Fernando Exman

Fernando Exman: É necessário lembrar o óbvio sobre o teto

Disputa sobre o controle de gastos está longe de acabar

Viramos uma sociedade que não se espanta mais quando o presidente da República se vê compelido a convocar a imprensa para garantir, ao lado da cúpula do Legislativo, que respeitará a Constituição.

Na prática, esse é o substrato do que ocorreu na semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro chamou para uma reunião improvisada no Palácio da Alvorada o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ministros de Estado e líderes governistas no Congresso. A imprensa foi avisada que o presidente faria um pronunciamento após o encontro, organizado de última hora com o objetivo de acalmar o mercado e dissipar as dúvidas sobre a permanência no governo do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Bolsonaro disse respeitar o teto de gastos e perseguir a responsabilidade fiscal. Guedes ouviu o que queria. O mercado decidiu acompanhar as cenas dos próximos capítulos.

Quem acabou se dando bem foi o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Convidado, o ministro Dias Toffoli tinha um problema de saúde e escapou da cena em que Bolsonaro teria que repetir mais uma vez o que tantas vezes já jurou ao tomar posse como deputado federal e ao assumir a Presidência da República.

Em todas essas ocasiões, o juramento exigido pela legislação não deixa margem para interpretações heterodoxas. “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil", afirmam em alto e bom som todas as autoridades recém-eleitas, antes de começarem a exercer seus respectivos mandatos.

Se o respeito à Constituição já é uma obrigação de qualquer cidadão, a inclusão dessas palavras nos termos de posse deveria servir para deixar ainda mais claro o compromisso e evitar maiores problemas.

Mas, nem sempre é assim. No caso de Bolsonaro, essa expectativa já havia sido frustrada quando ele participou de manifestações antidemocráticas em Brasília. O mesmo ocorreu quando declarou que "ordens absurdas" não deveriam ser cumpridas, após uma operação da Polícia Federal atingir seus aliados que estavam sendo investigados por suposto envolvimento na produção e no financiamento de “fake news”.

No caso do recente pronunciamento em frente ao Palácio da Alvorada, as discussões acabaram se concentrando no prestígio pessoal do ministro da Economia, que vem se esforçando para proteger as contas públicas do assédio da ala mais desenvolvimentista do governo. Ficou em segundo plano um ponto central do debate: o respeito ao teto de gastos é um mandamento constitucional que, até alcançar seu prazo de validade ou ser alterado por uma outra PEC, não deve depender da disposição pessoal das autoridades que estiverem à frente da máquina federal. Ele precisa ser devidamente observado ou o governo estará assumindo o risco de cometer uma irregularidade fiscal.

É bom ter isso no radar porque, apesar de uma aparente trégua entre as alas liberais e desenvolvimentistas do Executivo, esse debate não deve sair da pauta no curto prazo.

Existe, no Congresso, a percepção de que cedo ou tarde os ímpetos populistas do presidente novamente colocarão à prova a fé do ministro no liberalismo do governo. As apostas vão de potenciais pressões sobre a política de preços dos combustíveis a divergências mais profundas sobre a elaboração ou a execução do Orçamento.

Até o início da pandemia, as diferentes visões existentes dentro do governo não eram capazes de gerar maiores turbulências. A ala mais desenvolvimentista acreditava que o cenário pós-coronavírus poderia até gerar oportunidades para o Brasil.

A visão era que o país demonstrara comprometimento com sua solvência ao aprovar a reforma da Previdência. Com vários países colocando suas taxas de juros em patamares negativos, acrescentavam essas autoridades, a ampla carteira de obras de infraestrutura e as mudanças regulatórias empreendidas pela atual administração atrairiam investidores estrangeiros mesmo sem o país conseguir reconquistar o grau de investimento.

Havia um discurso praticamente unânime na defesa da redução de investimentos públicos e na aposta de um crescimento econômico lastreado no setor privado - uma retomada sustentável que garantisse a recuperação das finanças do Estado. Porém, o cenário mudou com o aprofundamento da crise e a proximidade do período eleitoral.

Está em curso uma reacomodação das forças internas do governo. A ala desenvolvimentista tenta convencer Bolsonaro de que a realização de obras públicas é a melhor e mais rápida solução para a geração de empregos.

Enquanto a equipe econômica tenta resistir, esse mesmo grupo tenta emplacar o discurso segundo o qual a ampliação de investimentos em obras de infraestrutura hídrica e habitação deve ser enquadrada como um esforço de combate à pandemia. Afinal, argumentam, esgoto, água encanada e moradia de qualidade são essenciais para melhorar as condições sanitárias de milhões de brasileiros. Será difícil convencer o Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) de que essa tese não representa uma burla ao teto de gastos, mas ela começa a ter simpatia no Palácio do Planalto.

Há ainda outro movimento embrionário que demanda atenção. O presidente e alguns de seus auxiliares esboçam a acusação de que a reação do mercado às articulações para furar o teto é um movimento especulativo contra o Brasil. Bolsonaro chegou a pedir mais patriotismo do mercado, ignorando o fato de que parte considerável das operações da Bolsa de Valores é feita por investidores estrangeiros.

Ainda há tempo de evitar que se abandone de vez uma postura mais capaz de atrair investimentos privados. O Brasil dependerá deles para retomar o crescimento.


Fernando Exman: Politizar vacina é negativo para o país

Brasil se posiciona na corrida global contra a covid-19

O governo definiu seu lado na corrida global pela vacina contra a covid-19. Fez uma análise técnica e optou por associar-se ao projeto desenvolvido pela Universidade de Oxford, que foi licenciado para a farmacêutica britânica AstraZeneca e terá a Fiocruz como parceira.

A notícia é capaz de produzir um relativo alívio psicológico à população, em meio à certeza de que nos próximos dias será alcançada a assombrosa marca de 100 mil vítimas do coronavírus no país. Por outro lado, poderá conturbar novamente as relações político-federativas, se essa agenda não for conduzida com moderação.

O presidente Jair Bolsonaro deve evitar a tentação de politizar o assunto. A vacina é esperada por milhões de famílias, por empresas e investidores que aguardam as condições necessárias para a retomada das atividades. Apenas a massificação de uma ou mais vacinas garantirá previsibilidade aos agentes econômicos.

Só ela permitirá o retorno completo de trabalhadores e consumidores às ruas em segurança, sem o risco de sistemas de saúde entrarem em colapso. Por isso está em curso uma corrida mundial protagonizada tanto por empresas quanto por governos. A imprensa americana aponta risco político semelhante por lá.

Segundo o jornal “The New York Times”, cientistas de dentro e de fora das agências oficiais temem que o presidente Donald Trump aumente a pressão para que autoridades sanitárias aprovem uma vacina contra a moléstia no máximo até outubro. Um mês antes do pleito nacional, quando o presidente buscará a reeleição.

Nos EUA, a vacina pode servir de trunfo político para um presidente que relativizou os riscos representados pelo novo coronavírus e, agora com dificuldades na disputa, parece tentar se reposicionar no debate e melhorar sua imagem entre os eleitores. Aqui, a controvérsia apresenta nuances. Tem como pano de fundo a rivalidade entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria.

O presidente também menosprezou o vírus. A área técnica, contudo, tinha uma estratégia traçada desde o início do ano e logo definiu que não entraria para valer na corrida pelo desenvolvimento de uma vacina própria.

O plano desenhado ainda na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta foi preparar o parque tecnológico brasileiro para produzir em massa alguma das vacinas a serem desenvolvidas no exterior, assim que ela estivesse pronta e testada.

Essa visão tem como fundamento a certeza de que, embora legítimos, os esforços para a produção de uma vacina “made in Brazil” poderiam deixar o país para trás no combate à pandemia e desperdiçar recursos públicos durante uma grave crise econômica.

Os números mostram que essa opção estratégica foi racional. Hoje há, segundo o Ministério da Saúde, 231 vacinas contra covid-19 sendo desenvolvidas no mundo. Dessas, 33 já estão em fase clínica - etapa em que a testagem começa em seres humanos e são feitas análises de segurança e em grandes grupos de amostragem.

É um momento essencial para que os pesquisadores obtenham as informações mais concretas sobre a segurança de se massificar essas vacinas. Os Estados Unidos têm 58 vacinas em desenvolvimento. Dessas, 6 em fase clínica de testagem. A China possui um total de 32 projetos desenvolvidos, sendo 11 em fase clínica.

