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Fernando Abrucio: Se pudesse, Bolsonaro mandaria embora funcionários do Ibama e da Funai

A estabilidade serve para garantir a profissionalização do serviço público e não para tornar inimputáveis os ocupantes dos cargos

O Executivo federal apresentou um conjunto de propostas de reforma administrativa, algumas já presentes numa PEC enviada ao Congresso, outras que ficarão para legislação posterior. Em linhas gerais, um diagnóstico sintético desse conjunto de medidas revela uma mistura de várias coisas: ações norteadas pela experiência internacional de reformas, proteções a corporações fortes do funcionalismo, medidas concentradoras de poder nas mãos da Presidência da República e várias lacunas ou confusões de diagnóstico, em particular uma enorme incompreensão em relação ao funcionamento dos serviços públicos num país como o Brasil. Mais do que isso, falta visão sobre o que deve ser o Estado brasileiro.

Há avanços no projeto vinculados, primeiramente, aos benefícios pagos aos funcionários públicos, que se expandiram ao longo do tempo e se tornaram, no mais das vezes, desvinculados do desempenho efetivo da burocracia. O ministro Bresser Pereira já tinha começado a limpar esse terreno, mas ainda há grandes problemas neste quesito. Também deve se atacar o uso completamente equivocado da ideia de isonomia que se alastrou pela gestão de pessoas do setor público. Um exemplo nesta linha foi a multiplicação de carreiras e o crescimento do salário inicial no plano federal.

O Executivo federal pretende mudar esse padrão, embora suas propostas, na forma em que foram apresentadas, ainda precisem ser mais bem lapidadas. A ideia de vínculo de experiência é um exemplo de proposição mal formulada. Óbvio que é preciso modificar o estágio probatório, que no mundo todo serve para formar e avaliar o funcionário público e sua continuidade no Estado, enquanto no Brasil nenhuma dessas duas coisas é feita. Porém, o que foi apresentado não deixa claro nem a formação nem a avaliação que seriam feitas.

A leitura do projeto global de reformas dá a impressão de uma proposta “pela metade”, de um reformismo incompleto. Por exemplo, o Executivo federal evitou tocar nos direitos dos atuais servidores públicos, bem como deixou em aberto os efeitos da reforma para os outros Poderes e para os demais entes federativos. Alguns podem dizer que é uma estratégia política para poder aprovar outras medidas importantes, embora mais do que uma forma de garantir o apoio dos parlamentares, a razão desse cálculo seja principalmente evitar danos eleitorais ao presidente Bolsonaro ou o aumento de seus problemas com a Justiça.

A opção reformista precisa alcançar todos os entes federativos e Poderes, e evitar que a limitação das mudanças aos futuros burocratas não crie dois mundos dentro do funcionalismo, gerando um sentimento de privilégio que poderá atrapalhar o bom desempenho governamental, além de gerar uma visão negativa junto à opinião pública. Aqui, a lição da reforma da Previdência não foi aprendida: nem todos os Estados mudaram suas regras e se os que se omitiram quebrarem, a União terá de salvá-los para manter os serviços públicos aos cidadãos que mais necessitam deles. Efeitos semelhantes poderão acontecer na reforma administrativa se não for criada uma maior simetria entre instituições e entre membros do funcionalismo.

A proposta de dar maior liberdade ao Executivo federal em montar sua estrutura administrativa é uma forma perigosa de concentração de poderes. Trata-se do retorno ao modelo de administração pública que vigorava no regime militar. A lógica democrática exige um jogo de “checks and balances” entre os Poderes e o presidente Bolsonaro tem dificuldades com esse modelo. Claro que é necessário flexibilizar muitas das estruturas enrijecidas do Estado brasileiro, no entanto, isso deve ser feito sem acabar com os controles institucionais adequados, tanto do Legislativo como do Judiciário. Se isso não existisse hoje, parte dos órgãos ambientais, de defesa dos índios, da área cultural e até mesmo no campo educacional já teriam sido extintos pelo governo atual. Qualquer flexibilização tem de cumprir os objetivos inscritos na legislação maior do país, que define algumas políticas que são essenciais, e seu desmonte deve ser impedido pelas instituições e pela sociedade.

A definição dos papéis do Estado e de como ele deve ser organizado passa não só pelo modelo de administração pública, mas também pela forma como ela lida com a política. É fundamental garantir um espaço autônomo aos políticos eleitos, mas também se deve preservar funções estatais que não se confundam completamente com o governo de ocasião. Mais do que isso: os eleitos devem nomear pessoas para postos-chave seguindo regras prévias que garantam transparência, competição entre postulantes e conhecimento/experiência adequados para a função. Por isso, a proposta enviada é bastante tímida no que se refere à seleção dos altos quadros governamentais. Neste ponto, o Brasil ainda é muito pouco republicano e sabemos que a aliança com o Centrão não é um indício de que isso mudará.

Há um tema espinhoso no projeto, que deve ser enfrentado, mas que confunde conceitos e supõe uma solução simples para algo mais complexo: a questão da estabilidade do funcionalismo. Em primeiro lugar, nenhum país razoavelmente democrático e desenvolvido do mundo garantiu estabilidade à quase totalidade dos seus funcionários, como fez o Brasil. Há diferenças entre as nações sobre quais carreiras devem ter, e com certeza as funções-meio foram retiradas dessa regra. Se o Estado brasileiro tivesse adotado só essa máxima, a maior parte do funcionalismo teria contratos ao estilo CLT, que devem estabelecer condições dignas de trabalho como deveriam sempre existir do mesmo modo no mercado privado.

