Estado

DOI-CODI, as memórias do QG da tortura da ditadura precisam seguir vivas

Uma batalha avança em São Paulo para fazer do antigo endereço da tortura um espaço de dignidade para as vítimas

Marcelo Oliveira / El País

Quem caminha pelas ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, na Zona Sul de São Paulo, a menos que conheça história profundamente, jamais saberá que naquele quarteirão funcionou o maior centro de tortura institucionalizada que existiu no país durante a ditadura militar (1964-1985). No Destacamento de Operações de Informação —Centro de Operações de Defesa Interna, mais conhecido como DOI-CODI do II Exército— foram mortas ou desapareceram 70 pessoas entre 1969 e 1976, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, a mando do regime militar. Outras centenas foram torturadas com requintes de crueldade por uma força tarefa que incluiu militares e policiais em nome da luta ao comunismo. Mulheres eram estupradas, crianças eram conduzidas para ver seus pais desfigurados após sessões de violência praticadas por agentes do Estado.

É uma memória quase perdida. Hoje funciona ali o 36º Departamento de Polícia de São Paulo e um laboratório de impressões digitais da polícia, que esconde um conjunto de edifícios baixos de cor acinzentada, hoje vazios. Era para lá que seguiam os presos políticos durante a ditadura. Apelidado de “açougue” entre os agentes que lá trabalhavam, o DOI-CODI deixou de existir em 1990. Não há sequer uma placa ou uma pintura em algum muro informando que aquele conjunto de edifícios é tombado pelo Patrimônio Histórico desde 2014.

Num momento em que o Brasil vive sob um Governo que atua para apagar os escombros que o regime militar deixou no país, uma batalha ganha espaço em São Paulo para tornar o antigo endereço do QG da tortura um espaço de dignidade para as vítimas que morreram ali e para o conhecimento das próximas gerações. Uma ação civil pública do Ministério Público de São Paulo, ajuizada em junho, solicita que a área ocupada por quatro prédios que faziam parte do DOI-CODI —exceto a delegacia— seja transferida da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura do Estado. Esta deverá preservar os prédios tombados e elaborar um plano para instalar um centro de memória no antigo QG da repressão.

A demanda por um memorial já tem 11 anos. Em 2010, Ivan Seixas, que foi torturado ao lado do pai aos 16 anos, pediu o tombamento do antigo DOI-CODI e a criação do memorial quando ocupava a presidência do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana). Em novembro de 2013, integrantes das comissões Nacional, Estadual e Municipal da verdade estiveram com seis ex-presos políticos no DOI-CODI. Na ocasião, os ex-presos reiteraram o pedido de tombamento do antigo centro de torturas e sua transformação em um memorial.

Era no DOI-CODI do II Exército que despachava e onde morou com a família por um tempo um dos heróis às avessas do presidente Jair Bolsonaro: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou a “repartição” entre 1970 e 1974, e morreu de câncer em 2015, num hospital de Brasília, sem ter sido condenado em nenhum dos sete processos que o Ministério Público Federal tentou abrir contra ele.

A casa dos horrores torturou até a morte jovens opositores do regime militar. Outros viveram a perversidade de serem torturados na frente de filhos crianças, como Amélia e Cesar Teles. O casal, de pouco mais de 20 anos, foi preso em dezembro de 1972, e apanhou seguidamente. Amelinha, como é conhecida, chegou a ser colocada nua numa cadeira para tomar choques elétricos. Quando as descargas pararam, recebeu a visita dos dois filhos, então com 5 e 4 anos. Tudo sob a supervisão do comandante Ustra.

Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.
Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo. Foto: MAURICIO PISANI

Para debaixo do tapete

O Brasil joga para baixo do tapete as evidências dos crimes daquela época. A única sentença criminal de primeiro grau contra um agente da repressão da ditadura foi anunciada no mês de junho deste ano: o ex-investigador Carlos Alberto Augusto, o Carlinhos Metralha, foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, em 1971, processo no qual Ustra foi réu até morrer, sendo excluído da ação. Foi a memória de Ustra que Bolsonaro escolheu homenagear ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, em abril de 2016, em vídeo que ele usou ostensivamente em sua campanha eleitoral em 2018.

