Everardo Maciel

Everardo Maciel: Litígio tributário, o problema

Dívida ativa e contenciosos administrativo e judicial dos Estados chegam a superar metade do PIB brasileiro

Problemas existem em todos os sistemas tributários, em virtude de sua natureza intrinsecamente imperfeita combinada com elevada volatilidade das circunstâncias econômicas e políticas. O que muda é o tipo de problema.

As grandes discussões tributárias são, hoje, a taxação da economia digital, o enfrentamento da erosão tributária associada a paraísos fiscais e a identificação de novas fontes de financiamento da previdência social.

No âmbito da taxação da economia digital, a União Europeia não hesitou em cogitar um imposto sobre a receita bruta das empresas de economia digital, de caráter cumulativo, para surpresa dos que professam o dogma da não cumulatividade. De igual forma, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) começa a admitir a tributação na fonte, em lugar da residência, por força do crescente esvaziamento do conceito de estabelecimento permanente.

Tudo isso decorre da evidência de que sistemas tributários devem ser pragmáticos e resilientes para enfrentar uma revolução tecnológica cada vez mais veloz. Quem não entender essa realidade vai ficar para trás.

Aqui, permanecemos em debate estéril sobre modelos tributários que vão se tornar obsoletos, sem cuidar dos verdadeiros problemas e, muito menos, olhar para a frente.

Alguns preferem o copismo indolente, em que se abdica de pensar. Parafraseando Nelson Rodrigues, complexo de vira-latas não se improvisa. É obra de séculos.

O principal problema tributário é o litígio permanente que fulmina a segurança jurídica, inclusive para o Fisco.

Os litígios, compreendendo a dívida ativa e os contenciosos administrativo e judicial dos entes federativos, alcançam valores superiores à metade do PIB brasileiro. Eles só incidentalmente se associam à natureza dos tributos. Na essência, dizem respeito ao processo.

Há três fontes de litígios: o lançamento sem culpa, o questionamento da matéria tributária pela via do controle difuso de constitucionalidade e a grande indeterminação de alguns conceitos.

A legislação processual tributária brasileira é demasiado claudicante. Nem sequer temos normas gerais de processo tributário.

Autos de infração insubsistentes não geram custo para o Estado, porém infernizam a vida do contribuinte, envolvendo desde danos reputacionais até custos advocatícios, daí passando à exigência de vultosas garantias na esfera judicial.

Não raro me deparo com autos de infração de bilhões de reais. Não é crível que uma empresa com ações em Bolsa pratique evasão fiscal desse porte. Trata-se apenas de um sintoma de gravíssima doença processual, que fulmina a pretensão de investir.

Para enfrentar esse delírio fiscal, os tributaristas Gilberto Ulhôa Canto, Geraldo Ataliba e Gustavo Miguez de Mello conceberam, há décadas, a integração entre os processos tributários administrativo e judicial, de que resultariam equiparação de forças entre o Fisco e o contribuinte, sucumbência na hipótese de insubsistência do auto de infração, eliminação da exigência de garantias em recursos e, por consequência, eliminação da execução fiscal judicial, responsável por mais de 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira. Em outras palavras, uma revolução.

As teses sobre inconstitucionalidades tributárias, quando suscitadas em primeira instância, geram processos que podem se arrastar por décadas para, afinal, resultar em incontornáveis problemas arrecadatórios, sem falar da possibilidade de quebra de isonomia por repercussões diferenciadas sobre contribuintes.

Esse é um problema que demanda muita criatividade para ser resolvido. Uma pista seria a instituição de um incidente de constitucionalidade que remetesse decisões de primeira instância diretamente para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Quanto à indeterminação conceitual, os mais relevantes problemas estão vinculados aos limites do planejamento tributário e à presunção de dano ao erário. Em ambos os casos, é visível que se fundam em legislações obscuras e lacunosas que dão lugar a esdrúxulas arbitrariedades. O espantoso é que nada se faz para corrigir essas distorções.

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)


Everardo Maciel: Não é simples

Principal elogio à PEC 45 está na redução do número de tributos. Mas seria isso realmente simplificação?