O Canadá conta com 16, mas apenas 1 em fase adiantada. O Reino Unido dispõe de 2 vacinas em fase clínica de teste de um total de 9, enquanto a Rússia tem 1 uma em estágio mais avançado e outras 7 em fase pré-clínica.

O Brasil tem 6 vacinas em desenvolvimento, mas nenhuma dessas em fase clínica de pesquisa. Autoridades do governo gostam de dizer que a vacina Oxford/AstraZeneca está na fase mais adiantada de testes com seres humanos.

Citam, inclusive, o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto a esse estágio. E aqui cabe um registro: valem-se justamente do respaldo de um organismo internacional tão criticado por integrantes do próprio Executivo, principalmente pela ala ideológica e antiglobalista da administração federal.

Pode ser um sinal positivo de despolitização do tema. O governo também considerou a garantia de acessar a vacina de forma segura, eficaz e rápida, além da possibilidade de fortalecer o complexo industrial e a transferência de tecnologia.

A medida provisória que tratará do assunto irá prever recursos para pagar a AstraZeneca e, também, investir no Instituto Tecnológico em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos). Outro ponto positivo, ainda de acordo com integrantes do Executivo, é o Brasil poder participar da atual etapa de pesquisa clínica. Isso permitirá que se verifique como o produto interage com o clima local e reage na população brasileira, a qual tem as suas especificidades e características genéticas.

Mesmo assim, na semana passada Bolsonaro ironizou, nas redes sociais, a parceria conduzida pelo governo de São Paulo com a China para a produção de uma outra vacina. O Instituto Butantan, de São Paulo, também mantém conversas com a Rússia no mesmo sentido e com a declaração o presidente acabou por alimentar os questionamentos que já vinham sendo feitos por seus apoiadores na internet. “Se fala muito da vacina da covid-19. Nós entramos naquele consórcio lá de Oxford.

Pelo que tudo indica, vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país não, está OK, pessoal? É de Oxford”, afirmou o presidente. Os apoiadores foram além, escrevendo nas redes que paulistas serviriam de cobaia para uma vacina chinesa.

A politização dessas tratativas destoa do status das relações que o Ministério da Saúde conseguiu construir nos últimos meses com Estados e municípios. A pasta tem garantido que insumos e equipamentos cheguem para todas as administrações locais de acordo com suas necessidades, mesmo que governadas por adversários de Bolsonaro.

É esse o relato elogioso que secretários estaduais, municipais e também parlamentares estão fazendo chegar ao Planalto - um apoio que dá tranquilidade ao presidente na sua decisão de manter o general Eduardo Pazuello como ministro interino da Saúde.


Fernando Exman: A desconstrução da ala ideológica no 5G

Ministros preparam pareceres para enviar ao presidente sobre oportunidades e os riscos na condução do leilão

Em breve, o presidente Jair Bolsonaro começará a ser municiado, como se diz no Palácio do Planalto e no meio militar, com relatórios internos sobre as oportunidades e os riscos na condução do leilão do 5G. A decisão não é urgentíssima. O certame deve ocorrer apenas no ano que vem. Mas, sem dúvidas, a posição tomada será um marco no governo, com desdobramentos políticos e econômicos.

O tratamento dado à papelagem dirá se o presidente vai ouvir os mais pragmáticos do Executivo ou se seguirá a ala ideológica, que, mesmo isolada nas discussões internas, mantém-se obstinada no intento de banir a China do processo de implementação da quinta geração da telefonia móvel no país.

Sim, a China, maior parceiro comercial do Brasil. Por isso as discussões provocam calafrios no Ministério da Agricultura e na bancada ruralista.

A pasta nem é chamada a opinar formalmente, mas torce à distância para que os representantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e dos ministérios da Defesa, das Relações Exteriores, das Comunicações e da Economia zelem pelos interesses do agronegócio. A exclusão da China no leilão, como quer a ala ideológica, não ocorreria sem o Brasil enfrentar retaliações. O país não conseguiria, por exemplo, escoar a produção agrícola da China para os EUA com facilidade, conforme argumenta o Itamaraty nas reuniões.

Isso já ficou claro aos participantes do grupo de trabalho coordenado pela Casa Civil. Suas discussões servirão de base para um relatório a ser elaborado pelo ministro Walter Braga Netto.

Até a semana passada, contudo, outro colegiado trabalhava em sigilo e sob a coordenação do GSI. Em sua última reunião, o grupo aprovou um relatório que elenca os riscos de permitir ou vetar a participação da China no leilão do 5G. O documento será entregue ao ministro Augusto Heleno e deve servir de subsídio para o assessoramento do presidente da República.

Quem teve acesso às discussões garante: o parecer deixa claro que as consequências negativas de liberar a participação chinesa não seriam o fim do mundo, como alertam os representantes do Ministério das Relações Exteriores. De concreto, aponta-se no governo, os EUA poderiam retirar o apoio formal para o Brasil ingressar na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Atualmente, no entanto, o Brasil já enfrenta resistências de países europeus à sua entrada na instituição.

Outro ponto negativo seria o cancelamento de uma promessa americana de capacitar o Brasil em defesa cibernética. De qualquer forma, autoridades da área de Defesa já não estavam dispostas a depender dos americanos nessa seara. Militares já defenderam em público, inclusive, a necessidade de adoção de regras mais rígidas de segurança no edital do leilão para que se evite o banimento de qualquer empresa na concorrência.

Outro ponto levantado por diplomatas é a aproximação do Brasil em relação à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em tese, esse movimento pode gerar oportunidades de negócios à indústria de defesa nacional. Mesmo assim, não é um tema que gera muita comoção entre oficiais das Forças Armadas.

Por outro lado, ruiu um argumento relevante na narrativa do Itamaraty sobre a importância do alinhamento automático aos EUA, com a frustração do apoio americano a um possível candidato brasileiro para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Rompendo uma tradição, os EUA lançaram um nome próprio para o cargo.

É natural que as discussões ultrapassem os limites técnicos, a partir do momento em que o 5G se tornou um ponto central nas disputas comerciais entre a China e os Estados Unidos. O governo brasileiro já recebeu a mensagem de que, para os EUA, a questão é inegociável e se espera do Brasil a exclusão da China do leilão.

O próprio presidente afirmou em uma de suas tradicionais transmissões ao vivo nas redes sociais que o Brasil fará o melhor negócio, “levando em conta vários aspectos e não apenas o econômico”. Nesse sentido, acrescentou, o governo atenderá “os requisitos da soberania nacional, da segurança de informações, da segurança de dados e também da nossa política externa".

Será a partir dessa ótica que o presidente analisará o caso. Com os pareceres em mãos, a primeira opção de Bolsonaro será destinar os relatórios a uma de suas gavetas, desprezar os alertas que lhe forem feitos e, eventualmente, depois até reclamar de novo da assessoria prestada por auxiliares diretos e pelos serviços de inteligência do Estado.

A alternativa é ler com atenção cada linha que os ministros da Casa Civil e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, escreverem e endereçarem a seu gabinete. Os documentos devem desenhar uma matriz complexa, contendo diversos aspectos estratégicos a serem considerados em seu processo decisório.

Oficialmente, as pastas envolvidas não comentam os trabalhos realizados até agora. A exceção foi o recém-criado Ministério das Comunicações, que herdou a gestão dessa agenda após a cisão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, e reiterou que a eventual decisão sobre a participação dos chineses como fornecedores será tomada pelo presidente da República.

O ministro Fábio Faria, contudo, já vem sendo procurado por integrantes da ala ideológica do governo para falar sobre o assunto. O mesmo vem fazendo o presidente da frente parlamentar Brasil-China, deputado Fausto Pinato (PP-SP). Vocalizando uma preocupação dos congressistas que integram a frente, ele disse que também quer a criação de uma comissão externa da Câmara para acompanhar essas discussões, cobrar transparência e o atendimento aos interesses nacionais.

A decisão é uma prerrogativa do presidente da República e Bolsonaro será instado a justificá-la com solidez. Seja ela qual for.