Frequentadores da região do antigo DOI-CODI, que passam com seus cachorros ou param seus carros para buscar os filhos em uma das duas escolas infantis que ficam a menos de 100 metros do antigo QG da morte, desconhecem esse passado sombrio. No dia em que a reportagem esteve nos arredores, dois terços dos entrevistados (inclusive moradores) não sabiam do passado daquele quarteirão.

A aposentada Josefa Martins da Silva, de 89 anos, que mora num prédio na esquina das ruas Tumiaru e Tutoia, faz parte do grupo que não esqueceu. “Dava para escutar os gritos”, conta. Segundo ela, “ninguém podia ficar olhando o movimento” no local das janelas de seus apartamentos, pois eram advertidos pelos policiais e militares que tomavam conta do local. O taxista Sergio Naltchadjian, 64, não frequentava o bairro do Paraíso na época da ditadura, mas há anos tem um ponto de táxi na rua Tutoia e conta que moradores mais antigos já lhe disseram que era possível ouvir os gritos. “E, se alguém colocasse a cara na janela, já perguntavam o que estava olhando”, recorda.

Quem sobreviveu à tortura também não esquece. Ex-integrante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o ex-preso político Ivan Seixas, 66, preso aos 16 anos no DOI-CODI com o pai, o operário Joaquim Alencar de Seixas (assassinado em abril de 1971), sabe apontar exatamente o local onde foi torturado ao longo dos 50 dias em que esteve preso. “Foi naquele prédio nos fundos do 36º DP, no último andar. Eram duas salinhas e todo mundo via o que acontecia lá. Eu costumo dizer que nunca houve porões da ditadura, pois tudo era aberto. Era terrorismo de Estado”, conta. O MRT era adepto da luta armada, e seu pai teria integrado o grupo que matou Albert Hening Boilisen, empresário dinamarquês radicado no Brasil, acusado de financiar o regime militar. O documentário Cidadão Boilisen, que conta a sua história, relata que o empresário acompanhava pessoalmente as sessões de tortura de presos políticos.

Foi também no DOI-CODI que, num intervalo de três meses, foram mortos sob tortura o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o operário Manoel Fiel Filho, em 1976. Em ambos os casos, o Exército anunciou falsamente que se tratavam de suicídios. Herzog era diretor da TV Cultura, e foi convocado a se apresentar às autoridades depois de uma reportagem que falava do regime militar. Era um tempo em que jornalistas estavam na mira da ditadura, como contou seu filho, Ivo Herzog, a este jornal, em maio de 2018. Fiel Filho era um operário metalúrgico e foi preso por ter em casa panfletos contra a ditadura.

ex-presidenta Dilma Rousseff, segundo relatou, em 2001, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais, foi torturada por policiais mineiros e da Oban (Operação Bandeirante, que antecedeu o DOI-CODI) por 22 dias seguidos no início de 1970. Um de seus torturadores foi o capitão Benoni de Arruda Albernaz, que atuou no DOI, e lhe arrancou um dente com um soco.

Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.
Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo. Foto: MAURICIO PISANI

Em 10 de maio de 2013, o então vereador paulistano Gilberto Natalini contou à CNV que foi torturado pessoalmente em 1972 por Ustra. Ali, ele encarou o coronel, que prestou depoimento no mesmo dia. Natalini foi preso por ter cópias de publicações da Molipo (Movimento de Libertação Popular) quando militava no movimento estudantil e cursava medicina em São Paulo. “Fiquei três dias sendo interrogado, de dia e de noite, de noite e de dia, inclusive pelo coronel Ustra, que entrou várias vezes na sala”, contou Natalini, que revelou ter sido torturado por 60 dias, inclusive pelo comandante do DOI. “Tive a vivência de ter o coronel Ustra sempre presente nas salas de tortura, presenciando, participando, orientando (...) Eu apanhei dele pessoalmente, o coronel Ustra me bateu (...). Ele me despiu, me colocou em pé numa poça d´água, ligou fios no meu corpo e chamou a tropa para fazer uma sessão de declamação de poesias que eu escrevia contra o regime e ficou com um cipó, ele mesmo, me batendo durante horas”, contou Natalini à CNV.

