ética

Luiz Carlos Azedo: O mito do “homem cordial”

“Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça”

O “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, não é bem aquilo que o senso comum deduz à primeira vez que se depara com o conceito-chave de sua obra seminal, Raízes do Brasil. A expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza, vem de “cordis”, em latim, ou seja, relativo a coração. Para Buarque, o brasileiro não suporta o peso da própria individualidade, precisa “viver nos outros”. A apropriação afetiva do outro seria um artifício psicológico e comportamental predominante na sociedade brasileira, parte integrante do nosso processo civilizatório.

A cordialidade “pode iludir na aparência”, explica Buarque. A polidez do “homem cordial” é organização da defesa ante a sociedade. “Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.” O brasileiro dispensa as formalidades, pretende estreitar as distâncias, não suporta a indiferença, prefere ser amado ou odiado.

Em grande parte, a “fulanização” da política brasileira vem desse viés antropológico, embora nossas instituições políticas sejam surpreendentemente robustas, como destacou recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao comentar a relação do presidente Jair Bolsonaro com o Legislativo: os partidos são fracos, mas o Congresso é forte. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essas características do “homem cordial”. Num primeiro momento, nas relações interpessoais; depois, no processo político, principalmente nas disputas eleitorais.

Bolsonaro e sua antítese, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi condenado e está preso, exacerbam essas características da política brasileira. Ambos flertam com o populismo, buscam aproximação afetiva com aliados e eleitores, protagonizam a exacerbação das paixões políticas. Ambos se enquadram no “tipo ideal” da obra de Sérgio Buarque, se analisarmos com esse olhar o papel de cada um na vida nacional.

E o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que ontem estava sendo sabatinado na Câmara, por sua atuação heterodoxa, digamos assim, na Operação Lava-Jato? Pelas próprias características de seu trabalho como juiz federal, seu comportamento formal e circunspecto não se enquadra nesse tipo ideal do “homem cordial”. Ou melhor, não se enquadrava, até serem reveladas as conversas que mantinha com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato.

O semideus

Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói da Ilíada de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça. Mas tinha uma existência verdadeira, que pressupõe também a volta para casa, a vida normal — até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual, de grande bravura. O herói semideus faz coisas sobre-humanas, mas não é imortal.

A filósofa Hannah Arendt, em A Condição Humana, discorrendo sobre o mito do herói, destaca que a sua coragem antecede as grandes batalhas, tem a ver com disposição de agir e falar, se inserir no mundo e começar uma história própria. O herói não é necessariamente o homem de grandes feitos, equivalente a um semideus; pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso e da ação. O herói é sempre aquele que se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.

Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não tinha a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.

Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro manteve-se na crista da onda, mas deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo agora foi posto em xeque. As revelações do site The Intercept Brasil sobre supostas trocas de mensagens entre Moro e procuradores da Lava-Jato em Curitiba sugerem a intervenção indevida do então juiz federal na condução da operação, inclusive com a indicação de possíveis testemunhas. O cristal de seu pedestal de herói foi trincado por conversas banais nas redes sociais. O mito do herói ainda sobrevive, mas já não é a mesma coisa: Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. A vida real está revelando a face oculta de mais um “homem cordial”.

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Luiz Carlos Azedo: O senso dos exaltados

“A radicalização inibe os agentes econômicos e atrasa a aprovação das reformas que podem retirar a economia da estagnação, principalmente a da Previdência”

Muitos cartazes e faixas nas manifestações de domingo passado em apoio ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, tinham um significado muito claro: defendiam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Legítimas palavras de ordem em favor da reforma da Previdência, da Operação Lava-Jato e da legislação anticrime, fatores de mobilização da opinião pública, foram desvirtuadas por algumas lideranças que defendem a substituição de nossa democracia representativa por um regime autoritário.

Militantes do Vem Pra Rua e do MBL, que convocaram os protestos, foram agredidos por integrantes de grupos de extrema direita que defendem a transformação do governo num regime militar. O MBL e o Vem Pra Rua surgiram durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas não participaram das manifestações pró-Bolsonaro de maio passado por terem sido convocadas para pressionar o Congresso e o Supremo. Entretanto, apoiam a Lava-Jato e Sérgio Moro. Por isso, convocaram a manifestação de domingo, que foi engrossada pelos militantes que defendem uma intervenção militar. Os dois grupos se estranharam. Na Avenida Paulista, somente não houve um conflito generalizado por intervenção da Polícia Militar, que conteve os mais exaltados.

Tais fatos merecem uma reflexão sobre o nível de exacerbação criado pela radicalização política. Alguém já disse que o senso comum em relação a certos temas nem sempre coincide com o bom senso. Os protestos foram convocados depois que o site The Intercept Brasil passou a divulgar supostas trocas de mensagens entre Moro e procuradores da Lava-Jato em Curitiba, que sugerem a intervenção do então juiz federal na condução da operação, inclusive com a indicação de possíveis testemunhas. Há duas discussões cruzadas na questão: uma trata da objetividade dos crimes cometidos pelos réus da Lava-Jato e as penas em relação aos seus atos; a outra, da necessária separação de papéis entre quem investiga, quem acusa e quem julga, pressupostos da ordem democrática. A esfera de decisão sobre esses assuntos é o Poder Judiciário.

É óbvio que, na democracia, o povo tem direito de se manifestar como quiser. Tanto o Congresso como o Supremo têm que saber suportar a crítica das ruas. Mas não é uma boa política o Executivo estimular esse tipo de mobilização, muito menos um ministro de Estado como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, subir no palanque como se fosse mais um militante de direita radical.

Por uma série de razões, entre as quais a situação da economia, o presidente Jair Bolsonaro vive um momento delicado de seu governo, que ainda não deslanchou e perde popularidade. Em circunstâncias normais, diante da agenda do governo no Congresso e dos problemas da economia, o movimento natural seria a busca de negociação política. Mas não é isso que acontece. Essa mudança na chamada “correlação de forças” anima a oposição a retomar a iniciativa política e, em contrapartida, estimula o presidente da República a buscar apoio nas ruas, mobilizando sua base eleitoral mais ideológica.

Radicalização

Tanto os setores governistas mais moderados quanto os da oposição estão sendo frustrados nas tentativas de negociação política por causa dos mais exaltados. De um lado, o PT mantém uma ofensiva contra a Lava-Jato e Sérgio Moro, na expectativa de que o Supremo anulará o processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por causa do suposto relacionamento indevido do ex-juiz com os procuradores da força-tarefa de Curitiba. De outro, o presidente Jair Bolsonaro agarra a bandeira da luta contra corrupção e manipula a opinião pública contra os demais poderes, para deslocar a linha de apoio do seu governo para a fronteira majoritária que respalda a Lava-Jato.

Esse ambiente de radicalização, porém, inibe os agentes econômicos e atrasa a aprovação das reformas que podem retirar a economia da estagnação, principalmente a da Previdência. Os lobbies contrariados pela reforma estão organizados e atuam intensamente no Congresso para manter seus privilégios. Como são setores incrustados no aparelho de Estado, em todos os níveis, têm mais poder de barganha do que os demais trabalhadores a serem atingidos pelas mudanças na Previdência, principalmente os do setor privado, cujos sindicatos estão muito enfraquecidos em razão do desemprego e do fim do imposto sindical.

A situação somente não é mais desfavorável à aprovação da reforma porque há um esforço para blindar a economia de parte das principais lideranças da Câmara, lideradas pelo seu presidente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que foi muito atacado nas manifestações. Na linha de frente das pressões corporativistas para manter os privilégios na reforma estão partidários do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula. É a chamada unidade dos contrários.

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Luiz Carlos Azedo: A revolta dos perus

“Houve entendimento entre governistas e oposição quanto aos termos do acordo, mesmo assim, há resistências nas bancadas dos respectivos estados para aprovar a reforma da Previdência, apesar do acordo de governadores”

Não vai ser nada fácil convencer os deputados federais a aprovarem a inclusão de estados e municípios na reforma da Previdência, apesar da grande mobilização dos governadores para que a reforma seja única. Ontem, no Congresso, além de chegarem a um consenso sobre os pontos que devem ser excluídos da reforma, 25 dos 27 governadores fizeram corpo a corpo no Congresso com as bancadas de seus estados, mas não adiantou muito. Os deputados estão refugando, como perus convidados para a ceia de Natal. O acordo dos governadores exclui do texto o regime de capitalização proposto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Também propõe a manutenção das regras atuais da aposentaria rural e de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e a deficientes carentes.