Fernando Exman: O frágil armistício entre as instituições

Destino de Flávio Bolsonaro entra no radar dos Poderes

O destino político do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) entrou de vez na agenda do Legislativo e do Judiciário. Nos últimos dias, virou assunto de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), integrantes do Ministério Público e parlamentares. Sob a ótica governista, ataca-se o “filho 01” para atingir o presidente da República e desestabilizar o Executivo. Defendê-lo, portanto, é também proteger o próprio governo.

Essa visão transformou as apurações sobre denúncias de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, um caso paroquial que revela algumas das tristes características da política brasileira, numa matéria capaz de afetar a relação entre os três Poderes. Num cenário extremo, até prejudicar o atual momento de relativa estabilidade institucional.

Brasília vive hoje um período de trégua. Um armistício há tempos demandado pelos aliados e auxiliares mais experientes do presidente, mas que só ganhou forma depois da prisão de Fabrício Queiroz.

O ex-assessor do senador foi encontrado no interior de São Paulo há cerca de duas semanas. Estava na casa do advogado Frederick Wasseff, que é ligado à família Bolsonaro e fazia a defesa do parlamentar no caso das chamadas “rachadinhas” da assembleia fluminense.

O primogênito do presidente da República é investigado pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa por supostos desvios de salários de funcionários de seu gabinete quando era deputado estadual. Não foi condenado e, portanto, mantém a ficha limpa. Pode insistir no discurso de que querem atacá-lo para atingir seu pai e o governo, apesar das incertezas relacionadas ao caso.

Ainda estão turvas as explicações de Wasseff sobre as motivações que o levaram a manter Queiroz sob seus cuidados pessoais, longe da sociedade e mais longe ainda dos olhos dos investigadores. Estão mais nítidos, por outro lado, os sinais emitidos pela esposa de Queiroz, que está foragida, de que poderia ter interesse em fazer uma delação premiada.

O episódio alterou o comportamento do presidente. Ele tem evitado contatos com a imprensa e com os apoiadores que insistem em esperá-lo na portaria do Palácio da Alvorada. Dias antes da prisão de Queiroz, pessoas não alinhadas ao governo foram ao local até então ocupado apenas por bolsonaristas para contestá-lo - uma moda que tinha tudo para pegar e gerar seguidos constrangimentos ao chefe do Executivo, diante da prisão do antigo aliado.

Se a sua disposição para o embate público diminuiu, aumentou nos bastidores o empenho de Bolsonaro para recompor as relações com as cúpulas do Parlamento e do Judiciário. E é justamente no Supremo Tribunal Federal (STF) onde o presidente e seu grupo político-familiar encontram hoje maior imprevisibilidade.

Enquanto deputados e senadores se esforçam para votar um projeto de lei que busca combater a disseminação de “fake news” a contragosto do governo, o STF já foi além e identificou entre aliados do presidente alguns dos responsáveis pelo financiamento e pela publicação de mensagens de ódio e notícias falsas na internet. Um outro inquérito em andamento na Corte também alcançou apoiadores de Bolsonaro quando se foi procurar quem estava por trás da realização de atos antidemocráticos.

Já a Justiça Eleitoral começou a julgar as ações que, em tese, podem levar à cassação da chapa vitoriosa da eleição de 2018. Independentemente do resultado desses julgamentos, algum recurso acabará sendo protocolado no STF.

Todos esses fatores já estavam no cálculo do presidente e o preocupavam. Agora, no entanto, o cenário se agravou.

Não tardou para que o caso de Flávio chegasse ao Supremo. Na segunda-feira, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) pediu que seja revertida a decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) que concedeu foro privilegiado ao senador. A demanda é que ele volte a ser julgado pela primeira instância, o que já teve ressonância entre os integrantes da Corte que mantêm a visão segundo a qual a prerrogativa de foro deve ser aplicada apenas a crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados às funções desempenhadas.

O caminho de Flávio parece um pouco mais fácil no Congresso, onde o governo está tendo sucesso em construir uma base aliada e tem poder de barganha para atingir seus objetivos com mais facilidade quando está disposto a negociar.

Bolsonaro decidiu abrir as portas do governo para os partidos do Centrão. Emissários do Executivo também já não se preocupam mais em esconder que o governo tentará, sim, influenciar as eleições para presidente da Câmara dos Deputados e do Senado, pois quer aliados fiéis à frente das Casas Legislativas.

As disputas ocorrerão apenas em fevereiro do ano que vem, mas os pré-candidatos já se movimentam. Terão diversos testes à frente durante votações de interesse do governo e precisarão dar demonstrações de combatividade para proteger Bolsonaro e sua família.

O tratamento dado aos filhos do presidente é um critério que será observado no Palácio do Planalto, onde até agora não há motivos para queixas. Flávio não foi incomodado pelo Conselho de Ética do Senado e a tendência é que assim continue, caso não ocorra um considerável agravamento da sua situação no âmbito do processo na Justiça. O colegiado é presidido por um aliado do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que foi eleito com apoio do governo e precisará continuar com esse respaldo para alterar a Constituição se quiser concorrer a um novo mandato.

Na Câmara, diversos pré-candidatos à presidência, todos eles influentes em suas bancadas e entre correligionários do Senado, prestigiaram Flávio Bolsonaro em um jantar promovido recentemente por seu partido para demonstrar o apoio que o Centrão lhe dará nesta fase difícil da vida.

Espera-se a mesma eficiência do governo na articulação para a aprovação de projetos que continuem a reduzir os efeitos da crise e construam uma agenda de saída para o pós-pandemia. Isso se a trégua durar.


Fernando Exman: Militares, política e o caso de Cincinnatus

Congresso debate relação entre Forças Armadas e governo

Pode sair do Congresso Nacional uma solução para o problema que, ao lado dos esforços de combate ao novo coronavírus, muito tem preocupado o oficialato. Pelo menos duas propostas de emenda constitucional podem amenizar os danos causados à imagem das Forças Armadas pela correlação feita, na opinião pública, entre os militares e o governo.

A ideia, ainda em fase inicial de tramitação e que pode ganhar impulso se for objeto de acordo entre os líderes partidários, é resguardar o caráter de instituições de Estado das Forças Armadas. Em uma eventual brecha na agenda legislativa voltada à retomada econômica no pós-pandemia, esse pode ser um debate positivo a ser levado adiante pelo Parlamento. O país ganhará, se demonstrar ter maturidade civilizatória para discutir esse tema sem enfrentar novas turbulências institucionais. Perderá quem quer trocar a farda pelo terno e a gravata, sem enfrentar uma transição profissional em definitivo.

Por isso a proposta de autoria da deputada federal Perpétua Almeida (AC), líder do PCdoB na Câmara, chama a atenção. Ex-assessora especial e ex-secretária de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, a deputada mantém contato com seus antigos interlocutores na caserna, enquanto coleta as assinaturas necessárias para protocolar a PEC. Antes um gesto trivial no cotidiano do parlamentar, agora a subscrição de projetos é eletrônica e enfrenta novas complexidades por causa do trabalho remoto e da pandemia.

A PEC, contudo, está pronta. Alteraria o artigo 37 da Constituição, que trata da administração pública: para exercer cargos de natureza civil nos três níveis da federação, o militar da ativa com menos de dez anos de serviço teria que se afastar da atividade. Se ele contasse mais de dez anos de serviço, passaria automaticamente para a inatividade no momento da posse. A deputada tem um ponto: dificilmente um militar que retornasse ao quartel não faria política ou deixaria de ser identificado com o governo para o qual serviu, caso assumisse um posto de comando.

Essa é base do texto a ser protocolado com objetivo de lançar um debate e que já desperta curiosidade nos quartéis. Nas discussões do relatório, explicou ela, devem ser detalhadas algumas exceções. Cargos na estrutura do Ministério da Defesa ou funções de Estado não exigiriam que seus eventuais ocupantes deixassem as Forças Armadas, por exemplo.

O deputado Alencar Santana Braga (PT-SP) propôs uma emenda constitucional com teor semelhante, mas neste caso alterando o artigo 142. É este o capítulo que trata especificamente das Forças Armadas e que lamentavelmente passou a estar no centro das turbulências institucionais.

Os danos à imagem dos militares já são palpáveis. Pesquisas de opinião pública captam queda na aprovação das Forças Armadas, até então acostumadas a baterem sucessivos recordes nos índices de confiança da população desde a redemocratização. As redes sociais também se mostraram um ambiente hostil para os perfis oficiais dessas organizações, que passaram a receber críticas em suas postagens tanto de eleitores do presidente quanto da oposição. Bolsonaristas reclamam da falta de apoio das Forças ao presidente, enquanto outros tantos se queixam justamente de uma suposta adesão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao projeto político que venceu a eleição em 2018 e até chegou a entusiasmar segmentos da caserna.