Preservar o passado para não se repetir

No último dia 9 de setembro, às 14h, numa audiência histórica e carregada de simbolismo, o judiciário paulista reuniu integrantes do Ministério Público e representantes do Governo de São Paulo para decidirem se estas memórias continuarão pertencendo a poucos ou pertencerão a todos. Não houve acordo sobre a cessão de prédios para a Secretaria de Cultura, mas a conversa ficou em aberto. A ideia de preservar a memória para que não se repitam horrores é uma demanda urgente. A tortura desse período contamina até hoje as práticas policiais no país. O tombamento de locais onde ocorreram graves violações de direitos humanos e sua transformação em memoriais é recomendação expressa do relatório da Comissão Nacional da Verdade, “para a preservação da memória das graves violações de direitos humanos”.

O conjunto foi tombado em maio de 2014 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). Ao determinar a audiência do último dia 9 no DOI-CODI, o juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública, concedeu uma liminar obrigando o Estado de São Paulo a preservar todos os elementos estruturais e arquitetônicos dos prédios localizados no terreno do antigo DOI-CODI. Dos quatro prédios de que o MP pede a cessão para a Secretaria de Cultura, a SSP usa apenas duas salas no prédio da rua Tomás Carvalhal. Uma é ocupada pelo laboratório de datiloscopia (impressões digitais) da Polícia Civil, outra é o depósito de pneus de tratores e ônibus da polícia. No pátio ficam carros examinados pelo laboratório.

Os prédios em jogo incluem o edifício de três pavimentos nos fundos da delegacia que eram usados para interrogatórios e tortura; a casa do comandante, de dois pavimentos; um prédio de três andares com entrada pela rua Tomás Carvalhal, que era o alojamento dos policiais e militares; a garagem e o pátio do antigo DOI e o muro externo da rua Tomás Carvalhal, onde ficava a entrada do centro de tortura e onde até hoje se veem duas guaritas. O prédio e a garagem, pelo menos por fora, parecem estar em boas condições. O mesmo não se pode dizer dos dois prédios localizados atrás do 36º DP. As paredes externas de ambos os edifícios têm infiltrações.

A delegacia, inaugurada em 1960, é coadjuvante da ação. Por hora, o MP pede apenas que o Estado, caso condenado, apresente um “estudo para posterior desocupação das dependências da 36ª Delegacia de Polícia da Capital, integrando o prédio localizado na Rua Tutóia ao complexo do [futuro] Centro de Memória”.

A historiadora Deborah Neves, doutora em História pela Unicamp, e que atuou no processo de tombamento do DOI, coordena o grupo de trabalho criado pelo MP em 2016, quando foi aberto o inquérito civil público que resultou na ação. Para ela, mesmo antes do desfecho das negociações, é necessário dar andamento a pesquisas arqueológica e estratigráfica (que descasca uma parede, por exemplo, para saber quantas camadas de tinta ela tem). Há um projeto de pesquisadores para, inclusive, procurar restos humanos ali. Não há notícia de que corpos de desaparecidos políticos tenham sido enterrados no DOI-CODI, mas a ideia é procurar vestígios de sangue e dentes no local, antes da adaptação da área para um memorial.

O convênio para a realização das pesquisas já está nas mãos do secretário de Cultura, mas a ausência de cessão da área atrasa o projeto. Em 22 de maio deste ano, foi iniciada uma parceria entre a Secretaria de Cultura e o Memorial da Resistência para a preservação da memória oral do período. O primeiro depoimento colhido foi o de Ivan Seixas. A ideia é ouvir ao menos 100 pessoas presas e torturadas no local. “Já perdemos o [jornalista] Alípio Freire, o [sindicalista] Raphael Martinelli e o [operário e fundador do PT] Clóves de Castro e, por isso, iniciamos essa coleta de testemunhos. Fomos procurados por pessoas que não falaram nem para a CNV, nem para o Memorial da Resistência”, revela Neves, indicando que, passados tantos anos, ainda há muito a se revelar.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-28/doi-codi-as-memorias-do-qg-da-tortura-da-ditadura-precisam-seguir-vivas.html


Maria Hermínia Tavares: O que o país terá de pagar

O presidente foi derrotado em seu intento de reduzir a democracia a mera fachada do autoritarismo plebiscitário. O Congresso e o STF, os poderes subnacionais, a imprensa e a sociedade organizada travaram suas investidas. As Forças Armadas, que ele supunha suas, não lhe deram o apoio esperado.