Uma segunda coisa é que se desenhou um modelo que separa estabilidade de avaliação de desempenho. Na verdade, o que a proposta governamental está dizendo, de forma sutil e envergonhada, é que as chamadas carreiras típicas de Estado não poderão ser efetivamente avaliadas para fins de demissão ou correção por insuficiência de desempenho. Isso é uma falácia, pois juízes e militares deveriam ser avaliados tanto quanto professores e médicos. Todos eles são essenciais para o Estado brasileiro, de maneira que precisam ser bem selecionados, ter bons programas de capacitação e motivação, bem como têm de ser avaliados e responsabilizados - e se necessário, demitidos. O país não consegue enxergar o que é óbvio em muitas democracias: a estabilidade serve para proteger e garantir a profissionalização do serviço público nas suas funções mais importantes, mas não para tornar inimputáveis os ocupantes dos cargos.

Claro que há a desconfiança em relação aos mecanismos de avaliação, dada a enorme tradição de politização do Estado brasileiro. Isso deve ser levado em conta, como também o fato que a avaliação deve ser múltipla, gerar formas de capacitação ou correção de atos e, ademais, ser feita da maneira mais independente possível. Alguns países criaram instituições específicas para realizar essa e outras tarefas mais estruturais da gestão de pessoas no setor público, buscando evitar a perseguição administrativa ou política. O Brasil pode aprender com esses modelos, contanto que queira efetivamente instalar um processo avaliativo que, de um modo ou de outro, vai diferenciar os funcionários e/ou equipes, dando-lhes benefícios ou responsabilizações diferentes ao longo do tempo. Isso deve valer ao professor e ao juiz, ao médico e ao militar. Só assim criaremos uma burocracia que serve ao público, e não a si mesma.

Excetuadas as funções-meio, a pergunta de quem deve ganhar a estabilidade é mais complexa. A resposta deveria começar pela listagem de quais são as funções-finalísticas que constituem as tarefas mais relevantes para o país no século 21. É inegável que militares, juízes e auditores fiscais são centrais para o funcionamento do Estado. Todavia, se o Brasil quiser se desenvolver segundo o que foi colocado na Constituição de 1988 e, principalmente, pensando no que garantirá um futuro melhor aos nossos filhos e netos, médicos, professores, forças de segurança, assistentes sociais, profissionais da área ambiental e da garantia dos direitos humanos básicos são imprescindíveis.

Alguém tem dúvida de que, se pudesse, Bolsonaro mandaria embora amanhã mesmo a grande maioria dos funcionários de ponta do Ibama e da Funai, que colocam suas vidas em risco diariamente? Olhando para os integrantes do Centrão e tomando-os como espelho dos governantes de grande parte dos municípios brasileiros, é bem provável que eles barganhassem politicamente a contratação de professores, médicos e assistentes sociais, como já fazem com o enorme contingente de cargos comissionados sob sua guarida. No fundo, a pergunta é a seguinte: como evitar que o Estado social brasileiro, com funções mais próximas do século XXI e não do XIX, não seja desmanchado pelo patrimonialismo que ainda corre nas veias de nossas elites?

A resposta para perguntas como essa vai exigir uma maior sofisticação legislativa, que vai além da lógica dicotômica. A solução aqui passa pela construção de uma visão sistêmica do Estado brasileiro, que combine os componentes republicano-democrático e o do desempenho governamental. Tal combinação, infelizmente, não está na base das propostas de reforma administrativa atuais.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Fernando Abrucio: A encruzilhada ideológica de Bolsonaro

O presidente quer ser um “mito” para seus seguidores ou continuar a governar o país? Depois da pandemia, será cada vez mais difícil assumir os dois papéis

As batalhas políticas do primeiro semestre deixaram marcas no governo Bolsonaro. Para que ele sobreviva e possa continuar com prestígio até o fim do mandato, mantendo alguma esperança de reeleição, precisará escolher com quem governar e de que modo. Caberá à Presidência escolher um caminho de governabilidade que reduza os efeitos danosos das contradições existentes entre seus apoiadores. Em poucas palavras, trata-se de uma encruzilhada entre dois conservadorismos, um de cunho revolucionário e outro, de viés tradicional. Juntar os dois por muito tempo será uma tarefa quase impossível.

A expressão conservadorismo revolucionário parece uma contradição em termos. Afinal, quando ser quer conservar, não se pretende fazer mudanças amplas e bruscas. Porém, o novo populismo de extrema-direita, presente em vários países e no bolsonarismo-raiz, tem como projeto enfraquecer ou destruir todas as instituições políticas de caráter liberal-democrático. Seus motes são a antipolítica, a luta contra o establishment globalista e a redução ao máximo da pluralidade ideológica, em especial com o aniquilamento da esquerda - os comunistas, classificação na qual cabe até George Soros.

Todas essas ideias visam à concentração do poder num líder carismático capaz de liderar uma revolução cultural baseada em valores mais conservadores (família patriarcal, religião e nacionalismo) que se somam ao culto à violência e a um individualismo darwinista, isto é, uma liberdade para os que mais fortes vençam. Esse é o ideário produzido pelos inspiradores intelectuais do bolsonarismo. É possível levar adiante esse conservadorismo revolucionário destruindo mais ou menos a democracia. De todo modo, a forma revolucionária de agir dos bolsonaristas-raiz exige que se cause turbulências contínuas no sistema político e nas principais instituições sociais, como a escola e os meios de comunicação de massa.

Os últimos seis meses foram repletos de acontecimentos políticos e sociais que colocaram a maior parte da população e as principais instituições contra Bolsonaro, limitando seus arroubos autoritários. O resultado dessa derrota bolsonarista colocou em jogo até a sobrevivência do presidente no cargo, além da forte pressão judicial contra seus filhos e apoiadores. Para manter seu mandato e continuar sendo peça-chave no tabuleiro político, Bolsonaro teve que se ancorar mais num outro grupo conservador, que é tradicional no Brasil há muito tempo.