Ainda que timidamente, começa a ser desvelada a natureza da PEC 45, autodesignada reforma tributária.

Já se reconhece que os pequenos e médios prestadores de serviço e a incorporação imobiliária terão aumento desproporcional de carga tributária, sob a alegação de que são subtributados (como se existisse uma tributação “normal”) e de que consultas médicas, mensalidades escolares, prestações da casa própria, aluguéis, passagens de ônibus, diárias de hotéis, etc., são gastos “de ricos”, o que para a classe média pode parecer ofensivo. De igual modo, já se admite que os maiores beneficiários da brutal redistribuição de carga decorrente da PEC seriam as instituições financeiras, que provavelmente devem estar reclamando de seus modestos lucros.

Os profissionais autônomos, os produtores rurais, qualificados como pessoas físicas equiparadas às jurídicas, e os pequenos e médios comerciantes e industriais ainda não entenderam claramente que estão no rol das vítimas potenciais. Suas pequeníssimas margens seriam tragadas pela proposta, o que inviabilizaria seus negócios, mesmo sabendo que são justamente serviços e agronegócio a sustentação dos raquíticos crescimentos do PIB brasileiro. Quando se aperceberem da tragédia, é pouco provável que fiquem felizes.

Pude perceber que o principal elogio à proposta se concentra na sua índole simplificadora, porque reduz o número de tributos. Seria isso realmente uma simplificação?

O Simples, instituído em 1996, era apurado pela singela aplicação de uma alíquota sobre uma base de cálculo, substituindo praticamente a arrecadação de todos os tributos federais incidentes sobre micro e pequenas empresas. Com ele coexistiam harmonicamente sistemas estaduais simplificados (Simples Caipira, Simples Candango, etc.). No bem-intencionado propósito de torná-los ainda mais simples, a Emenda Constitucional n.º 43, de 2003, previu a instituição do Simples Nacional, abrangendo todas as entidades federativas. Paradoxalmente, o sistema se tornou complexo, a ponto de a Lei Complementar n.º 123, de 2006, que implementou o Simples Nacional, admitir, em seu artigo 18, parágrafo 15, a indispensabilidade de um sistema operacional para possibilitar a apuração de um tributo presumidamente simples. Era um pedido de desculpas do legislador.

Hoje, o Simples Nacional precisa ser reformado, antes que se torne alvo dos “simplificadores”.

Imagine reunir num só tributo incidências sobre a receita, como PIS-Cofins, e sobre o consumo, como ICMS, IPI e ISS, com administração compartilhada por todas as administrações tributárias dos entes federativos.

Como é constitucionalmente vedado converter o País num Estado unitário, seria instituída uma ciclópica administração tributária, com ares de um hipopótamo trôpego, sem falar na expansão descomunal da Justiça Federal, considerando que o tributo seria incluído em sua jurisdição.

PIS e Cofins têm praticamente a mesma legislação. Fundi-los implica tão somente abrir um contencioso sobre suas respectivas destinações (Fundo de Amparo ao Trabalhador e orçamento de seguridade social). Para o contribuinte, nenhuma vantagem. É, portanto, mero simplismo, e não simplificação.

Se a inclusão do IPI nesse bolo se volta para extinguir a Zona Franca de Manaus, a do ISS e do ICMS é ofensiva ao pacto federativo.

O aumento de carga tributária sobre os optantes do lucro presumido, sob a égide da simplificação, é, paradoxalmente, um preconceito contra os regimes simplificados.

Seguramente, nenhum dos mais de 850 mil contribuintes optantes do lucro presumido, os incorporadores com regime do patrimônio de afetação e os produtores rurais equiparados a pessoas jurídicas, tem qualquer queixa quanto à complexidade de seus respectivos modelos de incidência. Mas o que sabem eles sobre tributos, quando pessoas pretensamente mais informadas optam por trotar sobre suas preferências?

Não é demais lembrar a lição do jornalista Henry Mencken (1880-1956): “Todo problema complexo tem uma solução simples, fácil e errada”.