Até parecia que poderia haver uma simbiose, mas desde o início do governo é crescente o desconforto da cúpula militar. Essa insatisfação chega hoje a patamares elevadíssimos, devido à conclusão de que representantes dos dois extremos da polarizada política nacional passaram a usar as Forças como elemento de suas narrativas. Não há expectativa de arrefecimento das tensões.

Nesse ambiente, dizem oficiais da ativa, não se verá posicionamentos públicos dos comandantes em relação à atuação dos Três Poderes ou do Ministério Público. Mas existem dois possíveis caminhos no horizonte e eles não são excludentes entre si.

O primeiro é as Forças manterem um foco absoluto em garantir o sucesso do combate à pandemia de covid-19, missão complexa, desafiadora e inédita para esta geração de oficiais. No Exército, desde a Copa do Mundo realizada no Brasil não se via uma atuação de todos os Comandos em conjunto todos os dias. Com a diferença de que desta vez a jornada tem sido muito mais longa e tortuosa, mas capaz de demonstrar à população a importância de se ter organizações militares preparadas para um emprego rápido e eficaz em períodos de crise.

A outra possibilidade colocada à mesa em conversas reservadas seria o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, acelerarem a ida para a reserva. Ramos sinalizou à corporação que assinaria a papelada em breve, um gesto que estaria, na visão de colegas, mais condizente com seu papel de articulador político do Palácio do Planalto.

Na caserna, espera-se também que Pazuello deixe o Ministério da Saúde tão logo execute a missão emergencial que lhe foi designada ou então também tome o rumo à reserva, caso decida permanecer na função depois de superado os piores momentos da pandemia. Afinal, observam, Pazuello já é general de divisão e, por pertencer ao Serviço de Intendência, não teria mesmo como obter as quatro estrelas almejadas pelos integrantes das carreiras que podem chegar ao posto de general de Exército.

Se as discussões legislativas não avançarem com celeridade, restará mesmo aos oficiais tentarem convencer seus pares sobre o impacto que uma decisão individual pode ter sobre o todo.

Nesse esforço, podem surgir argumentos contemporâneos, como as pesquisas de opinião sobre a imagem das Forças, mas também os exemplos históricos. Um clássico é o caso do general romano Lucius Quinctius Cincinnatus, que foi convocado para resolver uma crise e, cumprida a missão, teve a oferta de permanecer no poder e na política. Preferiu voltar para casa e administrar sua fazenda.


Fernando Exman: Soa o temido alarme - O inverno está chegando

Ministério da Saúde preocupa-se com avanço do vírus no Centro-Sul

Às 18h44 do sábado, pontualmente, começa uma nova etapa da missão do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. É o horário oficial do início do inverno de 2020, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). O momento a partir do qual as atenções da pasta no combate ao novo coronavírus precisarão se voltar cada vez mais para o Centro-Sul do Brasil.

O inverno é um período aguardado com preocupação pelos antecessores do general e que se principia num momento em que as relações do presidente Jair Bolsonaro com os governadores - dos Estados destas e de outras regiões - se deterioram a cada dia.

No governo, acredita-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) exagerou na liberdade dada aos entes subnacionais para a condução das políticas de isolamento social. À natural briga por recursos e autonomia nos gastos emergenciais, somou-se uma discussão de natureza político-eleitoral entre o chefe do Executivo e governadores.

Cenário hostil para Pazuello, um militar da ativa, e também para o próximo secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, um técnico especialista no trato com os Estados e os municípios. Ambos ganharão importância na tentativa de construção de uma interlocução mais saudável na federação, sobretudo se as preocupações com os efeitos do inverno em relação ao avanço da pandemia se comprovarem corretas.

Pouco se sabe sobre qual será o comportamento da moléstia no inverno do hemisfério Sul. Historicamente, observa-se o aumento de casos de gripe e doenças respiratórias durante os meses mais frios do ano. As pessoas tossem mais, espirram e se aglomeram em ambientes fechados. Locais propícios ao contágio, os quais, aos poucos, começam a ser frequentados novamente pelos mais incautos.

O Brasil titubeou na hora de iniciar o isolamento social. Agora que no hemisfério Norte diversos países já estão podendo retomar as atividades e apresentam temperaturas mais altas, acredita-se que o mesmo movimento pode ser executado por aqui. Essa decisão pode agradar a empresários e ao governo federal, embora pareça ser precipitada e capaz de produzir consequências desastrosas.

Pelo que se viu até agora, o combate ao coronavírus se tornou um assunto sobre o qual quem diz ter certezas absolutas parece estar mal informado ou deliberadamente agindo com má fé. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) vem sendo inconstante, para regozijo dos antiglobalistas.

Representantes da OMS já alertaram que uma nova onda de contágio poderia ocorrer na Europa durante o inverno, depois afirmaram que ainda não há qualquer evidência científica sobre o impacto da covid-19 em diferentes estações, a despeito de o vírus da Influenza sempre apresentar um salto de infecções durante esta estação. O comportamento da doença no inverno do hemisfério Sul ainda é, portanto, desconhecido.

Por isso é positiva a crescente preocupação do Ministério da Saúde com o que ocorrerá nos Estados do Sul e do Sudeste de sábado até o início da primavera, na última quinzena de setembro.

Na visão da atual gestão do Ministério da Saúde, os dados de infecções e mortes refletem as especificidades do Brasil: as regiões Norte e Nordeste seriam historicamente impactadas pelas crises respiratórias relacionadas ao hemisfério Norte, enquanto os maiores efeitos das gripes nas regiões Sul e Sudeste ocorrem durante os meses de junho, julho e agosto. Ou seja, no inverno.

Os balanços da pandemia refletiriam, então, essa dinâmica. De fato, hoje a incidência da covid-19 é relativa e assustadoramente maior nas regiões Norte e Nordeste, onde a taxa de contaminação é de respectivamente 1.001,3 e 570,9 por 100 mil habitantes. A média do Brasil é 439,3. Já o índice de mortalidade também é superior nessas duas regiões, principalmente no Ceará, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Amazonas, Pará e Amapá.

As exceções a essa regra são os dois maiores centros urbanos do país - as capitais e regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Isso levou a taxa de mortalidade da região Sudeste a superar a média nacional, de 21,5 óbitos por 100 mil habitantes, com um índice de 23,5. Para se ter uma ideia, nas regiões Sul e Centro-Oeste, as taxas de mortalidade chegam a 3,2 e 5,3, respectivamente, ante 44,2 por 100 mil habitantes no Norte e 25,5 no Nordeste.

Os dados justificam o receio no Ministério da Saúde com a deterioração da situação no Centro-Sul, diante de um fator desconhecido como a chegada do inverno.

No nível técnico, as conversas de representantes do governo federal com os Estados até que vão muito bem, obrigado. Há contatos diários da pasta da Saúde com governadores, secretários estaduais e municipais, e gestores hospitalares, num monitoramento cotidiano sobre o comportamento da pandemia e as necessidades na ponta.

O problema é quando as discussões vão ao nível político. A ala ideológica do governo chegou a insinuar que as estatísticas estaduais estavam sendo manipuladas para prejudicar a imagem do governo federal. Os governadores de São Paulo e do Rio são vistos como inimigos. E o governador do Espírito Santo está na lista de oposicionistas.

Também no Sul a relação do Palácio do Planalto com os governadores não é das melhores, excluindo o caso do Paraná. O Rio Grande do Sul é governado por um tucano. Santa Catarina elegeu um candidato do PSL que se tornou alvo de bolsonaristas em pouquíssimo tempo de mandato, por querer implementar uma regra segundo a qual o ICMS poderia variar dependendo do volume de agrotóxicos usados por agricultores. Aliados próximos de Bolsonaro no meio empresarial também pressionam o governador catarinense pela reabertura das atividades.

Como diz um governador, havia três caminhos a seguir desde o início da crise: a negação, a omissão e a ação. Ele e seus colegas acreditam que o presidente já passou da fase de negação e da omissão, estando agora dedicado ao terceiro tipo citado. O problema, apontam, é que seria a uma ação voltada a colocar a população contra os gestores não alinhados. Os ventos frios do inverno podem ser propícios à disseminação da covid-19 e também do vírus do ódio na política.


