Fachin

Fernando Schüler: Sinal de alerta para o centro político

A polarização tende a produzir uma fuga do centro, que deve buscar consenso

Lula fez discurso de candidato, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e era seu direito fazê-lo. Disse que no seu governo a Petrobras era bem administrada e que o Brasil era o país “mais admirado do mundo”. Chamou a turma da Lava Jato de “quadrilha” e culpou a operação pela perda de mais de 4 milhões de empregos.

Mas o centro do discurso foi mesmo sobre Bolsonaro. Governo de milicianos, eleito pelas fake news, feito de gente que acredita que a Terra é plana. Governo de “imbecis”, em relação ao qual “alguma atitude nós vamos ter que tomar”.

É interessante que Lula não investiu na retórica da “ameaça à democracia”, que é a marca registrada da oposição a Bolsonaro desde a campanha de Fernando Haddad. Sua ênfase é no “pão com manteiga” na mesa do trabalhador, emprego, investimento público (“o que faz o país crescer). Talvez vá aí uma mudança, quem sabe um esgotamento do tema. Ou tenha apenas faltado combinar isso melhor.

A “narrativa”, como agora é moda dizer, parece clara: a decisão de Fachin foi, para todos os efeitos, uma absolvição, um reconhecimento tardio da inocência de Lula. Lava Jato, pois, é coisa do passado. Lula aguentou firme e sempre soube que este dia (esta quarta) iria chegar. E chegou.

OK, discurso político nem sempre se pode levar ao pé da letra, e sempre há aqui e ali algum excesso retórico. Mas o fato é que, escutando essas coisas, é surpreendente que alguém diga que a polarização política não tenha voltado, e voltado com tudo, com a entrada de Lula no jogo.

Se a disputa entre Lula e Bolsonaro é uma polarização entre dois “extremos” e se são extremos “equivalentes”, é um debate para a militância política. Um lado irá falar da corrupção, da quebradeira econômica e o risco de “venezuelização” (como li de um porta-voz bolsonarista), e o outro dirá o que Lula disse nesta quarta. Governo de milicianos, imbecis, feito à base de fake news etc. Não vi Lula usando a palavra “fascista”, mas é possível que ela apareça logo à frente.

Se isso não é uma polarização, o que seria, exatamente? Mais do que isto: é um tipo de debate de baixíssima qualidade política, que infelizmente preside nossa democracia.

É previsível que interlocutores do lulismo no debate público fiquem nervosos com a tese da “polarização entre os extremos”. Seu desejo é de que Lula pudesse liderar uma ampla frente, envolvendo o centro político, contra Bolsonaro. Ouvi de alguém que os elogios de Rodrigo Maia a Lula indicavam algo nesta direção.

Seria curioso uma aliança entre Lula e o Democratas, reunindo todos os que lutaram bravamente a favor das reformas, nos últimos anos, e todos os que o fizeram, também bravamente, na direção oposta. O lógico é que Lula seja candidato de uma frente reunindo seus tradicionais aliados na esquerda.

Se a polarização agrada ao Palácio do Planalto? Parece evidente que sim. À parte desviar o foco das debilidades do governo, a curto prazo, a presença de Lula permite a Bolsonaro reanimar a militância entediada ao ressuscitar sua retórica “identitária”, com um olhar no passado, reanimando velhos fantasmas do embate político brasileiro.

O principal motivo da discreta satisfação do Planalto, no entanto, é outro. A entrada de Lula e a crispação política criam um efeito de fuga do centro político. Eleitores à direita, decepcionados com Bolsonaro e dispostos a uma alternativa, tendem a reconsiderar diante do espectro de Lula. Nesse plano arriscamos enveredar em uma disputa de rejeições: o antipetismo contra o antibolsonarismo.

A conclusão é que o principal sinal de alerta soou para o centro político. Em 2018, vamos lembrar, Alckmin, Meirelles e Amoêdo somaram menos de 10% dos votos. É apenas uma lembrança. O centro político não tem, no atual cenário, outra tarefa a não ser buscar um candidato de consenso e um programa capaz de se colocar consistentemente como alternativa a Lula e a Bolsonaro.

Observando a nova coalizão majoritária em funcionamento no Congresso, não penso que seja uma tarefa simples.​

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Maria Hermínia Tavares: O dilema dos democratas

Esquerda, centro ou direita falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.

A mais de um ano das eleições presidenciais, tudo que se diga sobre seu desfecho é temerário, todo prognóstico corre o risco de ser desmentido, com ou sem Lula no páreo. Isso posto, afastada ao que parece a hipótese de impeachment, o endosso da robusta minoria que ainda apoia Bolsonaro, se não derreter até lá, bastará para levá-lo ao segundo turno.