Apenas os governadores do Maranhão e do Amazonas não participaram do encontro. O relator da reforma da Câmara, deputado Samuel Moreira(PSDB-SAP); o presidente da Comissão Especial, deputado Marcelo Ramos (PL-AM); o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); e a líder do governo Bolsonaro no Congresso, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), participaram da reunião, da qual foram porta-vozes os governadores do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB); de São Paulo, João Dória (PSDB); e do Piauí, Wellington Dias (PT). Houve entendimento entre governistas e oposição quanto aos termos do acordo, mesmo assim, há resistências nas bancadas dos respectivos estados.

“Esse acordo não passa na Câmara. Na bancada de Minas, por exemplo, somente oito dos 53 deputados aceitam incluir estados e municípios”, dispara o deputado Fábio Ramalho(MDB-MG). “Quero ver o governador do meu estado convencer a Assembleia de Minas a aprovar a reforma”, desafia. Ramalho é porta-voz do chamado baixo clero da Câmara, que costuma jogar duro nas negociações. Em contrapartida, seu colega Domingos Sávio (PSDB-MG) foi à tribuna, durante votação dos créditos suplementares para o governo federal pelo Congresso, para comemorar o fato de seu partido ter fechado questão a favor da reforma da Previdência. Ele é um dos oito mineiros que, até agora, defendem a reforma unificada.

Matou no peito
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), matou no peito a proposta de CPI para investigar a Lava-Jato. Já avisou que, se for apresentado o requerimento, vai engavetar o pedido, da mesma forma como fez com a CPI do Judiciário, por ser inconstitucional. Durante sessão do Congresso, Alcolumbre anunciou que o ministro da Justiça, Sérgio Morto, comparecerá ao Senado para dar esclarecimentos sobre suas conversas com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, vazadas no domingo pelo site Intercept.

Na contra-ofensiva, o Palácio do Planalto se antecipou à eventual convocação do ministro, depois de uma negociação entre a presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Simone Tebet (MDB-MS), e o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE). Quando era juiz da 13ª. Vara Federal de Curitiba, responsável pela Lava-Jato, Moro orientou ações e cobrou novas operações dos procuradores que atuam na Lava-Jato, por meio do aplicativo de mensagens Telegram.

Os bastidores da Lava-Jato foram um dos temas mais discutidos no Congresso ontem, mas o governo reagiu em linha em defesa do ministro da Justiça, para neutralizar as críticas da oposição. Até o general Eduardo Villas Boas, assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), saiu em defesa do ex-juiz. O ex-comandante do Exército disse que “a insensatez e o oportunismo” ameaçam a Lava-Jato e manifestou “respeito e confiança” no ministro da Justiça. A Polícia Federal investiga os vazamentos, que o Palácio do Planalto considera uma “ação orquestrada”.

Moro também foi blindado pela decisão do corregedor do Conselho Nacional de Justiça, Humberto Martins, que arquivou o pedido de que fosse investigado. “A adoção da tese de que seria possível se aplicar penalidade a juiz exonerado criaria uma situação no mínimo inusitada: o juiz pediria exoneração, cortando seu vínculo com a administração, e a instância administrativa instauraria um procedimento que, se ao final concluísse pela aplicação da penalidade, anularia a exoneração e aplicaria ao juiz a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais.”

No Supremo Tribunal federal (STF), os ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello criticaram a postura de Moro e dos procuradores da Lava-Jato, revelada pelas mensagens, mas o ministro Luís Barroso saiu em defesa dos integrantes da força-tarefa e do ministro. Nos bastidores da Corte, o assunto é muito quente, por causa do julgamento do pedido de liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Segunda Turma do STF, marcado para o próximo dia 25, em razão de o ministro Gilmar Mendes, que havia pedido vista, ter liberado o processo para votação. Trata-se de habeas corpus apresentado no ano passado, no qual a defesa de Lula questiona a atuação de Moro durante o processo que condenou o ex-presidente.

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Luiz Carlos Azedo: A roupa íntima da Lava-Jato

”Políticos se mobilizam para convocar Moro a depor na Câmara e no Senado, falam até na instalação de uma CPI da Lava-Jato, além da aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade”

Uma das teorias da linguagem na internet, desenvolvida ainda nos tempos da linha discada, com seus ruídos característicos, foi batizada com o nome de “roupa íntima”. Trata-se da contaminação da linguagem adotada pelos usuários da internet pela informalidade do contexto em que utilizavam o computador, nas primeiras horas da manhã ou tarde da noite, geralmente utilizando a roupa com que acordavam ou iriam dormir. Os especialistas advertiam que essa informalidade era um risco para as comunicações de natureza comercial, administrativa ou diplomática.

Essa teoria foi comprovada no escândalo do WikiLeaks, a organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, administrada pelo jornalista e ciberativista australiano Julian Assange, que divulgou em 2013 milhares de documentos secretos do governo dos Estados Unidos, que monitorou conversas telefônicas e mensagens de e-mail em dezenas de países, com comentários assombrosos e revelações escabrosas de diplomatas e funcionários sobre a atuação do Departamento de Estado no mundo. Entre os documentos divulgados mais recentemente, um vídeo de 2007 mostra o ataque de um helicóptero Apache dos marines que matou pelo menos 12 pessoas, dentre as quais dois jornalistas da agência de notícias Reuters, em Bagdá, no contexto da ocupação do Iraque.

Coincidentemente, o autor do “furo”, o jornalista Glenn Greenwald, então colunista do jornal inglês The Guardian, que publicou os documentos também no The Washington, é o responsável pelo site Investigativo The Intercept, que divulgou neste domingo conversas comprometedoras, no aplicativo russo Telegram, do ministro da Justiça, Sérgio Moro, então juiz da 13ª. Vara Federal de Curitiba, e procuradores federais da força-tarefa da Operação Lava-Jato, entre eles Deltan Dallagnol, sobre assuntos da investigação. Casado com o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), Greenwald mora no Rio de Janeiro desde 2005.

Suas revelações mobilizaram os advogados de Lula e o PT, que denunciam a suposta contaminação do julgamento de Lula por motivações políticas da Lava-Jato. No Congresso, políticos de diversos partidos se mobilizam para convocar Moro a depor na Câmara e no Senado, falam até na instalação de uma CPI para investigar a Lava-Jato, além da aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade. Greenwald diz que o volume de material obtido por ele neste caso supera o da reportagem que lhe valeu o prêmio Pulitzer, graças à parceria com o ex-agente da CIA e da NSA Edward Snowden, que está preso até hoje

Moro minimizou o fato e atacou os autores do vazamento: “Não vi nada de mais ali nas mensagens. O que há ali é uma invasão criminosa de celulares de procuradores, não é? Pra mim, isso é um fato bastante grave — ter havido essa invasão e divulgação. E, quanto ao conteúdo, no que diz respeito à minha pessoa, não vi nada de mais”, disse o ministro, após participar de evento com secretários de segurança pública em Manaus.

Diálogos
Na semana passada, Moro teve seu celular “hackeado”, mas o Intercept alega que obteve os diálogos antes dessa invasão. Segundo o site, as informações foram obtidas de uma fonte anônima. Em um dos diálogos, Moro pergunta a Dallagnol: “Não é muito tempo sem operação?”. O chefe da força-tarefa concorda: “É, sim”. Em outra conversa, Dallagnol pede a Moro para decidir rapidamente sobre um pedido de prisão: “Seria possível apreciar hoje?”. E Moro responde: “Não creio que conseguiria ver hoje. Mas pensem bem se é uma boa ideia”. Nove minutos depois, Moro adverte a Dallagnol: “Teriam que ser fatos graves”.

De acordo com o Intercept, procuradores traçaram estratégias para cassar a autorização judicial para o ex-presidente Lula ser entrevistado pelo jornal Folha de São Paulo, por temerem que influenciasse a eleição. O procurador Januário Paludo teria proposto: “Plano A: tentar recurso no próprio STF. Possibilidade zero. Plano B: abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona, mas diminui a chance da entrevista ser direcionada”. Outro procurador, Athayde Ribeiro Costa, sugeriu que a Polícia Federal manobrasse para que a entrevista fosse feita depois das eleições. Quando a autorização para a entrevista foi cassada por uma liminar obtida pelo Partido Novo, Paludo escreveu: “Devemos agradecer à nossa PGR: Partido Novo!!”.