Uma parte desse conservadorismo já estava próxima do bolsonarismo: os evangélicos, que tendem a ganhar mais prestígio daqui para diante. Mas havia uma outra parcela que estava fora do circulo mais íntimo do poder: o chamado Centrão, composto por políticos de vários partidos de direita e centro-direita. Trata-se de um bloco que varia de tamanho dependendo dos recursos que são distribuídos e do contexto político. O que os une é a combinação de fisiologismo com o realismo. Os parlamentares desse centrismo invertebrado apoiaram FHC e Lula, de modo que, embora professem valores geralmente conservadores, optam pelo apoio a quem lhes dá vantagens eleitorais. Dito de outro modo, não basta que Bolsonaro comungue das mesmas ideias morais. Será necessário entregar poder aos novos aliados e bem-estar a seus eleitores.

A convivência entre os dois conservadorismos ficará cada vez mais difícil dentro do governo Bolsonaro. É óbvio que o presidente vai tentar agradar aos dois lados, mas essa estratégia tem limites porque o grupo revolucionário é ideológico por excelência e terá dificuldades de aceitar o pragmatismo político dos conservadores tradicionais, e vice-versa. A batalha se tornará ainda mais forte porque houve um enfraquecimento do bolsonarismo-raiz e ele dificilmente responderá aos desafios do período pós-Covid-19.

Entre os fatores que enfraqueceram os conservadores revolucionários, quatro se destacam. O primeiro foi a derrota do discurso negacionista e anti-humanista frente à pandemia. A maioria da população ficou do lado da ciência, o sistema de Justiça amarrou as mãos de Bolsonaro no comando da política de Saúde e o número de mortes, que ainda se multiplicará nos próximos meses, deixará marcas em parcela importante da sociedade.

Derivado desse primeiro fator, um segundo elemento tende dificultar o uso da bússola do conservadorismo revolucionário: os eleitores, os políticos do Congresso, a comunidade internacional e mesmo os agentes do mercado local vão cobrar cada vez mais resultados das políticas públicas. Dois exemplos ilustram bem essa situação. No caso da política ambiental, o fracasso de suas ações vai ter terríveis consequências econômicas. Deixariam de vir investimentos internacionais para o país. A área de infraestrutura, que precisará da alavanca de capital estrangeiro, ficará a ver navios. E há ainda o grande risco do negacionismo ambiental impactar as exportações do país, especialmente do agronegócio.

O governo Bolsonaro terá que obter credibilidade internacional e mostrar resultados nas políticas de proteção ao meio ambiente. Para isso, terá de fortalecer decisões técnicas e se livrar dos conservadores revolucionários - que se mostraram, ademais, incompetentes. Vale frisar que além de melhorar os indicadores do país, será preciso reconquistar a confiança, algo que exigirá a criação de canais de diálogo com, pelo menos, uma parcela dos ambientalistas. Sem isso, o mundo não acreditará no Brasil. Uma mudança como essa exige pragmatismo e rechaço a ideologias.

A Educação é outro setor no qual o conservadorismo revolucionário só produziu destruição até agora, com efeitos na piora da qualidade e equidade do ensino que provavelmente apenas serão percebidos no médio prazo (talvez depois desse mandato), mas com efeitos políticos já de curto prazo. A lista de descontentes no atual momento é extensa. Famílias cujos filhos voltarão a escolas públicas em condições precárias; jovens que estão fazendo ou saindo do ensino médio e que ficaram descontentes com todo o processo de escolha das novas datas do Enem; integrantes das universidades públicas, que hoje combinam eleitores de classe média (professores e alunos) com uma parcela crescente advinda das cotas sociais e raciais, e das instituições privadas, onde os alunos estão abandonando cada vez mais os estudos por falta de recursos; e, finalmente, prefeitos, governadores e políticos locais de vários partidos, pois eles serão mais cobrados pela sociedade e não têm tido o apoio federal necessário.

Daqui pra frente, as falhas em políticas públicas vão ficar mais evidentes. Com um ano e meio de governo, o bolsonarismo, tomado principalmente pelo conservadorismo revolucionário, não foi capaz de melhorar ou produzir alternativas ao modelo vigente, de modo que chegará a hora e a vez dos cidadãos cobrarem mais pelos serviços públicos e pelos resultados das políticas. O Centrão sabe disso e, por isso, logo, logo, além de cargos, demandará mais pragmatismo ao presidente para continuar no seu barco.

Um terceiro fator que colocará o bolosonarismo-raiz em frágil situação serão as pressões internacionais. Elas tendem a aumentar porque o Brasil se tornou um pária para parte da comunidade internacional, por conta de seus fracassos nas áreas de saúde, meio ambiente e direitos humanos, bem como em razão de sua postura contrária às ações multilaterais. O impacto internacional sobre o conservadorismo revolucionário virá, ainda, do enfraquecimento recente da extrema-direita em vários lugares do mundo. E se Trump perder a eleição presidencial, Bolsonaro terá de dizer que nem conhece seus amigos radicais.

Mas a maior derrota do extremistas que deram base ao bolsonarismo está no campo das instituições democráticas. O projeto mais autoritário advindo daí ganhou limites fortes, embora não se possa negar que Bolsonaro ainda tentará controlar instituições importantes, como no caso do Ministério Público Federal. Só que os conflitos institucionais vão permanecer, sobretudo porque há muitos esqueletos no armário da família Bolsonaro. Desse modo, não será mais possível permanecer no poder e, principalmente, governar, sem ser pragmático em relação às principais instituições políticas.

Nesta encruzilhada ideológica, a sobrevivência do bolsonarismo parece depender de sua migração mais explicita para o conservadorismo tradicional. O discurso em relação aos valores pode ser mantido, embora deva ser expresso de uma forma mais amena, mas será necessário negociar mais e evitar o extremismo nas políticas públicas. O Centrão quer o voto do povão, e não revoluções culturais.