Fernando Exman: Falta educação na Pasta da Militância

Setor tem desafios urgentes a enfrentar na pandemia

O Ministério da Educação mantém-se fiel à tradição, no governo Jair Bolsonaro, de protagonizar crises políticas. A gestão de uma pasta fundamental para o desenvolvimento do país começou mal, avançou mandato adentro de forma trôpega e, durante a pandemia, apequenou-se.

O setor tem diversos desafios a enfrentar. Muitos deles se tornaram urgentes, mas outros poderiam ter sido resolvidos há tempos.

Os potenciais problemas da pasta tornaram-se perceptíveis já no período de transição, no fim de 2018. Militares e acadêmicos que formulavam seu planejamento estratégico foram surpreendidos quando Ricardo Vélez Rodríguez entrou no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) como um professor pouco conhecido e saiu como o indicado para ocupar a função de ministro de Estado. A vaga era entregue à ala ideológica que formava a base eleitoral do presidente recém-eleito, criando severos obstáculos à execução do plano programado pelos técnicos que integravam este grupo setorial da campanha eleitoral.

Não demoraria para que Vélez caísse. Mesmo assim, o cargo permaneceu sob influência do grupo que passou a usar a política externa, além das áreas de direitos humanos e da educação, para manter militantes bolsonaristas mobilizados em defesa de um governo com cada vez mais frentes de batalha nos campos político e jurídico.

Não foi à toa que estas três áreas foram expostas, com a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril.

O episódio colocou o titular do Ministério da Educação, Abraham Weintraub, no epicentro das turbulências hoje existentes entre o Executivo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Legislativo. Ele chegou a se manifestar com tanta eloquência na reunião que o presidente pediu mais engajamento de outros ministros citando seu exemplo, mas de “forma mais educada um pouquinho”. Weintraub colocou-se aos presentes como militante e nada do que falou poderá ser reproduzido em livros infantis.

O resultado não poderia ser mais preocupante para um gestor com diversos assuntos a despachar com os outros Poderes. A capacidade de articulação institucional de Weintraub é, hoje, uma nulidade. A notícia positiva para ele, por outro lado, é que justamente essa disposição para o enfrentamento foi que o manteve, pelo menos até agora, no cargo.

No fim de 2019, sua demissão era dada como certa por auxiliares do presidente. Bolsonaro precisou negar que estaria planejando mudar novamente o comando da Educação, sempre com o argumento de que gestões anteriores teriam deixado o Brasil pessimamente posicionado no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Antes de exonerá-lo, ponderava, seria justo dar crédito e condições para o ministro trabalhar.

E resultados é o que se espera neste momento em que a pandemia pode gerar graves danos para o ensino, para a vida de pais, mestres e alunos, além de também afetar a solvência de empresas do setor.

A reação inicial do governo até que foi ágil. O Planalto enviou ao Congresso um pedido para que fosse reconhecida a situação de calamidade pública em meados de março. No primeiro dia de abril foi editada uma medida provisória voltada especificamente para a área da educação durante a pandemia.

A MP flexibiliza o calendário escolar para garantir que os alunos tenham acesso a todas as horas-aula relativas aos 200 dias letivos exigíveis pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ou seja, 800 horas anuais, mesmo que de forma remota.

O Executivo reconheceu, na MP, a gravidade da covid-19 e os potenciais riscos das inevitáveis aglomerações que ocorreriam nas creches, escolas e universidades. Mas, desde então, outros gestos do Ministério da Educação e do próprio presidente não corroboraram com essa visão.

Bolsonaro tentou articular com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que colégios cívico-militares encabeçassem um movimento de retorno às atividades. A ideia não foi adiante.

Também falhou o plano do ministro de evitar o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As discussões sobre o assunto passaram a ser conduzidas diretamente entre a Câmara e o presidente.

O titular da pasta também tem sido alijado das discussões sobre outro tema que angustia o setor e gestores locais: o financiamento da educação. Uma proposta de emenda constitucional estabelecendo um novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica precisa ser aprovada e regulamentada ainda neste ano, pois o atual Fundeb vale apenas até dezembro.

Deputados gostariam de aumentar a participação do governo federal no financiamento da educação básica, mas prefeitos ouviram uma proposta da equipe econômica que acabaria por não contemplar totalmente o setor. A ideia seria privilegiar a destinação de verbas para a saúde, por causa da pandemia. Em outras palavras, renovar o fundo como ele é hoje sem carimbar os recursos. As prefeituras poderiam adquirir testes para covid-19, respiradores e outros equipamentos médico-hospitalares, em vez de comprar material escolar. Não há acordo ainda. A educação ficaria, novamente, em segundo plano.

Cabe ao poder central coordenar as ações do setor público e da iniciativa privada. Será um erro deixar que pais e alunos considerem 2020 um ano letivo perdido, mesmo que o futuro profissional dos estudantes ainda esteja nublado.

À medida do possível e dependendo das limitações e especificidades de cada local, métodos de ensino remoto e de reposição do conteúdo perdido precisam ser objeto de total atenção do governo federal. O retorno às salas de aula também precisará ocorrer de forma ordenada e seguindo diretrizes sanitárias. Cada Estado ou município terá que saber o momento certo de fazê-lo. Voluntarismos vindos do ministério ou do Palácio do Planalto não contribuirão nesse processo, sobretudo se forem apenas para manter a militância aquecida. Misturar a situação atual com as discussões sobre a polêmica educação domiciliar, uma bandeira bolsonarista, tampouco parece ser boa ideia.


Fernando Exman: Serviços de inteligência são alvejados na crise

Setor é essencial no processo decisório governamental

Psiquiatras bolsonaristas certamente contestariam o diagnóstico. Tem-se a impressão, contudo, de que o governo vive um transtorno bipolar. Oscila entre momentos de grande euforia, como nas cada vez mais frequentes manifestações realizadas em frente à rampa do Palácio do Planalto, lances de agressividade e átimos de lamentação e depressão. No afã de se livrar dos problemas, o governo joga aliados para o centro das crises e ataca instituições de Estado.

Foi assim que os serviços de inteligência, sempre prestigiados pelos chefes de governo e também pelo meio militar, passaram a figurar na desconfortável lista de danos colaterais da guerra travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sergio Moro.

A relativização da violência sempre foi uma marca do grupo político que chegou ao poder. Novo é o uso da rampa do Planalto como plataforma de filmagem e acesso do presidente para o congraçamento com manifestantes que atacam os demais Poderes, governadores e prefeitos.

Já as lamúrias das autoridades federais têm como motivação os dissabores provocados por aliados que se transformaram em adversários. Elas também passam pelas adversidades impostas pela pandemia de covid-19 aos planos de uma administração que chega aos 500 dias com a missão de evitar que o país entre na rota de uma prolongada depressão.

Prova documental do embate entre Bolsonaro e Moro, o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril tornou-se um documento histórico que traduz em imagens todo esse comportamento errático da cúpula federal.

O material possivelmente é, como o próprio presidente afirmou, o registro da última reunião do Conselho de Governo da atual gestão. O chefe do Executivo não confia em grande parte de seus auxiliares diretos e decidiu que reunirá um número mais amplo de ministros apenas em confraternizações, cafés da manhã ou outros convescotes, como as próprias manifestações em frente ao Palácio do Planalto. Mas não mais em amplos encontros de trabalho, dos quais não se poderá descobrir quem seria o responsável pelos inevitáveis vazamentos.

Desse último encontro ministerial ampliado e registrado em audiovisual, além do ápice de uma série de desentendimentos entre Moro e Bolsonaro sobre o comando da Polícia Federal, ficará no arquivo da Presidência da República um capítulo de difícil digestão para a comunidade de inteligência.

De acordo com transcrições feitas pela Advocacia-Geral da União (AGU) de determinadas falas, o presidente da República reclamou com veemência por não ter informações da PF e das inteligências das Forças Armadas. Apontou, ainda, “problemas” na Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Generalizou a crítica: “E me desculpe o serviço de informação nosso - todos - é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil”, afirmou Bolsonaro, antes de prosseguir para um trecho do encontro que já virou antológico: “Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça, não é extrapolação da minha parte. É uma verdade.”

