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Fernando Canzian: Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda aos milhões e cai na miséria

Mais de 30 milhões deixam classificação; perspectiva para 2021 é de mais perda de renda nas classes D e E

Maior novidade da paisagem econômica brasileira no início deste século, a chamada classe C está sendo empurrada rapidamente de volta às classes D e E.

Ou, o que é pior, indo direto para a miséria pelas consequências da Covid-19 e da desorganização das políticas de mitigação da pandemia do governo Jair Bolsonaro (sem partido).

Pesquisas de diferentes órgãos revelam não só que dezenas de milhões de brasileiros retrocedem a situações mais precárias desde o ano passado mas que suas vidas podem continuar piorando em 2021.

Enquanto classes mais favorecidas começam a estabilizar a renda ou a obter ganhos, as classes D e E —cada vez mais numerosas— devem amargar nova queda de quase 15% em seus rendimentos neste ano.

Isso não só aumentará a desigualdade social brasileira mas retardará a recuperação econômica.

Mais pobre, a gigantesca população de baixa renda consumirá menos, exigindo menos investimentos e contratações de novos empregados pelo setor produtivo.PUBLICIDADE

Com a paralisação de muitas atividades em 2020 e a interrupção do auxílio emergencial em dezembro —só retomado em abril, com valores bem menores—, milhões de brasileiros estão despencando diretamente da classe C para a miséria.

Em 2019, antes da pandemia, o Brasil tinha cerca de 24 milhões de pessoas na pobreza extrema, ou 11% da população, vivendo com menos de R$ 246 ao mês. Agora, são 35 milhões, ou 16% do total, segundo a FGV Social com base nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios Contínua e Covid-19.

Entre esses novos participantes da pobreza extrema, muitos não se encaixam no clássico perfil do miserável brasileiro —oriundo de famílias muito pobres, desestruturadas e de baixíssima escolaridade.

A família de Noemi de Almeida, que estudou até o primeiro colegial, é uma das que fizeram um percurso rápido, e sem escalas, da classe C direto para a miséria.

Com renda domiciliar de quase R$ 4.000 antes da pandemia, ela, o marido e duas filhas agora vivem de doações para comer e moram em um terreno invadido no Jardim Julieta, na zona norte de São Paulo.

Ali, com redes de água e luz irregulares, ao lado de centenas de casas improvisadas, temem, dia e noite, acabar despejados e sem ter para onde ir.

Antes da pandemia, Noemi vendia quentinhas a alunos de uma faculdade na Vila Maria enquanto o marido trabalhava como garçom.

Sem aulas e com o fechamento do comércio, ambos ficaram sem renda, não tiveram mais como pagar o aluguel e agora ocupam, com outras 2.000 pessoas, a área invadida em meados de 2020.

Com os filhos longe da antiga escola, o casal tenta obter alguma renda vendendo água e refrigerantes. “Tem dias que ganho R$ 30. Outros, que não entra nada”, diz Noemi.

A poucos metros dela, Ingrid Frazão, que concluiu o ensino médio e que conseguia com o marido, até a pandemia, cerca de R$ 3.000 mensais, agora vive na mesma ocupação e depende, para se alimentar, de doações e de um sopão distribuído nas redondezas.

Antes o casal se sustentava com empregos formais (ela, faxineira; ele, instalador de alarmes) e conseguia bancar aluguel de R$ 700 mensais na região do Parque Edu Chaves, também na zona norte paulistana. Hoje, não têm a menor perspectiva de sair de onde estão.

No começo, a ocupação iniciada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) no Jardim Julieta tinha sido organizada para manter terrenos de 4,5 metros de frente por 9 metros de profundidade.

Mas a demanda da população foi tanta que eles foram encolhidos para 4,5 metros por 4,5 metros para acomodar mais gente. Segundo Valdirene Ferreira, uma das organizadoras do local, pessoas não param de chegar e há filas para tentar acomodá-las.

De acordo com a FGV Social, quase 32 milhões de pessoas deixaram a classe C desde agosto do ano passado, ápice do pagamento do auxílio emergencial pelo governo Bolsonaro, em direção a uma vida pior.

A classe E, com renda domiciliar até R$ 1.205, segundo os critérios da FGV Social, foi a que mais inchou: cresceu em 24,4 milhões de pessoas. Já a classe D (renda entre R$ 1.205 e R$ 1.926) aumentou em 8,9 milhões.

Embora o Brasil não possua uma classificação oficial para delimitar classes sociais, algumas dessas tentativas, como da FGV Social e da consultoria Tendências (ver quadro), enquadram as famílias de Noemi de Almeida e Ingrid Frazão —assim como outras encontradas pela Folha no Jardim Julieta e em ocupações no centro de São Paulo— como ex-participantes da classe C.

Mesmo usando parâmetros diferentes, ambas as classificações revelam o mesmo movimento: encolhimento da classe C, cuja expansão ganhou fama no governo Lula (2003-2011), e, agora, o inchaço acelerado das classes D e E —a última na estratificação e que engloba os mais pobres.

Marcelo Neri, diretor da FGV Social, compara a um “terremoto” a mudança brusca de patamar sofrida pela classe C desde o início da pandemia.

Em sua opinião, o auxílio emergencial foi muito mal calibrado: generoso demais em 2020 e insuficiente agora, quando a pandemia faz mais mortos e obriga estados e municípios a interromper atividades.

No auge do pagamento do auxílio, em agosto do ano passado, 82% das pessoas que eram consideradas muito pobres (renda per capita abaixo de R$ 246) um ano antes deixaram de sê-lo momentaneamente —para logo depois voltar à miséria. Em muitos casos, encontram-se hoje em situação pior do que antes.

“O governo acabou produzindo muita instabilidade, o que é péssimo, em particular, para os mais pobres”, diz Neri. “A generosidade de 2020 mostrou que o governo não foi sábio, pois agora não tem dinheiro para socorrer os que mais precisam em um momento muito difícil.”

No ano passado, o auxílio emergencial foi pago entre abril e dezembro empregando R$ 293 bilhões (R$ 600 ao mês inicialmente, e depois R$ 300, a 66 milhões de pessoas).

Mas a nova rodada deste ano tem previsão de duração de só quatro meses e de somar R$ 44 bilhões —15% do total de 2020 (pagando R$ 250, em média, a 45,6 milhões de pessoas).

O auxílio emergencial menor mais a lentidão na vacinação contra a Covid-19 no Brasil por ​falta de planejamento federal devem redundar em recuperação econômica lenta, que afetará sobretudo os mais pobres, ampliando a desigualdade.

Segundo Lucas Assis, economista da Tendências, a massa de rendimentos (salários, Previdência, programas sociais, etc.) das classes D e E deve encolher 14,4% neste 2021.

Já a da classe A (empresários, funcionários públicos, etc.) pode crescer 2,8%, sobretudo por causa da recomposição das margens de lucro que os empregadores vêm perseguindo.

Com menos renda disponível e cada vez mais numerosas, as classes D e E, que normalmente gastam imediatamente quase tudo o que ganham, não devem funcionar como grandes propulsoras da atividade econômica neste ano.

“Pior remuneradas, ainda mais informais do que antes e diante da inflação de alimentos e combustíveis, essas parcelas da população terão pouca renda disponível”, afirma Assis.

Outra pesquisa, da consultoria IDados e publicada pela Folha, mostrou que oito em cada dez famílias com rendimento mensal superior a R$ 5.225 também perderam renda no último trimestre de 2020, na comparação com o mesmo período de 2019.

Diante da realidade dos baixos rendimentos do Brasil, no entanto, essas famílias podem ser consideradas como pertencentes às classes média, média-alta e alta —uma minoria, portanto, no país.

Por isso é que preocupam os efeitos da rápida degradação das condições da numerosa classe C, pois considera-se crucial que ela faça o caminho de volta para que o país engate um ritmo de crescimento mais acelerado.


Fernando Canzian: Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década

Com fim do auxílio emergencial, total de pobres dispara e supera o de 2019

Com o fim do auxílio emergencial em dezembro, 2021 começou com um salto na taxa de pobreza extrema no Brasil. O país tem hoje mais pessoas na miséria do que antes da pandemia e em relação ao começo da década passada, em 2011.

Neste janeiro, 12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246 ao mês (R$ 8,20 ao dia), linha de pobreza extrema calculada pela FGV Social a partir de dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (Pnads) Contínua e Covid-19.

No total, segundo projeção da FGV Social, quase 27 milhões de pessoas estão nessa condição neste começo de ano —mais que a população da Austrália.

Trata-se de um aumento significativo na comparação com o segundo semestre de 2020, quando o pagamento do auxílio emergencial a cerca de 55 milhões de brasileiros chegou a derrubar a pobreza extrema, em agosto, para 4,5% (9,4 milhões de pessoas) —o menor nível da série histórica.