Abandonar o conservadorismo revolucionário não é tão simples, todavia. Essa mudança traz basicamente dois custos: a possível perda de apoiadores mais fiéis e, especialmente, o fato de que o discurso antipolítica se tornará cada vez mais “fake” junto ao eleitorado em geral. Fica a pergunta: Bolsonaro quer ser um mito para seus seguidores ou continuar governando o Brasil? Depois da pandemia, talvez seja cada vez mais difícil assumir os dois papéis, mas, conhecendo a personalidade do presidente (e de seus filhos), ainda não é possível dizer qual caminho ele irá adotar.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Fernando Abrucio: Destruição escolhida por Bolsonaro remete à maneira de agir das traças

O caminho escolhida por Bolsonaro e seus seguidores está mais para a maneira de agir das traças

O bolsonarimo é uma ideologia baseada no combate constante às instituições políticas e políticas públicas construídas pela democracia brasileira desde 1988. O então candidato Bolsonaro e sua entourage não enganaram ninguém: xingaram na campanha a grande mídia, a “velha política”, o modelo “paternalista” de programas sociais e até mesmo propuseram uma “invasão do STF” para controlá-lo. O maior temor de todos os democratas era que esse ideário produzisse uma quebra democrática, seja no sentido clássico, com o apoio dos militares, seja reduzindo o poder das instituições ou alterando drasticamente suas regras, como nos casos recentes da Hungria e da Venezuela.

O caminho escolhido pelos bolsonaristas, aparentemente, é outro. Trata-se fundamentalmente de destruir, mais do que construir. E tal destruição está mais para a maneira de agir das traças, que comem as roupas de forma paulatina e desorganizada, por vezes traçando cotidianamente pequenas partes que ninguém percebe, por vezes puxando inesperadamente fios grandes que geram uma enorme comoção política. Não é o método de uma retroescavadeira, para lembrar o objeto do momento. É algo muito mais caótico, que traz perigos para a democracia porque corrói seu suporte, mas não diz que vai substituir o regime político, dando a impressão de que estamos em tempos de normalidade democrática.

O que explica a adoção desse método das traças vai além da adoção de valores autoritários, ou pelo menos da ausência de crenças democráticas dentro do atual grupo dominante. Essa estratégia foi escolhida porque falta a Bolsonaro um modelo de como governar o Brasil, diferentemente, por exemplo, de Putin na Rússia, cujo projeto autoritário é construído com a frieza racional do jogo de xadrez. Por vezes, o presidente até sonha com o retorno a algo mais parecido com a ditadura militar, mas, mesmo assim, ele e seus apoiadores não saberiam como reproduzir essa (terrível) experiência histórica no momento atual brasileiro e mundial.

Assim, mesmo que defenda um ideário conservador do ponto de vista cultural e proponha ambiguamente e sem muita convicção uma visão ultraliberal para a economia, o bolsonarismo não tem clareza de como isso se materializaria em termos de políticas públicas e, principalmente, de organização institucional. As evidências desse fenômeno de ausência de um projeto estruturado de governo estão no grande número de mudanças em cargos estratégicos do governo federal, nos recorrentes zigue-zagues das propostas de políticas públicas, no recorde presidencial de derrotas legislativas e na enorme concentração de poder na figura pessoal (mais do que institucional) de Bolsonaro, que só confia de fato em seus filhos e faz questão de mostrar que nenhum de seus auxiliares mais próximos está seguro em sua posição. Em poucas palavras, o presidente quer que todos o obedeçam como em uma seita, mas não sabe como organizar sua “igreja” para chegar aos fins desejados.

Essa aparente fragilidade no campo estratégico, no entanto, não reduz a força e os riscos presentes no bolsonarismo. O ponto central aqui é que embora não tenha um projeto de governo, Bolsonaro tem um projeto de poder, estruturado principalmente na destruição das instituições e políticas públicas construídas desde 1988 e na construção de “inimigos” que estariam por trás delas. No fundo, há nessa lógica uma proposta eleitoral clara: se todos os outros só erram e atrapalham o “povo”, só sobra a escolher a continuidade do atual presidente, que esconde seu desgoverno por meio da batalha contínua para destruir e desmoralizar os demais.

O jogo bolsonarista de destruição paulatina da institucionalidade e das práticas democráticas passa por cinco fronts. O primeiro é o da relação com o Congresso Nacional. É preciso mostrar que ele não é legítimo e, de tempos em tempos, criar um episódio para colocar a sociedade contra os congressistas. Como a parte majoritária do Legislativo tem aceitado aprovar medidas que evitam a ingovernabilidade do país - bem diferente do que ocorreu no segundo governo Dilma, quando Eduardo Cunha comandava o processo legislativo -, Bolsonaro tem podido, por ora, ser um revolucionário incendiário sem sofrer impeachment. É provável que após as eleições municipais esse equilíbrio político não seja mais possível.

O segundo front dessa estratégia destrutiva reside na relação com o Supremo Tribunal Federal. Novamente, após períodos de calmaria, bolsonaristas precisam inventar algum fato para desmoralizar o STF. Neste caso, a ação tem ocorrido mais nas redes sociais, porém, isso não é menos perigoso institucionalmente, porque é um processo subterrâneo e molecular de deslegitimação paulatina de vários dos ministros. A ideia de que novos indicados deveriam ser “terrivelmente” vinculados aos valores cristãos é uma forma de dizer que o atual quadro do STF não segue os padrões morais da sociedade brasileira. Há aqui o risco enorme de alimentar a ação voluntarista de algum ativista mais radical contra membros da Corte.