Impedido de pôr abaixo o edifício democrático, o morador da “casa de vidro” vem paulatinamente destruindo capacidades estatais —a habilidade de mobilizar os conhecimentos acumulados nas burocracias públicas e as estruturas administrativas–, necessárias ao funcionamento cotidiano de qualquer governo.

No excelente livro “O Quinto Risco“, que descreve o início da gestão Trump, o jornalista e escritor americano Michael Lewis observa que a ignorância e a negligência caracterizaram o trato da máquina governamental pelo ídolo do nosso ex-capitão. Essa conduta, aponta Lewis, propicia a ascensão aos escalões superiores de três tipos de seres: os que querem defender interesses privados, próprios ou daqueles a quem servem; os que desejam apequenar o Estado; e os muitos que são pura e simplesmente incompetentes.

Basta uma rápida passada de olhos pelos mais altos postos da administração federal, cujo chefe abstraído não se interessa em conduzir, para identificar os mesmos tipos, com frequência acumulando mais de uma das características apontadas por Lewis.

Estão aí os Salles, Araújos, Weintraubs, Pazuellos, Vélezes, Ribeiros, Frias, Guedes… Logo abaixo, os que mandam para o Amapá o oxigênio destinado ao Amazonas; os que erram nas transferências do Fundeb ou na correção das provas do Enem; quem assume a direção das políticas de pós-graduação sem saber o que é um currículo acadêmico; aqueles incapazes de distinguir uma partida de madeira ilegal de uma adequadamente certificada; aqueles que se acumpliciam com a invasão de áreas indígenas por garimpeiros ou os que não conseguem fazer um cadastro adequado de beneficiários de programas emergenciais.

A entronização da incompetência, somada à má-fé nos cargos de chefia de agências públicas, é apenas uma das formas de destruição de capacidades estatais. Outra é deixar à mingua de recursos as agências que produzem informação da maior relevância —como o IBGE— ou as responsáveis pelo cumprimento da legislação vigente —como o Ibama, o ICMBio, a Funai. Os malfeitos se completam com a revogação, por decreto ou portaria, de extenso rol de regulamentos infralegais que dão conteúdo e orientação à ação cotidiana da máquina pública.

Uma devastação de cujos efeitos o país não terá como escapar.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/04/o-que-o-pais-tera-de-pagar.shtml


Mariliz Pereira Jorge: 400 mil mortos

“É lindo viver”, escreveu nesta quarta (28) o jornalista João Batista Natali, intubado durante 21 dias por complicações da Covid-19. Paulo Guedes não deve concordar. Nem Jair Bolsonaro.

Natali contou que, ainda internado, chorou compulsivamente ao ouvir “Paixão segundo São Mateus”, de Bach, depois do longo período em que “deixou de existir”. Eu me emocionei ao imaginar Natali impactado ao experimentar novamente, depois de ter flertado de perto com a morte, momento tão banal: uma música bonita no rádio.

Esse apreço pela vida deve ser coisa de jornalista sentimentaloide, como somos eu e Natali. Horas antes de o texto do jornalista ser publicado na Folha, o titular da economia dizia que a longevidade é insustentável aos cofres públicos. “Todo mundo quer viver cem anos.”

Vinda de um integrante do governo Bolsonaro, a declaração não surpreende, apenas confirma o desprezo que presidente e colaboradores sentem pelo maior bem que qualquer ser humano pode ter: a vida. Vamos lembrar que, há um ano, a reação de Bolsonaro, ao ser questionado sobre as mais de 5.000 mortes causadas pela Covid-19, foi esta: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Nesta quinta (29), o Brasil deve chegar à trágica marca de 400 mil mortos. Como a situação ainda deve piorar, talvez Guedes fique mais tranquilo.

Que ousadia a nossa querer viver tanto. Para ouvir Bach? Para ver sobrinhos e netos crescerem? Para tomar um chope gelado? Sentir o coração bater por uma nova paixão? Para nadar no mar? Para poder voltar a abraçar as pessoas?

Recorro às palavras da juíza Andrea Pachá, em recente tuíte: “Só entende o desejo de envelhecer e completar o ciclo da existência, experimentando a longevidade, aquele que ama a vida e a entende como direito humano fundamental. Sentimento inexplicável para o ministro que se indigna com os velhos que insistem em viver”.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2021/04/400-mil-mortos.shtml

 


Gabriela Prioli: Vacina? Só se for escondidinho

A abertura da CPI nos mostrou uma coisa: Bolsonaro, quando quer, sabe se organizar, desde que seja para defender seus próprios interesses. Em poucos dias, a Casa Civil produziu uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a própria comissão. Ele sabe o que ele fez.