*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)


Everardo Maciel: Um elefante em loja de louças

A PEC n.º 45, de 2019, autodesignada 'reforma tributária', é um exemplo eloquente de diagnóstico mal formulado e tratamento inadequado

Reforma é, compreensivelmente, uma palavra mágica que mobiliza sentimentos de esperança ante o eterno desconforto do presente, ainda que, a rigor, não queira dizer absolutamente nada, porquanto implica enorme diversidade de perspectivas e arranjos.

Há, entretanto, quem condicione investimentos à consecução das “reformas”, mesmo que não saiba quais são elas. É uma espécie de sebastianismo redivivo, que cultua a redenção por práticas salvacionistas e prospera em contexto que encerra frustração, desinformação, interesses dissimulados e manipulação intelectual.

Esse quadro se ajusta bem à nossa crônica indisposição para refletir sobre problemas e, em seguida, eleger soluções jurídica e economicamente consistentes e menos custosas, inclusive na perspectiva política.

No âmbito tributário, temos sido vítimas frequentes de diagnósticos errados e tratamentos excessivos (overdiagnosis and overtreatment, na linguagem médica). Ensina o pensador italiano Michelangelo Bovero, em entrevista ao Valor de 12.9.2014: “O remédio pode ser pior que a doença. Medicina, em grego, é fármacon. E o primeiro significado de fármacon é veneno”.

A PEC n.º 45, de 2019, autodesignada “reforma tributária”, é um exemplo eloquente de diagnóstico mal formulado e tratamento inadequado.

É indiscutível que o sistema tributário brasileiro tem problemas, como de resto todos os sistemas tributários do mundo, em todo o tempo. Afinal, eles resultam de embates parlamentares, que envolvem conflitos de razão e de interesse. Derivam, portanto, da inevitável imperfeição dos atos humanos.

Essa constatação não autoriza, todavia, imobilismo e conformismo, mas racionalidade, prudência e pragmatismo.

No caso específico, cabe refletir se as soluções apontadas cuidam dos problemas prioritários, sem criar novos problemas. As dificuldades para pagar impostos, que qualificam o Brasil em aviltante condição nos relatórios Doing Business do Banco Mundial, não decorrem da natureza dos tributos, mas principalmente de sobrecarga burocrática, notadamente as obrigações acessórias. Pretextar essas dificuldades para propor reforma de tributos é exercício de lógica borrada.

Os litígios, que espantam os investidores estrangeiros e perfazem valores que ultrapassam a metade do PIB, tampouco têm a ver com a natureza dos tributos. Resultam das gritantes disfunções do processo tributário e da incúria na resolução de temas controversos ou de baixa densidade normativa, como planejamento tributário abusivo, substituição tributária, ágio, etc.

Os problemas do ICMS, PIS/Cofins e ISS têm solução, sem que se apele para construções disruptivas e sem perder de vista as questões tributárias contemporâneas decorrentes da revolução digital, globalização e práticas predatórias dos paraísos fiscais.

A PEC n.º 45 é um elefante em loja de louças. Dispõe sobre mais de 150 dispositivos na Constituição e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com prazo final de implantação de 50 anos e prazos de transição de 2 e 10 anos. Alguém, em sã consciência, pode afirmar que daqui a 50 anos existirão impostos tal como hoje conhecemos?

Ofensa ao pacto federativo, cláusula pétrea insusceptível de emenda constitucional, vem sendo suscitada por eminentes tributaristas, aos quais me associo, como Hamilton Dias de Souza, Heleno Torres, Humberto Ávila, Roque Carrazza, Ricardo Lodi Ribeiro, Roberto Quiroga, Roberto Wagner Nogueira, Tathiane Piscitelli. Já aí se avista um litígio de grandes proporções.

A esse litígio se juntariam inúmeros outros, em desfavor da combalida segurança jurídica, a exemplo dos que decorreriam de novos conceitos, como as pitorescas “alíquotas singulares”, que refazem vinculações que a própria proposta extingue, e os que se deduziriam da instituição de um “comitê gestor” do tributo, com competência para expedir normas que usurpam funções do Poder Legislativo e, quem sabe, almejando converter-se no quarto ente federativo.

Um consolo para os articulistas: a PEC reúne um enorme potencial de críticas que não se esgotam em um artigo.