Não somente os advogados de Lula pretendem virar a mesa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu o afastamento de Moro e Dallagnol dos respectivos cargos e as defesas de outros réus se preparam para pedir a nulidade dos processos, alegando que Moro e os procuradores, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (SDTF), não podem invocar as prerrogativas da magistratura como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Seria prevaricação.

 

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Luiz Carlos Azedo: A ética na política

“No Brasil, onde não existe regulamentação do lobby, todos os políticos defendem o “bem comum”, ninguém assume a política como negócio, com exceção, talvez, da bancada ruralista”

“A política como vocação”, clássico da ciência política, é o texto de uma conferência realizada por Max Weber em 1918, e publicado em 1919 na Alemanha. O sábio economista e jurista alemão trata a política como “o conjunto de esforços feitos visando à participação do poder ou a influenciar a decisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado”. Segundo ele, quem se mete com a política quer poder, seja para fins ideais, por interesses econômico-financeiros ou em busca de prestígio. Para que o poder exista, porém, é preciso que a sociedade aceite a dominação do Estado.

Há três formas de dominação no Estado moderno: a tradicional, que se fundamenta e se legitima no passado, pela tradição; o domínio exercido pelo carisma e se fundamenta em dons pessoais e intransferíveis do líder; e a exercida pela legalidade, com base em regras racionalmente criadas e fundamentado na competência. Nas democracias do Ocidente, essas formas de dominação aparecem simultaneamente, mas o carisma é o fator decisivo para a chegada ao poder. O líder carismático, porém, necessita de meios materiais e conhecimento administrativo para exercer seu domínio.

É nesse contexto que surge o “político profissional”, que Weber classifica entre os que “vivem para a política” e aqueles que “vivem da política”. Todo cidadão pode e deve participar da vida política, mas nem todos têm tempo disponível e recursos para isso. Por isso, “todo homem sério, que vive para uma causa, vive também dela”, mas isso não impede a diferenciação entre os que têm a política como “bem comum” e os que a veem como negócio.

Paralelamente à existência dos políticos, existe uma burocracia formada por funcionários e técnicos encarregados de operar a máquina do Estado. Por essa razão, além dos objetivos programáticos, se estabelece entre os políticos uma disputa pela ocupação de cargos e a distribuição de recursos do governo. Nessa dinâmica, surge ainda uma camada de dirigentes partidários formada a partir de critérios plutocráticos e que vão ocupar posições no governo ou na máquina partidária. Para Weber, essas são as bases potenciais de “uma tendência que leva à criação de uma casta de filisteus corruptos”.

No Brasil, onde não existe regulamentação do lobby, como nos Estados Unidos e alguns países da Europa, todos os políticos defendem o “bem comum”, ninguém assume a política como negócio, com exceção, talvez, da bancada ruralista, embora o patrimonialismo, o cartorialismo e o fisiologismo sejam marcas registradas da nossa cultura ibérica. Mesmo assim, no Estado brasileiro, foi possível constituir uma burocracia formada por “trabalhadores especializados, altamente qualificados e que se preparam, durante muito tempo, para o desempenho de sua tarefa profissional, sendo animados por um sentimento muito desenvolvido de honra corporativa, em que se realça o sentimento da integridade”.

Lava-Jato
A Operação lava-Jato é um tremendo choque entre os políticos profissionais e essa burocracia, que desnudou o lado escuro da nossa política como negócios. Disso resultou a crise ética dos grandes partidos e o tsunami eleitoral de 2018. Em parte, a eleição do presidente Jair Bolsonaro é resultado desse fenômeno. Entretanto, não existe democracia sem partidos nem políticos, o país não pode ser paralisado pela crise ética. Além disso, a política é a economia concentrada, ou seja, não existe sem o mundo dos negócios. Há que se reinventar a nossa política, sem jogar a criança fora com a água da bacia, mas está difícil porque predomina a antipolítica como sentimento popular.

É aí que entra a discussão sobre a ética das convicções e a ética da responsabilidade proposta por Weber, ao examinar a relação entre o protestantismo e o capitalismo. A ética utilizada para culpar o passado pelos próprios fracassos é vulgar e limitada, como a do homem que justifica o abandono da esposa porque ela não era digna do seu amor. A relação entre política e religião é apartada: “O cristão cumpre seu dever segundo os mandamentos bíblicos e, “quanto aos resultados, confia em Deus”. Diferentemente, na ética de responsabilidade, “sempre devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos”. A “política se faz usando a cabeça”, não pode estar desconectada da correlação de forças e das probabilidades.

Weber escreveu, às vésperas da derrocada da República de Weimar, que levou a Alemanha à hiperinflação e Hitler, ao poder. Isso não impediu que o baixo astral com a derrota na I Guerra Mundial e o colapso econômico fomentasse o surgimento de autores “teoconservadores”, que influenciaram o nazifascismo e agora estão sendo relidos nos Estados Unidos e na Europa, por católicos conservadores, protestantes evangélicos e judeus ortodoxos. Com base em valores religiosos anti-iluministas, querem mudar o curso da história com os olhos virados para trás, em busca do “Éden” perdido pela democracia liberal, com a globalização e o multilateralismo.

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Luiz Carlos Azedo: Guedes, Moro e Cruz

“A fritura de Santos Cruz continua no círculo íntimo de poder, que faz de tudo para intrigar o ministro com o presidente Bolsonaro”

O ministro da Fazenda, Paulo Guedes, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, e o ministro da Secretaria de Governo, Santos Cruz, quando nada pelas pastas que ocupam, são ministros poderosos, que deveriam estar em sintonia fina com o presidente Jair Bolsonaro. Mas não é isso que acontece na prática: com frequência, o presidente da República dá demonstrações de que essa sintonia não existe e emite sinais de que não pretende ser tutelado por nenhum dos três.

Guedes constantemente se vê às voltas com declarações de Bolsonaro que contrariam sua estratégia de ajuste fiscal, quase sempre com o ministro jogando para o gol e o presidente da República, para a arquibancada. Os exemplos se multiplicam. Na reforma da Previdência, Bolsonaro recuou em pelo menos quatro propostas da equipe econômica: idade igual para homens e mulheres, aposentadorias rurais, benefício de prestação continuada e plano de capitalização. Também atropelou Guedes no aumento dos combustíveis, quando vetou o reajuste anunciado pela Petrobras para agradar os caminhoneiros, e quando sugeriu a redução dos juros pelo Banco do Brasil, provocando muitas turbulências no mercado financeiro.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, é outro que volta e meia fica numa saia justa. Na semana passada, teve que digerir um decreto polêmico de liberação do porte de armas, que foi elaborado pela Presidência para atender o lobby da chamada “Bancada da Bala”, com erros grosseiros de constitucionalidade. O decreto contraria qualquer discussão séria sobre os indicadores de violência e segurança pública no país. Depois, Bolsonaro fez vista grossa para o fato de que o ministro da Casa Civil, Ônix Lorenzoni, liberou a base do governo na votação da reforma administrativa, na comissão mista que decidiu transferir o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública para o Ministério da Economia. O assunto vai a plenário na Câmara.

Essa decisão esvazia bastante o poder do Ministério da Justiça em relação ao combate aos crimes de colarinho branco, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro, a grande tarefa de Sérgio Moro. Falou-se até que Moro estaria pensando em deixar a pasta. Seria esse o motivo de o presidente Bolsonaro ter declarado, em entrevista, que havia assumido o compromisso de indicar Moro para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), ao convidá-lo para ser ministro. A declaração é corrosiva para o ex-juiz que liderou a Operação Lava-Jato, pois passa a impressão de que realmente moveu uma perseguição política ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como denuncia o petista, ao condená-lo no caso do triplex do Guarujá. Constrangido, Moro disse ontem que não houve o acordo e que sua indicação para o Supremo é um assunto extemporâneo, porque não existe vaga aberta a ser preenchida na Corte. O ministro Celso de Mello, decano da Corte, só deixará o Supremo em novembro do próximo ano.

Militares
O caso do general Santos Cruz está longe de se resolver. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão voltou a defender o colega de farda, que está sob ataque do chamado “grupo olavista” do governo, formado pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub; pela ministra dos Direitos Humanos, a pastora Damares Alves; e pelos filhos de Bolsonaro, Flávio, senador pelo Rio de Janeiro; Eduardo, deputado federal por São Paulo; e o vereador carioca Carlos Bolsonaro, que é o grande desafetos do general Santos Cruz.