Democratas de esquerda, centro ou direita não se cansam de dizer que a ampla união de forças será necessária em 2022 para impedir que ele se reeleja e, assim, continue a destruir o país e a democracia a duras penas construída. Falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.

O centro-direita e a direita não bolsonaristas se movem em torno de seus possíveis candidatos, como se não existisse no país esquerda com enraizamento social e expressão eleitoral consideráveis. Como se pudessem ganhar a Presidência sem o seu apoio.

Já os líderes mais destacados da esquerda dedicam-se com afinco a se atacar uns aos outros —veja-se o tiroteio entre Ciro Gomes e Fernando Haddad. Enquanto isso, intelectuais progressistas gastam tinta para demonstrar que todos os economistas liberais, mesmo os mais críticos ao governo, se igualam a Paulo Guedes e que todos os possíveis candidatos da direita são bolsonaristas envergonhados, ainda que hoje façam oposição aberta ao ocupante do Planalto. Não custa lembrar que Lula e Dilma foram a segundo turno, quando venceram com o imprescindível apoio de forças que não se situam no campo da esquerda.

No fundo, uns e outros continuam a se movimentar em torno da linha divisória traçada em 2016, com a derrubada de Dilma Rousseff, que consolidou a polarização política e abriu espaço para a disparada do ex-capitão. Mas, então, a minoria de extrema direita existente na sociedade não tinha expressão política nacional. Agora tem um líder à altura do seu primitivismo e da sua brutalidade.

As regras eleitorais incentivam a multiplicação de candidaturas no primeiro turno das eleições presidenciais. Mas não limitam conversas prévias que aplainem o caminho para entendimentos na rodada final nem impedem o trato civilizado entre os concorrentes do campo democrático. Nada indica que isso esteja sendo buscado.

Cientistas políticos estudam os chamados dilemas da ação coletiva, situações em que pessoas ou organizações agindo em prol de seus interesses, sem a possibilidade de coordenar seus atos, terminam por produzir desastres para si e para a sociedade. A volta de Lula ao jogo político não afasta o risco de que as próximas eleições venham a ser mais um episódio dessa história de final infeliz.

*Maria Hermínia Tavares -professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando

A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.

“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).

Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.

Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.

Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-cade-as-vacinas-bolsonaro/

William Waack: Vendedores de esperanças

Bolsonaro e Lula vão disputar o mesmo eleitorado, num faroeste sem mocinhos

Nos fenômenos políticos brasileiros dos últimos 20 anos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro exibem uma importante característica em comum: foram vendedores de esperanças frustradas. As diferenças ideológicas e de estilo entre eles empalidecem diante do fato de que assumiram prometendo grandes transformações e acabaram governando com a mesma massa amorfa de forças políticas empenhadas em acomodar interesses setoriais, cartoriais, corporativistas e regionais às custas dos cofres públicos ou de pedaços da máquina pública – plus/minus a roubalheira petista. 

O fator excepcional agora é o alargamento e aprofundamento de crises simultâneas de saúde pública, economia estagnada e liderança política. Elas são causa e consequência ao mesmo tempo do esgarçamento do tecido social (perigo de anomia), da deterioração do equilíbrio dos poderes (Judiciário emasculando os demais) e da incapacidade generalizada de elites econômicas de enfrentar a estagnação de produtividade e competitividade da economia (já nem se fala mais de PIB ruim de ano para ano, mas de PIB ruim de década para década). 

Diante da tragédia da saúde e de seu impacto na economia – claudicante já antes da pandemia –, o problema para Bolsonaro e Lula é qual esperança vão vender. As bandeiras do lulopetismo estão manchadas não só pela corrupção adotada como forma de governo, mas, e ainda mais decisivos, pelo espetacular fracasso no intervencionismo e dirigismo da economia e a incapacidade de resolver mazelas sociais. São graves pois derivam de ideias equivocadas, em boa parte abraçadas por setores das elites empresariais. 

Sem ideias próprias, Bolsonaro abandonou sucessivamente qualquer conjunto coerente de postulados emprestados por Paulo Guedes, além de deixar para lá ou atuar contra as bandeiras da luta anticorrupção, da reforma e enxugamento do Estado e, de forma também espetacular, parou de se empenhar por destravar a economia do País. Que, ainda por cima, enfrenta o agravamento do sufoco fiscal, questão não meramente conjuntural (gastos com pandemia). 