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)


Everardo Maciel: Incentivos fiscais, mais uma vez

A competição fiscal lícita é tão antiga quanto a história dos impostos

Se tributo constitui uma indispensável intervenção do Estado, que contrapõe o interesse público à liberdade individual, evitá-lo ou reduzi-lo pode ser um valioso instrumento à disposição dos entes tributantes (países, Estados e municípios) para fomentar o desenvolvimento.

É nessa perspectiva que devem ser entendidos incentivos fiscais motivados pelos interesses de um país, no contexto da competição internacional, ou pela pretensão, no âmbito de uma jurisdição nacional, de corrigir desigualdades regionais de renda.

A fixação de regras, por meio de tratados internacionais ou de legislações nacionais, delimita a possibilidade de utilização de tributos na atração de investimentos ou para evitar que se relocalizem. Configura-se, nessas circunstâncias, a competição fiscal lícita, que é tão antiga quanto a história dos impostos.

A prática da competição fiscal lícita pode, sem dúvida, não corresponder ao melhor padrão de eficiência econômica.

No caso dos incentivos fiscais regionais, o que prevalece, todavia, é a unidade nacional, cuja relevância é igual ou superior à da eficiência econômica.

No Brasil, a correção das abissais desigualdades regionais converteu-se, a propósito, em um dos objetivos fundamentais da República (artigo 3.º, III, da Constituição) e constitui critério, também constitucional, para a partilha de rendas e a alocação de recursos orçamentários.

Alguns dos que se opõem à concessão de incentivos fiscais, com aquela finalidade, alegam que seria preferível recorrer-se ao gasto público. É uma ideia generosa, porém ingênua.

As experiências de enfrentamento das desigualdades regionais, centradas apenas em gastos públicos diretos, se revelaram poucos eficazes, tanto no exterior (por exemplo, os programas da Tennessee Valley Authority, nos EUA, ou da Cassa per il Mezzogiorno, no sul da Itália) quanto no Brasil (Sudene, Sudam). No máximo, constituem ações suplementares. Infelizmente, inexiste, nas regiões mais desenvolvidas do País, um comprometimento real com a redução das disparidades regionais de renda, vista quase como um objetivo excêntrico.

É nesse contexto que prospera a resistência à concessão de incentivos fiscais do ICMS, em oposição ao que se encontra expressamente previsto no texto constitucional (artigo 155, parágrafo 2.º, XII, g).

A resistência também se revela mediante defesa de um vetusto e perigoso clichê: o princípio do destino, consistindo na opção pela alíquota zero nas operações interestaduais do ICMS.

É óbvio que, nessa hipótese, não existiriam incentivos, porque são fundados estritamente em reconhecimento, no destino, de créditos não integralmente recolhidos na origem, tal como ocorre em relação ao Imposto de Renda entre países (cláusula de tax sparing). Trata-se, tão somente, de uma forma dissimulada de se opor à concessão de incentivos do ICMS.

Se a competição fiscal lícita é inerente à história dos impostos, a ilícita (guerra fiscal) tem natureza francamente predatória.

A Lei Complementar n.º 160/2017, apesar de suas imperfeições, ofereceu um roteiro para resolução da guerra fiscal do ICMS. O processo tem se revelado lento, mas é consistente.

Malgrado o instrumento próprio ser a lei ordinária, aquela lei complementar acolheu normas de caráter interpretativo (artigos 9.º e 10.º), que proclamaram o óbvio: não há incidência de tributos federais sobre incentivos fiscais do ICMS.

Se incidência houvesse, a União estaria se apropriando de renúncia fiscal dos Estados, o que corresponderia a uma abstrusa partilha de renda sem previsão constitucional.

É desarrazoado, por conseguinte, falar-se em renúncia fiscal da União, seja porque o conceito é inaplicável, pois se trata de mera interpretação legal, não havendo sequer incidência, seja porque se ela existisse anularia, ao menos em parte, o propósito do incentivo estadual, gerando despropositado conflito federativo.

Esse entendimento, aliás, vem sendo sancionado em vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça. Mais uma vez, inauguramos uma falsa controvérsia.