Não se organizou antes porque o motivo não lhe parecia bom o suficiente. Trabalhar para salvar a própria pele, vá lá, mas se o risco que se apresenta for a morte de centenas de milhares de brasileiros, o esforço não vale a pena ou não interessa.

Afinal, não dá mesmo para todo mundo querer viver cem anos, como alertou Paulo Guedes na mesma reunião do Conselho de Saúde Complementar em que falou que a China, principal fornecedor de vacinas e insumos ao Brasil, inventou o vírus e criticou a Coronavac, que representa 84% das vacinas aplicadas no país, apesar do trabalho de Bolsonaro em descredibilizar o imunizante.

Sem saber que a reunião estava sendo transmitida, disse, sobre o aumento na expectativa de vida, que não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar a busca crescente por atendimento médico. Sem entrar na ordem de grandeza, sobraria algum dinheiro para a saúde se o governo, por exemplo, não insistisse na fabricação de medicamentos que não funcionam ou não precisasse ceder um pedaço do Orçamento para se proteger de remédios amargos, às vezes fatais.

Sobraria também se tivéssemos, com pressa, vacinado o nosso povo. Mais tempo de pandemia significa mais recursos públicos destinados a socorrer os mais vulneráveis. E não, a resposta não é o negacionismo que coloca o povo em risco para a economia não parar. Descoberta e disponibilizada a vacina, o isolamento que afeta a economia deixou de ser culpa do vírus para ser responsabilidade de quem atrasou deliberadamente o plano de vacinação. Vacina, aliás, que não faltou para o general Ramos, que precisou se imunizar escondido para não melindrar o seu chefe.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriela-prioli/2021/04/vacina-so-se-for-escondidinho.shtml


André Lara Resende: Obsessão em atar as mãos do Estado paralisa o Brasil há três décadas

Alta dos juros leva a efeitos distributivos perversos

Neste EU& Fim de Semana, de 16 de abril, José Júlio Senna faz uma crítica ao meu artigo “A quem interessa a alta dos juros”, também aqui publicado. O artigo de José Júlio merece um elogio logo na partida pois, coisa rara no debate econômico de hoje, é uma resposta civilizada e racional. Dito isso, passo a expor por que discordo dos seus argumentos e os considero um exemplo dos problemas da retórica dos economistas.

José Júlio concorda que não há hoje pressão de demanda sobre os preços. Discorda que a alta dos preços internacionais das commodities, associada à desvalorização do real, seja o principal fator por trás do aumento da inflação. Atribui a alta mais aos gargalos de oferta criados pela pandemia do que à pressão das commodities. Sustenta que a pandemia desorganizou a oferta, o que é incontestável, e que houve um desvio da demanda de serviços para bens, o que é uma mera conjectura.

De toda forma, o ponto central de seu argumento não depende disso. Reconhece que o núcleo da inflação não saiu de controle, está apenas ligeiramente acima da meta, aponta para 5,5% no fim do ano, mas pode chegar a ser mais alto a partir de maio, antes de voltar a cair. Sustenta que a alta dos preços no atacado, agravada pelos problemas de logística na pandemia, pode não ser transitória.

Segundo ele, o que poderia ser considerado um mero fenômeno estatístico é preocupante, pois corre-se o risco de influenciar as expectativas. Para José Júlio, a razão pela qual o Banco Central deve elevar os juros é justamente para evitar a perda de controle sobre as expectativas. Reconhece que a alta dos juros não irá reverter a alta dos preços, mas sustenta que irá impedir a propagação dos seus efeitos secundários, através das expectativas.

Paremos aqui um instante para perguntar como a alta dos juros irá reverter as expectativas. Os economistas concordam, coisa rara, que as expectativas são fator importante na formação de preços e na evolução da inflação, mas não têm nenhuma vantagem comparativa na explicação de como as expectativas são formadas. Expectativas de inflação são um fenômeno de psicologia coletiva, o que não é bem o campo dos economistas. Ao reconhecer sua incompetência, coisa ainda mais rara, os economistas resolvem o problema presumindo que as expectativas são formadas de acordo com as premissas do seu próprio modelo.