A tripla crise é particularmente grave para a vida nacional, pois reforça um angustiante estado de paralisia no qual se destaca a percepção generalizada de que nada anda direito – inclusive criar alternativas políticas aos fracassados vendedores de esperanças. Paira um sentimento (sim, coisa subjetiva, mas política é coisa subjetiva também) de que impera por toda parte uma extraordinária hipocrisia: um STF que só toma decisões ao sabor da política, dizendo que não toma decisões políticas. Um Centrão que só pensa nos próprios interesses setorializados, quando fala que defende interesses do País. Um presidente que só pensa na reeleição e na própria família, quando diz falar pela coletividade, cujo sofrimento pouco o comove. 

Por uma desagradável ironia, Bolsonaro e Lula (ou as forças que representam) estão hoje na situação de terem de disputar a mesma parcela do eleitorado mais dependente de assistencialismo, mais arriscada a cair na miséria total se faltar a mão do Estado, mais ignorante e com a situação agravada pela falta de acesso a serviços básicos e educação de qualidade. Quadro piorado pela pandemia. 

É uma dura constatação, mas que até aqui não levou as diversas elites dirigentes brasileiras (entendidas como os grupos “que pensam” na economia, no ambiente cultural no sentido amplo e na condução de agrupamentos políticos) sequer a um diagnóstico comum, quanto mais a linhas de ação. A noção de que “a corrupção” seria a grande causa e a explicação para o nosso atraso relativo foi derrubada agora com o “desmascaramento” da Lava Jato (juntando na mesma trincheira safadeza com defesa de princípios da ordem democrática). “Mais saúde e educação”, as palavras de ordem de 2013 viraram slogans vazios de conteúdo.

Dizer que estamos vivendo um faroeste sem mocinhos é repetir Maquiavel, cuja originalidade estava na afirmação de que em política não se consegue realizar princípios. O problema é quando vira um faroeste sem esperanças.


Alon Feuerwerker: O estado da corrida

Vamos esperar as próximas pesquisas, mas a primeira presidencial feita após Luiz Inácio Lula da Silva ter voltado a ficar elegível mostra ele uns dois dígitos atrás de Jair Bolsonaro no primeiro turno e empatado tecnicamente com o presidente no segundo turno, apesar de numericamente atrás quatro pontos (a margem de erro do levantamento é três) (leia).

O presidente mantém sólido o contingente que votou nele no primeiro turno em 2018. Ele teve então algo que correspondeu a pouco menos de um terço do eleitorado total. A diferença está nas simulações de um eventual segundo turno, pois em 2018 Bolsonaro colocou em torno de dez pontos de vantagem sobre o então candidato do PT, Fernando Haddad.

Na referida pesquisa, os demais nomes ainda lutam para romper a barreira dos dois dígitos no primeiro turno. Tentarão fazer isso argumentando contra a polarização. Não funcionou da última vez. Vai funcionar agora? Há dúvidas. O tema polarização versus despolarização parece por enquanto meio fora do universo de preocupações do público mais amplo.

O que vai decidir, então? Em tese, como a economia vai chegar em meados do ano que vem. E isso dependerá da vacinação. Se ela andar razoavelmente, Bolsonaro tende a atravessar a turbulência e chegar competitivo. Pois removeu até o momento o risco de vir a sofrer nesse meio tempo um processo de afastamento na Câmara dos Deputados.

Se não, tende a se tornar um “pato manco”, como se diz nos Estados Unidos. Essa é a esperança dos concorrentes dele do centro para a direita.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Maria Cristina Fernandes: A volta de Lula

Se os arquivos da Lava-Jato permitem a Lula tentar reescrever sua história, os de Bolsonaro, com condutas, falas, gestos e atos de seu governo dificultam sua reinvenção

Radical é a pandemia, inútil competir. A dor do povo é tão grande que não autoriza mágoas. O estrago é tão gigantesco que a mudança de rumo não é um desejo, mas um imperativo. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou a pandemia para ancorar a moderação do presente e baixar a guarda sobre o futuro. É este o eixo de Lula 2022. À indagação sobre as chances de sua candidatura, foi simples e curto: “É mais fácil construir uma frente de esquerda contra o que está acontecendo no país do que uma frente de direita”.

Já mudou o país. No domingo, a pesquisa Ipec o trouxe com um potencial de voto acima daquele do presidente da República. Na segunda, Jair Bolsonaro acordou cordato para uma reunião com a direção da Pfizer. Na terça-feira, o ministro Nunes Marques pediu vistas da suspeição de Moro para manter aberta a possibilidade de as provas dos processos de Lula serem validadas pela primeira instância do Distrito Federal. Na quarta-feira pela manhã, horas antes de o ex-presidente começar a falar, apareceu de máscara na cerimônia que sancionou a lei da aquisição de vacinas. Em seguida, o senador Flávio Bolsonaro tuitou uma foto do pai com a frase: “A vacina é nossa arma.”