A divulgação da íntegra do vídeo pode esclarecer quais são os problemas realmente apontados pelo presidente - se o objeto da reclamação provocou alguma falha crítica no processo decisório de questões de Estado ou se ele se refere a temas pessoais.

Os órgãos de inteligência são instituições de Estado essenciais à tomada de decisão do presidente da República. Quem encabeça esse esforço é o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, que tem a função de assessorar o chefe do Poder Executivo no desempenho de suas atribuições, sobretudo em relação a assuntos militares e de segurança, como na análise e no acompanhamento de temas com potencial geração de riscos. Outra missão do GSI é ajudar a prevenir crises e articular seu gerenciamento, conforme prevê a legislação que trata do tema, em caso de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional.

Ele é também o órgão que coordena as atividades de inteligência federal, as quais têm capilaridade considerável. O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é integrado por 42 instituições, incluindo ministérios e agências reguladoras, e conta com o apoio de polícias militares e civis dos Estados.

Em 2019, o objetivo desse setor foi justamente ampliar a integração e a articulação entre os responsáveis pelas áreas de segurança pública, de inteligência e controle aduaneiro. Para 2020, a meta era integrar bases de dados nacionais e internacionais de inteligência, o que incluiria o geoprocessamento de informações estratégicas e a formação dos chamados subsistemas de inteligência em órgãos da administração pública federal e em unidades da federação.

Isso não quer dizer, entretanto, que deve ser considerado natural um presidente da República tentar ter acesso a todo e qualquer relatório de inteligência produzido nesse ecossistema.

Outra prioridade para a área este ano seria a elaboração de um Plano Nacional de Segurança das Infraestruturas Críticas (PLNSIC), o qual poderia contemplar na área de saúde, se seguisse referências internacionais, a previsão de serviços essenciais para o combate de epidemias e para a preservação de vidas em situações como as enfrentadas hoje no Brasil e em todo o mundo.

No entanto, antes de conseguir executar esse planejamento estratégico, os órgãos de inteligência foram surpreendidos pelo avanço do novo coronavírus.

Sob a coordenação da Casa Civil, eles passaram a integrar o centro de coordenação de operações do comitê de crise instalado para monitorar os impactos da pandemia. O grupo atua em tempo integral supervisionando ações e produzindo conhecimento sobre o tema. O problema é que esse tipo de material não tem ganhado a atenção do seu principal destinatário, conforme se pode depreender das queixas feitas na última reunião ministerial.


Fernando Exman: As ambiguidades do discurso presidencial

Caso Mandetta cria insegurança em mais áreas do governo

Foi há apenas 30 dias, embora o intenso noticiário já tenha feito março parecer um mês distante no calendário. Era uma época em que a postura do presidente Jair Bolsonaro frente o avanço do coronavírus era considerada, no Ministério da Saúde, “genial” e equilibrada. Ele dava liberdade de ação à área técnica, enquanto cobrava do ministro Luiz Henrique Mandetta um discurso público transparente e capaz de tranquilizar a população. Na Pasta e em outras áreas do governo, acreditava-se que um instinto político aguçado faria com que o presidente conduzisse a nação com prudência durante a grave crise que se aproximava. A expectativa foi brutalmente atropelada pelos fatos.

A intempestiva mudança do comportamento presidencial não abalou apenas a relação de confiança entre o chefe do governo e seu subordinado direto responsável pela Saúde. Espalhou uma sensação de insegurança pela Esplanada dos Ministérios, num momento em que a máquina administrativa precisa se sentir respaldada na missão de tentar construir medidas para combater os efeitos da crise.

Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta se conheceram no Congresso. Encontravam-se com frequência no corredor que dava acesso aos seus gabinetes, ambos localizados no terceiro anexo da Câmara.

A aproximação foi natural. Hoje ministro da Saúde, o deputado sul-mato-grossense se candidatara pelo DEM para fazer oposição ao PT. Lá encontrou um parlamentar já conhecido por seu antagonismo aos partidos de esquerda.

Bolsonaro estava filiado ao PP, partido da base governista, e por isso muitas vezes contava com a ajuda dos amigos para ter acesso a pareceres técnicos da oposição durante as atividades legislativas. Os dois costumavam trocar ideias sobre os projetos em pauta e temas da área de saúde. Quando decidiu tentar trocar o Anexo 3 da Câmara pelo terceiro andar do Palácio do Planalto, Bolsonaro começou a estruturar sua campanha e pediu ao colega contribuições para um programa de governo.

Quem acompanhou essa trajetória não se surpreendeu com a nomeação de Mandetta para o Ministério da Saúde, mesmo que os dois já tivessem discordado em um outro episódio que contrapôs a ciência e o voluntarismo. Bolsonaro foi, quando ambos eram contemporâneos na Câmara, um aplicado defensor da substância que ficou conhecida como “pílula do câncer”.

Agora não foi diferente. Em vez de continuar compatibilizando as exigências técnicas às necessidades políticas naturais de um chefe de governo, criando assim um discurso único do Executivo, o presidente da República preferiu adotar uma postura ambígua.

Para um eleitorado ainda fiel, insiste em relativizar o perigo representado pelo novo coronavírus e a gravidade de uma pandemia que já matou milhares de pessoas no mundo. Chegou a ir além e fez troça de uma enfermidade que acometeu integrantes do seu próprio estafe.

Ao Congresso, por outro lado, pediu que fosse prontamente reconhecida a situação de calamidade, para ter maior liberdade no manejo do Orçamento e garantias jurídicas para abandonar as metas fiscais. Ao publicar medidas emergenciais no “Diário Oficial da União”, não deixou de destacar a gravidade de uma situação que em outros momentos ridiculariza sem pudor.

Tal postura tem gerado uma indagação entre autoridades que também precisam subscrever pareceres, atos e minutas. “Qual chefe de governo está à frente do Ministério?”, questionam-se. “Aquele que não se importa em abandonar pelo caminho auxiliares? Ou um líder que, depois de escalar emissários da ala política para cobrar rapidez na formulação das medidas econômicas, assumirá a responsabilidade das decisões tomadas sem terceirizar culpas?”

A reflexão ganhou peso depois que assessores próximos do presidente argumentaram que, a despeito das preocupações de integrantes da equipe econômica, não havia necessidade de se mudar a Constituição para garantir a segurança jurídica na tomada de medidas de socorro à população mais vulnerável. O que se precisava era de mais rapidez, cobravam.

Alguns técnicos não só temem enfrentar processos individuais pelo que assinam como também recordam muito bem qual o risco político que um presidente assume ao pressionar a área técnica em nome de um projeto de poder. Se o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, reconheceu em público que gostaria de ter mais segurança jurídica para avançar com o programa emergencial e até mencionou ter receio de um impeachment, é compreensível que os servidores estejam também preocupados com seus CPFs e suas reputações.

Assim como em 30 dias Bolsonaro mudou totalmente seu discurso sobre o Ministério da Saúde, a dúvida que surge é se o mesmo não pode ocorrer em relação ao desempenho de outras áreas da Esplanada.

Já ficou no passado o Bolsonaro que repetia à exaustão, durante a campanha eleitoral ou o início do governo, não dominar o significado de termos como Produto Interno Bruto (PIB), câmbio e juros. Aquele remetia todas as indagações ao seu ministro da Economia, então portador de uma “carta branca”. Agora, no entanto, o presidente diariamente discorre sobre os desafios colocados à economia pela nova conjuntura. Nada impede que comece também a responsabilizar em público sua equipe por uma desaceleração que tem razões muito mais profundas e complexas.

O slogan criado pelo governo federal para tentar confortar a população durante a pandemia garante que “ninguém ficará para trás” nesta crise. Como comprova a fissura na relação do presidente com o ministro da Saúde, improvável que esse slogan se sustente por muito tempo como algo verdadeiro. Bolsonaro já demonstrou diversas vezes que essas palavras não valem para os auxiliares que criam, na sua visão, dificuldades ao seu projeto particular de poder.