O guru Olavo de Carvalho, radicado na Virgínia (EUA), acusa os militares de serem um obstáculo ao projeto ultraconservador de Bolsonaro, divergindo de quase tudo o que seu grupo pensa. Os militares exercem um papel de equilíbrio e moderação no governo, o que desagrada o clã Bolsonaro, que vê a presença dos generais no como uma espécie de tutela. O busílis do conflito com Santos Cruz é a política de comunicação do governo, que está sob sua guarda, sobretudo a distribuição das verbas de publicidade. Carlos discorda de uma política institucional de comunicação, defende que as verbas de publicidade sejam utilizadas na sua cruzada ideológica contra a oposição e a grande mídia. Por causa disso, a fritura de Santos Cruz continua no círculo íntimo de poder, que faz de tudo para intrigar o ministro com o presidente Bolsonaro.

Congresso
Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), jogaram um balde de água fria nas tensões entre o Congresso e o Palácio do Planalto. Estão em Nova York (EUA), para uma série de encontros com empresários e investidores. A agenda inclui compromissos até amanhã, quando está previsto o retorno de ambos ao Brasil. O presidente Bolsonaro deixou de ir a Nova York depois de sua presença ser considerada inconveniente pelo prefeito da cidade, Bill de Blasio. Uma aliança dos democratas com grupos políticos identitários, sobretudo LGBT e de defesa dos direitos civis, articulada por brasileiros radicados nos Estados Unidos, está por trás da declaração de Blasio.

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Luiz Carlos Azedo: A charada do tsunami

“Bolsonaro está firmemente decidido a promover uma guinada conservadora. Seus eleitores querem um Estado capaz de manter a ordem, mas desprezam os políticos e os partidos”

O presidente Jair Bolsonaro sempre cria uma polêmica ou gera um grande suspense quando participa de eventos ou concede entrevistas tipo “quebra-queixo” (aquelas improvisadas, nas quais é cercado por repórteres e fotógrafos). Dessa vez, foi na saída de um evento da Caixa Econômica Federal (CEF), na sexta-feira, ao comentar as derrotas do governo na comissão especial da Câmara que examinou a reforma administrativa de seu governo. Enigmaticamente, declarou: “Sim, talvez tenha um tsunami na semana que vem. Mas a gente vence esse obstáculo com toda certeza. Somos humanos, alguns erram, uns erros são imperdoáveis, outros, não.” É uma charada.

O que será esse tsunami? Pode ser uma rebordosa de alguma medida já tomada, como o corte de verbas das universidades, que está provocando grandes manifestações de protesto de estudantes, professores, funcionários e pais de alunos, ou o espanto causado, entre os defensores dos direitos humanos e autoridades do setor de segurança pública, pela liberação do porte de armas para cerca de 20 categorias profissionais, como advogados e caminhoneiros, e praticantes de tiro ao alvo. Será que vem por aí uma nova greve de caminhoneiros, um dos segmentos de sua base eleitoral?

Pode ser também alguma coisa ligada ao evento em si, como anunciar a venda dos ativos da Caixa Econômica Federal (CEF), cujas atividades ficariam restritas ao financiamento imobiliário, como pretende o secretário das Privatizações, Salim Mattar. Na quarta-feira, em fala aos jornalistas após a primeira reunião do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), Mattar afirmou que é mais fácil para o governo vender participações em empresas, cujo prazo para conclusão do processo varia de 60 a 90 dias, do que a preparação de uma companhia estatal para venda, que demora de seis meses a um ano e meio, de forma a cumprir a legislação e as exigências dos órgãos de controle.

“Desinvestimentos acontecerão mais cedo, mas as privatizações vão acontecer. É uma questão de ajuste”, disse Mattar. Comparou os primeiros meses de gestão à preparação de uma orquestra sinfônica. “Nesses quatro meses de governo, estamos ensaiando para fazer essa orquestra funcionar, e vai funcionar”. Traduzindo, significa fazer uma lipoaspiração nas empresas estatais e mesmo na administração direta, vendendo ativos públicos, como no caso já citado da Caixa Econômica Federal (CEF). O governo planeja, por exemplo, focar o Banco do Brasil no crédito rural e a Petrobras, na exploração de Petróleo, desfazendo-se de outras atividades. Além disso, quer vender milhares de imóveis do patrimônio da União pelo país afora, começando pelos parques nacionais, santuários da nossa natureza.

Fricção política
A agenda do governo está mesmo repletas de temas polêmicos. “Na reforma da Previdência eu deixei mesmo o clima de Fla-Flu. É tudo ou nada”, declarou o ministro da Economia, Paulo Guedes, sexta-feira, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), durante o 31º Fórum Nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Altos Estudos (Inae), no centro do Rio, para debater Previdência e macroeconomia. Ao reiterar a urgência das mudanças previdenciárias, o ministro voltou a falar que o governo Temer deu um passo à frente rumo ao equilíbrio fiscal ao estabelecer um teto de gastos, mas não ergueu “paredes” para segurá-lo. Por isso a urgência da reforma da Previdência”.

Voltemos à charada de Bolsonaro? Afora essas agendas, os três temas de muita fricção do momento são a crise na Venezuela, que deu uma desanuviada com a reabertura da fronteira em Roraima; o estresse com os militares, por causa do controle da política de comunicação do governo pelo ministro Santos Cruz, da Secretaria de Governo; e a Operação Lava-Jato, cuja força tarefa costuma retaliar os políticos sempre que seus objetivos são contrariados. As derrotas sofridas pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, na comissão especial da reforma administrativa, foram impostas por políticos que estão sendo investigados. Com a volta do ex-presidente Michel Temer à prisão, o julgamento do seu habeas corpus na próxima terça-feira, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), exacerbará essas tensões.

Uma coisa é certa: Bolsonaro está firmemente decidido a promover uma guinada conservadora em relação aos costumes e às políticas públicas, em todas as áreas. Seus eleitores querem um estado capaz de manter a ordem, mas desprezam a política, os políticos e os partidos. É uma contradição: como ter um Estado mais eficiente, ou seja, que cumpra suas finalidades, e renegar os meios oferecidos pela democracia para que isso ocorra: o sistema político? Na democracia é impossível; a dificuldade da democracia representataiva é essa, no mundo inteiro.


Luiz Carlos Azedo: A política noir

“As discussões têm tudo a ver com as polêmicas das décadas passadas, quando o assunto é violência, comportamento, direitos humanos e ideologias”

A política brasileira está parecendo um filme noir, gênero que fez muito sucesso nas décadas de 1940 e 1950, mas que somente foi reconhecido como tal após os anos 1970, consagrando detetives durões e anti-heróis dos antigos filmes policiais. Coube ao crítico francês Nino Frank a classificação do gênero, inspirada no expressionismo alemão e nas pinturas do barroco Caravaggio, cuja técnica claro/escuro era considerada “noir”(preto, em francês).

A atmosfera do filme noir era caracterizada pela iluminação em três pontos: uma fonte de luz para estabelecer as sombras, outra para o contraste com o negro e a terceira, cinzenta. O forte grafismo expressionista era garantido por escadas, persianas, portas e janelas entreabertas e grades de prisão. O Falcão Maltês (1941), Pacto de Sangue (1944), À Beira do Abismo (1946), Fúria Sanguinária (1949), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Morte num Beijo (1955) e A Marca da Maldade (1958) são clássicos do cinema noir.

Esses filmes retratavam os conflitos da vida urbana, a violência policial, o crime organizado e a degeneração política, um tipo de crítica política e social que acabou duramente reprimida no período do macarthismo. Seus protagonistas tinham personalidade dúbia, eram cínicos e cruéis. As cenas eram marcadas por um ambiente opressor, perigoso e corrupto, nos quais até os homens de bem eram arrastados pela correnteza do mal. O herói noir é mal resolvido, bêbado, mulherengo, rejeitado pelos filhos, mas não entrega os pontos nem faz acordo com bandido. Era o fracassado capaz de coisas incomuns.

Acusado de “comunista”, o gênero foi banido de Hollywood, mas deu origem aos melhores romances policiais norte-americanos, originalmente publicados em capítulos, nos tabloides sensacionalistas, por escritores que foram roteiristas e precisavam encontrar um meio de sobreviver com seu talento, depois de marginalizados do cinema. Hoje, é um gênero literário reconhecido e copiado mundialmente, com seus grandes autores, como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, traduzidos em dezenas de línguas.