O método das traças foi muito usado nas últimas semanas num terceiro front, o federativo. Bolsonaro entrou neste embate com a Federação por três razões, embora continue citando falsamente o mantra “Mais Brasil, menos Brasília”. O primeiro é que é possível dividir as culpas pelos fracassos e incompetências do governo federal com os Estados e munícipios. Se a gasolina aumenta, óbvio que a culpa é dos Estados, gritaria um daqueles seguidores que ficam esperando o presidente dizer qual é a ordem do dia. Se a educação não melhora, claro que a culpa é dos municípios, e se propõe então a criação de um novo modelo de alfabetização que foi feito escondido do grande público, mas que se sabe que não será executado porque os responsáveis por sua implementação - os prefeitos, basicamente - foram completamente ignorados durante o processo. E se há problemas de segurança pública, os culpados são os governadores, mesmo quando a culpa disso esteja no fato de que o bolsonarismo esteja incitando a rebelião das Polícias Militares, com táticas que, aliás, lembram a ação das milícias.

A luta contra os governadores tem uma segunda razão de ser, de acordo com o projeto de poder bolsonarista. Ao longo da história brasileira, os Estados sempre tiveram um papel importante como contrapeso democrático frente ao governo federal. No momento, os chefes dos Executivos estaduais são capazes de apresentar discordâncias e críticas ao presidente Bolsonaro com maior legitimidade e influência do que os líderes partidários, pois representam um amplo espectro ideológico, inclusive com membros da oposição mais à esquerda.

A Federação é uma pedra no sapato de Bolsonaro, por fim, porque alguns governadores podem ser candidatos a presidente ou importantes lideranças no processo de sucessão presidencial. Dificilmente haverá harmonia entre o governo federal e os governos estaduais de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, porque seus governantes estão no caminho do projeto de reeleição bolsonarista. Claro que isso atrapalhará o país e os cidadãos desses Estados, bem como terá efeitos negativos sobre a própria gestão presidencial, uma vez que quando as políticas fracassam ao longo do território nacional, o presidente também é responsabilizado.
Mas o que importa se o governo não funciona quando está em jogo um projeto de poder maior?

Entre os cinco fronts, aquele mais visado pelo bolsonarismo, e o que dá mais prazer ao líder e liderados desse movimento, é aquele contra o PT e o lulismo. O antipetismo foi o grande eleitor em 2018 e Bolsonaro planeja que isso continue em 2022, sendo ele o portador da salvação contra essa “praga”. Para manter essa narrativa, vale até dizer, mentirosamente, que os petistas estariam mais interessados em proteger os milicianos do que a família Bolsonaro, como o séquito bolsonarista tem espalhado pelas redes sociais.

Interessante notar que manter a polarização com o PT é a melhor forma de o bolsonarismo evitar que outras forças políticas surjam contra o atual projeto de poder. Na verdade, Bolsonaro, e agora Moro, insistem na briga contra Lula porque querem mostrar que só eles podem ganhar essa batalha. Só que, tal como as traças, essa estratégia comeria não só os fios petistas, mas também outras partes do sistema que poderiam surgir como alternativa. Dessa maneira, os bolsonaristas pretendem reduzir o tamanho da pluralidade política brasileira e enfraquecer a institucionalidade democrática.

A logica da destruição bolsonarista tem seu capítulo mais triste na tentativa de desmoralizar parcelas da sociedade que se colocam contrárias às ações governamentais. Aqui, ONGs e imprensa são os principais inimigos. Para o bolsonarismo, deslegitimizar atores sociais relevantes é uma parte essencial de seu projeto de desinstitucionalizaçao do país. Mesmo que alguns cientistas políticos só olhem para a estrutura formal do Estado e digam que está tudo normal, o fato é que a democracia se enfraquece muito, e pode até morrer comida pela traças, quando a sociedade não é livre para cobrar as instituições. Eis aqui o maior perigo da estratégia de poder do presidente Bolsonaro.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Fernando Luiz Abrucio: O desmonte do serviço público

Visão do governo Bolsonaro sobre a reforma administrativa está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania

A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do país.

Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.

Três elementos gerais podem ser destacados como marcas negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua filhocracia.

A qualidade da gestão pública é outro tema relevante, envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.

Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se, apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa, num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até 1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.

O balanço das características gerais da administração pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.

Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares, Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há desenvolvimento e melhoria da sociedade.

Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos construídos a duras penas.

Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a escolaridade e a expectativa de vida da população.

Parte disso veio de muitos funcionários públicos concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho com diploma.

A democratização completa esse ciclo de transformações da administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus direitos - e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.

Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.

O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da motivação dos funcionários - se o rendimento inicial é próximo do final se reduz a disposição para melhorar - e de “accountability” perante a sociedade.

A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.

Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país. Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta quando se fala do funcionalismo em geral.

A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes, mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da administração pública.

Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do Executivo. Várias dessas posições deveriam ter um comitê para avaliar os méritos dos indicados e processos de certificação que indicariam se aquela pessoa está apta à função. O uso desses mecanismos desfalcaria fortemente muitos dos ministérios do presidente Bolsonaro - em alguns casos, começando pelo próprio ministro.

Reformar a administração pública, ademais, é democratizar o Estado. Decerto que a saúde fiscal constitui um requisito para a boa gestão. Mas o serviço é do e para o público - daí vem a palavra. Sendo assim, as reformas necessárias no campo de recursos humanos não podem ser acompanhadas pela destruição dos conselhos de participação, nem pela redução dos gastos com saúde e educação, medidas que claramente estão na agenda atual do governo Bolsonaro, cuja visão está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Fernando Abrucio: A luta entre desigualdade e moralismo

Se o arco que vai do centro à esquerda quer lutar contra os retrocessos atuais, terá de mostrar que o combate à desigualdade pode ser o alicerce de uma nova ética pública

O Brasil é um dos países mais complexos do mundo. A variedade de seus problemas torna muito difícil escolher um único caminho ideológico como remédio a todos os males. Só que a disputa política geralmente produz a contraposição de visões de mundo. No momento, predominam duas delas que resumem bem as soluções colocadas à mesa. De um lado, um grupo que vai da esquerda até parte do centro defende que a agenda básica deve ser o combate à desigualdade. De outro, um agrupamento que capta parte da centro-direita e chega até à extrema-direita propõe que a questão central deve ser a reordenação moral da sociedade e do Estado brasileiros.