Não será fácil para Bolsonaro. Se é a revelação de um arquivo de mensagens entre os integrantes da operação da Lava-Jato que permite a Lula tentar reescrever sua história, com Bolsonaro se dá o inverso. É o arquivo de condutas, falas, gestos e atos de seu governo que torna pouco crível a fantasia de estadista responsável que o presidente da República passou a envergar. E nem precisa de “hackers” para isso. Está na memória recente dos milhões de brasileiros que perderam familiares e empregos.

Isso não significa que Lula tenha uma avenida desimpedida. A reação dos pregões à sua elegibilidade que o diga. No único momento mais exaltado da entrevista, respondeu à repórter Cristiane Agostine, do Valor: “Não concordo com tudo que eles fazem nem eles com tudo que eu fiz, mas não precisam ter medo.” Desfiou a convivência de oito anos, sua posição contrária à autonomia do BC e em defesa do investimento público até chegar à sua crítica mais aguda: “A Febraban poderia me chamar para eu mostrar o demônio. Vou lá na Fiesp também. O demônio é a safadeza daqueles empresários para quem Guido Mantega liberou R$ 500 bilhões de desoneração que não foram repassados para os trabalhadores”. Ao atingir não apenas os empresários mas o governo de sua antecessora já antecipou a vacina que pretende usar contra a herança da ex-presidente Dilma Rousseff, esquecida na nominata.

A julgar pelo discurso, não haverá uma segunda Carta ao Povo Brasileiro. Suas credenciais serão os resultados de seus oito anos de governo. De olho na aversão dos investidores ao seu adversário, Bolsonaro resolveu prestigiar o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos, ao se deixar cercar por ambos na conferência virtual com a Pfizer. Não é capaz de estender esse prestígio à sua base no Congresso, incapaz de barrar as mudanças que desidratam a proposta que congela gastos para abrir espaço fiscal ao auxílio emergencial.

A entrada de Lula no cenário vai subir o “custo Centrão”, com reflexos nas contas públicas. Bolsonaro sancionou, a contragosto, como já deixou claro ao próprio presidente do BC, a autonomia do banco, mas tem como trunfo, para evitar a escalada de juros nesse momento em que enfrenta a volta do petista, os 90 dias de prazo que a mudança lhe deu. A partir da promulgação da emenda constitucional da autonomia, em 24 de fevereiro, Bolsonaro tem até 90 dias para enviar os nomes do presidente e dos diretores do Banco Central. Está dado que a equipe é esta que aí está, mas não custa lembrar que a prerrogativa é dele de confirmá-la.

A ausência do ministro da Saúde do encontro virtual com a Pfizer sinalizou qual será a saída do presidente para tirar a pandemia de suas costas. Eduardo Pazuello é o problema e ele, Bolsonaro, a solução. Para enfrentar o novo discurso do presidente, Lula mimetiza o presidente americano. Se as tragédias pessoais de Joe Biden (a perda da primeira mulher e de uma filha bebê num acidente de carro e de um filho para o câncer) alimentaram sua empatia com o eleitor americano assolado pela pandemia, Lula também tem seu arsenal. Sua segunda viuvez, que atribui à Lava-Jato, a morte de um neto de sete anos enquanto estava na prisão e a de um irmão a cujo enterro foi proibido de comparecer: “Queriam que eu fosse para um quartel do 2º Exército e meu irmão, dentro do caixão, fosse me visitar”.

Desde a decisão de Fachin, o mundo político em Brasília já se reposiciona. O Centrão ficará onde está. Fincou sua praça pedagiada no governo Bolsonaro com uma tarifa reajustada diariamente e usará os recursos arrecadados para se fortalecer na negociação com quem assumir a estrada. Nos demais partidos, o efeito da polarização será o de aumentar as candidaturas, não de reduzi-las. Se a ausência de Lula levava à reunião de forças para enfrentar Bolsonaro, sua presença estimula o lançamento de candidaturas visando à negociação de uma aliança no futuro governo. É isso, por exemplo, que levou o MDB a namorar a possibilidade de lançar o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e fez com que o PSD filiasse o secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles, ex-candidato à Presidência pelo MDB, com vistas à disputa de 2022. A postulação do governador João Doria virou o mote preferido das piadas que chegam ao gabinete presidencial.