Quem acompanha os debates no Congresso, transmitidos pelas tevês Câmara e Senado, verá muitos personagens dignos de um filme noir se digladiando em plenário. As discussões têm tudo a ver com as polêmicas das décadas passadas, quando o assunto é violência, comportamento, direitos humanos e ideologias. É uma espécie de viagem de marcha à ré.

Dá até para organizar um concurso para identificar, na cena política, um personagem como Gilda, a mulher fatal encarnada por Rita Hayworth no filme do mesmo nome. Não precisa ser, necessariamente, uma mulher. Pode ser uma figura como o craque do Botafogo Heleno de Freitas, passional dentro e fora dos campos. Nada mais noir do que o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro sobre a liberação do porte de arma, que foi o assunto do dia no plenário da Câmara e no mercado de ações, por causa da supervalorização, na Bovespa, das ações da Taurus, cujo lobby é representado pela chamada Bancada da Bala.

Cortina de fumaça

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, responsável pelo decreto, reconheceu em audiência que a decisão não foi tomada em razão da política de segurança pública, mas para atender uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro, que se autodefine como “armamentista”. O decreto libera o transporte de armas a político em exercício de mandato, advogado, oficial de justiça, caminhoneiro, colecionador ou caçador com certificado, dono de loja de arma ou escola de tiro, residente de área rural, agente de trânsito, conselheiro tutelar, jornalista de cobertura policial, instrutor de tiro ou armeiro, colecionador ou caçador, agente público da área de segurança pública — mesmo que inativo —, entre outros.

O porte de armas era privativo das Forças Armadas, guardas municipais, polícias civil, militar e federal, guarda prisional, Agência Brasileira de Inteligência, Gabinete de Segurança institucional da Presidência, auditor-fiscal e analista tributário, grupos de servidores do Poder Judiciário. A decisão está sendo questionada por grupos de defesa dos direitos humanos e pela oposição, que a consideram inconstitucional. Todos os estudos indicam que pode aumentar os indicadores de violência, inclusive feminicídios.

No plenário da Câmara, esse debate ofuscou completamente a audiência do ministro da Economia, Paulo Guedes, na Comissão Especial que examina a reforma da Previdência. Na prática, a medida do governo, como outras polêmicas criadas pelo presidente Bolsonaro, funciona como uma cortina de fumaça em relação ao seu real engajamento na aprovação da reforma da Previdência pelo Congresso.

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Luiz Carlos Azedo: Alô, alô, Terezinha!

PP, DEM, PR, MDB, PSD, PRB, Pros, Pode, PTB, SD, PSC e PHS jogam juntos para dobrar o governo e barganhar mais participação na Esplanada

Com licença, Stepan Nercessian, o ator e ex-deputado federal que incorporou o velho guerreiro Abelardo Barbosa, em Chacrinha, o musical. Morto em 1988, de câncer, aos 70 anos, se o apresentador estivesse vivo, a esta altura do campeonato, buzinaria todo mundo que manda na Praça dos Três Poderes. Buzina para o presidente Bolsonaro, que fala uma coisa e manda fazer outra; buzina para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, que pôs a Corte na berlinda; e para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que fez um acordo com o chefe da Casa Civil, Ônix Lorenzoni, para aprovar a admissibilidade da reforma da Previdência, mas levou uma rasteira do líder do governo, Major Vitor Hugo, uma espécie de patinho feio entre as lideranças da Casa, que melou a votação na Comissão de Constituição e Justiça da Casa na semana passada. “Eu não vim aqui para explicar, eu vim aqui para confundir”, diria Chacrinha.

“Foi mais um desgaste desnecessário, provocado pelo amadorismo do governo. Havíamos acordado que apenas discutiríamos a matéria e que a votação ficaria para a próxima semana. No entanto, o governo decidiu votar a matéria de qualquer jeito. O clima na comissão ficou tenso, o tumulto se instalou e o governo acabou obrigado a recuar. Acordos são feitos para serem cumpridos. Quando isso não acontece, o andamento dos trabalhos é prejudicado”, lamentou o deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR), que é integrante da CCJ e favorável à reforma com algumas alterações, em especial, a retirada do texto de mudanças no sistema de pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria Rural.

Veterano na Casa, Bueno é uma das vozes mais respeitadas da Câmara e acredita que nesta semana a admissibilidade da reforma deve ser aprovada: “O governo sabia que diversos partidos, mesmo favoráveis à reforma, defendem mudanças no texto. Não faltou tempo para um acordo em torno dessas mudanças ainda na CCJ. Mas, lamentavelmente, apenas hoje, quando o governo queria votar a reforma, o relator se reuniu com líderes para discutir as mudanças no texto. É claro que não podia dar certo. Espero que, até terça-feira, isso se resolva e possamos fazer a reforma andar”, afirmou.

Trocando em miúdos, Vitor Hugo puxou o tapete de Maia e de Ônix, ao abrir negociação com o Centrão para mudar o texto da reforma. E deixou na maior saia justa o secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, que tenta reduzir os danos no projeto original. Muito criticado por ser um parlamentar de primeiro mandato e sem liderança entre os pares, Vitor Hugo negocia com os líderes do Centrão um acordo para votar a admissibilidade na reunião da Comissão de Constituição e Justiça de amanhã, aparentemente, com um aval do próprio presidente Jair Bolsonaro, que não quer assumir sozinho o desgaste da reforma, pelo contrário, faz tudo para jogar o ônus eleitoral nas costas do Congresso e ficar com o bônus político junto ao mercado financeiro.

Cargos regionais

PP, DEM, PR, MDB, PSD, PRB, Pros, Pode, PTB, SD, PSC e PHS jogam juntos para dobrar o governo e barganhar mais participação na Esplanada. Bolsonaro tira por menos, conhece a Casa e sabe que esses partidos têm capacidade de mobilizar 250 dos 513 deputados. O PT, que lidera a oposição, tem 56; seu partido, o PSL, 55. Sobram 150 deputados no meio de campo, que ora se aproximam do PT, ora do PSL. Ou seja, a força decisiva na Câmara é o Centrão, que se movimenta em bloco, negocia com o governo, flerta com a oposição, age com independência e flexibilidade tática. E quer participar do poder.

Entre os deputados do Centrão, todos já sabem que Lorenzoni está prometendo R$ 10 milhões por ano em emendas parlamentares extras, além das que são obrigatórias, mas não tem a chave do cofre do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ainda há muita desconfiança de que Bolsonaro não cumprirá o acordo e voltará com a ladainha de que essa é a velha política. Além disso, os deputados querem mesmo são os cargos regionais do governo e suas estatais.

Estão incomodados com o fato de que toda crise no governo, porém, se resolve com a nomeação de um delegado ou militar, e não de um político. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, nomeou o delegado da Polícia Federal Elmer Coelho Vicenzi como novo presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O coronel da Polícia Militar Ambiental do estado de São Paulo Homero de Giorge Cerqueira assumirá a presidência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Educação e Meio Ambiente são áreas nas quais os políticos sempre tiveram alguma influência.

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Luiz Carlos Azedo: O Supremo na berlinda

“As críticas à investigação sobre os vazamentos da Operação Lava-Jato continuam, principalmente de ex-integrantes da Corte, que questionam o inquérito aberto “ex ofício” por Toffoli”

O recuo do ministro Alexandre de Moraes em relação à censura ao site O Antagonista e à revista Crusoé, pressionado pela mídia, pelas redes sociais e pelos próprios pares, não foi bem uma retirada do presidente do Supremo, Dias Toffoli, em relação ao suposto vazamento de informações sigilosas pela força-tarefa da Operação Lava-Jato, que continua sob investigação. Por essa razão, ambos permanecem pressionados pelos pares que divergem da decisão “ex ofício” de Toffoli, que encarregou Moraes de investigar a origem dos ataques e ameaças feitas a ele próprio nas redes sociais e dos vazamentos de informações sigilosas da delação premiada da Odebrecht, que permanecem em segredo de Justiça, em razão do acordo feito com o Ministério Público Federal e o próprio Supremo.

Toffoli, Moraes e o ministro Gilmar Mendes, que desta vez esteve ao largo da crise, são alvos de vários pedidos de impeachment e de CPI para investigar o Judiciário, apelidada de Lava-Toga, no Senado. O nível de solidariedade em relação aos três por parte dos demais ministros não é robusto o suficiente para endossar o contra-ataque arquitetado por Toffoli. A unidade do Supremo só existe em torno de posições de princípio sobre as prerrogativas da magistratura. A Corte está profundamente dividida em relação a alguns temas que estão no centro da disputa com a força-tarefa da Operação Lava-Jato. O melhor exemplo é a jurisprudência sobre a execução da pena após condenação em segunda instância, que já foi referendada três vezes nos últimos anos, mas pode ser revista, em razão da alteração da composição do Supremo, com a chegada de novos ministros e a mudança de posição de Gilmar Mendes, que era a favor e agora é contra.