Obviamente que nenhuma liderança política vai dizer que é a favor da corrupção ou defender que não haja políticas públicas para os mais pobres. Posições tão extremas não estão em questão. Mas o embate político pode ser sintetizado pela luta entre a visão centrada no combate à desigualdade versus uma concepção mais orientada por questões morais, tanto públicas como privadas.

Somada à luta contra o autoritarismo, a redemocratização teve como slogan o resgate da dívida social. O país havia tido uma enorme transformação econômica desde o varguismo, porém, mantivera uma enorme desigualdade. Para mudar essa realidade, a sociedade levou uma série de demandas represadas aos constituintes e as lideranças políticas criaram aquilo que Ulysses Guimarães acertadamente chamou de Constituição cidadã. Assim, um cardápio amplo de direitos foi criado, buscando aumentar o acesso aos serviços públicos, principalmente aos mais pobres.

Construiu-se um consenso social democrata, que vigorou por mais de 20 anos, capaz de produzir várias medidas contra a desigualdade. A maioria no campo social, mas também se constituiu um olhar econômico preocupado não só com o crescimento, mas também com a redistribuição. O Plano Real seguiu esta trilha, bem como as políticas de salário mínimo.

Políticas como Fundef/Fundeb, ações do SUS (sobretudo na atenção básica), o Bolsa Família, as cotas sociais nas universidades, entre outras, foram medidas muito bem-sucedidas. Os indicadores sociais melhoraram bastante quando comparados à realidade da ditadura. O combate à desigualdade, no entanto, ainda tem muitos problemas. A qualidade da escola pública deixa a desejar, os mais pobres têm enorme dificuldade de marcar exames na rede de saúde e a população da periferia ainda sofre com as más condições habitacionais, de locomoção, acesso à cultura e, o mais importante, segurança. Vale ressaltar que a violência é um dos retratos mais fortes da desigualdade no Brasil: são os jovens negros os que mais sofrem com essa situação.

A luta contra a desigualdade não se resumiu às políticas sociais. Foram ampliados os direitos civis em medidas como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do Consumidor. Aumentou-se a igualdade também no campo dos direitos políticos, algo que começou ainda no governo Sarney com a permissão do voto ao analfabeto. Todas essas legislações, ademais, abriram as portas para que diversos grupos historicamente desfavorecidos buscassem seus direitos, incluindo aí demandas comos a da população indígena, das organizações LGBT e dos movimentos negro e feminista.

Mesmo com tais avanços, permaneceram regras e lógicas que garantiam privilégios a determinados grupos. Isso vale para o corporativismo do setor público, para benesses tributárias ou de crédito a empresas e, ainda, para forma como a população negra e pobre é tratada por parte do Estado brasileiro. De todo modo, a agenda da desigualdade foi predominante e teve bons resultados se levarmos em conta a profunda tradição escravocrata do país.

É inegável que a desigualdade ainda se constitui no maior problema do país quando analisamos os dados do IBGE e de outras pesquisas sobre as condições de vida dos brasileiros. Mas a partir de 2013, exatamente num ponto em que o Brasil tinha avanços de duas décadas em prol da igualdade, houve uma mudança na visão de boa parte da sociedade. O tema da moralidade ganhou terreno, com a ideia, primeiro, de que se deveria tornar o combate à corrupção o tema número um da agenda pública, e, num segundo momento, num questionamento sobre políticas sociais e a intervenção do Estado em assuntos privados, que devem ser resolvidos pelos indivíduos, suas famílias e suas associações religiosas.

O moralismo como guia da ação política não é algo novo na política brasileira. A UDN fez isso por quase duas décadas e sua ação teve como desaguadouro um golpe civil-militar. O PT das décadas de 1980 e 1990 também cresceu por ter se colocado como o paladino da ética e a eleição de Lula em 2002 estava tão ligado a esse discurso quanto ao combate à desigualdade. O jacobinismo que se desenvolveu nas últimas três décadas em parcelas do Ministério Público tem nítido DNA petista.

As sucessivas crises de corrupção durante o período do PT no poder foram um dos estopins das jornadas de junho de 2013. Decerto que as demandas eram mais amplas e difusas, mas o mote vencedor foi o da luta contra um sistema político que estaria carcomido e que precisava de uma reforma moral. Neste contexto, a Operação Lava-Jato tornou-se o espírito de uma época. Suas ações atingiram fortemente o petismo e outros políticos que a ele se aliaram. A prisão de importantes membros da elite brasileira e a revelação de alguns episódios de corrupção convenceram uma boa parte da população que estaria nesta visão de mundo a solução para os problemas brasileiros.

O lavajatismo ainda é o espírito de nossa época, todavia, outros elementos de moralidade foram colocados nesta agenda. Primeiro, a defesa de uma visão mais conservadora em relação aos costumes. Neste sentido, é interessante como o MBL, que fora criado para levar adiante a bandeira do liberalismo, abraçou muito rapidamente a censura a uma exposição num museu paulistano. Foram menos liberais do que pensavam ser, mas conseguiram maior apoio social porque havia uma onda conservadora crescente.

A defesa desses valores mais conservadores veio junto com o ataque a políticas públicas que, em tese, favoreceriam visões contrárias à moralidade do brasileiro, enfraquecendo as famílias. Dessa perspectiva vem a Escola sem Partido, a proposta de abstinência sexual como instrumento de combate à gravidez precoce, o ataque às agendas identitárias e a proposta de reduzir a separação entre Igreja - no caso, as evangélicas - e o Estado. Se o ministro Moro é o líder do lavajatismo, Damares é a representante mais orgânica da agenda moral no campo dos costumes.