A taxa neste começo de década é maior que a do início da anterior (12,4%) e que a de 2019 (11%).

O efeito negativo da pandemia sobre a renda dos mais pobres já tenderia a ser prolongado levando-se em conta a recuperação difícil que o Brasil tem à frente (quase sem espaço no Orçamento público para novas rodadas de auxílio emergencial), o aumento das mortes pela Covid-19 e o atraso no planejamento da vacinação.

O pagamento do auxílio emergencial custou cerca de R$ 322 bilhões, a maior despesa do Orçamento de Guerra contra a Covid-19.

Com essa e outras medidas emergenciais, em 2020 a dívida pública saltou 15 pontos, atingindo 89,3% como proporção do PIB e R$ 6,6 trilhões —ambos recordes que levaram à deterioração no perfil de refinanciamento.

Mas, além do aumento da pobreza no presente, a pandemia deve impor perdas futuras de renda aos mais jovens, sobretudo os pobres, que acabaram perdendo boa parte do ano escolar de 2020.

Em média, cada ano de ensino a mais chega a representar ganho de 15% no salário futuro; e 8% mais chance de conseguir um emprego.

Em 2020, no entanto, os alunos da rede pública tiveram a metade das atividades em relação a anos normais, segundo dados da FGV Social e das Pnads. A redução nas escolas privadas foi bem menor --o que implicará em aumento, nos próximos anos, da desigualdade entre ricos e pobres.

O aprofundamento das disparidades também se dará regionalmente. Na rica Santa Catarina, por exemplo, só 2% dos alunos de escolas públicas e privadas deixaram de receber material para atividades em casa na pandemia. No pobre Pará, foram 42%.

No geral, os jovens, os sem escolaridade, os nordestinos e os negros foram os que mais perderam renda do trabalho na pandemia (veja quadro). Hoje, cerca de 35% dos jovens brasileiros nem trabalham nem estudam —os chamados "nem nem" eram 25% no final de 2014.

"É um péssimo começo de década", resume o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. "Ao longo dos últimos muitos anos, como um relógio, tivemos aumento nos anos de estudo, com impactos positivos na renda e na queda da desigualdade. Desta vez, isso foi interrompido."

Neri lembra que, ao encontrar um mercado de trabalho deprimido nos primeiros anos em que buscam colocação, os jovens acabam tendo a renda futura muito comprometida.

O aumento da taxa de pobreza complica o cenário. Como os pobres consomem toda a renda que recebem, o fato de um número significativo não estar trabalhando ou ganhando trava a aceleração do crescimento econômico.

Neste momento, a volta da incerteza sobre a plena reabertura da economia afetará sobretudo o setor de serviços, responsável por 2/3 do PIB e onde os pobres mais atuam.

Assim, algumas consultorias e bancos já começam a rever previsões de crescimento para 2021. O Bradesco, por exemplo, cortou de 3,9% para 3,6% a alta estimada do PIB, embora ainda veja como positivos o ciclo de recomposição de estoques, a poupança precaucional de quem recebeu o auxílio emergencial e alguns sinais de recuperação no mercado de trabalho.

Outro limitador da recuperação pela via do consumo das famílias —responsável por 65% do PIB— é o aumento da inflação, especialmente para os mais vulneráveis.

Em 2020, a inflação para as famílias com renda entre 1 e 2,5 salários mínimos atingiu 6,3%, segundo o IPC-C1 (Índice de Preços ao Consumidor - Classe 1, da FGV). Dentro do índice, os preços dos alimentos dispararam 15,4%.

Segundo cálculos do Diesse (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o valor da cesta básica em São Paulo em relação ao salário mínimo (R$ 1.100) é o maior em 15 anos —o que compromete a capacidade de consumo das famílias.

A partir de critérios distintos, o economista Naercio Menezes, do Insper, também calcula que a taxa de pobreza neste começo de 2021 seja maior que a do fim de 2019.

Assim como Neri, ele prevê que o impacto da falta de aulas durante a pandemia vá ser significativo, capaz de reverter boa parte dos avanços na educação e na renda dos mais pobres nos últimos 20 anos.

Segundo seus cálculos, sem o auxílio emergencial no ano passado, os miseráveis teriam chegado a quase 20% dos brasileiros (42 milhões).

Menezes não acredita, porém, que a pobreza siga aumentando de forma significativa, a não ser que a pandemia exija novamente períodos muito longos de forte distanciamento social.