Logo após o recuo de Moraes, Toffoli suspendeu liminar do ministro Luiz Fux que havia proibido o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ser entrevistado pelo jornal Folha de São Paulo. A decisão é coerente com a de Moraes, mas sinaliza na direção de que o presidente do Supremo pretende pôr em discussão a revisão da jurisprudência sobre execução da pena após condenação em segundo instância e, finalmente, levar ao plenário o pedido de habeas corpus da defesa do petista, cujo julgamento vem sendo adiado. Pelo andar da carruagem, o relaxamento da prisão de Lula não é uma hipótese a ser desconsiderada.

O contexto não é o mesmo do episódio do habeas corpus concedido pelo desembargador federal Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, em julho do ano passado. Lula cumpre pena de 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, numa sala da Superintendência der Polícia Federal do Paraná, em Curitiba (PR). Foi condenado pelo então juiz federal Sérgio Moro e pelo Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TRF-4), com sede em Porto Alegre, no processo do triplex de Guarujá, no âmbito da Operação Lava-Jato, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O despacho de Fraveto, suspenso pelo TRF-4, determinava a suspensão da execução provisória da pena e a liberdade de Lula, em pleno curso das eleições, o que provocou o maior reboliço em plena campanha eleitoral.

À época, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, se manifestou publicamente contra a libertação de Lula. Escreveu uma mensagem de “repúdio à impunidade” e que o Exército brasileiro “se mantém atento às suas missões institucionais”. A mensagem, lida no final do Jornal Nacional (TV Globo), soou como uma ameaça de ação militar em caso de soltura do presidente. Mais tarde, em entrevista ao jornalista Igor Gielow, da Folha de São Paulo, comentou: “Eu reconheço que houve um episódio em que nós estivemos realmente no limite, que foi aquele tuíte da véspera da votação no Supremo da questão do Lula. Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática”.

Críticas

A decisão de Moraes ajudou a diminuir o ambiente de desconforto interno entre os ministros da Corte, mas dificilmente o assunto não será decidido em plenário. As críticas à investigação sobre os vazamentos da Operação Lava-Jato continuam, principalmente de ex-integrantes da Corte: “Não se pode obrigar o Ministério Público a formular, formalizar uma denúncia perante o Judiciário. Portanto, a última palavra — embora o Ministério Público não decida; a decisão é do Judiciário — mas essa não propositura da ação cabe ao Ministério Público. E não há o que fazer: é arquivar o processo”, declarou o ex-presidente do STF Ayres Britto.

Para ele, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, “não pode ser obrigada a promover a ação penal se assim concluir o inquérito, entre aspas, no Supremo Tribunal Federal. Aí o que vai fazer o Supremo? Se acatar a manifestação final do Ministério Público”.

O ministro Luís Barroso, que estava nos Estados Unidos, qualificou o episódio como um “amadurecimento democrático”. Segundo ele, “o que se extrai é a existência de uma sociedade mais consciente e mobilizada, que se manifesta livremente, não aceita o inaceitável e obriga as instituições a se repensarem e se tornarem mais responsivas”. Barroso, que faz parte do grupo de ministros que defende a execução da pena após condenação em segunda instância, foi mais cauteloso do que seu colega Marco Aurélio Mello, o primeiro a criticar as decisões de Toffoli e Moraes. O Supremo continua na berlinda.

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Luiz Carlos Azedo: Togas em desalinho

“Moraes apura se o presidente do Supremo, Dias Toffoli, estava sendo investigado pela força-tarefa da Lava-Jato, o que a Constituição não permite. Ministros do Supremo somente podem ser investigados pelos próprios pares”

A primeira vítima da guerra entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a força-tarefa da Operação Lava-Jato foi a liberdade de imprensa, com a censura à edição da revista digital Crusoé por causa de uma matéria que citava o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. Nos bastidores do Judiciário, porém, a segunda pode ser a boa convivência entre a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que pleiteia a recondução ao cargo, e o ministro Alexandre de Moraes, que rejeitou o pedido dela de arquivamento do inquérito aberto para apurar ofensas a integrantes do STF e a suspensão dos atos praticados no âmbito dessa investigação, como buscas e apreensões e a censura a sites.

Moraes apura se o presidente do Supremo, Dias Toffoli, estava sendo investigado pela força-tarefa da Lava-Jato, o que a Constituição não permite. Ministros do Supremo somente podem ser investigados pelos próprios pares, nem mesmo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem essa atribuição. Por essa razão, os questionamentos feitos pela Lava-Jato sobre o ministro Toffoli à defesa do empresário Marcelo Odebrecht, que depois foram retirados dos autos, mas vazaram para a revista, podem ser caracterizados como uma não conformidade. Uma cópia da resposta, porém, havia sido encaminhada à Procuradoria-Geral da República pela defesa do empresário.

Ontem, Toffoli autorizou a prorrogação do prazo do inquérito por 90 dias, solicitação feita pelo próprio ministro Alexandre de Moraes, que investiga o caso ex-ofício, ou seja, por determinação do presidente do Supremo. Mais cedo, Raquel Dodge havia enviado ao STF documento no qual defendia o arquivamento do inquérito. O ministro fulminou o pedido: “Na presente hipótese, não se configura constitucional e legalmente lícito o pedido genérico de arquivamento da Procuradoria-Geral da República, sob o argumento da titularidade da ação penal pública impedir qualquer investigação que não seja requisitada pelo Ministério Público”.

Raquel Dodge pretendia arquivar o inquérito por considerá-lo ilegal, pois foi aberto pelo STF sem participação do Ministério Público. A intenção dela, porém, foi rechaçada por Moraes, com o argumento de que o requerimento da Procuradoria não tem “qualquer respaldo legal, além de ser intempestivo, e, se baseando em premissas absolutamente equivocadas, pretender, inconstitucional e ilegalmente, interpretar o regimento da Corte”. Moraes justificou sua decisão: o inquérito é “claro e específico, consistente na investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atinjam a honorabilidade institucional do Supremo Tribunal Federal e de seus membros”.

Busca e apreensão
A decisão de Moraes foi um contra-ataque do Supremo à força-tarefa da Lava-Jato, mediante a apuração do “vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte”. Segundo o ministro, várias provas já foram coletadas ao longo da apuração para apurar os vazamentos “por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e o Estado de Direito”.

Por decisão de Moraes, ontem, a Polícia Federal (PF) executou oito mandados de busca e apreensão em São Paulo, em Goiás e no Distrito Federal contra pessoas suspeitas de promover injúria e difamação contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Foram apreendidos celulares, tablets e computadores. O ministro Moraes determinou o bloqueio de contas em redes sociais, tais como Facebook, WhatsApp, Twitter e Instagram.

Entre os investigados, está o general da reserva Paulo Chagas, candidato derrotado ao governo do Distrito Federal na eleição do ano passado pelo PSL. “Caros amigos, acabo de ser honrado com a visita da Polícia Federal em minha residência, com mandado de busca e apreensão expedido por ninguém menos do que ministro Alexandre de Moraes. Quanta honra! Lamentei estar fora de Brasília e não poder recebê-lo pessoalmente”, protestou Chagas no Twitter.

Moraes não tem apoio unânime no Supremo. O ministro Marco Aurélio, por exemplo, discordou da censura à Crusoé, que considera um retrocesso; o relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, foi mais cauteloso: pediu esclarecimentos a Moraes sobre a decisão. Entretanto, a maioria do STF começa a se sentir constrangida com toda essa situação, principalmente por causa dos ataques que a Corte está sofrendo nas redes sociais e no Congresso.

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Dora Kaufman: A ética e a inteligência artificial

O clássico da literatura do século XIX "Crime e Castigo", de Fiódor Dostoiévski, relata as angústias do estudante Raskólnikov após cometer um assassinato. No curso das investigações, um artigo de sua autoria publicado na juventude aguça as suspeita do juiz Porfírio Petróvitch. Nele, Raskólnikov divide os indivíduos em ordinários e extraordinários e, na interpretação do juiz, concede aos últimos o direito de infringir a lei precisamente porque são extraordinários. Debatendo-se entre a convicção de ter livrado o mundo de uma velha agiota, e o sentimento de culpa pela dificuldade de sustentar seu ato, Raskólnikov acaba sendo indulgente consigo.