O bolsonarismo soube se apropriar dessas duas vertentes da moralidade na eleição de 2018, embora esteja bem mais próximo do damarismo do que do morismo - até porque, muitos bolsonaristas participaram do patrimonialismo corrupto que dizem combater. Vários fatores explicam a vitória de Bolsonaro, mas com certeza no topo está a capacidade de abraçar e representar essa nova agenda moralizante, que em boa medida está guiando o governo contra o antigo predomínio da visão de combate à desigualdade.

Vale ressaltar outro ponto que o bolsonarismo acrescentou à essa nova agenda. Trata-se de uma defesa de uma ampla liberdade individual contra o “discurso vitimista” que, para os bolsonaristas, orientava a agenda de combate à desigualdade. Por esta lógica, Bolsonaro defende o uso amplo das armas, uma forte desregulamentação do trânsito, uma visão cultural contra o politicamente correto e o apoio às forças de segurança contra a bandidagem - voltamos aqui à Primeira República, quando a questão social era antes de tudo uma questão de polícia.

Bolsonaro acredita estar do lado do cidadão comum, que nas últimas décadas viu seu modelo tradicional de vida ser questionado. Neste sentido, seria preciso restituir a antiga moralidade, com a família, a religião e os papéis sociais de gênero bem definidos. É essa agenda, e não o liberalismo, o carro-chefe do governo.

A redução da relevância da agenda da desigualdade já está muito clara. O desastre da política educacional, o péssimo tratamento dos que buscaram seus direitos previdenciários ou o Bolsa Família nos últimos meses, o incentivo à visão de que talvez os mais pobres tenham de morrer para se combater a violência e mesmo o liberalismo de Guedes - que já disse não ter a desigualdade no centro de suas preocupações - são sinais evidentes da vitória da concepção moralista ao estilo Bolsonaro, por ora com o apoio silencioso do lavajatismo.

Tão ruim quanto o enfraquecimento das políticas de combate à desigualdade, o que piorará a vida da maioria da população brasileira, é a polarização entre o discurso pelo social e a proposta de moralização da vida pública brasileira. A republicanização do Estado é peça-chave para qualquer projeto de modernização, do mesmo modo que é preciso entender a lógica das famílias pobres da periferia que optaram em 2018 pelo conservadorismo. Por isso, se um amplo arco que vai do centro à esquerda quer mesmo lutar contra os retrocessos crescentes, ele terá de mostrar como o combate à desigualdade pode não só se casar, mas ser o alicerce de uma nova ética pública.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Fernando Abrucio: Existe um Brasil para além de Bolsonaro

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra

Passado um ano de governo, um aspecto salta à vista: Bolsonaro criou um estilo próprio de liderança presidencial. Obviamente que ele repete certos padrões personalistas anteriores, que se apresentavam em figuras tão distintas como Vargas, Collor e Lula. Descontadas as semelhanças, o que fica é um modelo de presidente que busca a todo momento ser o centro da política brasileira, criando factoides que priorizam as críticas a pessoas, ideias e comportamentos. Trata-se de um modo basicamente negativo de construção de projeto de poder. Bolsonaro sempre precisará de um inimigo para governar o país.

A lógica bolsonarista de liderança é eficaz em vários sentidos. Primeiro, porque marca uma posição perante uma parcela do eleitorado, gerando uma forte identidade entre o líder presidencial e os seus correligionários - é o “eu contra eles”, num tom muito mais radical que o do petismo. A porção da população que vai ficar neste grupo ainda é uma incógnita. De todo modo, na pior das hipóteses, Bolsonaro consegue manter pelo menos de 15% a 20% ao seu lado, o que não garante a reeleição, mas solidifica um nicho de apoiadores que irão até o fim com o presidente, mantendo-o como um governante que tem anteparo para digladiar com outras lideranças políticas.

Selecionando inimigos e os atacando a todo momento, muitas vezes por meio de acusações e temáticas secundárias em relação às políticas governamentais, Bolsonaro obriga os criticados a se defender constantemente. O presidente se torna o dono da bola do jogo e faz com que os outros fiquem correndo atrás da pelota, sem que nunca a tenham por completo. Antigamente, isso tinha um nome: diversionismo, isto é, a capacidade de evitar o que é central na disputa do poder e nas políticas públicas. Essa estratégia dificulta ter um maior foco na crítica ao governo, pois se a cada semana há um assunto novo para se discutir, o que deve ser priorizado no debate com a população?

É interessante notar que mesmo naquilo que o bolsonarismo procura trazer de agenda positiva, isto é, de defesa de uma visão comum de país, ele o faz criticando outros ou reprimindo comportamentos ou ideias que deveriam ser extirpados. Para ficar nas simbologias religiosas, trata-se de um modo menos franciscano de pensar a política e mais baseado numa concepção cruzadista - conquistar corações significa usar a guerra como instrumento.

Bolsonaro é muito parecido com Lula em sua grande capacidade de falar a linguagem popular e de fazer campanha eleitoral permanente. Porém, ao construir seu discurso com tonalidade negativa e centrado na busca de inimigos, ele constrói um tipo de liderança cuja força está em captar o medo e a raiva das pessoas. Foi esse o espírito predominante nas eleições de 2018, depois de anos de recessão e da avalanche contra a corrupção produzida pela Lava-Jato. Ainda há muita gente ligada a esses dois sentimentos, mas em algum momento muitos desses eleitores vão querer de volta a esperança.