* Everardo Maciel é consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)


Everardo Maciel: Tributação dos combustíveis, a marcha da insensatez

Exploro, neste artigo, uma das razões alegadas para a “greve” dos caminhoneiros: a tributação dos combustíveis.

A questão remonta à Constituição de 1988. Antes dela, combustíveis e lubrificantes, energia elétrica, minerais e serviços de transporte e comunicações eram tributados exclusivamente pela União.

Para ampliar a abrangência do então vigente ICM, os constituintes decidiram incluir aquelas bases no campo de incidência do imposto, que passou a denominar-se ICMS.

O fundamento da mudança seria a redução da cumulatividade do sistema tributário, conquanto o conceito seja inaplicável a tributos que não integram um mesmo ciclo impositivo.

Ainda na Constituição de 1988, proclamou-se ampla liberdade na fixação de alíquotas do ICM, em contraste com a alíquota uniforme do ICM, conforme estabelecia a Constituição. Curiosamente, a uniformidade de alíquota converteu-se em objeto de atuais propostas reformistas.

Como é relativamente mais fácil cobrar tributo de energia elétrica, combustíveis e telecomunicações, os Estados optaram por fixar alíquotas completamente desproporcionais nessas bases, chegando a ultrapassar 30%, o que constitui um insólito recorde mundial.

Dados de 2017, mostram que a arrecadação nacional do ICMS, relativa àquelas bases, representa 48% do total (petróleo e combustíveis, 23%).

Esses percentuais traduzem uma enorme e perigosa dependência, que inibe, no curto prazo, qualquer possibilidade de revisão da política tributária do ICMS.

No âmbito federal, os combustíveis restaram tributados pelo PIS/Cofins.

Desde 1978, os preços tabelados de combustíveis incluíam uma parcela denominada FUP (Frete de Uniformização de Preços), que objetivava equalizar os preços dos produtos, tendo em vista a diversidade de distâncias entre refinarias e postos de abastecimento.

Na década de 1990, houve uma grande desregulamentação do mercado, principalmente por força da eliminação do monopólio da Petrobras nas atividades de comercialização e importação de combustíveis, daí decorrendo melhoria de competitividade, a despeito de aumento da sonegação e da adulteração de produtos.

Nesse contexto, foi extinta a FUP, sendo criada, entretanto, uma conta financiada por item integrante dos preços, denominado Parcela de Preço Específica (PPE), que bancava a diferença entre os preços de petróleo importado, em regime de monopólio pela Petrobras, e o produzido no País.

A eliminação, em 2002, do monopólio da Petrobras na importação, implicava extinção da PPE, com perda de arrecadação, e desequilíbrio de tratamento tributário entre o combustível importado e o produzido domesticamente, pois este seria tributado pelo PIS/Cofins e aquele não.

A solução encontrada consistiu em estabelecer previsão constitucional (Emenda 33/2001) para instituição de uma contribuição de intervenção econômica (CIDE) no setor.

As alíquotas da CIDE poderiam ser diferenciadas por produto, o que permitiria conferir tratamento menos gravoso ao etanol, e alteráveis por decreto, do que resultaria imediato ajustamento ao instável mercado internacional de petróleo.

O produto da arrecadação seria destinado, inclusive, à concessão de subsídios a preços e ao transporte de combustíveis, de caráter compensatório às flutuações nos preços de combustíveis ao consumidor final.

O sucesso da CIDE no combate à sonegação e estímulo ao etanol não teve correspondência na destinação dos recursos.

Procedeu-se, igualmente, à alteração constitucional no ICMS incidente sobre combustíveis, prevendo alíquota uniforme e com a mesma flexibilidade da CIDE. Essas regras, entretanto, jamais vieram a ser implementadas.

A Emenda Constitucional 42/2003, ao alterar o art. 150, fulminou a flexibilidade da CIDE. Já a Emenda 44/2004, estabeleceu a partilha da CIDE com os Estados e Municípios, comprometendo sua finalidade regulatória.

Portanto, os problemas na tributação dos combustíveis não têm explicação genérica, mas muito específica. Decorrem de opções erradas feitas na marcha da insensatez.