Um drone militar americano, em 2011, eliminou, por comportamento suspeito, um grupo de homens em Datta Khel, Paquistão, que estavam em assembleia para resolver um conflito local; o Google, em 2017, está sendo processado na Inglaterra em uma ação coletiva por coletar dados de 5,4 milhões de usuários de iPhone, teoricamente protegidos por políticas de privacidade.

Em comum, ambos têm os algoritmos de inteligência artificial (IA) que, diferentemente do personagem de Dostoiévski, não se debatem em conflitos éticos.

O tema da ética permeia a sociedade humana desde Aristóteles e foi mudando de sentido ao longo da história resguardando, contudo, a crença de que apenas o humano é dotado da capacidade de, como sugere o bioeticista Larry Churchill, "pensar criticamente sobre os valores morais e dirigir nossas ações em termos de tais valores".

O filósofo sueco Nick Bostrom, no artigo "The Ethics of Artificial Intelligence" (2011), recusa conceder aos atuais sistemas de inteligência artificial, ainda restritos à uma tarefa concreta, o status moral: "Podemos alterar, copiar, encerrar, apagar ou utilizar programas de computador tanto quanto nos agradar [...] As restrições morais a que estamos sujeitos em nossas relações com os sistemas contemporâneos de IA são todas baseadas em nossas responsabilidades para com os outros seres".

A prerrogativa de controle pelo humano, contudo, pode se alterar em breve: pergunta dirigida a especialistas em IA sobre quando a inteligência da máquina alcançará o nível humano mostrou 10% de probabilidade em 2022, 50% de probabilidade até 2040 e 90% de probabilidade até 2075 (resultado agregado de quatro pesquisas).

Independentemente do fato se a superinteligência, com o advento da singularidade, ocorrerá ainda no século XXI, a acelerada disseminação em larga escala do uso da inteligência artificial evidencia a premência do debate.

Pesquisadores da Universidade Stanford, em meados do ano, tornaram público um algoritmo de inteligência artificial, o Gaydar, que, com base nas fotografias dos sites de namoro, identifica os homossexuais. A motivação inicial era protegê-los, contudo, a iniciativa foi vista como potencial ameaça à privacidade e segurança, desencadeando inúmeros protestos.

O estudo que originou o Gaydar foi previamente aprovado pelo Conselho de Avaliação de Stanford, com base no Conselho de Avaliação Institucional (Institutional Review Board - IRB), comitê de ética independente que norteia os conselhos dos centros de pesquisa e universidades americanas.

A questão é que as regras foram fixadas há 40 anos! "A grande e vasta maioria do que chamamos de pesquisa de 'grandes dados' não é abrangida pela regulamentação federal", diz Jacob Metcalf do Data & Society, instituto de NY dedicado aos impactos sociais e culturais do desenvolvimento tecnológico centrado em dados.

Um sistema chamado Compas (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions), no Estado de Wisconsin, e similares em outros Estados americanos, baseado em algoritmos, determinam o grau de periculosidade de criminosos e consequentemente a pena do condenado. A intenção, segundo seus defensores, é tornar as decisões judiciais menos subjetivas. A metodologia de avaliação, criada por uma empresa privada comercial, vem sendo fortemente contestada.

No livro "A Teoria do Drone", Grégoire Chamayou alerta para os drones militares que, inicialmente concebidos como dispositivos de informação, vigilância e reconhecimento, transformaram-se em armas letais. Com base em modelos matemáticos (algoritmos) semelhantes aos utilizados para mapear e analisar as movimentações nas redes sociais na Internet (Facebook, por exemplo), os drones militares traçam conexões entre "suspeitos" e determinam sua consequente eliminação.

"É preciso uma discussão sobre os limites que devem se aplicar a essas máquinas; também é preciso decidir quem se responsabiliza no caso de um erro ou de uma falha", alerta Chamayou. Em 2015, na Conferência Internacional de Inteligência Artificial em Buenos Aires, mais de mil cientistas e especialistas assinaram uma carta aberta contra o desenvolvimento de robôs militares autônomos, dentre outros o físico Stephen Hawking, o empreendedor Elon Musk, e o cofundador da Apple Steve Wosniak. Na edição de 2017 da mesma Conferência, dessa vez em Melbourne, Austrália, nova carta foi lançada com o apoio de 116 líderes em IA e robótica solicitando a ONU que vete o uso de armas autônomas, tendo a frente Elon Musk e Mustafa Suleyman, fundador da empresa inglesa Deep Mind adquirida pelo Google.

Essas questões são importantes, mas não fazem parte do nosso dia a dia. Ledo engano, os algoritmos de inteligência artificial estão interferindo em um conjunto amplo de atividades, em geral sem transparência. Ou seja, desconhecemos os critérios de avaliação em situações cotidianas tais como contratação de empréstimo bancário e seleção para vagas de emprego.

Weapons of Math Destruction

Cathy O'Neil, matemática americana e autora do best-seller  "Weapons of Math Destruction", alerta que muitos desses modelos que administram nossas vidas codificam o preconceito humano: "Como os deuses, esses modelos matemáticos são opacos, invisíveis para todos, exceto os sacerdotes mais altos em seu domínio: matemáticos e cientistas da computação".

O'Neil adverte que as áreas de recursos humanos das empresas estão cada vez mais usando pontuações de crédito para avaliar candidatos em processos de contratação, supondo que o mau crédito se correlaciona com o mau desempenho no trabalho, implicando numa espiral descendente (aqueles que tem dificuldade em honrar seus empréstimos tem dificuldade de realocação profissional).

Em paralelo, os departamentos de RH igualmente acessam o histórico médico dos candidatos. Como o RH acessa os dados dos candidatos? Por meio de um cada vez mais unificado Banco de Dados (Big Data), cujos dados são captados e manipulados pelos algoritmos de Inteligência Artificial. "Bem-vindo ao lado escuro de Big Data" ironiza O'Neil.

No evento Sustainable Brands, em São Paulo, David O'Keefe da Telefonica, controladora da Vivo, apresentou produtos derivados dos dados captados das linhas móveis (Mobile Phone Data). Com o título "usando dados comuns globais e aprendizado de máquina para fornecer informações de relacionamento digital em multinacionais", O'Keefe descreveu o "produto" em que, por meio dos dados dos celulares dos funcionários de uma empresa multinacional (quem ligou para quem, com que frequência, quanto tempo durou a ligação etc.) é possível identificar as redes informais internas, importante elemento nas estratégias de gestão.

Essas redes, mais do que as formais, definidas nos organogramas, indicam as conexões de influência e de poder nas empresas (além do tempo que cada funcionário "gasta" ao celular com assuntos externos ao trabalho). Parece ficção científica, mas é realidade e supera de longe as previsões de George Orwell no livro "1984", publicado em 1949, vários anos antes do termo inteligência artificial ter sido cunhado.

A IA está presente no nosso dia a dia, pelo menos de uma parte da população que tem acesso a internet e a dispositivos digitais. Nos algoritmos de busca do Google, na recomendação de filmes e música do Netflix e Spotify, na recomendação de "amigos" do Facebook e LinkedIn, no aplicativo Waze, nos assistentes pessoais (Siri, Cortana, Alexa, Google Now), nos videogames, na identificação de fotos nas redes sociais, nos sistemas de vigilância e segurança, e mais em um enorme conjunto de benefícios que, efetivamente, têm o potencial de facilitar a vida do século XXI.

O marketing e a propaganda usam os algoritmos de IA para identificar os hábitos e preferências dos consumidores e produzir campanhas mais assertivas e segmentadas. O mesmo ocorre com as áreas comerciais, por exemplo, no setor imobiliário: os algoritmos permitem identificar se você foi designado para uma função em outra cidade e/ou contratado por uma empresa com escritório em outra cidade, acessar os locais e os tipo de moradia que você vem pesquisando na Internet, qual o tamanho de sua família etc. com isso aumenta a chance de ofertas de imóveis apropriados.

O varejo físico investe pesado em IA, incorporando as "vantagens" do varejo on-line por meio de dispositivos que permitem identificar por onde o cliente circulou nas lojas, por onde "navegou" seu olhar nas prateleiras, por quantas vezes e por quanto tempo. São os algoritmos de IA que transformam em informação útil essa imensidão de dados gerados pelas movimentações on-line.