A hipótese de “expectativas racionais”, hoje praticamente hegemônica na macroeconomia, é exatamente isso: a realidade pouco importa, supõe-se que as expectativas são um mero espelho da formação de preços no modelo teórico utilizado. Resolve-se assim o problema de nada ter a dizer sobre a formação das expectativas, desconsidera-se a realidade e as circunstâncias, e de quebra, tem-se uma solução formalmente elegante.

Demonstrando sensibilidade para a realidade, José Júlio reconhece que as circunstâncias hoje nada têm de normais, o ambiente fiscal e político do país representa um terreno fértil para que as expectativas se deteriorem. O que ele fica devendo é explicar como a alta dos juros irá reverter este ambiente fiscal e político.

É possível argumentar que a alta dos juros pode agravar o ambiente político. Quando o comércio, a indústria, os restaurantes, os hotéis e todas as atividades ligadas ao turismo e ao entretenimento estão praticamente paralisados pela pandemia, passam por sérias dificuldades e são obrigados a se endividar para sobreviver, elevar o custo do crédito não é exatamente um elixir para a paz política e social.

Concentremo-nos no que José Júlio afirma ser o delicado ambiente fiscal. Aqui está o ponto central de meu artigo: a elevação dos juros aumenta a despesa financeira do governo e agrava o desequilíbrio fiscal. Repito aqui o ponto que José Júlio, consciente ou inconscientemente, optou por desconsiderar em seu comentário.

Dado que a dívida pública é hoje 90% do PIB, uma elevação de 4 pontos de percentagem na taxa básica, como antecipa o mercado para o fim do ano, implica um aumento de 3,6% do PIB nas despesas do governo. São aproximadamente R$ 267 bilhões, valor apenas ligeiramente inferior aos R$ 294 bilhões da totalidade do auxílio emergencial até o fim do ano passado. Esse valor é equivalente a mais do dobro de todo o investimento público anual dos últimos anos.

O auxílio emergencial exigiu uma emenda constitucional para ser aprovado. Sua extensão, em valores muito reduzidos neste ano, provocou um acalorado debate sobre se poderia ou não ser excluído do teto dos gastos. Já a alta dos juros depende apenas de uma decisão do Banco Central. O teto não vale para as despesas financeiras do Tesouro, que são determinadas pela taxa de juros fixada pelo Banco Central. Enquanto o auxílio emergencial vai para a população necessitada, desamparada pela perda do emprego e da renda, o aumento das despesas financeiras do governo vai para os detentores da dívida.

A dívida pública hoje é uma divida interna, expressa em moeda nacional e carregada essencialmente por brasileiros. É um passivo do Estado e um ativo do setor privado brasileiro. O aumento dos juros é uma transferência direta do Estado para os detentores da dívida, para aqueles a quem a fortuna, vamos dizer assim, deu renda superior às suas necessidades e lhes permitiu acumular riqueza em títulos públicos.

Ainda que se desconsiderem os efeitos distributivos perversos da alta dos juros, como compatibilizá-la com a tese de que é preciso equilibrar o orçamento fiscal, a qualquer custo, para evitar o “abismo fiscal”? A explicação para um tratamento tão diverso entre as despesas financeiras e as outras despesas públicas, inclusive em investimentos essenciais, está na suposta inevitabilidade das “leis” da economia e das finanças.

É possível falar em leis da física e das demais ciências exatas, mas nas humanas, e economia é uma disciplina social, não existem leis imutáveis. As relações humanas são resultado da combinação de fatores psicológicos e ideológicos definidos num contexto cultural sempre em evolução. O arcabouço analítico dos economistas, que pretende se espelhar na física, pode ser circunstancialmente útil, mas não tem validade científica. É um modelo mental, baseado em postulados sobre o comportamento dos indivíduos, que em circunstâncias altamente idealizadas, batizadas de competição perfeita, justifica o cerceamento da intervenção do Estado na economia. Sob aparência de isenção científica, é uma ideologia conservadora, usada para justificar a impossibilidade de fazer diferente. As coisas são como são e não podem ser diferentes, porque assim determinam as leis da economia1.