Fernando Exman: A quarentena da política externa

Relações com a China enfrentaram momento crítico

À negação sobre a gravidade da pandemia causada pelo novo coronavírus, somou-se a resistência do presidente Jair Bolsonaro em reconhecer a fase crítica em que se encontravam as relações entre o Brasil e a China. No meio diplomático, contudo, não houve autoengano. Até Bolsonaro finalmente conseguir completar a ligação telefônica para Pequim, enfrentávamos um dos pontos mais baixos das relações bilaterais desde que elas foram estabelecidas, em 1974. Isso não é pouco e ambos os lados tinham a perder com um eventual distanciamento.

A China, como se sabe, é o principal parceiro comercial brasileiro, mas há semanas poderia ter ampliado sua atuação para uma área hoje fundamental no enfrentamento da covid-19: a venda de equipamentos e suprimentos médico-hospitalares ao Brasil. Não fosse, claro, a crise provocada por uma publicação nas redes sociais pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) responsabilizando a China pelo avanço do coronavírus.

A mensagem foi rebatida de forma desproporcional pelo embaixador chinês, Yang Wanming, e seguida por uma réplica do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Bolsonaristas reagiram rápido nas redes sociais, alimentando as teorias conspiratórias emanadas pela família presidencial. Felizmente o pragmatismo retornou à mesa, mas ainda é incerto o resultado prático da retomada do diálogo em alto nível.

A insatisfação da chancelaria chinesa com o governo Bolsonaro já havia sido transmitida ao Ministério da Saúde muito antes desse episódio. O objeto do ruído inicial foi o fornecimento de imunoglobulina, substância fundamental para o tratamento de pacientes com deficiência no sistema imunológico. O problema se deu porque autoridades sanitárias estavam pretendendo barrar a exportação desse produto para o Brasil por uma empresa chinesa.

Segundo relato de uma autoridade que esteve no epicentro da crise, o governo começou a enfrentar problemas com seu único fornecedor de imunoglobulina, uma empresa nacional, justamente no momento em que o Ministério da Saúde já começava a tentar se preparar para a chegada e para o avanço da covid-19 no Brasil.

Em seus contatos com os principais infectologistas do país, autoridades do Executivo passaram a receber pedidos para que se aumentassem os estoques de imunoglobulina. Afinal, além da previsão de usá-la no combate aos danos provocados pelo coronavírus, a imunoglobulina também precisaria estar sempre à mão para o tratamento de pacientes que desenvolvessem a síndrome de Guillain-Barré por causa da chikungunya.

Os estoques de imunoglobulina já estavam baixos, o mosquito Aedes Aegypti não oferece trégua e o coronavírus a cada dia se tornava uma ameaça maior. Não bastasse, a empresa vencedora da licitação para a venda de imunoglobulina informou o Ministério da Saúde que não conseguiria mais entregar o produto ao preço habilitado na concorrência.

Como não poderia ser diferente, os órgãos de controle proibiram o governo de pagar mais do que o preço previsto no contrato. A reposição dos estoques passou a ser feita a conta gotas e, depois de ver seu fornecedor inabilitado, o Ministério da Saúde começou então um esforço para encontrar alternativas.

“Faz-se licitação e deu vazia ou ganha um cara que não tinha capacidade de entregar o quanto o Brasil queria. O único que conseguia quantidade não queria colocar preço”, relatou uma autoridade, lembrando que há poucos fabricantes desse hemoderivado no mundo.

Foi feita, então, uma provocação formal pedindo a realização de uma compra internacional à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não comenta oficialmente o caso e o trata como um assunto sigiloso.

Diante do fato de que algumas dessas empresas estrangeiras não têm registro no Brasil, foi exigido ao governo que as companhias participantes da concorrência internacional possuíssem uma certificação específica. E foi aí que o primeiro embate entre os dois países ocorreu: uma empresa chinesa venceu, mas as autoridades sanitárias tentaram impedir a compra alegando que a procedência do material seria duvidosa.

Esse posicionamento enfureceu a chancelaria chinesa. “A embaixada chinesa reclamou. Disse que o necessário era ter a certificação e ela tinha. Virou um impasse”, contou a fonte, recordando que, enquanto isso, os estoques continuavam a ser consumidos. Integrantes do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União foram acionados pelo Executivo para que o impasse pudesse ser resolvido e a compra, liberada.

A área da saúde ainda não é um tema central na agenda sino-brasileira, mas ambos os lados têm a ganhar se houver uma evolução nesse status, mesmo que ela se torne objeto da disputa comercial entre a China e os Estados Unidos.

Nos últimos meses, o governo Bolsonaro se indispôs com aliados históricos europeus ou sul-americanos. Muitas vezes reproduziu ao Sul do Equador a retórica agressiva do presidente americano, Donald Trump. Mas, diferentemente de Trump, Bolsonaro ainda não está formalmente disputando a reeleição. Precisa ter como prioridade governar e, sempre que tiver dúvidas, recordar do slogan que levou o aliado ao poder: a América virá primeiro.

Os doentes brasileiros e seus familiares seguramente agradecerão se tiverem acesso a respiradores ou outros produtos de saúde “made in China”, feitos por empresas americanas ou de qualquer outro país, desde que esses fabricantes respeitem os padrões internacionais do setor.

A pandemia impõe um novo comportamento ao brasileiro, que está isolamento para tentar conter o avanço do vírus. Fronteiras foram fechadas. A exportação de produtos considerados essenciais foi proibida, num movimento pontual correto para garantir o abastecimento nacional. Mas isso não deve ser usado como subterfúgio por quem pretende, no futuro, continuar adiando a abertura da economia. O Brasil não poderá ficar eternamente em quarentena.


Fernando Exman: O comportamento do líder diante do caos

Há risco de banalização do choque entre Poderes

Um país polarizado é o habitat perfeito para um governante que considera todo assunto que chega aos escaninhos do Palácio do Planalto um risco ao seu mandato ou um lance de disputa de poder.

Esse hoje é o retrato do Brasil, onde o presidente da República tem em sua base eleitoral quem ainda discute o formato da Terra, ignora o aquecimento global e, agora, faz pouco caso de uma pandemia que avança no Brasil em progressão geométrica. Um país em que os demais Poderes republicanos tentam continuar trabalhando em harmonia, enquanto se esforçam para evitar que um eventual grito de independência seja interpretado como um grito de guerra.

Consolida-se, assim, um ambiente árido para que autoridades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário tentem construir saídas para uma crise ainda sem um ponto final perceptível no horizonte. É real o risco de banalização dos choques entre as instituições.

Ironicamente, a tíbia articulação política do governo, até recentemente sob severas críticas dos parlamentares, terá uma trégua.

Todos os sinais vindos do Congresso apontam que os deputados e os senadores não criarão obstáculos à aprovação de medidas emergenciais para o enfrentamento dos efeitos da crise. O Legislativo está decidido a mostrar para a sociedade que não deixará de trabalhar, mesmo em meio aos ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados.

É por isso que tanto o Congresso quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) fazem questão de permanecer com as portas abertas. O Palácio do Planalto também está.

No entanto, a despeito do clima de disputa política que vem do gabinete presidencial, o ministro da Saúde já comprovou sua capacidade de interlocução direta com o Parlamento. A habilidade pode ser crucial.

Antes de assumir o Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta foi deputado federal por dois mandatos e é filiado ao DEM. O mesmo partido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (RJ), e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (AP).

Em relação ao presidente do Senado, inclusive, o ministro da Saúde manteve grande proximidade quando eles estavam na Câmara. Ambos faziam parte de um grupo pequeno de deputados do DEM, que, por serem representantes únicos de seus Estados, precisavam somar votos para ter força nas reuniões internas da bancada do partido.

Ademais, o desempenho de Mandetta tem sido bem avaliado pela cúpula do Congresso, com quem tem um bom diálogo. A sinalização que tem recebido de seus antigos colegas é de que não haverá restrição de recursos para sua pasta durante essa situação de emergência nacional.

No ano passado, o ministro foi ao Congresso com a missão de desmobilizar uma obstrução e aprovar a criação do Médicos pelo Brasil. O programa foi aprovado pouco antes de caducar a medida provisória que o instituiu e a obstrução, retomada. Projetos de interesse de outros ministérios não tiveram o mesmo destino.

Como as medidas anunciadas pelo governo não são apenas voltadas à área da saúde, seria prudente que o Executivo trabalhasse para evitar que suas relações com o Congresso continuem se deteriorando. Isso ainda é possível, apesar da disputa pelo controle do Orçamento e o recente estranhamento entre a equipe econômica e a cúpula do Congresso.