"A partir de outubro, quando o valor do auxílio foi reduzido de R$ 600 para R$ 300, as pessoas voltaram a procurar trabalho remunerado. Mas há risco de isso ser interrompido caso o número de mortes mantenha-se elevado", diz.

Nos três meses até novembro, que coincidiram com o relaxamento das medidas de distanciamento, a população ocupada cresceu 4,7% e chegou a 85,6 milhões de pessoas, um aumento de 3,9 milhões ante o trimestre anterior.

A ocupação maior deu-se sobretudo na informalidade, onde concentram-se os mais pobres que conseguem algum tipo de trabalho. Os informais representam hoje 39% dos ocupados, mas podem sofrer novamente com a volta da restrição à circulação.

No mercado formal, 2020 surpreendeu e fechou com saldo positivo de 142,7 mil vagas. Daqui para a frente, porém, o principal mecanismo de defesa do emprego com carteira assinada (estabilidade por algum tempo a quem teve salário e jornada reduzidos) perderá a validade.

"O mercado formal reagiu bem até o final do ano, muito em razão das regras mais flexíveis da reforma trabalhista [de 2017], mas a tendência é desacelerar com a piora da pan- demia", diz José Márcio Camar-go, economista da PUC-Rio.

Em sua opinião, os próximos meses serão críticos, marcados por duas correntes contrárias: de um lado, o vírus mais transmissível exigindo distanciamento; de outro, a ampliação da vacinação.

"O certo é que o Brasil e o mundo sairão disso mais desiguais. Empresas e trabalhadores mais produtivos e com reservas sairão na frente. E, infelizmente, não se resolve um problema de desigualdade dessa magnitude apenas com políticas de transferência de renda."


Fernando Canzian: Com economia, Bolsonaro pode ser duplamente cruel com a esquerda

Única coisa que nos afasta do crescimento é saber de onde tiraremos os R$ 300 bi para fechar as contas

Não são pequenas as chances de Jair Bolsonaro dar certo na economia. E de implementar por um bom tempo uma agenda de retrocessos em outras áreas. Sobretudo em temas caros à esquerda.

Além de ter perdido a eleição, a esquerda pode ficar à deriva por um longo período caso a equipe de Bolsonaro consiga entregar o contrário do que o PT propôs na campanha —mais gastos estatais para tirar o país da crise e a não urgência na reforma da Previdência.

O paradoxo hoje é o seguinte: o Brasil nunca esteve tão quebrado, precisando de quase R$ 300 bilhões por ano para conter a trajetória explosiva da dívida pública. Por outro lado, raramente teve condições tão propícias para voltar a crescer.

Apesar do endividamento estatal recorde (próximo a 80% do PIB), os juros básicos pagos a quem financia a dívida pública (todos os que têm alguma aplicação no banco) estão em 6,5% ao ano. Com uma inflação de 4%, o juro real é de 2,5% --algo muito baixo para nossos padrões.

Há uma capacidade produtiva inutilizada nas empresas de 25%, ante a média mais apertada pré recessão de 17%. Isso permite que o consumo volte a crescer —e as empresas a produzir mais— sem pressões sobre a inflação.

No setor externo, que no passado nos levou repetidamente ao FMI, a situação é invejável. Há US$ 380 bilhões em reservas (acumuladas pelo PT) e expectativa de saldo comercial acima de US$ 60 bilhões neste ano —valor próximo ao que deve entrar também em investimentos.

Em resumo, a única coisa que nos afasta do crescimento é saber de onde tiraremos os R$ 300 bilhões para fechar as contas. Eles podem vir de uma mistura de corte de gastos, aumento de impostos e de uma arrecadação maior caso o crescimento acelere.

Na equipe montada por Paulo Guedes (Economia) encontram-se alguns dos melhores técnicos da praça. Muitos são funcionários de carreira que têm, há anos, um diagnóstico bastante coerente dos problemas. Entre eles:

1) a produtividade do trabalho cresce em ritmo muito lento, com alta de apenas 17% em 20 anos, ante 34% na média dos países desenvolvidos;

2) gastos com a Previdência equivalentes a 8% do PIB, mais que o dobro do percentual em países com demografia parecida com a nossa;

3) despesas da máquina federal que dobraram para 19,5% do PIB nos últimos 25 anos, também pela remuneração de servidores, que aumentou até três vezes acima do que é pago no setor privado.

Atacar esses pontos exigirá mexer diretamente na máquina pública e em quem forma as bases dos partidos de esquerda no Brasil, como funcionários públicos representados pela CUT e seus sindicatos.