Se o presidente conseguir um bom resultado econômico e social até 2022, algo realmente robusto, pode estar aí uma novidade em relação ao seu padrão atual, sustentado na negatividade. Caso contrário, terá que se basear num modelo em que ele briga contra todos, torcendo principalmente para ter alguma polarização com o PT. Só que antes de pensar nas próximas eleições presidenciais, é preciso lembrar a longa travessia, de mais três anos, que teremos de enfrentar.

Há duas grandes variáveis que podem, em algum momento, inverter o clima construído pela liderança presidencial de Bolsonaro. A primeira é de cunho estratégico e a segunda capta as profundezas de um país que parece ter ficado para escanteio na agenda política. Afinal, o clima azedo do bolsonarismo disseminou-se e muitos se perguntam se há algum lugar em que isso não seja dominante hoje no Brasil.

Ao ter de criar a todo momento fatos políticos baseados no confronto, Bolsonaro abre muitas arestas e possibilidades de problemas, inclusive porque atua desse modo também no plano internacional.

Esse conjunto de inimigos e disputas vai se acumular durante quatro anos, e caso a bonança não venha logo, a tendência é que o número de adversários e eleitores insatisfeitos vai crescer mais do que o contingente de criticados (pessoas, ideias e grupos sociais) pelo presidente.

Exemplo maior disto é a postura ambiental do país, criticada recentemente pela Comissão Europeia, que disse abominar as atuais ações do governo Bolsonaro. O mais provável, conhecendo seu estilo, é que o bolsonarismo vai continuar nesta toada até que a crise vire algo muito grande. Assim, não deverá ser aprovado o acordo União Europeia/Mercosul neste quadriênio, o agrobusiness brasileiro pode perder mercados, megainvestidores institucionais reduzirão seu ímpeto e não adianta xingar a “pirralha” da Greta. No meio desse caminho, o governo pode perder apoiadores, deixando o capitão apenas com seu séquito mais fervoroso, cujo tamanho é pequeno demais para garantir a governabilidade.

Muitas outras áreas dominadas pelo discurso bolsonarista do confronto podem ter esse mesmo desfecho, como na política externa ou na educação. Portanto, talvez seja muito difícil para Bolsonaro manter esse estilo durante toda a travessia sem ter arranhões muito grandes. Mas, além disso, é preciso lembrar (quase gritar) que existe um Brasil para além de Bolsonaro. Um país que, a despeito desse caldo de cultura marcado pelo confronto permanente, está tendo sucesso em suas ações adotando outra forma de agir coletivamente.

Uma parte importante desse outro país está com políticas públicas bem-sucedidas no plano subnacional. O bolsonarismo criou o slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, mas poucas vezes olha com a devida atenção para o que ocorre em vários entes da Federação. Em vez do ministro da Educação ficar xingando tudo que ocorreu antes dele por conta dos resultados dos alunos brasileiros no exame internacional do PISA, ele deveria conhecer e disseminar o que tem dado certo em termos de políticas educacionais estaduais e municipais.

Weintraub deveria parar de criar factoides e começar a conhecer a experiência de Sobral e, numa escala maior, do Ceará, para ver como é possível fazer uma revolução no processo de alfabetização. Existe ali um Brasil que dá muito certo e não segue a lógica bolsonarista. Ao contrário, o forte do modelo cearense é a montagem de uma governança baseada na confiança mútua e colaboração entre os mais diversos atores, inclusive de vários partidos políticos. Deveria, ainda, conhecer a experiência dos Arranjos do Desenvolvimento da Educação (ADEs), que juntam municípios num processo cooperativo para resolver problemas educacionais, seja na Chapada Diamantina, em Votuporanga (SP) ou na Grande Florianópolis. Mais uma vez, a solução aqui foi um arranjo que reúne pessoas e movimentos os mais variados, em vez de procurar inimigos em todo canto.

A cultura é um dos grandes patrimônios de qualquer país. No caso brasileiro, isso é ainda mais marcante porque somos reconhecidos internacionalmente pelas nossas obras culturais e artistas. Pois bem, e o que faz o governo Bolsonaro? Coloca em xeque a riqueza cultural e nossa diversidade em nome de um projeto de purificação de nossa arte. Onde isto deu certo? No Irã de Khomeini? Na Coréia do Norte?

Fernanda Montenegro e Chico Buarque são símbolos nacionais e internacionais de um Brasil que dá certo. Eles não precisam de Bolsonaro, mas o Brasil precisa de gente como eles. E se a nova orientação oficial é procurar a “verdadeira cultura popular brasileira”, é preciso conversar com os jovens da periferia das grandes cidades, que produziram cultura como forma de combater a desigualdade e dar visibilidade a quem não tem espaço no grande “show business”. Mas o bolsonarismo não vai dialogar com esse pessoal, nem com os seguidores de Ariano Suassuna.

Existe uma sociedade civil pujante no Brasil, com projetos coletivos em várias áreas, que melhoram a qualidade das relações sociais em vários lugares, sobretudo nos mais carentes. Há muitas parcerias entre universidades e destas com empresas produzindo inovação e desenvolvimento de longo prazo para o país, usando como principal instrumento a busca de sinergias. Também há empresas e empreendedores que obtiveram sucesso internacional porque acreditam que boas ideias e muito trabalho são mais importantes do que ficar brigando nas redes sociais.

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além dessa lógica de guerra. Um país que deveria ter orgulho de Paulo Freire, porque as melhores universidades americanas o consideram um dos maiores educadores do século XX, e a Finlândia, aquele país sempre elogiado no PISA, usa claramente o seu método educativo para formar os jovens que vão compor sua sociedade do futuro.

Desejo a todos um excelente 2020, que deixe para trás a lógica do confronto permanente instalada por Bolsonaro. Temos um país em que há ainda muitos problemas e feridas, como a escravidão, mas cuja saída está em mais colaboração entre Estado e sociedade, bem como maior tolerância e negociação entre lideranças políticas diferentes.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP