Estado

Bolívar Lamounier: O primeiro gol tem de vir antes do segundo

Indiferente ao destino coletivo, nossa elite deleita-se com as tetas volumosas do Estado

O título deste artigo é um lugar-comum a que os locutores esportivos recorrem quando lhes ocorre apontar que um dos times contendores está se deixando levar pelo açodamento. Correria não adianta, tem de ser um gol de cada vez.

Tal advertência é igualmente importante, mas nem sempre observada, na política. Exceção à regra, o economista Alexandre Schwartsman tem insistido nela em suas palestras e seus artigos. O Brasil - diz ele - defronta-se com duas agendas, uma urgente e uma importante. Urgente é o conjunto de desafios que o governo Bolsonaro terá de vencer, de um jeito ou de outro, desde logo o ajuste fiscal (que inclui a reforma da Previdência). É o primeiro gol, sem o qual não haverá o segundo.

Se o primeiro ficar para o quatriênio seguinte, estaremos no mato sem cachorro, e assim sucessivamente, num mato cada vez pior, até que um dia nem teremos como pensar na agenda “importante”. Esta, diz Schwartsman, são os megaproblemas que nos esperam no médio prazo - 15 ou 20 anos, digamos; um mar de terrores que poderá até pôr em risco nossa existência como entidade nacional autônoma. Não precisamos esforçar-nos muito para trazer alguns exemplos à mente. Nosso descalabro educacional (o ministro Vélez Rodríguez está nos devendo um pronunciamento mais substancioso a esse respeito), meio ambiente e saneamento (que o ministro Ricardo Salles tem tratado com propriedade, mas por enquanto não lhe ocorreu que o saneamento é um problema gravíssimo até nos bairros ditos “nobres” da maior cidade da América do Sul). Desenvolvimento da média e pequena empresas - ou alguém acha que ficando na rabeira da China conseguiremos resolver nossos problemas de desemprego e criar uma classe média robusta? Nesse particular, alvíssaras, Joaquim Levy, presidente do BNDES, começou a solfejar a música que queríamos ouvir.

O problema é que temos pela frente dois formidáveis empecilhos, que afetam tanto a agenda urgente como a importante.

O primeiro é uma decorrência direta da radicalização política dos últimos anos e, em particular, do clima de “prende, mata e esfola” que emprestou seu sinistro colorido à campanha presidencial. As sequelas ainda estão aí, à vista de todos. Tenderão a se diluir, claro, a não ser que sejamos mesmo um país de lunáticos. E a consequência, enquanto não se diluem, é que a capacidade do atual governo de mobilizar a opinião, dramatizando a urgência da agenda urgente, permanece num patamar modesto.

Não estou propondo fazer o segundo gol antes do primeiro. Estou é dizendo que, forçado a superar rapidamente os entraves que já estão aí, bem configurados, o governo enfrentará dificuldades tanto maiores quanto menor for sua capacidade de convencimento. Com o passar do tempo, percebendo que ele não é a fera que todos imaginavam, o Congresso o encostará na parede. Mostrará a planilha que o nosso “presidencialismo de coalizão” sempre soube elaborar com extremo esmero. Pior ainda, o corporativismo - aquela miríade de grupos de interesse que só se dispõe a conversar com uma faca nos dentes - reativará seus acampamentos em Brasília.

E aqui chegamos ao segundo problema. Por enquanto, o governo vem pecando por uma baixa capacidade de convencimento. Mas o pior é que os grupos sociais situados entre os 15% ou 20% de mais alta renda e escolaridade raramente refletem sobre as questões apontadas. Sabem que elas existem, mas não contribuem para a governabilidade, ou seja, para a mobilização da opinião, para um adequado balizamento das forças políticas, em busca da indispensável convergência. Não se impressionam quando alguém lhes diz que o nosso médio prazo pode se transformar num circo de horrores; dão de ombros, simplesmente. Individualmente, cada um retruca: “Tal hipótese pode até se concretizar, mas não me atingirá, os outros que se cuidem”. Ou seja, nossa elite cultiva um individualismo tosco, inconcebível para uma pessoa que tenha tentado se informar sobre o que aconteceu em outros países, em diferentes momentos da História.

De onde provém esse individualismo ingênuo? Ora, por quem sois, do fato de Deus ser brasileiro. Sim, essa deve ser uma parte da história. Da circunstância de não convivermos continuamente com temperaturas extremas, vulcões, tsunamis, etc. Mais importante, porém, é termos conseguido consolidar rapidamente nossa unidade territorial, ao contrário, por exemplo, da Alemanha e da Itália, que só conseguiram estabelecê-la meio século depois de nós. Do fato, também, de que para consolidá-la e formar um mercado nacional não tivemos de encarar uma das guerras proporcionalmente mais sangrentas da História, como a guerra civil norte-americana de 1861-1865.

O fato é que nossa elite, além de indiferente ao destino coletivo de nosso país, e profundamente ignorante a respeito dos retrocessos e tragédias vividos por nosso país, aninhou-se gostosamente nas dobras do Estado, deleitando-se com suas volumosas tetas.

Sim, lá atrás, Deus nos deu uma mãozinha. Mas nossa elite precisa lembrar que os Estados Unidos, por exemplo, não obstante a já referida guerra civil, fizeram a partir de 1860 uma das mais espetaculares revoluções educacionais de que temos notícia, por meio dos land-grant colleges (universidades voltadas para o desenvolvimento tecnológico, construídas pelos Estados em terras doadas pela União). Que o Japão, graças à restauração da dinastia Meiji, fez em 20 anos reformas muito mais drásticas do que essas que temos estado a discutir há não sei quantos anos. E que a Alemanha, hors-concours quanto à corrupção na administração pública durante o século 18, transformou-se durante o século 19 no modelo de profissionalismo cantado em prosa e verso pelo nunca assaz louvado Max Weber, o maior dos sociólogos.

* Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


César Felício: Scripta manent

Presidente implantou lógica parlamentarista

Não há precedentes na história democrática brasileira para as vitórias que Michel Temer conseguiu no Congresso durante sua presidência. O presidente que se vai na próxima semana fez aprovar em primeiro turno na Câmara uma mudança constitucional que engessa o gasto público por 20 anos, na véspera de um feriado, em 10 de outubro de 2016, o que não é pouco. Seis meses depois, às portas de nada menos que o Dia do Trabalho, conseguiu da Câmara a chancela para a reforma que demoliu a CLT.

Mas isso não foi tudo. A hecatombe desencadeada por Joesley Batista, que explodiu na tarde de 17 de maio de 2017, apenas desviou o foco presidencial, mas manteve o padrão de eficácia do presidente no Congresso. Temer passou a trabalhar exclusivamente para a autopreservação e salvou-se duas vezes. No dia 2 de agosto, derrubou a primeira denúncia formulada pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot. Em 25 de outubro, foi a vez de a segunda denúncia cair.

Foram quatro vitórias emblemáticas de Temer no plenário da Câmara, algo sugestivo para um presidente nascido do Congresso e abençoado pelo Supremo, entre abril e maio de 2016. Época em que a Câmara aprovou o afastamento de Dilma Rousseff em um domingo, com direito a espocar de rojões de papel picado em plena votação, sob o pulso firme de Eduardo Cunha. O STF só entendeu que o deputado do MDB não podia presidir uma casa do Legislativo poucos dias depois de completado o serviço em relação ao impeachment.

O rio desaguou no mar porque correu no sentido certo. O vice-presidente nomeou um ministério integralmente formado por parlamentares. Implantou uma lógica parlamentarista no país. Não houve mulher ou negro na primeira equipe ministerial formada porque a lógica do governo Temer não era a de pactuação com o eleitorado, mas sim com o Congresso. Sarney, Fernando Henrique e Lula lotearam a administração. Temer a feudalizou.

Sua administração tinha em Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, uma âncora, que reverteu as expectativas negativas do mercado em relação ao déficit público galopante, mas seus motores foram múltiplos na área política. Na linha de frente, havia quatro pontas de lança: Geddel Vieira Lima, Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá.

Em uma semana Jucá estava fora, com a divulgação do célebre diálogo com Sérgio Machado sobre a necessidade de um grande acordo nacional.

Era um produto derivado da à época chamada "megadelação" da Odebrecht, que vitimaria também Geddel e o então ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves. A segunda onda de denúncias, movida por Joesley, trouxe o bombardeio para o Palácio do Jaburu.

Foi nesta disjuntiva, entre a força extrema no Congresso e a sombra das suspeitas de corrupção, que oscilou Temer em seus dois anos de estadia na Presidência. Muito se escreverá sobre a sobrevivência de Temer no poder depois do 17 de maio. Um dos fatores, sem dúvida, foi o fato de os áudios de Joesley não comprometerem apenas o presidente. O mais discreto dos operadores de Temer, Aécio Neves, também foi atingido.

Na luta para garantir o próprio pescoço, Aécio travou o desembarque do PSDB do governo. Para um Planalto acostumado a ceder um Refis ou uma anistia do Funrural a cada votação fundamental, a aliança com Aécio saiu barato. Qualquer um que tenha ouvido os áudios do senador com o empresário se lembra do exaspero do tucano com a incapacidade do governo federal em barrar o ritmo das investigações. Aécio redobrou a aposta a favor de Temer porque a alternativa era pior.

O tucano temia o que poderia sobrevir de uma queda do presidente em maio de 2017. A falta de um roteiro de saída para o governo Temer causava receio a toda a elite em Brasília, mas só o PSDB vivia uma guerra intramuros. Um processo sucessório em eleição indireta, da qual os tucanos seriam protagonistas, seria fatal para Aécio. Não é possível desvincular a trajetória de Temer da do senador mineiro.

Muito se falou até o começo deste ano de uma candidatura à reeleição de Temer. É difícil pensar que o emedebista e seus acólitos realmente tenham considerado a sério a ideia. Mesmo sem o caso Joesley, Temer nunca teve aprovação a seu governo superior a 14%.

O presidente transitou nas pesquisas de intenção de voto na faixa inferior a 5%, o que condiz com o perfil de sua carreira. Temer diversas vezes se colocou em São Paulo como pré-candidato a algum cargo majoritário - prefeito, governador ou senador - sempre com o mesmo propósito: mudar de patamar na negociação das alianças.

O que de fato parece ter sido a intenção de Temer foi a de influir na escolha do candidato do PSDB à Presidência. O nome preferido de Temer, está claro, era o de João Doria, a partir do momento que este se elegeu prefeito de São Paulo, em 2016. A alternativa Doria à Presidência começou a se apagar em meados de outubro do ano passado. Por volta desta época Temer inflou o balão de ensaio do 'semipresidencialismo', que poderia permitir ao MDB manter-se no poder mesmo fora do jogo de alianças nacionais. A ideia de Temer era obter aval do Supremo para a possibilidade de uma mudança no sistema de governo sem necessidade de plebiscito. A conjura foi abortada assim que ganhou espaço na imprensa.

Também foi sepultado pela mesma época o último ensaio da reforma da Previdência. Convenientemente, a reforma saiu de cena diante de uma situação de fato, a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro. Em fevereiro deste ano não havia propriamente uma sequência de calamidades na área que justificava a medida extrema, ou pelo menos nada que fosse mais sério do que o que se passava no Estado em novembro e muito menos de o que aconteceria em março, com o assassinato da vereadora Marielle Franco.

Há os que acreditam que a reforma poderia ter sido aprovada se Temer não tivesse que desviar seu foco em função do áudio de Joesley. É uma crença que o próprio presidente ajudou a propagar, mas a história contrafactual é complicada. A negociação com o Congresso só teve início no segundo trimestre de 2017. O texto base passou na Comissão Especial no dia 3 de maio, duas semanas antes de Joesley. Em momento algum a contabilidade de votos que o governo fazia indicou atingir os 308 votos necessários para a aprovação na Câmara. É uma incógnita o que aconteceria se o rumo fosse outro. O fato é que Temer desistiu da votação. Como ele consignou a Dilma, as palavras voam e vale o escrito.


Valor: Governo fará 'desmanche' do Estado, diz Mourão

Por Claudia Safatle, Carla Araújo e Andrea Jubé, do Valor Econômico

Prestes a assumir a vice-presidência do país, o general Hamilton Mourão defende que o governo de Jair Bolsonaro envie ao Congresso uma proposta de emenda constitucional para desvincular o Orçamento da União. "A Constituição engessa o país", disse, em entrevista ao Valor. Mourão afirmou que governo não começará "na base de impactos e pacotes", mas que todos os ministros deverão no dia 14 de janeiro, data marcada para acontecer a primeira reunião ministerial, apresentar metas e objetivos para "desregulamentar" e "desburocratizar" suas áreas.

O general defende que o texto da reforma da Previdência enviado pelo governo Michel Temer seja aproveitado e diz que os militares também estão dispostos a dar a sua contribuição com mudanças. O vice-presidente sugeriu ainda que Bolsonaro dê explicações da situação das contas públicas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, a aprovarem um aumento de 16,38% nos vencimentos, mostram" desconhecer a realidade".

Mourão defende ainda que, com as reformas aprovadas, será possível conversar com os investidores sobre o alongamento do prazo dívida mobiliária interna. O vice-presidente eleito se negou a comentar a situação do ex-motorista de Flavio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que se apresentou como comerciante de carros para justificar a movimentação milionária em sua conta corrente: "Isso é um assunto do Ministério Público do Rio de Janeiro", resumiu. A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Como estão distribuindo as missões no início do governo? A economia dará respostas nos primeiros dias.

Hamilton Mourão: A economia é o carro-chefe para arrumar essa situação que o país está enfrentando. Nós tivemos uma reunião preliminar na semana passada e foi dada a orientação que no dia 14 de janeiro, que vai ser a primeira reunião ministerial para valer, todos os ministros terão que apresentar o seu planejamento e as suas metas para os primeiros 100 dias, para serem aprovadas pelo presidente. Nessa reunião preliminar, alguns ministros que já dispunham de algum conhecimento anterior apresentaram alguma visão mais objetiva do que eles têm pela frente, outros ainda estão tomando pé da situação.

Valor: O ministério da Economia está entre esses que estão mais avançados?

Mourão: Na economia nós temos uma noção muito clara, isso é uma visão do conjunto, que as reformas são muito importantes. Se a gente não conseguir levar adiante tanto a reforma da previdência como a tributária nós vamos ter muita dificuldade.

Valor: Os senhores irão aproveitar o texto atual da reforma da previdência que já está na Câmara?

Mourão: Eu acho que vai ter que ser aproveitada, até pelo problema de prazo. Se a gente for voltar para a estaca zero não vamos conseguir produzir nada no ano que vem. Poderia ser feito um adendo aqui outro ali dentro da visão que se tem. Mas o que está sendo trabalhado, eu não tenho dado concreto disso, vai ser colocado só nessa reunião de janeiro. Mas temos que usar o que está lá e colocar uma coisa a mais, que isso é permitido pelo regulamento [sic] interno do Congresso, para que a gente consiga no primeiro semestre tentar passar isso aí.

Valor: Antes dessa reunião de 14 de janeiro tem alguma coisa que já pode ser anunciada?

Mourão: Nós não vamos começar na base de impactos e pacotes. Eu acho que gente tem que ser mais objetivo e não fazer coisas espalhafatosas que vão resultar em muito pouco resultado depois.

Valor: Mas tem coisas também que podem dar uma sequência, por exemplo, abertura comercial, não?

Mourão: Abertura comercial vamos ter que fazer um trabalho que tem que estar em fases, porque a nossa indústria não suporta um choque de abertura da noite para o dia. Nós vamos ter que fazer um faseamento. Numa reunião que eu tive com o pessoal da indústria eu usei um termo que era do presidente (Ernesto) Geisel (1974-1979) que dizia que era "lenta, gradual e segura" e acho que a abertura comercial tem que ser dessa forma, porque nós não vamos resistir a um choque.

Valor: E sobre a intromissão do estado na vida do cidadão?

Mourão: Todos receberam orientações sobre desregulação. Todos os ministros receberam orientação e têm que apresentar trabalhos e metas neste sentido, de você soltar um pouco, liberar as pessoas para que possam empreender com mais segurança.

Valor: Antigamente, se dizia que era impossível empreender com os juros altos, hoje os juros não são tão pesados, mas a carga tributária...

Mourão: A nossas carga tributária está aí na faixa de 35% a 37% do PIB. O Estado leva 45% do PIB e não devolve. Se devolvesse, se tivéssemos hospitais de primeira qualidade, escolas maravilhosas, estradas fantásticas, estava todo mundo bem, mas não temos. É só para sustentar uma máquina pesada em termos de pessoal e pesada em termos de estrutura.

"O acúmulo de recursos nas mãos do governo cria espaço para a política do toma-lá-dá-cá, para a corrupção"

Valor: Além da reforma da previdência e tributária, tem a reforma do estado, dá para ser feita?

Mourão: É um troço difícil, por que qual é a margem de manobra que existe? São os cargos em comissão, que dentro do governo federal tem um número cabalístico ai que serão em torno de 23 mil, mas se somar em toda a estrutura da federação chegaria a 120 mil. Incluindo função gratificada, cargo em comissão, estatal, isso aí você tirando os concursados. De todos os entes somados, os três níveis. É um exército.

Valor: Dá pra reduzir para quanto?

Mourão: Não para chegar e dizer: 'vou reduzir em 50%'. Cada um vai ter que avaliar dentro da sua estrutura qual é quantidade que ele pode manter, tem que ser um processo de estrangulamento e nós temos o problema do próprio funcionalismo público que a gente não consegue reduzir, porque isso mexe com as igrejinhas. Lá em São Paulo foi aprovado o novo regime de previdência do funcionalismo e já está colocada greve.

Valor: Como convencer os parlamentares sobre a necessidade da reforma da Previdência?

Mourão: Temos que fazer uma campanha de esclarecimento, tanto no Congresso como da população. O homem comum, o cidadão que não estuda muito, tem ideias preconcebidas do papel do estado na vida futura dele. A gente tem que explicar isso, porque se não ocorrer (a reforma) ninguém vai ter futuro. Mas se ela for aprovada vai trazer mais confiança para o país dos investidores.

Valor: Vocês querem romper com o fisiologismo, o Congresso vai corresponder?

Mourão: Vai ser um governo de persuasão. A gente tem que mostrar pra eles a responsabilidade que eles têm. Não querendo jogar a população contra, mas é tentar ser mais coerente. Tem muito parlamentar ali que não entende. Você tem ali - como em qualquer grupo social - tem 30% que são realmente esclarecidos, tem 40% que é a 'meiuca' que vai pra onde sopra o vento, e mais 30% que não sabe nem onde é a "curva do A".

Valor: Isso é atribuição do presidente?

Mourão: Acho que do presidente, do coordenador político, o general Santos Cruz (Secretaria de Governo). Se o presidente me delegar essa tarefa eu vou lá conversar. Vamos expor didaticamente.

Valor: E os filhos dos presidente, dois deles são parlamentares, qual vai ser o papel deles?

Mourão: Os filhos devidamente orientados pelo presidente podem auxiliar e muito. Compete ao presidente conversar e orientar eles. É a primeira vez que temos na história da República presidente com filhos parlamentares. Eles têm uma interação muito grande, são muitos amigos. Estamos num momento de acomodação. Quando começar a nova legislatura em fevereiro eles estarão com as tarefas bem definidas.

Valor: E a previdência dos militares, ela também será feita?

Mourão: O que tem que ficar muito esclarecido é que o militar não tem uma previdência, eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão. Mas já estão colocadas as questões que entrariam, como o aumento de permanência do serviço ativo. Hoje precisa de 30 anos de serviço e a ideia é passar para 35 no primeiro momento. E também as pensionistas passariam a descontar, seria uma forma a mais de contribuição. A questão dos militares é infraconstitucional.

Valor: O senhor tem recebido investidores estrangeiros?

Mourão: Alguns. Recebi o Bank of America, JP Morgan. O dado que eu tenho é que existem US$ 9 trilhões no mundo sendo negativados porque não estão sendo investidos em atividade de risco, então temos que absorver alguma coisa disso.

Valor: Há anos se fala em fazer reforma tributária, como ela seria?

Mourão: A reforma tributária tem de estar atrelada à reforma do Estado, e essa reforma é a do pacto federativo. Temos que colocar o recurso o mais cedo possível nas mãos do Estado e do município, e não ficar distribuindo migalhas. Caberá ao Governo Central ficar com menos recursos na mão dele. O governador do Estado e o prefeito são aqueles que têm a melhor noção das carências e necessidades.

Valor: Mas para fazer isso tem que ter uma desvinculação geral.

Mourão: Essa é a outra ideia que nós temos que eu considero extremamente pertinente, e isso daria um papel relevante para o Congresso. O Congresso hoje discute - sem querer desmerecer o papel dos congressistas -, assuntos periféricos. Se eles tivessem todo o Orçamento para realmente dizer o que vai para cada um eles teriam uma responsabilidade maior e o Executivo ficaria com a função de executar o Orçamento. O Executivo tem 8%, 9% para mexer.

Valor: Como isso será feito?

Mourão: Essa desvinculação teria que ser feita por emenda constitucional, porque a Constituição diz que tanto vai pra saúde, outro tanto para a educação. A Constituição foi feita na saída do que foi o período militar, quando várias corporações estavam batalhando um naco. Então se colocou coisa demais na Constituição. A Constituição da forma como está engessa o país.

"O militar não tem uma previdência; eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão"

Valor: O presidente Jair Bolsonaro vai sancionar ou vetar a prorrogação dos incentivos fiscais para empresas que investirem nas áreas da Sudam, Sudene e Sudeco, diante de possível rombo?

Mourão: Não conversei esse assunto com o presidente. Ali no dia 2 a gente vai ter bastante trabalho. Há os outros prejuízos lançados, como o aumento do Judiciário e dos funcionários públicos.

Valor: O STF está fora da realidade?

Mourão: Há um certo ativismo lá dentro, ora político, as simpatias políticas que alguns dos ministros têm, e às vezes uma coisa pessoal. A gente tem que conversar. Sentar um dia com os 11 ministros e expor para eles a situação do país. Acho que eles não conhecem. Sou favorável a que o presidente vá lá um dia e explique que se os senhores aprovam medidas dessa natureza, vamos cada vez mais nos encalacrar. Levaria o ministro da economia a tiracolo.

Valor: O Brasil está quebrado...

Mourão: Eu sei disso, pagamos R$ 400 bilhões por ano de juros, temos um déficit de R$ 139 bilhões, isso na conta de padeiro. Por isso precisamos aprovar essas reformas, porque com a melhoria do nosso rating nós poderemos até emitir títulos pagando juros menores. Podemos fazer uma repactuação dessa dívida, podemos alongar o prazo, diminuir o pagamento anual dos juros para R$ 350 bilhões; R$ 50 bilhões a mais é muito pra gente investir em coisas que a iniciativa privada talvez não queira.

Valor: Esse é um tema muito delicado: a repactuação não pode ser interpretada como um calote?

Mourão: O PPI vai ficar com o general Santos Cruz na Secretaria de Governo. O que ele precisar, a gente apoia. Eu montei uma equipe multidisciplinar capaz de oferecer soluções caso seja necessário.

Valor: Mas é como um suporte, um conselho?

Mourão: Não é um conselho, é uma equipe capacitada a trabalhar em qualquer assunto temático. Por exemplo: precisamos discutir o Acordo de Paris, tem gente para dar esse subsídio. É o meu dream team: são oito analistas.

Valor: O presidente se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu nesta sexta-feira. O governo vai ter uma relação especial com Israel?

Mourão: Não sei ainda. O que eu vejo é que hoje Israel tem uma aproximação muito grande com o presidente, já de algum tempo. Vamos ver até que ponto isso vai acontecer. Até porque temos que olhar, dentro do sistema internacional, pragmaticamente, o que se pode auferir nesse processo. Não podemos ficar só com o ônus, a gente tem que ter bônus também.

Valor: Pode haver alguma retaliação dos países árabes com essa aproximação de Israel?

Mourão: Depende do grau da aproximação, né? Isso aí tem que ser estudado até porque o presidente não tomou nenhuma decisão a respeito, e quando chegar a hora, a gente vai apresentar uma visão pra ele, e ele poderá decidir em melhores condições.

Valor: E essa relação com os Estados Unidos, será de adesão automática?

Mourão: Não, o que existe, e que acho inegável, é que nós temos hoje um governo pró-Trump que tem uma visão pró-valores da democracia americana, que admira esses valores. Mas não é um concorde imediato com qualquer coisa que for produzida por lá. É uma relação de governo, que não pode ultrapassar esses limites.

Valor: Logo no início, o governo vai ter que decidir sobre o subsídio do diesel aos caminhoneiros.

Mourão: Sim, o general Heleno fez uma reunião a esse respeito. Acho que a tendência é manter o subsídio até que se consiga uma solução melhor. Tem a questão da tabela de frete, que o [ministro da Infraestrutura] Tarcísio Freitas está trabalhando em cima também. Nós não temos condição de, de hoje para amanhã, solucionar esse problema.

Valor: Quando haverá uma solução?

Mourão: Na minha visão, onde está a raiz desse problema todo? No sistema tributário. Então, se a gente consegue dar uma acertada na questão da tributação, e os combustíveis, qual o índice maior da tributação? É o ICMS, que é de onde os Estados tiram o dinheiro. Onde eu moro, no Rio de Janeiro, é absurdo. É a gasolina mais cara do Brasil, custa R$ 5, é 35% o ICMS lá sobre o combustível.

Valor: Tudo virou uma indústria pra arrecadar...

Mourão: Mas arrecadar por que? Porque você tem que alimentar o dragão. É isso tudo que tem que ser explicado pra um conjunto de parlamentares e população, porque nós temos que domar o dragão. Domamos o dragão da inflação, mas esse outro dragão do Estado ainda não está domado. Está solto aí. Temos muito para fazer, na realidade, pra desfazer. Um desmanche, se fizer um desmanche. Eu já fiz essa comparação, eu gosto de cavalo, gosto de montar, já disse que Brasil é um cavalo olímpico capaz de saltar 1m80, mas tá todo amarrado, só salta 0,70 cm. O Paulo Guedes falou, tem que tirar as bolas de ferro do pé industriais.

Valor: Como chegamos a esse ponto?

Mourão: Porque aqui existe a associação do patrimonialismo com essa visão de que o Estado é o grande protetor. E depois pronto. E aí você junta o populismo, que tivemos tanto de direita como de esquerda.

Valor: Talvez a principal tarefa seja esse desmanche

Mourão: É, no Exército a gente tem um ditado: chefe bonzinho morre coitadinho. Não pode ser bonzinho, porque depois as próximas gerações serão beneficiadas. Hoje as próximas gerações não têm futuro, do jeito que tá.

Valor: O que o senhor achou das explicações do ex-assessor e motorista de Flavio Bolsonaro, que disse que as movimentações atípicas identificadas pelo Coaf eram resultado de compra e venda de carros?

Mourão: Sem comentários. Hoje isso é um problema do Ministério Público do Rio de Janeiro, não tenho nada a ver com isso.

 


Sérgio C. Buarque: Quais são os meios?

Todos querem e prometem enfrentar a pobreza, distribuir renda, aumentar o emprego, melhorar a saúde e a educação e enfrentar a violência. Mas quais são os instrumentos e mecanismos adequados e efetivos para alcançar estes objetivos?

Passado o reveillon e a confraternização dos brasileiros, o ano começa já olhando para o momento crucial da história política do Brasil, as eleições de outubro, quando serão escolhidos os futuros governantes do país. Os potenciais candidatos devem, a partir de agora, acelerar os movimentos e as articulações na busca do poder da República. Embora seja muito cedo para especular sobre as chances eleitorais, o quadro de desestruturação social e moral do Brasil cria um campo fértil para os discursos e as propostas populistas e messiánicas. Ao longo do ano, os brasileiros vão ser bombardeados com promessas e retóricas de um país mais justo, sem pobreza e desigualdade, muita saúde, educação e segurança. Quase todos falam a mesma coisa em relação aos fins, sendo Jair Bolsonaro a única voz destoante com sua ideologia autoritária.

Se existe convergência em relação aos objetivos finais do Brasil, o que permite distinguir entre os candidatos e suas ousadas, e quase sempre inviáveis, promessas? São os meios que fazem a diferença. Segundo Isaiah Berlin, “quando existe acordo sobre os fins, os únicos problemas que restam são os referidos aos meios, e estes problemas são técnicos e não políticos” (da versão em espanhol)[1]. Sendo assim, a discussão deveria concentrar-se em torno dos meios mais adequados e eficazes para alcançar os objetivos que, supostamente, são semelhantes. No debate político, entretanto, as divergências em torno dos meios contaminam qualquer análise técnica porque, em última instância, existe uma enorme distância entre o efetivo compromisso com os fins e a sua manipulação com o propósito de conquista do poder.

Desta forma, a escolha do futuro presidente da República (e dos outros cargos) deve ser feita com base na análise dos meios prometidos e considerados nas suas propostas, na definição do que deve (e que pode ser) feito para, de forma eficaz e viável, transformar a realidade com a redução das desigualdades sociais e o equilíbrio das oportunidades sociais. Todos querem e prometem enfrentar a pobreza, distribuir renda, aumentar o emprego, melhorar a saúde e a educação e enfrentar a violência. Mas quais são os instrumentos e mecanismos adequados e efetivos para alcançar estes objetivos? Todos passam pelo Estado e pelas ações e políticas públicas, tudo depende, antes de tudo, de meios (legais, regulatórios e financeiros) das instituições públicas que podem promover as mudanças que levam ao desenvolvimento. E este Estado, convenhamos, está falido, fragilizado e fragmentado. Por isso, qualquer candidato a presidente que não apresente propostas consistentes e relevantes que reestruturem o Estado brasileiro, recuperando a capacidade de investimentos e de gastos públicos, estará enganando os brasileiros.

[1] Dos conceptos de libertad y otros escritos – Alianza Editorial – Madrid – 2008

*Sérgio C. Buarque é economista


Sérgio C. Buarque: A refundação do Estado

O principal problema do Brasil é o Estado, grande, ineficiente, injusto e corrupto, capturado e dominado pelo patrimonialismo e pelo corporativismo, que se apropriam de grandes fatias dos recursos públicos. Mas a solução e o desenvolvimento futuro do Brasil dependem também do Estado. Precisamos de outro Estado. Como sugeriu Tibério Canuto em reunião da Roda Democrática no Nordeste, precisamos refundar o Estado brasileiro. E não se trata de rever o seu tamanho, mas redefinir seu papel e suas funções, suas prioridades e a estrutura organizacional.

O Brasil tem uma carga tributária de 35% do PIB, pouco menos que a Alemanha (cerca de 36,1% do PIB), e muito acima da Coréia do Sul com apenas 24,4% do PIB. E por que o resultado é tão diferente nesses países? O IDH-Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil é 0,754, muito abaixo da Alemanha, com 0,926, e da Coréia do Sul, com 0,901. Com um Estado muito mais leve que o brasileiro, a Coréia do Sul tem alto nível de educação, competitividade e qualidade de vida. Na avaliação do PISA, que mede a qualidade da educação no mundo, o Brasil ficou em 65º numa lista de 70 países, e a Coréia do Sul é o 7º melhor. Para onde estão indo os enormes recursos que o Estado arrecada? Estão saindo pelo ralo, numa mistura de apropriação indébita, privilégios, supersalários, insolvência do sistema de previdência, ineficiência, desperdício e corrupção.

A refundação do Estado brasileiro passa pela revisão do seu papel no desenvolvimento e na promoção da melhoria da qualidade de vida. Com a receita atual, o Estado brasileiro poderia promover uma profunda transformação na sociedade e na economia. O Estado deve concentrar todas as forças e recursos como provedor dos serviços públicos e, principalmente, do que prepara o Brasil e os jovens para o futuro: a educação pública de qualidade, como fez a Coréia do Sul, como fizeram os países desenvolvidos. Essa é a verdadeira promoção da justiça social, criando oportunidades iguais para todos os jovens, nada a ver com as gambiarras de distribuição de renda. O Estado não precisa ser empresário, mas deve atuar com firmeza na regulação do mercado, garantindo a concorrência e a qualidade dos produtos. O resto, deixa que os empresários fazem melhor e com mais eficiência que as estatais, manipuladas por interesses imediatos dos governantes de plantão, quando não utilizadas para as falcatruas, como o Petrolão. A economia tem que ser eficiente e o mercado não é o espaço da justiça. Quem tem que praticar a justiça é o Estado, mas não com distributivismo de renda, e sim com oferta equânime de educação, base para a igualdade de oportunidades.

Entretanto, antes de qualquer coisa, é urgente conter a descontrolada vazão de recursos públicos arrecadado pelo Estado. A começar pela urgente reforma da Previdência e pela revisão dos salários dos servidores públicos, para acabar com as discrepâncias, os privilégios e os supersalários, especialmente no Judiciário. O orçamento da União para este ano destina R$ R$ 648,6 bilhões para a Previdência Social (INSS e servidores públicos), quase seis vezes mais que os R$ 110,7 bilhões destinados à Educação e 78 vezes mais do que é alocado para Ciência e Tecnologia. O Sistema Judiciário consome R$ 41,9 bilhões dos recursos públicos da União e o Congresso leva mais cerca de R$ 10,2 bilhões, custo este que se multiplica por Estados e municípios, para não falar na dívida que está sendo simplesmente rolada (jogada para o futuro). Com esta estrutura de despesa pública, com grande rigidez à baixa, o Brasil vai continuar andando de costas para o futuro. E o Estado brasileiro marchando rapidamente para a insolvência, que levará o país para o abismo. A não ser que um grande entendimento nacional promova a refundação do Estado .

 

 


Luiz Carlos Azedo: Quem perdeu?

O governo e a oposição, o Congresso e os partidos políticos, talvez boa parte dos governos estaduais, caíram no descrédito popular

A geração de políticos formada na Segunda República (1945-1964) foi derrotada pela radicalização que a Guerra Fria fomentou numa sucessão de crises antecedentes ao golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart. As principais ocorreram em 1954 (suicídio de Getúlio Vargas), 1956 (posse de Juscelino Kubitschek) e 1961(renúncia de Jânio Quadros). Sucumbiram no processo quase todos os protagonistas, com exceção de Leonel Brizola, o incendiário, que após a anistia elegeu-se governador do Rio de Janeiro, em 1982, e Tancredo Neves, o bombeiro, que elegeu-se presidente em 1985, mas não chegou a tomar posse. José Sarney, o vice que assumiu a Presidência da República, e Ulysses Guimarães, o grande líder da oposição que presidiu a Constituinte eleita em 1986, eram políticos coadjuvantes no pré-64.

Do legado da geração de políticos que emergiu do regime militar, quase tudo foi volatilizado pela crise atual. Individualmente, é difícil reconhecer o próprio fracasso, mas, diante das revelações da Operação Lava-Jato e do buraco em que nos metemos, fica evidente o fracasso de uma geração. O governo e a oposição, o Congresso e os partidos políticos, talvez boa parte dos governos estaduais, caíram no descrédito popular. Como negar esse fracasso a 13 milhões de desempregados, outros tantos que vivem da economia informal, aos milhões de jovens sem perspectiva de emprego futuro — boa parte já fora da escola. Pela primeira vez na história, uma geração entregará o país em condições piores do que o recebeu.

Não é à toa a situação de esgarçamento social existente, que favorece a radicalização política. A Guerra Fria já não existe, mas o clima é de guerra quente por causa da crise na Síria. O país perdeu o consenso em torno de algumas ideias que balizaram a transição à democracia. Durante a Constituinte, havia grandes consensos em relação à política externa, ao modelo industrial, ao acesso universal à saúde e à educação, à legislação trabalhista, ao regime tributário, ao sistema partidário, ao sistema eleitoral, às questões agrária e indígena etc.

As posições extremas em relação a tudo isso estavam isoladas.Trinta anos depois, não há mais consenso sobre nada. O nosso Estado de direito democrático sustenta-se no que está escrito na Constituição de 1988 e não no amplo entendimento sobre a realidade social, para onde e como o país deve caminhar. Os indicadores de violência são um fator perturbador de que a convivência social é muito frágil, basta tirar a polícia da rua — ou dos estádios — para emergir a barbárie.

Quando se ouve a voz da maioria dos políticos, a sensação é de que estão repetindo os mesmos discursos há 30 anos. O que predomina no debate político são visões ideológicas, incapazes de abrir caminhos para o enfrentamento da crise atual, porque refletem de forma distorcida as reais contradições da sociedade. Ou, simplesmente, são carapaças políticas nas quais se escondem, sem acreditar nas próprias palavras. É impossível construir novos consensos quando não há diálogo e abertura para dar vazão ao novo.

O que fazer?

Um dos efeitos colaterais da reeleição de presidentes, governadores e prefeitos foi empurrar a fila para trás. Quando se compara nossas lideranças com as de outras nações — basta assistir aos telejornais —, é flagrante a diferença de gerações. Não se formou ainda uma nova geração de líderes. Nossos principais políticos são os mesmos desde a Constituinte, com raras exceções. E não foram capaze até agora de construir novos consensos em torno de ideias básicas que promovam o crescimento, combatam os privilégios, reduzam as desigualdades, enfrentem seculares iniquidades sociais, como o analfabetismo, a falta de moradia e a discriminação racial.

Essa dificuldade é maior porque muitas das ideias da nossa elite política estão sendo atropeladas pela revolução tecnológica e a economia do conhecimento. O mais dramático nesse aspecto é que a nova geração de políticos está numa gestação de risco, muitos dos quais já condenados às ideias anacrônicas. Assim como ficamos de fora das três revoluções industriais, fomos excluídos da quarta. O lugar cativo do Brasil na nova divisão internacional do trabalho é exportar alimentos in natura e granulados de minério. Se quisermos realmente ser mais do que isso, utilizando o potencial que temos, o país terá que se reinventar sob vários aspectos, a começar pelo Estado. É aí que está instalado o maior conflito.

O Estado no Brasil é anterior à nação. Foi o guardião da escravatura até 1888. A partir de 1930, transformou-se na alavanca da industrialização. A forma mais rápida e lucrativa de reprodução e concentração de capital no Brasil é a transferência de renda do Estado para o setor privado, desde sempre. Sua reforma pressupõe a reinvenção do capitalismo no país. Esse talvez seja o grande busílis do novo consenso a ser construído. Já existe uma opinião pública majoritariamente engajada na ideia de que os grandes interesses privados precisam ser apartados dos mecanismos de decisão do Estado, mas como traduzir isso na política? Sem os políticos e o Congresso, é impossível.

Luiz Carlos Azedo é jornalista


Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-quem-perdeu/


Uma outra fonte de parasitismo

“Uma outra fonte de parasitismo absoluto sempre foi a administração do Estado e ainda hoje acontece que homens relativamente jovens, com ótima saúde, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais, depois de 25 anos a serviço do Estado, não se dedicam mais à mesma atividade produtiva, mas vegetam com aposentadorias mais ou menos satisfatórias”.

Antonio Gramsci


José Antonio Segatto: Estado e sociedade civil

A relação Estado e sociedade civil no Brasil, desde a fundação do Estado nacional, foi sempre infausta e discrepante, adversa e de sujeição. Essa realidade foi objeto de análise de intelectuais de variadas linhagens do pensamento social. Exemplares são as obras antinômicas de Oliveira Vianna e Raymundo Faoro.

O primeiro, ao constatar que a sociedade civil era amorfa e frágil, propugnava um Estado forte, centralizado e autoritário para (re)criá-la — um Estado demiurgo. Já o segundo, ao inverso, entendeu que o Estado foi organizado como aparato de poder exclusivo e restrito, burocrático e patrimonial — o Estado é tudo, a sociedade civil, nada; seriam necessários, portanto, a reordenação das estruturas estatais e o deslocamento de parte de seus poderes para a sociedade civil.

Traços tanto do estatismo de Oliveira Vianna quanto do liberalismo de Raymundo Faoro podem ser encontrados em toda a História brasileira. O estatismo é patente ao longo de quase todo o regime imperial, quando o Estado precede a sociedade civil, inexistente mesmo nos seus estertores, como revelou um testemunho da época: “O que há de organizado é o Estado, não a nação” (Tobias Barreto). Na Primeira República (1889-1930) — quando se enceta um esboço de sociedade civil —, tem-se um liberalismo mitigado pelo domínio oligárquico e pelas práticas patrimonialistas e clientelistas. Nos anos 1930, o estatismo e o autoritarismo ganham proeminência, sobretudo durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), acoplando agora o corporativismo — o Estado, sob o governo Vargas, (re)fundou ou instituiu a sociedade civil, subordinada aos seus desígnios (sindicatos, organizações estudantis, etc.).

Com a democratização de 1945 foi instaurado um regime liberal, limitado, porém, pelos resquícios de autoritarismo e corporativismo — não obstante isso, nos anos 1950-60, teve início um processo de criação de pressupostos favoráveis ao encorpamento e ao dinamismo da sociedade civil, favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs o poder estatal. Essas condições foram abortadas pelo golpe de Estado e pela instauração da ditadura civil-militar (1964-1985), que radicalizou os elementos antidemocráticos, centralizadores e estatistas.

No processo de transição democrática, de fins dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, houve a emergência de uma sociedade civil revigorada, que teve papel relevante na democratização, mas foi sendo contida pelos resíduos históricos extemporâneos. Ressalta-se que nessa quadra política, de resistência e combate à ditadura, se propagou, com muita força, o entendimento de uma sociedade civil virtuosa, portadora da liberdade e da justiça, versus um Estado autoritário e controlador, pervertido e iníquo — esse fenômeno está mesmo na origem do PT e do PSDB. O breve governo de Itamar Franco e, em especial, os governos de Fernando Henrique Cardoso — que prometiam o desmonte do estatismo e do populismo varguista — deram seguimento a um projeto político eclético, mesclando liberalismo e social-democracia com elementos conservantistas e/ou tradicionalistas. A seguir, nos governos petistas, retomou-se a política varguista, setores consideráveis da sociedade civil foram cooptados ou mesmo estatizados, além de revigorar-se o estatismo e o patrimonialismo, o clientelismo e o corporativismo.

Desse conciso painel histórico, em que se alternam períodos de predomínio de estatismo ou de liberalismo nunca completos ou exclusivos, podem-se extrair algumas ilações:

1) Tanto num como no outro, a relação entre Estado e sociedade civil foi impregnada de patrimonialismo, clientelismo e fisiologismo;

2) houve, no decorrer dessa História, uma disjunção entre Estado e sociedade civil, entre sociedade civil e política e suas instituições mediadoras, em particular, os partidos políticos;

3) essa relação disjuntiva, aparentemente paradoxal, de tutela e sujeição foi executada por agentes da política e da própria sociedade civil, objetivando estabelecer a dominação e o controle do aparato estatal e nele materializar e maximizar seus interesses privatistas e particularistas;

4) dessa relação instável e assimétrica, resultou um Estado parcamente público e insuficientemente democrático e uma sociedade civil atomizada e difusa, sem capilaridade e organicidade, com diminutas autonomia e identidade societal.

Tais condições adversas, evidentemente, não constituem simples elementos e fatos pretéritos. Eles foram perpetuados e continuamente reatualizados. Assim sendo, essas relações têm de ser repostas e levadas em sua devida conta nas análises e na práxis política dos protagonistas empenhados em remover os bloqueios à ativação da sociedade civil, em rechaçar a complacência dos Poderes com a cultura política autoritária, em superar os obstáculos ao livre exercício dos direitos de cidadania e à ampliação das normas e instituições democráticas.

Obviamente, isso não implica a contração dos poderes do Estado e o esvaziamento de suas atribuições e/ou prerrogativas (Estado mínimo) e sua transferência para uma sociedade civil supostamente autogovernada pelos interesses e pelo livre mercado – seria retroagir à incivilidade ou mesmo à barbárie. Ao contrário, implica, sim, a construção de um Estado público e desprivatizado, democrático e expurgado do patrimonialismo e do cartorialismo, do clientelismo e do fisiologismo, do corporativismo e do populismo; demanda, por outro lado, uma sociedade civil autônoma e ativa, acoplada e conexa a uma esfera pública consoante com aspirações e demandas democráticas.

Desse modo, a discussão e a implementação de reformas — política e eleitoral, trabalhista e previdenciária, fiscal e/ou tributária, etc. — não podem estar desvinculadas das complexas relações entre Estado e sociedade civil.


* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp.

Zander Navarro: Por que somos assim?

Publicado no O Estado de S. Paulo em 01/03/2017

Não há nenhum grupo a quem entregar o bastão e que nos conduza a um futuro mais radiante

Vamo-nos fixar no Brasil, ignorando por ora a insanidade coletiva que caracteriza o estado do mundo. Afinal, seria demasiado desafiador entender por que o Parlamento russo sancionou a violência doméstica ou os deputados da Romênia tentaram liberar a corrupção até certo nível monetário. Por que será que países com História ilustre, como a Turquia, a Hungria ou a renascida Polônia e sua vibrante economia optaram por regimes autoritários tão primitivos? E os ingleses, sempre acesos, como se deixaram levar pela emoção e aprovaram o mergulho na escuridão fora da União Europeia? Sobre todos esses fatos, e muitos outros, surge um espertíssimo empresário, mas ignorante do mundo da política e, inacreditavelmente, os eleitores do país mais poderoso do mundo o elegem para a Presidência. São tempos sombrios e ameaçadores.

Sujeitos às nossas particularidades, não escapamos dessa marcha delirante. Basta abrir os olhos e ver à nossa volta, das episódicas evidências do cotidiano aos fatos mais impactantes. Somos um país que delicia os antropólogos, os especialistas dedicados às “coisas da cultura” que tentam explicar por que sempre escolhemos o irracional, o inconsequente e o mágico. Mas sua civilidade os impede de usar os termos corretos para designar as oceânicas patetices que conduzem a Nação. Mesmo a cordialidade permanente que nos caracterizaria (assim dizem) não camufla a gigantesca sensação de derrota e fracasso que está hoje fincada no fundo de nossos corações – a generalizada impressão sobre um país que, de fato, não tem futuro.

Como recordar é viver, diariamente observamos exemplos espantosos. Do presidente da República, que seria um especialista em Direito Constitucional, mas não se envergonha de exercer a censura em razão de uma infantilidade que teria incomodado sua esposa. E o outro que era então presidente do Supremo, mas nem ficou corado em “fatiar” a Constituição para proteger a ex-presidente, rasgando ao vivo e em cores a nossa Lei Maior?

E esta recente carnificina num presídio de Natal, quando atemorizados soldadinhos da Força Nacional entraram com contêineres para separar as facções em luta? Assustados, ficamos pensando: não conseguem sequer interromper a selvageria e dar fim à rebelião? São eventos nada educativos, sugerindo que o Estado brasileiro é ficcional e se vão esfumaçando os fundamentos da vida em sociedade.

Pior ainda: qualquer fato ou ação proposta sempre se defronta com duas expressões imobilizadoras tornadas obrigatórias no jargão da política. A primeira exige que “seja ouvida a sociedade”, vaga demanda que sugere democracia, como se esta fosse real no Brasil. E se for iniciativa com alguma implicação social, diversas vozes logo ecoarão:

“Chamem os movimentos sociais!”. É outra ficção, mas, na dúvida, opta-se por nada fazer. E seguimos entre a inércia e a boçalidade que talvez seja, esta sim, a nossa marca cultural mais distintiva.

Por que somos assim? Por que aceitamos tanta falsidade, tanto cinismo e manipulação com tal serenidade? Por que situações que são acintosamente ilógicas são passivamente recebidas pela população? Por que nos deixamos dominar tão rapidamente pelo autoengano, pelo fingimento e pelo pensamento mágico? Somos, de fato, estruturalmente incapazes de alguma reflexão crítica e, entre nós, a frase de Montaigne sobre o “maravilhoso trabalho da consciência: ela nos faz trair, acusar e combater a nós mesmos (...) nos denuncia contra nós mesmos”, não se aplicaria?

Por que somos assim? Ativado um debate nacional para obter respostas, listaríamos os fatores que são os mais conhecidos. Da baixa escolaridade às recentes raízes agrárias, pois a intensificação da urbanização se desenrolou no último meio século. Da modernidade industrial à extensão dos direitos e ao adensamento democrático, mudanças igualmente recentes. Outros enfatizarão o peso do catolicismo vigente, que exalta a pobreza e a vida comunitária, o que desenvolveria posturas que, na prática, acabam sendo anticapitalistas e inibem o empreendedorismo. Ou, então, heranças patrimonialistas de nossa História e até mesmo o legado de estruturas cartoriais que nos formaram ao longo dos séculos.

Todos esses determinantes, sem dúvida, têm algum peso que precisaríamos avaliar. Mas discutimos escassamente dois outros aspectos que parecem ser igualmente cruciais para explicar esse estado de prostração que atualmente é típico em nossa sociedade. Primeiramente, e ao contrário do que tem sido afirmado, nossas instituições (as formais e as informais) funcionam muito mal, são diáfanas de tão fracas, sem nenhuma robustez e eficácia, existem mais no papel e na retórica, com rala efetividade prática no cotidiano dos cidadãos. Não imagino que seja necessário ilustrar, todos conhecemos sobremaneira a inoperância de nossas instituições. Como adensá-las?

Por fim, o outro grande tema que está exigindo urgente discussão diz respeito à inacreditável indigência que caracteriza as nossas elites, seja no tocante ao seu minúsculo estofo cultural ou, então, em relação à sua incapacidade decisória. Todas elas, da política à empresarial, da educacional à estatal, da Justiça à científica.

Não há grupo algum a quem possamos entregar o bastão e pedir que nos conduza para um futuro mais radiante. Sobre esse tema novamente Montaigne nos inspira: “Para quem não tem na cabeça uma forma do todo, é impossível arrumar os elementos (...) nossos projetos descaminham-se porque não têm direção nem objetivo. Nenhum vento serve para quem não tem porto de chegada”.

Todas as grandes sociedades se consolidaram em função de projetos societários impulsionados sob o comando de elites que conseguiram desenvolver “uma forma do todo”. Ainda veremos essa estratégia transformadora concretizar-se no Brasil algum dia?


*Sociólogo e pesquisador em ciências sociais

Fernando Rezende: A reconstrução do Estado. Qual é o caminho a seguir?

A primeira etapa de um percurso que visa à reconstrução do Estado é a que trata da reforma do processo orçamentário. Ao longo das ultimas décadas, a importância do orçamento público para o fortalecimento do Estado e a vitalidade da democracia foi solenemente ignorada. O orçamento deixou de ser o principal instrumento para garantir o equilíbrio dos Poderes para se transformar numa das próprias causas para a multiplicação dos conflitos.

A destruição do processo orçamentário acarretou a irrelevância do orçamento enquanto instrumento fundamental para organizar as ações do Estado e criar as condições necessárias para a eficiência e a eficácia das políticas públicas, com a consequente ineficiência da gestão e o desinteresse dos profissionais mais qualificados em exercer as funções burocráticas. Na ausência de estratégias assentadas num planejamento competente, o horizonte do orçamento foi ofuscado e o Estado abandonou uma ação proativa para se acomodar numa atitude reativa.

Na primeira etapa desse percurso, o passo inicial consiste na restauração da credibilidade do orçamento mediante a recuperação do espírito que guiou a instituição da Lei de Diretrizes Orçamentárias (a LDO) pela Constituinte de 1988. Conforme estipula o texto da Constituição, cabe à LDO estabelecer as metas fiscais, definir as diretrizes orçamentárias, o programa de investimentos e a política de financiamento das agências financeiras oficiais, o que nunca chegou a ser feito como deveria. Desde o primeiro momento esse espírito foi desvirtuado, transformando a LDO numa lei que trata de inúmeros detalhes sem tratar de fato do essencial.

Não é preciso dispor de poderes sobrenaturais para evocar o espírito que presidiu à instituição dessa lei. Basta seguir à risca o que diz a Constituição. E isso começa com o rigor na previsão das receitas orçamentárias, abandonando a prática antiga de superestimar recursos para abrigar maiores demandas de gasto e o vício adquirido há algum tempo de contar com receitas extraordinárias para cumprir as metas fiscais. Um passo nessa direção foi dado pelo atual governo com a disposição de exibir números mais realistas para o déficit primário, mas o resultado anunciado ainda depende de receitas extraordinárias e não explicita um grave problema, que é a insuficiência das receitas correntes para cobrir despesas obrigatórias.

A credibilidade do orçamento não depende apenas de previsões confiáveis para as receitas. É preciso deixar claro o crescente avanço das despesas obrigatórias sobre as receitas correntes e a impossibilidade de sustentar o equilíbrio fiscal no médio prazo sem pôr em discussão o desequilíbrio nas prioridades orçamentárias, que cresceram à sombra do foco na meta anual para o resultado primário. Isso é essencial para restaurar a credibilidade das projeções inseridas no anexo de riscos fiscais da LDO, de modo a dar início a um processo de planejamento orçamentário de médio prazo que não focalize apenas o equilíbrio macroeconômico, mas também as diretrizes a serem seguidas com vista à redução dos desequilíbrios nas prioridades orçamentárias.

Um planejamento orçamentário de médio prazo também é essencial para articular as medidas necessárias para sustentar a estabilidade macroeconômica com aquelas que devem cuidar da promoção do desenvolvimento. Daí o mandato constitucional que determina destacar na LDO as iniciativas voltadas para alavancar o crescimento mediante a formulação de um programa de investimentos e a concomitante definição da política de financiamento das agências financeiras oficiais. As regras da LDO são claras. Ao Estado cabe cuidar da ordem, para manter a estabilidade, e do progresso, para garantir a felicidade da Nação. Está na hora de seguir à risca o preceito constitucional.

Para dar conta dessa dupla responsabilidade é necessário tratar da recuperação do investimento público e do saneamento financeiro das agências de financiamento. Daí a importância de as diretrizes orçamentárias definirem metas para a redução dos desequilíbrios nas prioridades, de modo a abrir espaço fiscal para ampliar os investimentos governamentais e restaurar a capacidade das agências de fomento de apoiarem os investimentos privados, buscando atacar o principal motivo da perda de confiança da sociedade no Estado, que viceja na falta de perspectiva para uma queda rápida e significativa dos índices de desemprego.

Não convém insistir apenas na renovada aposta de que a falência do investimento público poderá ser substituída por privatizações e concessões. Isso é importante, mas não é uma panaceia. Uma política de investimentos orientada por uma visão estratégica de futuro precisa sair do trivial e fazer escolhas capazes de alavancar uma nova rodada de desenvolvimento industrial, que combine medidas relevantes para fortalecer o Estado com a incorporação de avanços tecnológicos para criar empregos de maior qualidade e gerar efeitos multiplicadores em toda a economia.

Também importante para a retomada da confiança da população no Estado é a recuperação da sua capacidade de executar o que foi prometido. O povo está cansado de promessas nunca cumpridas e para mudar isso é preciso que o tema esteja presente nos primeiros esforços de retomada do planejamento. Para evitar que isso se repita é essencial que o compromisso com o realismo das propostas seja complementado por medidas que visem a reforçar a capacidade de operação da máquina pública em áreas estratégicas para o País, de modo a instilar confiança na população com respeito a capacidade do Estado de liderar uma saída mais rápida da crise e dar início a uma nova etapa de desenvolvimento.

* FERNANDO REZENDE É ECONOMISTA, PROFESSOR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS DA FGV, FOI PRESIDENTE DO INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA

 


Ricardo Noblat: Em risco, o Estado de Direito

Aconteceu o que parecia impossível: São Paulo parou. Era uma cidade deserta por volta das 18 horas da segunda-feira 15 de maio de 2006.

Metade da população da Grande São Paulo, algo como 5,5 milhões de pessoas, deixara de trabalhar na ausência de ônibus.

Três em cada 10 estudantes haviam faltado às aulas. O comércio fechara antes do fim da tarde. São Paulo estava sob o ataque do crime organizado.

Foram nove dias de terror que deixaram um rastro de 493 mortos, segundo o Instituto Médico Legal, ou 564, segundo cálculos do sociólogo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, feitos com base em boletins de ocorrência.

Em um único dia, 105 civis morreram a tiros. Não há estimativa sobre o número de feridos. Nunca se soube de quem partiu a ordem para atacar.

Mas o suspeito número um sempre foi Marco Willians Herbas Camacho, Marcola, o chefão do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa fundada sob o lema de “Liberdade, Justiça e Paz”.

Dizia lutar “contra as injustiças e a opressão dentro das prisões”. Antes dos ataques, o PCC existia em 40% das favelas da capital. No final de 2006, em mais de 70% delas.

Marcola e os principais líderes do PCC estavam presos quando desafiaram o poder do Estado naquele ano. Continuam presos.

Um documento interno da polícia de São Paulo, que circula desde a semana passada, informa que o PCC distribuiu armas de fogo para desencadear possíveis novos ataques contra a cidade a partir de amanhã. O governo nem confirma nem desmente a ameaça.

A origem dela pode estar na decisão tomada pelo governo, à vista das mais de 110 mortes recentes em Manaus, Boa Vista e Natal, de transferir Marcola e outros detentos para penitenciárias onde o regime disciplinar é mais duro.

Decisão semelhante, que implicava na mudança de endereço de 730 presos do PCC, incluindo Marcola, foi o que deflagrou em 2006 a onda de medo que varreu a cidade.

Na noite de 12 de maio, antevéspera do Dia das Mães, o PCC matou agentes policiais na periferia da capital paulista, depredou agências bancárias e assumiu o controle de três presídios no interior.

No dia seguinte promoveu 63 atentados em 23 cidades do Estado, matando 25 agentes públicos. No domingo, mais 156 atentados, fora 80 presídios rebelados e sob o domínio do PCC.

Os ataques só cessaram quando o governo recuou da decisão de transferir presos. Mesmo assim, em agosto, o PCC sequestrou um repórter e um cinegrafista da TV Globo e só os devolveu com vida depois que a emissora divulgou manifesto onde a facção deplorava as “condições desumanas dos presídios”.

O episódio serviu para que se pusesse o dedo na ferida pela primeira vez.

Sob o título “Basta de violência”, documento assinado por entidades que reúnem veículos de comunicação alertou:

“O que está ameaçado neste momento não é apenas o cotidiano civilizado a que todos os cidadãos têm direito. É a própria sobrevivência da sociedade democrática, porque sua manutenção depende da autoridade, credibilidade e prestígio das suas instituições”.

Era disso que se tratava há 11 anos. É disso, com mais razão, que se trata hoje.

A segurança nacional está em risco, admitiu na última quinta-feira o presidente Michel Temer. O Estado de Direito, também.

Com a Lava-Jato, e na ausência momentânea de quem o compre, o degradado poder político será uma presa fácil para as 27 facções criminosas disseminadas pelo país.


Daniel Rei Coronato: As novas bandeiras do progressismo mundial

O mundo acompanhou atônito aos acontecimentos vindos das urnas nos mais diversos países e contextos durantes os últimos meses. Combinações explosivas de ressentimento coletivo, sensação de ameaça, empobrecimento sistemático de amplas parcelas da população – além de fatores pouco mensuráveis como o aparente mal-estar das sociedades contemporâneas – desembocaram em resultados que contrariaram expectativas e interpretações correntes. Ainda é pouco compreensível a existência de uma interconexão entre esses fenômenos, assim como suas consequências e repercussões.

Para as frações progressistas, no entanto, é tempo de reflexão. Desde que conquistaram o poder em países importantes na América do Sul, Europa e Estados Unidos – com o discurso de transformação encabeçado por Barack Obama –, passaram a perder sistematicamente força de interlocução. Sofreram sérios reveses, acenando para um esgotamento atrelado a sua capacidade limitada de responder aos anseios dos descontentes que procuram mudança. O enredo singular de cada caso desembocou em uma situação de incredulidade generalizada, perdendo apoio de setores historicamente alinhados e não conquistando apoiadores nas fileiras adversárias.

Crises econômicas e a tortuosa marcha da globalização apresentaram cartas com que a social-democracia e a esquerda democrática tiveram dificuldades para lidar. Assumindo uma gestão macroeconômica de perfil mais liberal, internalizando a sua semântica e retórica ancoradas no eixo fiscal, aparentaram agir como agentes do establishment à serviço da minoria endinheirada. Em alguns casos a vitória da esquerda significou a intensificação de políticas recessivas, patrocinando reformas que diminuíam o bem-estar dos trabalhadores. A defesa sistemática da inserção nas cadeias internacionais de produção, em prol do ganho de competitividade, também colaborou para essa percepção, alimentando o discurso nativista e nacionalista.

A gravidade dos temas globais e o vácuo de projetos transformadores, no entanto, impõem que sejam repensados os eixos centrais do que significaria um progressismo global.  Em razão da intensidade das transformações e da metabolização de diversos movimentos sociais, especialmente após a grande crise de 2008, parte dessa agenda já está sendo construída à revelia das organizações partidárias. De maneira ainda dispersa, sinalizam pautas e bandeiras para uma reinserção virtuosa das alas progressistas no debate público, gravitando em torno de três ideias centrais: igualdade, privacidade e Estado.

Igualdade

O conceito de igualdade é amplo, ocupando espaço considerável nas disputas políticas e intelectuais acerca do seu significado. No debate público dos últimos anos esteve especialmente atrelada ao aumento das assimetrias de renda, deterioração das oportunidades de trabalho e estudo nas sociedades de mercado. Mesmo que nunca tenha perdido sua relevância, foi com o movimento Occupy Wall Street e as ações de contestação na zona do euro que voltou ao primeiro plano nos anos recentes. Sob o lema de “Nós somos os 99%”, passaram a denunciar sistematicamente o fato de a minoria dos 1% mais abonados concentrar sozinha uma riqueza desproporcional, beneficiando-se de um sistema tributário e político que intensifica seu poder, garantindo a propagação dessa situação.

A discussão passou a ganhar viés mais programático na esteira de embates intelectuais como entre o francês Thomas Piketty e o grego Yanis Varoufakis, e a emergência de políticos como o senador democrata Bernie Sanders nos Estados Unidos. Em geral, responsabilizaram a “financeirização” e a mudança da geografia na produção industrial, que teriam juntas representado um processo de cisão no modelo de acumulação. O motor de desenvolvimento amparado pelos complexos industriais e suas ramificações foi substituído por economias essencialmente de serviços, alterando a sociabilização e o grau de proteção social que a dinâmica anterior havia permitido para uma parcela importante da população.

As mudanças estruturais patrocinadas pela dobradinha Reagan-Thatcher desenvolveram uma dinâmica própria, ganhando mais força nos anos 1990 e no início da década seguinte. Como consequência, emergiram arranjos tributários mais condescendentes com os afortunados, a diminuição de alíquotas sobre herança e a desregulamentação do setor financeiro, facilitando assim o trânsito internacional de divisas e promovendo as soluções de evasão nos paraísos fiscais. Com essa conjunção de fatores a concentração de riqueza se intensificou.

Em paralelo, o Estado reduziu os aparatos de proteção social, restringindo seu raio de ação. Esse processo aconteceu de maneira diversa no tempo e em cada canto do globo, no entanto, quando o sistema financeiro começou a apresentar seus primeiros sinais de colapso, notou-se uma convergência nessa direção, inclusive nos ambientes de maior igualdade. As reformas apresentadas pelas classes políticas como solução se tornaram imediatamente impopulares porque além de dolorosas, não socializavam as perdas entre as mais diferentes esferas da população.

Nos Estados Unidos a situação foi mais grave, já que o modelo de recuperação impetrado pelo governo Bush salvou a maior parte do sistema financeiro com um plano bilionário de recuperação que não exigia contrapartidas que levassem à superação das causas geradoras daquela situação. O sistema de bônus pagos aos executivos das empresas responsáveis pelo caos econômico foi mantido, gerando consternação em uma massa endividada pelo excesso de liquidez e desempregada, por vezes atolada em financiamentos impagáveis de hipotecas ou créditos educacionais para o custeio do ensino superior.

Para as forças progressistas essa é uma questão central. A luta pela retomada de direitos trabalhistas e estruturação de uma lógica tributária devem vir acompanhadas pela pauta de regularização do financeiro e fiscalização dos paraísos fiscais. Essa não é uma bandeira difusa: em cada país ela se materializou de maneira concreta, afetando os mais diversos estratos sociais. Ela deverá vir acompanhada de um projeto de desenvolvimento que não se restrinja apenas a repartir melhor a renda, atendendo também a reformas que priorizem um modelo social. Nesse contexto, será fundamental repensar o papel dos acordos internacionais de comércio, saindo do binômio atual entre demonizados e aplaudidos sem critério, para projetar cadeias internacionais que promovam o desenvolvimento ao invés de reforçarem distorções ainda mais intensas na divisão internacional do trabalho.

Privacidade

Possivelmente, há alguns anos, a introdução da privacidade entre os temas progressistas produzisse  estranhamento. Historicamente, o sigilo de correspondência e informações pessoais e a regulação dos diversos meios de comunicação integraram uma pauta ligada à montagem dos Estados democráticos, e fundamental para a sua existência. Tal pauta tornou-se um direito garantido, como no caso brasileiro, pela constituição federal. Encampado geralmente por grupos liberais e conservadores, entrou definitivamente no radar por força das transformações tecnológicas e dos escândalos sucessivos envolvendo vigilância sistemática por parte de Estados e empresas.

A existência de aparatos estatais que pretendem controlar, cuidar e espionar a população não é novidade, apresentando versões em praticamente  todos os regimes de governos, incluindo as democracias. As justificativas variaram a depender do contexto em que está inserido, porém, usualmente eles se legitimaram no combate à alguma ameaça – interna, externa ou ambos – que colocaria em risco o meio de vida ou a própria existência do Estado.

Com o desenvolvimento da tecnologia da informação se especulou como esse poder, então potencial, poderia ser usado para criar um sistema quase perfeito de monitoramento, já que a quase totalidade dos processos passaram a depender integralmente de alguma rede computadorizada. Suspeitas de que algo dessa natureza pudesse já estar ocorrendo começaram a ganhar força após os primeiros esforços de contra-inteligência promovidos pelo governo americano para eliminar a possibilidade de um novo 11 de setembro.

As antigas teorias da conspiração se mostraram verdadeiras com as revelações de Edward Snowden. O ex-agente da CIA desnudou um universo assustador de agências estatais e terceirizadas a serviço do governo americano e aliados, atuando com capacidade de acesso a qualquer informação, de qualquer pessoa do mundo, conectada a algum sistema integrado. Chamou também atenção o fato de diversas empresas de tecnologia e informação agirem em cumplicidade com o governo, também se beneficiando desses metadados, sendo capazes de gerar conhecimentos inimagináveis algumas décadas atrás sobre o comportamento do consumidor. Além disso, o padrão exposto por Snowden de vigilância mostrava o uso político desses instrumentos por parte dos Estados Unidos, espionando governos teoricamente amigos e empresas estrangeiras em disputa com suas correspondentes nacionais.

O pesadelo orwelliano assustou até os incrédulos e levantou uma gigantesca discussão sobre os limites desse tipo de ação por parte de empresas e instituições a serviço do governo. Questionamentos envolvendo a jurisdição, a ética e os desdobramentos futuros produziram uma geração inteira de ativistas defensores dos direitos de privacidade. De modo geral afirmam que com a mudança nas tecnologias, o domínio da informação será mais importante do que qualquer estrutura física de poder, representando a nova fronteira não só da guerra como da produção.

A defesa da privacidade e a democratização no controle dessas informações se converteram em uma pauta global de primeira importância, pois permeia a defesa do cidadão contra a possibilidade permanente de abusos autoritários por parte dos Estados, além de restringir o uso das informações pessoais por empresas sem o consentimento expresso ou o acompanhamento da sociedade. Dela se poderá abrir espaço para o debate de temas ainda incipientes que em breve devem monopolizar as atenções, como inteligência artificial, uso de drones para fins militares e outros da mesma dimensão.

Estado

O indomável processo de construção de sistemas de integração, acordos comerciais e organizações supranacionais parecia condicionar a vitória de um sistema internacional liberal. No embate de valores, o império do mercado aparentava ter triunfado sobre as hostes do Estado, convertendo-se no principal agente de ação e transformação. No entanto, a crença geral no esfacelamento do Estado e das fronteiras nacionais parece ter perdido força nesses últimos anos em razão da solução encontrada para os desafios impostos pela conjuntura, com o recrudescimento de medidas isolacionistas e protecionistas.

O desmonte de parte dos aparelhos de bem-estar social na Europa e em menor grau nos Estados Unidos, além das dificuldades encontradas na América Latina para a criação de um sistema minimamente viável socialmente, criaram uma geração de descontentes e desprotegidos. A diminuição das perspectivas dos mais jovens – em alguns países espremidos entre o desemprego e a precarização -, a desregulamentação do mundo do trabalho e a força do mundo informacional pressionam o sistema político por ação transformadora e criação de novos espaços de representação, paradoxalmente ampliando a importância da esfera estatal.

A volta do protagonismo do Estado parece ser também um ponto de concordância para a maioria dos movimentos sociais que entendem que ele ainda seria a única força capaz de dar proteção à sociedade e promover o progresso social. A multiplicação e a consequente pulverização das demandas dos diversos setores da sociedade levaram a uma excessiva fragmentação das pautas, enfraquecendo-as de maneira geral. Atomizadas, presas aos seus lugares de fala, as bandeiras ligadas aos direitos humanos, à ecologia, às minorias e às distintas frações de trabalhadores passaram a ter dificuldades para dar sustentação aos importantes avanços obtidos ao longo do tempo. Seus avanços mais notáveis foram na esfera do Estado, seja sob a forma de conquista de direitos, seja em termos de políticas públicas e desenho organizacional.  Mesmo com diversas outras promessas, entre elas o associativismo típico do terceiro setor, não surgiu nenhuma outra força de organização capaz de substituí-lo em suas funções.

Parece haver certo consenso entre as alas progressistas de que o Estado deve prover educação, saúde e um sistema mais equilibrado de tributação, atuando com medidas anticíclicas em eventuais processos de desestruturação e esfriamento profundo da atividade econômica. No entanto, não parece apenas uma defesa do antigo modelo de bem-estar social ou do desenvolvimentismo experimentado com êxito parcial na América Latina. O que se espera é um Estado capaz de defender a multiplicidade de atores sociais garantindo a eles um ambiente mais igualitário, justo e simétrico sem que as liberdades estejam ameaçadas e a máquina pública fique artificialmente inflacionada.  A maior ou menor intervenção nas atividades econômicas dependerá das características e do contexto em que o Estado está inserido. Mas nenhum Estado poderá se privar de democratizar o modelo decisório levando em consideração a transmutação tecnológica e a gigantesca pauta de demandas hoje existentes (*).

*   - Doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e professor de Relações Internacionais.


Fonte: neai-unesp.org/