A volta de Lula só enfraqueceu mesmo as candidaturas de fora da política, como a do apresentador Luciano Huck, e ameaça a de adversários do campo da centro-esquerda, como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que foi pra cima. Disse que o fato de Lula ser inocente não significa que seja honesto. Lula valeu-se da mesma fleuma para responder ao ataque de Ciro (“Ele é um homem de 64 anos, não pode ofender as pessoas como quando era jovem”) e ao elogio de Rodrigo Maia, que foi ao Twitter para dizer que não é preciso gostar de Lula para entender a diferença dele para Bolsonaro (“Se ele resolveu reconhecer algum mérito no que fiz, fico agradecido [...] quem sabe está querendo construir uma nova relação política”).

O sucesso da estratégia de Lula será diretamente proporcional à capacidade de contagiar seu próprio partido de sua lhaneza. A sobrevivência de um discurso ajuste-de-contas com aqueles que lhe deram as costas ao longo dos últimos anos jogará por terra o apelo de conciliação nacional com o qual o ex-presidente reapareceu e no qual aposta para tirar seu passado dos tribunais e devolvê-lo para o juízo das urnas.


Cristiano Romero: O espetáculo da corrupção

 Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação

Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.

A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).

 “Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.

A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.

A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.

Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:

1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de "entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.

2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção - ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;

3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;

4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;

5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.

Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.

Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.


Fernando Exman: Fachin catalisa a eleição presidencial

Decisão do ministro coloca Lula no jogo e antecipa campanha

Edson Fachin, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que recolocou Luiz Inácio Lula da Silva na lista de presidenciáveis com uma canetada, agiu olhando para o legado da Lava-Jato, mas as consequências de seu ato já se percebem no presente. Em relação ao futuro, será necessário aguardar para ver o quão determinante terá sido para o resultado das eleições a sua decisão de cancelar as condenações do ex-presidente.

Fachin provocou uma catálise no processo de rearranjo político-partidário previsto para o início do segundo semestre. A campanha presidencial de 2022, que já vinha sendo caracterizada como uma das mais precoces da história contemporânea, tende a antecipar-se ainda mais.

O episódio dá dinamismo à pré-campanha. Mesmo sem um pré-candidato em campo, o PT já formulava um programa antagônico à agenda liberal da equipe econômica e ensaiava palavra de ordem capaz de contrapor o slogan do governo Jair Bolsonaro: “A vacina acima de tudo.” Lula deixará a função de titereiro para dominar o palco.

Bolsonaro, o maior interessado em reeditar o clima da disputa de 2018, ainda observa os eventuais desdobramentos da decisão do magistrado. Precisará equilibrar-se na tênue linha que divide o que seus apoiadores esperam ouvir e o que pode dizer o chefe do Executivo sem criar atritos com outro Poder.

O episódio também coloca sob pressão aqueles que esperam personificar uma terceira via. Entre eles, Ciro Gomes (PDT), que tem se mantido aquecido neste período de pré-campanha.

Meses atrás, esse espaço até poderia ser disputado pelo ex-ministro Sergio Moro, mas o ex-juiz da Lava-Jato é justamente o principal derrotado, do ponto de vista eleitoral, da decisão de Fachin. Sobra, portanto, cada vez menos tempo para que o apresentador Luciano Huck, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ou o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) se posicionem no jogo. Os tucanos, para não ficarem a reboque, marcaram prévias para outubro.

Sob a condição de não ter seu nome revelado, um especialista que sabe das coisas assegurou: a decisão de Fachin não muda o pano de fundo que vinha sendo construído e a eleição de 2022 será um embate de “imaginários negativos”, ou seja, o antibolsonaro contra o antipetismo. Nesse contexto, ponderou o experiente consultor, Bolsonaro sai perdendo, pois quem vem agora para o embate é um Lula que o atual presidente da República não gostaria de enfrentar.

“Lula está renovado e cheio de gás”, explicou. “É outro Lula perante o Bolsonaro, mas não é outro Lula perante o Brasil”, acrescentou, referindo-se à grande popularidade do petista e à aprovação de suas administrações por parcela considerável da população.

Deve-se lembrar, também, que ele poderá dizer aos quatro cantos que, mesmo perseguido, não é mais um condenado. Seus adversários rebaterão afirmando que erros procedimentais do processo ou a conduta das partes não anulam o fato de que os governos do PT abrigaram diversos esquemas de corrupção. Com razão. O problema de Bolsonaro, porém, é que sua campanha terá dificuldades de sustentar o discurso anticorrupção de 2018.

“A mansão adquirida pelo seu filho é uma casa de horror, um bolo de chocolate para quem faz campanha política”, comentou essa fonte. “A questão ética não vai ser decisiva como foi na última eleição. Misturou tudo.”