Constatar que os algoritmos de IA permeiam cada vez mais os processos decisórios, em geral, provoca fortes reações de indignação. Não há como negar que são reações legítimas, devemos, sim, nos preocupar com a não transparência, com a invasão de privacidade, com a arbitrariedade. Por outro lado, é difícil sustentar o contra-argumento de que os humanos tem sensibilidade e discernimento e, consequentemente, estão mais propensos a agir com ética: não é raro os gestores de RH excluírem candidatos por preconceito. É razoável supor que, mesmo os piores modelos matemáticos, são menos propensos a cometer injustiças do que os humanos no desempenho das mesmas funções.

Harvard Business Review

Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee admitem que existem riscos, mas, em recente artigo na "Harvard Business Review", alertam que "embora todos os riscos da IA sejam muito reais, o padrão de referência adequado não é a perfeição, mas sim a melhor alternativa possível. Afinal, nós humanos temos viesse, cometemos erros e temos problemas para explicar, de fato, como chegamos a determinada decisão".

Por outra linha de raciocínio, pode-se argumentar que esses modelos são simples referências no processo de tomada de decisão. Ou ainda, que no estágio atual, em que as máquinas ainda dependem da supervisão humana, cabe a ele alimentar às máquinas com os parâmetros, ou seja, a responsabilidade sobre o processo.

Como defende Cathy O'Neil, "nossos próprios valores e desejos influenciam nossas escolhas, os dados que escolhemos para coletar as perguntas que solicitamos. Os modelos são opiniões incorporadas em matemática". O'Neil propõe começar a regular os modelos matemáticos pelos seus "modeladores", criando um "código de ética" similar à área de saúde.

Se o campo da inteligência artificial remonta a 1956, quando John McCarthy cunhou o termo, por que a questão ética está na pauta em 2017?

A razão é o recente avanço da IA. Em 1959, Arthur Lee Samuel inaugurou um subcampo da IA com o objetivo de prover os computadores da capacidade de aprender sem serem programados, denominado por ele de Machine Learning (ML). A técnica não ensina as máquinas a, por exemplo, jogar um jogo, mas ensina como aprender a jogar um jogo utilizando técnicas baseadas em princípios lógicos e matemáticos.

O processo é distinto da tradicional "programação", a máquina aprende com exemplos. Na década de 1980,  inspirados no cérebro humano, cientistas da computação expandiram o subcampo da ML, propondo um processo de aprendizado com base em redes neurais, com resultados mais concretos nesta década, por conta de três fatores: um maior poder computacional, a crescente disponibilidade de grande quantidade de dados, e o progresso dos algoritmos.

Denominado em inglês de Deep Learning (aprendizado profundo), o foco são problemas solucionáveis de natureza prática, relacionado a uma tarefa concreta. O treinamento de uma rede neuronal artificial consiste em mostrar exemplos e ajustar gradualmente os parâmetros da rede até obter os resultados requeridos (tentativa e erro).

A rede geralmente tem entre 10-30 camadas empilhadas de neurônios artificiais. Num reconhecimento de imagem, por exemplo, a primeira camada procura bordas ou cantos; as camadas intermediárias interpretam as características básicas para procurar formas ou componentes gerais; e as últimas camadas envolvem interpretações completas.

Na identificação de fotos nas redes sociais, a máquina percebe padrões e "aprende" a identificar rostos, tal como alguém que olha o álbum de fotos de uma família desconhecida e, depois de uma série de fotos, reconhece o fotografado. O reconhecimento de voz, que junto com a visão computacional está entre as aplicações mais bem-sucedidas, já permite a comunicação entre humanos e máquinas, mesmo que ainda precária (Siri, Alexa, Google Now). Na cognição, onde estão os sistemas de resolução de problemas, ocorreram igualmente importantes avanços.

A relativa autonomia conquistada pelas máquinas, quando não mais seguem processos de decisão pré-programados pelos humanos e começam a aprender por si mesmas, coloca para a sociedade novas questões éticas e a urgência de estabelecer arcabouços legais e regulatórios.

As conhecidas "Três Leis da Robótica" de Asimov, propostas há mais de 50 anos, citadas frequentemente como referência ética para a IA, não se sustentam no estágio atual: as tecnologias inteligentes não estão relacionadas apenas a robótica -- pelo contrário, estão em todos os campos de conhecimento e suas aplicações práticas --, nem essas máquinas inteligentes estão subordinadas diretamente às "ordens que lhe são dadas por seres humanos".

Gerd Leonhard defende, no livro "Technology vs Humanity", a formação de um conselho global de ética digital para tratar da inteligência artificial, duvidando da capacidade das máquinas de compreender e assimilar algum tipo de ética, pelo menos no estágio de desenvolvimento atual da IA.

Para ele, nenhuma IA será verdadeiramente inteligente sem algum tipo de módulo de governança ética, pré-requisito para limitar a probabilidade de falhas. É pertinente, contudo, a indagação do filósofo americano Ned Block "se as máquinas aprendem com o comportamento humano, e esse nem sempre está alinhado com valores éticos, como prever o que elas farão?".

No início de 2016, exemplo frequentemente citado, a Microsoft lançou um robô de chat (chatbot) "teen girl", o Tay, para se relacionar com garotas adolescentes; em menos de 24 horas a empresa exclui-o do Twitter: o Tay transformou-se rapidamente num robô defensor de sexo incestuoso e admirador de Adolf Hitler. O processo de aprendizagem da IA fez com que o robô Tay modelasse suas respostas com base nos diálogos de adolescentes.

Várias questões afloram, desde a mais básica -- como incorporar a ética humana às tecnologias de IA, se são valores humanos às vezes ambíguos ou não verbalizados mesmo entre os próprios humanos? --, até se faz sentido investir no desenvolvimento de uma inteligência que no futuro não terá controle humano, com riscos e ameaças imponderáveis.

Não seria mais prudente para a sobrevivência da humanidade evitar essa tendência abdicando de seus potenciais benefícios?

Future of Life

A verdade é que existem muito mais perguntas do que respostas. Tentando enfrentar essas e outras questões, proliferam iniciativas de pesquisadores, corporações, governos. Acadêmicos americanos fundaram, em 2014, o instituto Future of Life, com a adesão de personalidades como o cientista da computação Stuart J. Russell, os físicos Stephen Hawking e Frank Wilczek e os atores Alan Alda e Morgan Freeman. Em outubro, a DeepMind da Google anunciou a criação do grupo DeepMinds Ethics & Society (DMES) dedicado a estudar os impactos da IA na sociedade.

Liderado por Verity Harding e Sean Legassick, o grupo será formado por 25 pesquisadores com dedicação exclusiva. Emergem igualmente iniciativas com foco específico: o Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT) está desenvolvendo um sistema para permitir que o usuário controle seu próprio feed de notícias do Facebook, e não os algoritmos; professores da Harvard Law School estão trabalhando em maneiras de eliminar o "viés injusto" dos algoritmos.

Ambas iniciativas estão sob o guarda-chuva de um fundo de pesquisa de US$ 27 milhões (Ethics and Governance of Artificial Intelligence Fund), criado pelo cofundador do LinkedIn, Reid Hoffman, e outros investidores, e administrado pelo MIT Media Lab e pelo Centro Berkman Klein de Harvard.

Os governos da Europa e dos EUA estão engajados na regulamentação da IA. No início do ano, um relatório do Parlamento Europeu sobre robótica e inteligência artificial versou sobre responsabilidade civil, ética, impacto sobre mercado de trabalho, segurança e privacidade.

Os eurodeputados defendem dotar os robôs autônomos de "personalidade eletrônica", ou seja, aptos a arcar com a responsabilidade de seus atos. Outras ideias em debate são a criação de um código de conduta ética para engenheiros de robótica, e a agência europeia para a robótica e IA. Dois obstáculos comprometem os resultados: o relativo baixo conhecimento sobre os meandros da Inteligência Artificial dos legisladores, e a velocidade com que a IA vem avançando. Se ainda não há consenso regulatório sobre globalização -- mercado financeiro, internet, e vários outros assuntos mais conhecidos e antigos, o que esperar sobre IA!

O desafio não é simples nem trivial, e a tendência é tornar-se mais complexo com o advento, em algum momento do século XXI, da superinteligência, definida por Nick Bostrom como "um intelecto que excede em muito o desempenho cognitivo dos seres humanos em praticamente todos os domínios de interesse". Ou seja, máquinas autônomas.