 


Everardo Maciel: Insegurança tributária

Temos um excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais

Um traço dominante da cena atual brasileira é, sem dúvida, a insegurança, que se revela de inúmeras formas, desde o desrespeito à propriedade e aos contratos até a dramática violência urbana, promovida pelo crime organizado e pelas milícias.

Nesse contexto, desponta a insegurança jurídica, com grande potencial para minar os valores básicos que regem a vida em sociedade.

No âmbito tributário, segurança jurídica é fator crucial para os investimentos.

Processos morosos e com elevado grau de imprevisibilidade, conceitos excessivamente indeterminados e interpretações ciclotímicas afugentam investidores e criam um clima hostil aos negócios.

As decisões judiciais sobre a natureza da substituição tributária constituem um bom exemplo de ciclotimia interpretativa.

Utilizada desde os anos 1970, ainda que de início restrita a um pequeno número de produtos e com nítido propósito de combater a evasão fiscal, a substituição tributária foi incluída na Constituição pela Emenda n.º 3, de 1993.

A inclusão justamente no âmbito das limitações do poder de tributar, tratadas no artigo 150 da Constituição, revela claramente uma pretensão de restringir o uso do instituto. Não foi, entretanto, o que ocorreu.

Logo após a promulgação daquela emenda, houve um aumento exponencial de uso da substituição tributária. Não raro foi utilizada com flagrantes extravagâncias, especialmente no que concerne à fixação das margens de valor agregado e abrangência dos produtos.

Instado a examinar a matéria, o STF adotou, por incrível que pareça, entendimentos completamente antagônicos.

A balbúrdia interpretativa torna, inclusive, duvidosa a jurisprudência prevalecente, que pode, a qualquer tempo, ser revertida, em virtude, por exemplo, de uma nova composição da Corte.

Esse fato, em boa medida, se explica pela descomunal extensão da matéria tributária constitucional, que gera espaço para uma miríade de questionamentos, sobretudo quando se considera a nossa irresistível vocação para litigar, traduzida nos 80 milhões de processos em curso no Judiciário brasileiro.

No caso específico da substituição tributária, mais adequado teria sido discipliná-la no Código Tributário Nacional (CTN).

Vivemos, assim, um paradoxo: excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais.

Em recente colóquio em Lisboa, Humberto Ávila, titular de direito tributário na USP, assinalou sua perplexidade com a crise das regras: “O julgador não gosta da regra? Azar da regra! Sabe-se lá com que critério. Se não reabilitarmos as regras para limitar a participação do intérprete e para controlar o poder, vamos eliminar o caráter normativo do direito”.

Se a substituição tributária é capaz de produzir tamanho imbróglio, o que não dizer do planejamento tributário, com sua desproporcional capacidade de gerar grandes litígios?

O enfrentamento do planejamento tributário abusivo é tema extremamente relevante para as administrações tributárias de todo o mundo, conquanto encerre muitas controvérsias.

No Brasil, efetivamente somente mereceu atenção após a introdução do parágrafo único do artigo 116 do CTN, por meio da Lei Complementar n.º 104, de 2001. O enunciado da norma esclarecia que ela só lograria eficácia plena com o estabelecimento de procedimentos especiais definidos em lei ordinária.

A Medida Provisória n.º 66, de 2002, nos artigos 13 a 19, preenchia o requisito do CTN: distinguia dissimulação de simulação, definia as hipóteses de aplicabilidade do instituto da desconsideração administrativa (falta de propósito negocial e abuso de forma) e estabelecia os procedimentos especiais aplicáveis à hipótese.

Infelizmente, o Congresso Nacional não converteu em lei aqueles dispositivos.

A mora legislativa de 16 anos não impediu, contudo, o Fisco de proceder a questionáveis e exorbitantes lançamentos, visando a coibir planejamento tributário abusivo. A matéria, algum dia, terá imprevisível desfecho no STF. Por que não estabelecer, logo, a regra demandada pelo CTN, eliminando esse foco de insegurança jurídica?