Então, quem pode se beneficiar nessa conjuntura? Aquele que conseguir extrair o pior dos dois oponentes e surfar na onda antibolsonaro e antipetista. O momento do país também exige que os candidatos apresentem soluções para a crise. “Quem oferecer uma saída pode se deslocar. Isso quer dizer uma campanha positiva, um plano de governo e propostas para o país”, destacou. “É uma eleição de forças negativas, como foi a de 2018. Normalmente, quando isso acontece o natural é que se demonize a política. Agora, no entanto, é o contrário.”

Segundo essa visão, o momento exige uma liderança capaz de aglutinar forças, combater a pandemia e os efeitos da crise. Um cenário que pode ser desafiador para alguém de fora da política tradicional.

Precipitada a entrada de Lula na disputa, um dos principais desafios de Bolsonaro será acelerar a consolidação de sua imagem no Nordeste. Um fator que poderá dificultar essa entrada é a relação conflituosa que vem mantendo com governadores. Por outro lado, o presidente tenta capturar bandeiras da oposição, com a reformulação do Bolsa Família, inaugurações de obras da transposição do rio São Francisco ou a ampliação do acesso à água.

Na opinião desse especialista, sem novas ideias, dinheiro e boa gestão, resta ao presidente aproximar-se das marcas de outros governos. “Ele provoca danos cognitivos fortes não só no seu eleitorado, mas no público médio” com o vai e vem de seu discurso e essa confusão narrativa, apontou a fonte. “Ele faz uma subversão da linguagem e dos significados”, completou, citando como exemplo o fato de se cogitar a entrada do presidente no Partido da Mulher Brasileira (PMB). Em 2018, ele foi alvo de ampla campanha negativa do público feminino, que levantou a "hashtag" #elenão. Sua filiação à sigla poderia lhe garantir uma espécie de vacina contra estratégia semelhante.

Outra notícia negativa para Bolsonaro é a capacidade de mobilização de Lula, num momento em que o presidente corre o risco de ver crescer os panelaços ou até mesmo movimentos de rua.

Ele pode insistir no discurso de que existe o risco de o Brasil virar uma Argentina ou uma Venezuela, se a esquerda voltar ao poder. No entanto, o exemplo de outro vizinho deveria gerar maiores preocupações, neste momento, no Palácio do Planalto: o presidente do Paraguai, aliado de Bolsonaro, tenta conter protestos e escapar de um processo de impeachment por suposta negligência no combate à covid-19. “O que existe não é um sentimento de letargia. É um acúmulo depressivo que vai ser vomitado uma hora”, concluiu o especialista. O acirramento do ambiente não ajudará o país a solucionar os seus problemas.


Hélio Schwartsman: Qual Lula será candidato em 2022?

Ele já deu repetidas mostras de que é um camaleão político

Ao que tudo indica, Luiz Inácio Lula da Silva poderá concorrer à Presidência no ano que vem. Isso altera significativamente os planos de candidatos e partidos que já começavam a desenhar cenários para o próximo pleito.

Na leitura mais superficial, mas não necessariamente errada, o retorno do petista ao jogo reforça a polarização. Os beneficiados seriam o próprio Lula e seu antípoda, o presidente Jair Bolsonaro, que, mobilizando seus núcleos de apoiadores fiéis e demonizando os adversários, carimbariam seus passaportes para o segundo turno, fechando as portas para candidaturas mais ao centro.

O problema com essa interpretação é que ela parte do pressuposto de que o Lula de 2022 será um Lula radical, parecido com o que se candidatou em 1989 ou com o que discursou às vésperas de ser preso pela Lava Jato em 2018. Mas não há nenhuma garantia de que tal premissa se manterá.

Lula já deu repetidas mostras de que é um camaleão político, capaz de vestir a roupagem que mais lhe convém. Se ele sentir que tem mais chances de chegar ao Planalto com o figurino de candidato moderado, ele o adotará. Nada o impede de repetir a trajetória de 2002, quem sabe até reeditando uma versão da "Carta ao povo brasileiro" e forçando o PT a fazer uma tardia autocrítica do governo Dilma. Isso seria crível? Bem, se as pessoas acreditaram que Bolsonaro era liberal, então acreditam em qualquer coisa.

Meu ponto é que não estamos condenados à polarização. Dependendo da dinâmica que a campanha assumir, poderemos assistir à reintrodução do teorema do eleitor mediano, pelo qual os principais candidatos buscam desde o início apresentar-se como moderados para conquistar os cidadãos que rejeitam extremos, que são normalmente a maioria.

Se o vencedor vai governar de acordo com as promessas ou cometer mais um estelionato eleitoral é uma outra questão. Mas tratemos de um problema de cada vez.