Nos últimos dias, congressistas se queixaram que o ofício com 19 propostas do Ministério da Economia para combater os efeitos da crise foi protocolado no Parlamento sem aviso prévio.

Quando o ministro e seus auxiliares se dirigiram na semana passada ao Parlamento, líderes partidários ficaram atônitos com a falta de pelo menos um rascunho, um menu básico com medidas anticrise à disposição do ministro da Economia, Paulo Guedes. Afinal, diversas autoridades estrangeiras já tratavam o avanço do coronavírus com a seriedade necessária e desfilavam com um arsenal diversificado de ações.

Entre a reunião de emergência e o anúncio do primeiro conjunto de iniciativas do governo, também não houve a articulação esperada pela cúpula do Congresso. O humor dos parlamentares piorou.

Para deputados e senadores, o que veio do Executivo até agora é apenas um alento, uma etapa inicial de um processo que consumirá pelo menos três meses. Justamente o que resta deste semestre, até que vigore o recesso parlamentar e as campanhas eleitorais dominem o calendário.

Pressionados pelos governadores e prefeitos, os congressistas continuam pedindo uma maior proatividade da equipe econômica. Demandam uma injeção de recursos na economia, mesmo que isso represente um maior endividamento do setor público. Sabem que Bolsonaro tem um instinto político privilegiado, mas não querem correr o risco de também serem acusados de omissão.

Antes de a crise provocada pelo coronavírus se agravar, integrantes do Centrão haviam captado sinais de deterioração da popularidade do presidente da República. Até então, esses sinais decorriam da frustração em relação ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Mas os efeitos negativos adicionais da pandemia na economia são mais evidentes a cada dia que passa.

Será no sistema de saúde, contudo, que eles ganharão contornos dramáticos - caso as medidas de contenção do vírus preconizadas pelos técnicos continuem sendo desprezadas.

Em dezembro do ano passado, uma pesquisa do Datafolha mostrou que a área da saúde era apontada espontaneamente por 19% dos entrevistados como a mais problemática do país. A saúde sempre foi um desafio para os governantes, mas, antes de Bolsonaro assumir, um levantamento realizado pelo mesmo instituto um ano antes mostrava a saúde com 22% das citações.

Os números que virão durante e depois da crise ainda são uma incógnita. Mesmo assim, é possível apostar que eles pautarão o comportamento do presidente e em que tom se dará sua interação com os demais Poderes.


Fernando Exman: Confiança, matéria escassa em Brasília

Governo deve repensar modelo de articulação política

O momento impõe ao governo uma reflexão sobre seus métodos de articulação política.

Não há mais quem defenda, na Esplanada dos Ministérios ou no Congresso, o modelo de relacionamento adotado pela administração Jair Bolsonaro com o Legislativo. O problema do presidente, contudo, é que esse debate interno ocorre em um momento em que a confiança talvez seja a matéria mais escassa na Praça dos Três Poderes. Uma mudança de rota, se o governo surpreender e por um outro caminho optar, não será fácil.

Isso não quer dizer que serão substituídos, a curto prazo, os atuais articuladores políticos do governo.

Como diz um frequentador dos principais gabinetes do Palácio do Planalto, é inquestionável que Bolsonaro mantém plenos poderes para trocar quem quiser de sua equipe. Para essa autoridade, porém, Bolsonaro enfrentaria dificuldades práticas para demitir alguns dos ocupantes dos principais cargos da máquina federal sem correr o risco de criar turbulências.

O presidente se cercou de amigos pessoais e quadros oriundos das Forças Armadas, diz essa mesma autoridade: “Não se pode nomear quem não se pode demitir”.

Foi nessa conjuntura que, em vez de dispensar, o presidente acabou transferindo o ministro Onyx Lorenzoni da Casa Civil para o Ministério da Cidadania. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, Onyx pegou na mão do antigo colega da Câmara dos Deputados e o ajudou a percorrer o país, participar de eventos políticos e de encontros com empresários.

Onyx integrou o núcleo de coordenação da campanha que saiu vitoriosa das eleições de 2018, o que lhe deu gabarito para ocupar um lugar de destaque no governo. Já na transição desempenhou papel importante no embate com a oposição e como porta-voz de uma administração de ruptura.

No entanto, equivocou-se ao imaginar que teria facilidades em manter sob seu controle tanto a gestão do governo quanto a articulação política.

Outro erro, este coletivo, foi acreditar que negociações com as bancadas setoriais seriam suficientes para garantir a aprovação da agenda legislativa de interesse do governo. Essa decisão foi tomada depois de longas discussões entre os formuladores da estratégia da campanha e do programa de governo de Bolsonaro.

Um participante desses debates cita a visão histórica que fundamentou a formatação do atual modelo de interação entre Congresso e Executivo. Na avaliação de aliados do presidente, o senador Fernando Collor sofreu um impeachment por não possuir uma “modelagem” de articulação e ter acreditado que contaria com o eterno suporte de determinados partidos, principalmente do PFL. O fracasso de seu plano econômico teria selado seu destino político, sentenciam.

Já o ex-presidente Itamar Franco seguiu seu “instinto mineiro”. Incorporou no governo o PSDB em lugar de destaque e, sinalizando que não disputaria as eleições, conseguiu entregar a faixa presidencial para seu sucessor sem sofrer grandes danos pessoais.

A abordagem de Fernando Henrique Cardoso foi “sociológica”, segundo essa avaliação, destacando um feito do tucano: ele conseguiu um ponto de equilíbrio com menos partidos. Isso teria se devido, em parte, ao “caciquismo” que vigorava no PFL.

Na narrativa governista, o ex-deputado Luís Eduardo Magalhães garantia praticamente a plenitude dos votos de seu partido. O PSDB tinha menos votos no Parlamento, mas também ajudava a sustentar vitória nas votações. “Na PEC da reeleição, tiveram que usar o vale-tudo. O PT ficou olhando e disse: ‘Ah, quando eles precisam é assim que eles fazem, né?’”, prossegue um aliado do presidente.

A mesma fonte desenha a sistemática aplicada pelo PT, citando o escândalo do mensalão: “A proposta política dos petistas era a Esplanada toda para o PT e o resto dos partidos ia para o Banco Rural”.

Tal prática, porém, precisou ser substituída após as denúncias. “Descobriram nossa modelagem. Vamos ficar só com determinados ministérios e vamos entregar outros com porteira fechada. Os aliados pilotam o orçamento e a gente não olha, finge que não vê e eles fingem que a gente não sabe também. Mas os votos a gente vai ter”, emenda a fonte, simulando o que, na sua visão, seria o pensamento dos petistas naquela época. “Deu na Lava-Jato”, constatou em seguida.

Essa é a abordagem histórica que explica o discurso adotado por Bolsonaro meses antes da campanha eleitoral. O então deputado percebera que grande parte do eleitorado votaria em quem prometesse acabar com a promiscuidade na política.

Seguindo esse roteiro, Bolsonaro e integrantes da equipe econômica ofereceram os instrumentos para que o Legislativo pudesse ter, enfim, mais poder sobre o Orçamento. “Mas a imaturidade não traz harmonia, e independência sem harmonia resulta em crise”,
sentencia a fonte.

É justamente neste cenário de crise que o Executivo e o Congresso discutem o formato do Orçamento impositivo. Os dois Poderes poderiam aproveitar o ensejo para reformatar essa relação.

Uma solução mencionada por integrantes da base governista e do Executivo seria a intensificação do diálogo entre o governo e as bancadas estaduais. O problema é que, depois de demonizar os partidos políticos, o presidente Jair Bolsonaro rompeu com diversos governadores e não mantém um bom diálogo com vários outros.

Mesmo assim, ainda há espaço para uma trégua, tendo grandes obras de infraestrutura no centro de uma agenda comum. Com ela, o Executivo teria condições de fazer avançar projetos prioritários. Os congressistas poderiam ser transformados em protagonistas de solenidades de inauguração nos seus redutos eleitorais. Ambos os lados sairiam ganhando, e o governo federal ainda conseguiria evitar que um montante gigantesco de verbas públicas fosse mal alocado ou transformado em custeio.

Qualquer saída a ser construída exigiria a renovação da confiança entre os partícipes das negociações, algo difícil de se vislumbrar quando um dos lados abomina a política e transforma “acordo” em um verbete maldito.