Se der certo, Bolsonaro não só pode alijar por um bom tempo a esquerda do poder. Mas chegar a isso minando justamente o seu principal terreno.

*Fernando Canzian é jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.


Fernando Canzian: Na contramão do mundo, Brasil se endivida para ampliar sua crise

Dez anos depois da Grande Recessão, patinamos em meio a gastos insustentáveis

Na sequência da quebra do Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, estava em Nova York para acompanhar os efeitos da maior falência corporativa dos EUA, que pulverizou o banco com 158 anos e 25 mil funcionários.

Logo estaria claro que a crise, chamada depois de Grande Recessão, duraria anos. Na chegada, olhava para cima, via os prédios de Citibank, Merrill Lynch e Bank of America e pensava: “Quebrados”.

Em questão de dias, a crise iria de Wall Street para a Main Street (a rua principal, da economia real) e arrastaria gigantes como General Motors, Ford, General Electric e centenas de empresas.

O trabalho nos EUA duraria quase dois anos, e a crise, mais uns três para arrefecer. Antes, ela varreria boa parte da Europa, sobretudo os países do Sul, como Portugal, Espanha, Itália e Grécia.

Com a chegada do euro em janeiro de 2002, essas economias se endividaram para valer com a garantia do Banco Central Europeu e viveram, assim como os americanos faziam há muito tempo, além de suas possibilidades.

Antes da crise, enquanto nos EUA comprava-se imóveis financiados sem parar e empacotava-se essas dívidas em produtos financeiros vendidos ao redor do mundo (tendo como garantia o pagamentos dos empréstimos), os europeus se endividaram para ampliar suas empresas e infraestrutura. E as famílias, para aumentar seu padrão de vida em velocidade alucinante.

A crise de 2008, que agora completa dez anos, foi, portanto, uma crise relativamente simples de entender. Apesar de cifras nos trilhões e de siglas e nomes complicados como Tarp, CPP, CDO e “subprime”, ela pode ser resumida em uma palavra: endividamento.

Bancos, empresas e famílias estavam extremamente endividados até 2008 e demandariam a maior operação conjunta da história dos principais bancos centrais do mundo (Federal Reserve e Banco Central Europeu à frente) para salvá-los.

Eles não só baixaram suas taxas de juros a níveis negativos (abaixo da inflação) como injetaram trilhões de dólares nos mercados comprando títulos de empresas e governos em dificuldades.

Foi isso o que salvou o mundo de uma depressão: os governos se endividaram para socorrer empresas e bancos.

Já as famílias tiveram o efeito colateral positivo de não perderem mais empregos do que já vinham perdendo. E o negativo de, ao longo dos próximos muitos anos, terem de sustentar esse endividamento público com seus impostos.

Dez anos depois do início daquele desastre global, o mundo cresce de novo e, nos EUA, a discussão agora é se a economia não está quente demais. A ponto de engendrar uma nova crise a partir de mais endividamento de empresas e famílias.

Em tese, esse não é um problema difícil de resolver. E os bancos centrais de EUA e União Europeia já estão preparados para elevar os juros mais rapidamente e esfriar um pouco as coisas, antes que uma nova bolha de consumo e dívidas se forme.

Infelizmente para o Brasil, esse processo se dá em um momento muito ruim, quando constatamos que perdemos mais uma década em meio a crises e baixo crescimento.

E que temos pela frente uma série de ajustes a serem feitos justamente quando os países ricos precisarão esfriar um pouco, dificultando nossa vida.

Assim como ocorreu no mundo desenvolvido, nossa crise atual também é de endividamento, mas público. Hoje, o Brasil opera com um déficit fiscal de cerca de 8,5% e uma dívida de 77% como proporção do PIB.

Nosso endividamento se aproxima rapidamente da média dos países europeus. Mas, ao contrário do Brasil, eles não só já deixaram a crise para trás como têm hoje superavit em suas contas (casos de Espanha, Portugal e Itália).

Pior: no Brasil, boa parte do aumento da dívida e do déficit não ocorre para nos livrar de uma crise. Mas para nos afundar ainda mais nela, pagando salários altos a algumas castas de servidores e cobrindo um sistema previdenciário em que as contas já não fecham mais.

Se você nunca viu, não deixe de assistir a esse vídeo impagável dos ingleses John Bird e John Fortune da época da crise do “subprime” nos EUA. Menos de nove minutos para entender tudo.

* Fernando Canzian é jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.