Vinicius Torres Freire: As mentiras da elite sobre polarização de Bolsonaro e Lula

Bolsonaro não pode ser um polo porque não tem substância alguma além do terror

Jair Bolsonaro tentou sabotar todas as providências de contenção de gastos da mudança “Emergencial” da Constituição, aquela que vai autorizar também o novo auxílio emergencial. De efeitos práticos maiores nas contas do governo, a PEC Emergencial vai impedir o aumento de gastos com servidores públicos por alguns anos e aumentar alguns impostos. Na verdade, a emenda vai exigir que se cancelem algumas reduções especiais de tributos para indivíduos e empresas, por meio de lei. Se a lei pegar, haverá um aumento de impostos de cerca de 0,2% do PIB por ano.

Bolsonaro queria cancelar tudo isso, mas até a noite desta terça-feira (9), os deputados haviam decidido deixar a PEC como foi aprovada no Senado (onde já havia sido amputada e lipoaspirada).

Esse é o presidente e futuro candidato à reeleição comprometido com as “reformas” e o “ajuste fiscal”? Esse que não fez abertura comercial. Nenhuma privatização. Quase nenhuma concessão de empreendimento à iniciativa privada que não tivesse sido já preparada no governo Michel Temer. No seu governo, fez-se uma reforma da Previdência (em parte sabotada por Bolsonaro) que era consenso do establishment e que não contou com oposição popular quase nenhuma, nem da esquerda semimorta.

Esse é o candidato de um dos extremos da “polarização” que haverá caso Lula da Silva seja candidato em 2022, diz o clichê de burrice sórdida que escorre da boca dos povos dos mercados desde a segunda-feira.

Bolsonaro não é coisa alguma além de um projeto de tirano. Não é um contraponto ao “esquerdismo” do PT porque, afora o horror, é um vazio. Quem o sustenta no poder, a elite econômica quase inteira, por colaboracionismo, outras ações e omissão, não tem mais desculpa alguma de desilusão quanto ao liberalismo do capitão da extrema direita, ideia que sempre foi grotesca. A elite colaboracionista ou omissa ora está na posição de ter contratado um capanga que saiu do controle, um dos capatazes que chamou para manter o PT longe do poder. 

O lulismo-petismo, de resto, foi um projeto suave de incorporação de pobres ao universo do consumo, de chegada minoritária de algumas minorias ao poder, de imobilismo na reforma econômica e social de fundo, combinados a uma vasta distribuição de subsídios e outras proteções ao capital, fundos que financiaram a formação de conglomerados e oligopólios, fora a roubança, parte muito menor do jogo.

Ainda assim, boa parte da elite pagou e talvez ainda pague qualquer preço para manter o PT (ou equivalente) ao largo, mesmo que o custo seja Bolsonaro. Na melhor das hipóteses, gostaria de enfrentar o bolsonarismo com um vazio à esquerda, como se a vaga no segundo turno fosse conquistada por WO (ou por essas decisões escabrosas da Justiça). Mas mesmo quando Lula estava expulso de campo, mesmo a parte melhorzinha dessas elites foi incapaz de articular ou apoiar qualquer candidatura ou movimento político alternativo, o nome fantasia que tivesse, “centro”, “centro direita”. Agora mesmo dá corda para o interesse provisório do centrão, o que por ora dá corda para Bolsonaro.

A direita menos incivilizada do Brasil é incapaz de ganhar eleições nacionais desde 1998 —aliás, foi por isso que começou a apoiar o tumulto odiento em 2013 e, principalmente, depois da derrota de 2014. Desde então e até hoje, criou a situação que, de modo mendaz, chama de intolerável: alimenta o terror de Bolsonaro e faz o que pode para implodir qualquer esquerda. ​


Elio Gaspari: Lula candidato

O caroço migrou para a elegibilidade do ex-presidente

O ministro Edson Fachin sacudiu o coreto das autoridades anulando as sentenças de Curitiba contra o ex-presidente Lula, devolvendo-lhe os direitos políticos. Hoje, Lula pode ser candidato a presidente no ano que vem.

O voto de Gilmar Mendes na Segunda Turma ilustrou a suspeição de Sergio Moro. Com a decisão de Fachin, o caroço migrou para a elegibilidade de Lula e para o previsível desconforto que isso provoca em quem o detesta. Numa frase: “Esse não pode”.

Lula poderá vir a ser condenado por um novo juiz, mas a sentença ficará com cheiro de gol feito durante o replay.

O “esse não pode” já custou caro ao Brasil. Em 1950, o jornalista Carlos Lacerda escreveu:

—O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.

Getúlio foi eleito, tomou posse, governou até agosto de 1954, matou-se e entrou na História. A revolução que Lacerda queria só veio dez anos depois.