* Everardo Maciel é  consultor tributário. Foi secretário da Receita Federal (1995-2002


Everardo Maciel: O andar do hipopótamo trôpego

As discussões sobre as reformas trabalhista e previdenciária, cujo desfecho é ainda imprevisível, fizeram aflorar reações que retratam o que existe de mais atrasado no País. São as corporações de todos os gêneros que defendem, arraigadamente, seus privilégios e, sobretudo, o controle do Estado brasileiro, antes limitado a velhos oligarcas políticos e ao empresariado patrimonialista.

Nada, no Brasil, é mais maltratado que o próprio Estado. Dele se extrai tudo que é possível, desde incentivos ineficazes, aposentadorias privilegiadas, programas assistenciais que não viabilizam a promoção social, férias em dobro e convertidas em dinheiro, salários que ultrapassam o teto constitucional e, sobretudo, o que se rouba na farra da corrupção sistêmica.

Como o Estado não produz riqueza, essas práticas de espoliação constituem tão somente uma pervertida forma de redistribuir o que a Nação produz, além de, paradoxalmente, impedir que ela produza mais.

Uma população pouco esclarecida, em razão do lastimável padrão da educação pública, é um espaço fértil para o engodo e a manipulação.

Quando se diz que a reforma trabalhista irá retirar direitos dos trabalhadores, o que na verdade se defende é a manutenção do imposto sindical que abastece o peleguismo, cuja atividade jamais foi fiscalizada, afora tudo o que gravita em torno da justiça trabalhista, que se alimenta da tentacular indústria de litígios.

Os movimentos contrários à reforma previdenciária visam tão somente a assegurar privilégios na aposentadoria do setor público. Não há preocupação com as gerações futuras, nem mesmo com a existência de recursos para o pagamento das aposentadorias no curto prazo. Prefere-se a dolorosa via grega do desastre.

É impressionante a “contabilidade criativa” para tentar, primariamente, mascarar os déficits da Previdência.

Há quem diga, espantosamente, que é necessário contratar mais servidores para assegurar o equilíbrio nas contas previdenciárias, como se o pagamento desses servidores não fosse dispêndio. O Estado brasileiro, ressalvadas algumas ilhas de excelência, além de estar enredado em uma grave crise fiscal, funciona muito mal.

A administração da saúde pública, por exemplo, é uma calamidade. A pretensão constitucional de qualificar a saúde como direito universal é patética, porque viola o inexorável princípio da escassez. A busca desse direito, na Justiça, é uma excentricidade. O magistrado demandado não dispõe de qualificação técnica para aferir a procedência do pedido e muito menos estabelecer, considerada a limitação de recursos materiais e financeiros, prioridade no atendimento.

Greve no setor público nega a sua própria razão de ser. É greve contra os usuários do serviço público, fazendo prevalecer o interesse individual sobre o público. Em alguns casos, assume natureza de motim.

É verdade que essa greve tem previsão constitucional, mas até hoje o Congresso não se dispôs a disciplinar o instituto e, dominado pelo medo das corporações, se abriga em uma decisão precária tomada pelo STF. Há ainda quem se queixe, sem razão no caso, do ativismo judicial.

Foi um enorme erro, na Constituição de 1988, conceder autonomia orçamentária para os Poderes Judiciário e Legislativo e para o Ministério Público.

A consequência dessa imprudente iniciativa se revela nos suntuosos palácios que albergam os órgãos daquelas instituições, em contraste com a precariedade de estradas, escolas e hospitais. De igual forma, os regimes de pessoal de seus servidores são generosos, quando confrontados com os dos demais servidores.

A política de gastos públicos, inclusive a de pessoal, tem que se sujeitar a critérios gerais. Diferenciações não podem decorrer do vínculo a Poder, mas da natureza da atividade. A independência dos Poderes não autoriza concluir que pertencem a Estados soberanos.

Ainda que indispensável, não será fácil reformar o Estado brasileiro. As forças reacionárias são poderosas. Por um bom tempo, o Estado prosseguirá marchando como um hipopótamo trôpego.

* Consultor tributário, foi Secretário da Receita Federal (1995-2002)

Foto: O senador Cássio Cunha Lima, o presidente do Senado, Eunício Oliveira, e o senador João Alberto Souza durante sessão plenária para discutir reforma trabalhista (Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-andar-do-hipopotamo-tropego,70001878627