo lazer.

Pois bem, à margem da conferência, que se realizou em dependência da ONU, ao ler os jornais e ver a TV, voltei nesta terça-feira ao Brasil com a intenção de fazer um paralelo entre a “política” nos Estados Unidos e a nossa. Por lá a mídia não perdoa. Por menos que eu tenha simpatia pelos métodos e propósitos de Trump, há que reconhecer que qualquer passo dele é vigiado e se tenta obstruir seu caminho usando notícias em geral verdadeiras, mas também duvidosas. Isso é da alma da democracia contemporânea, hoje mais atribulada pela força das mídias sociais. Tanto lá como aqui. Com uma diferença: as instituições americanas são mais fortes do que as nossas e os rumos do país são debatidos com argumentos pelas organizações partidárias.

Aqui chegando, um susto: pegou fogo e ruiu um edifício em pleno centro de São Paulo, no qual habitavam dezenas ou mesmo centenas de famílias e que pertencia à União, a qual negociava com a Prefeitura sua posse e seu uso. Pelo nome do prédio, a família que o construiu deve ter sido a mesma que possuía uma fábrica de alumínio e vidros para os batentes e para as portas e janelas, materiais que na época (1950-1960) eram o símbolo da “modernidade”. Sabe-se lá por que tropeços, o edifício foi parar nas mãos da União (provavelmente dívidas não pagas) e esta, depois de usá-lo, ficou sem saber o que fazer com ele, assim como com milhares de outras edificações. Mais grave ainda: esse edifício era tombado pelo patrimônio histórico. Quer dizer, nele nada se pode fazer sem autorização pública. Ora, diante da carência de habitação para os mais pobres e dos movimentos sociais e políticos (falsos e verdadeiros), seria previsível o que aconteceu e acontece em centenas de outros edifícios do centro de São Paulo: a ocupação por famílias “sem teto”.

Daí por diante a ação do poder público se torna ainda mais lenta, com boa escusa: trata- se de uma questão social que requer o olho da Justiça antes da ação da polícia. Tempo suficiente para que exploradores se misturem aos que autenticamente têm compromisso com a causa do acesso à moradia e comecem a explorar os mais miseráveis, cobrando taxas e todo tipo de subordinação. Ou seja, a “questão social” (falta de renda, trabalho e moradia) explode, confundindo-se com a exploração feita por malandros ou pelos próprios organizadores de invasão, ainda que justifiquem suas ações com propósitos defensáveis.

Ruiu um prédio, morreram pessoas (por sorte poucas, mas no caso de vidas não são os números que contam), dezenas de famílias estão desabrigadas, a mídia faz barulho, as administrações fazem jogo de empurra e, pior, o que aconteceu não é diferente do que provavelmente acontecerá em muitos outros prédios ocupados.

Ocupações também houve em Nova York, no Bronx ou mesmo no Harlem. E não faltaram squatters em Londres. Em Paris, até hoje os habitantes podem solicitar às prefeituras apartamentos com aluguel moderado, chamados HLM (habitations à loyer modéré), solução que não deu certo porque, como a maioria dos projetos do Minha Casa, Minha Vida, em geral resulta em habitações localizadas em áreas pouco urbanizadas e distantes dos locais de trabalho dos moradores. Muitos se transformaram em aglomerações urbanas com altos índices de delinquência. Mas nas cidades citadas houve maior continuidade nas ações dos governos, mesmo com coloração política distinta, em busca do bem-estar comum.

É isso o que nos falta. Marchamos quase às cegas para novas eleições daqui a cinco meses. Candidatos à Presidência proliferam. Por quê? Ah, porque sim; porque “tenho todas as condições pessoais para isso”, diz a maioria. E é assim que se consegue governar? Talvez algum caudilho antiquado ou “carismático” engane as massas por algum tempo. Mas governar é coisa mais séria. Se a União nem consegue dar destino a um prédio que é seu e a Prefeitura nem sabe bem como fazer para ocupá-lo (ou desocupá-lo para evitar tragédias...), vê-se que o País precisa reformar a máquina pública. O que dizem a respeito os candidatos? Com que forças sociais e políticas contarão se eleitos? Em uma palavra: com o que estão eles ou elas política e socialmente comprometidos? O que farão com o Brasil, que, afinal, é o que conta? Com o País e com sua gente.

Há uns poucos que têm história e carregam o peso de terem partidos. Sabe-se mais ou menos o que pensam e como agem. E digo isso sem me referir apenas a um candidato, e sim aos que têm trajetória e experiência. O País precisa de renovação, mas esta não é apenas juventude e falta de prática político-administrativa. Para dar bom resultado ela precisa de conhecimento, visão, persistência, honestidade e esperança.

Quem sabe, no entremear de alianças partidárias para aumentar o tempo de televisão, do esforço desesperado para escapar das acusações em curso, das manobras congressuais para abocanhar pedaços do “fundo eleitoral”, ainda se consiga ouvir a voz dos candidatos, tonitruantes, mas não apenas com slogans, e sim com propostas embasadas no que sabem e no que serão capazes de alcançar porque terão apoio na sociedade. É minha torcida.

* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República.