Lacerda tinha credenciais para vencer a eleição de 1965. Fazia um governo estelar no falecido Estado da Guanabara, mas deveria disputar com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, que dera ao Brasil “50 anos em cinco”. Até os primeiros meses de 1964, circulavam dois tipos de “esse não pode”. A esquerda não queria uma vitória de Lacerda, e uma parte da direita não queria a volta de Kubitschek.

Depois da deposição de João Goulart, a base militar da nova ordem não admitia entregar o poder a JK. Lacerda gostou da ideia, e o ex-presidente foi cassado. Por quê? Corrupção. (A sinopse diária que a Central Intelligence Agency deu ao presidente Lyndon Johnson no dia 13 de junho de 1964 contou que o presidente Castello Branco via na proscrição de JK o caminho para um governo “democrático e honesto”. Ele já havia dito que mostrar as provas “seria embaraçoso para a Nação”.) Não era bem assim.

Dias antes, fritando JK, o general Golbery do Couto e Silva, conselheiro de Castello, dividiu uma folha de papel em colunas e listou as “vantagens” e “desvantagens” da cassação de Juscelino Kubitschek. Intitulou-a com a sinceridade que se dá aos papéis pessoais: “Motivação real — Impedir que JK, fortalecido pela campanha contrária, enfrente a Revolução”. E, assim, Juscelino foi banido da vida pública por dez anos. Quando ele morreu, num acidente de estrada, seu funeral se transformou na maior manifestação popular ocorrida no país desde 1968, quando as ruas foram esvaziadas pelo AI-5.

Sem o “esse não pode”, em 1965 os eleitores brasileiros teriam votado em Lacerda ou JK. Nunca na História republicana o Brasil teve dois candidatos tão qualificados. Nem antes, nem depois. Passados os anos, nas duas turmas do “esse não pode”, muita gente qualificada reconhecia que qualquer um dos dois teria feito melhor do que se fez. (Lacerda, que defendeu a cassação de JK, dormiu preso num jirau de quartel em dezembro de 1968 e tornou-se uma alma penada na política nacional.)

O “PT não” colocou Jair Bolsonaro na Presidência. Os eleitores podiam ter colocado Geraldo Alckmin, Ciro Gomes ou João Amôedo, mas quem teve mais votos foi o capitão.

Falta mais de um ano para a eleição do ano que vem. Bolsonaro quer um novo mandato, e as inscrições estão abertas.


Bruno Boghossian: Manobras refletem covardia do STF com fantasmas da Lava Jato

Por anos, operação usou métodos questionados pelo tribunal sem ser incomodada

Num voto de 102 páginas, Gilmar Mendes disse que a força-tarefa da Lava Jato criou "o maior escândalo judicial" do país. O Supremo conhece há tempos os métodos da operação, mas só se dispôs a passar a história a limpo agora, sete anos depois que a investigação começou.

As últimas 48 horas dão pistas dos motivos do atraso. A manobra de Edson Fachin para evitar o julgamento da suspeição de Sergio Moro reflete a covardia do tribunal na hora de enfrentar os fantasmas da operação. Já o movimento de Gilmar ao reabrir uma ação que dormiu em sua gaveta por dois anos é um exemplo dos desvios da política interna da corte.Fachin agiu de surpresa na segunda (8) e anulou os processos da Lava Jato em Curitiba contra Lula. O objetivo do ministro ficou claro no dia seguinte, quando ele citou a própria decisão para tentar barrar o julgamento de uma das ações que questionam a atuação de Moro como juiz.

A estratégia de Fachin só pode ter como base a convicção de que o STF aceitaria uma decisão de alta relevância como artimanha para enterrar outro tema espinhoso. Com tudo o que se sabe atualmente sobre a operação, parte dos ministros ainda se recusa a esmiuçar a atuação da Lava Jato e de seus personagens.

O segundo capítulo ocorreu na terça (9), quando Gilmar reabriu o julgamento da ação que contesta o trabalho de Moro. Desde 2018, o ministro dava sinais de que era favorável à defesa do ex-presidente, mas segurou o voto por temer uma derrota.

A mudança na composição da Segunda Turma, a revelação das mensagens da Lava Jato pelo site The Intercept Brasil e a trama de Fachin mudaram o ambiente. Gilmar citou a condução coercitiva de Lula para dizer que a operação tinha um "modelo hediondo" e chamou a quebra de sigilo de advogados do petista de "coisa de regime totalitário".

Os adjetivos encobrem o fato de que Moro tomou aquelas decisões em 2016, à luz do dia, e demorou a ser incomodado pelos tribunais. Teve tempo para continuar os processos e virou até ministro da Justiça.