Voltemos ao artigo de José Júlio. Segundo ele, o Banco Central atua com “certa liberdade para reagir às mudanças de cenário”, mas sujeito a um “arcabouço teórico rigoroso”. Este arcabouço teórico, formulado numa linguagem algébrica inacessível à grande maioria das pessoas, rigorosamente irrealista, serve para justificar a excepcionalidade dada ao Banco Central. Mas vejamos se o que diz José Júlio, sobre os objetivos do BC, segue o mesmo rigor.

Afirmações como “o BC procura manter a projeção de inflação o mais próximo possível do objetivo, no horizonte relevante de tempo” e “na situação atual, a projeção encontra-se na meta, e o risco de eventual desvio para cima supera o risco de eventual desvio para baixo” não são exatamente exemplos de rigor científico. Ao contrário, deixam claro o grau de inevitável subjetivismo na condução da política de juros do BC.

A recém-aprovada lei que deu autonomia ao BC acrescentou entre os seus objetivos a suavização dos ciclos econômicos e o estímulo ao pleno emprego. Ninguém em sã consciência irá afirmar que, nas atuais circunstâncias, a alta dos juros atende a esses objetivos.

José Júlio considera que a alta dos juros de longo prazo, assim como a pressão exercida pelos analistas para que o BC eleve a taxa básica, são meramente um “movimento antecipatório”, que aumenta a eficácia da política monetária. Como, ele não explica. Provavelmente por elevar o déficit do Tesouro e agravar a recessão e o desemprego. Considera que não há espaço para que o BC influencie diretamente a taxa de câmbio, que se o BC atuasse, como já faz o Banco do Japão, para balizar as taxas futuras, estaria “tabelando” o mercado e “quebrando o termômetro”.

Mais uma vez, sob a pretensão de conhecimento técnico, são meras opiniões, baseadas na ideologia de que o mercado está sempre certo e que toda intervenção de políticas públicas cria distorções em relação ao melhor dos mundos. Mas quando o mercado provoca grandes crises como a de 2008, o BC e o Tesouro são chamados a intervir. O “quantitative easing”, QE, foi uma emissão de mais de 20% do PIB nos EUA para salvar o sistema financeiro de seus excessos. Aí sim, o BC e o Tesouro podem emitir e gastar, mas nunca para enfrentar a pandemia e o desemprego.

A ideologia do fiscalismo, a obsessão em atar as mãos do Estado, inclusive para investir em áreas essenciais, como infraestrutura, saúde, educação, segurança, pesquisa e desenvolvimento, paralisa o país há pelo menos três décadas. A má governança do Estado brasileiro, agravada por um governo verdadeiramente catastrófico, justifica o receio de que dar espaço ao Estado para gastar estimule a irresponsabilidade.

Repito então o que disse ao concluir o meu artigo: é evidente que o Estado deve ser responsável e gastar bem. Restrições institucionais e administrativas para os gastos públicos são necessárias, para evitar abusos e distorções, mas precisam ser desenhadas com base no entendimento correto da importância do Estado, como prestador de serviços e como investidor. A teoria econômica convencional, uma ideologia que se pretende ciência, é hoje o principal empecilho ao entendimento correto do papel do Estado.

1 O irrealismo e a incapacidade do instrumental analítico da economia convencional têm sido alvo de críticas contundentes de alguns de seus mais ilustres nomes. Para os que se interessarem, recomendo a leitura do artigo de Paul Romer “The Trouble with Macroeconomics” (2016) e dos recém-publicados de W. Brian Arthur, “Economics in Nouns and Verbs” (2021), e de S. Bichler e J. Nitzan, “The 1,2,3 Toolbox of Mainstream Economics” (2021).

*André Lara Resende é economista


Míriam Leitão: Uma ajuda à mão invisível

Por Alvaro Gribel (Míriam Leitão está de férias)

O economista Ricardo Paes de Barros enxerga uma desorganização tão grande na economia que o mercado sozinho não será capaz de ajustar. Por isso, defende que o Estado dê “uma mãozinha” à mão invisível. Em outras palavras, entende que é preciso não só gerar crescimento do PIB, mas criar programas de reinserção de mão de obra, para acelerar a volta ao trabalho da enorme massa de desempregados, subempregados e desalentados que cresceu durante a pandemia. Na educação, o setor também precisará de ajuda. O risco de evasão em todos os níveis de ensino será muito alto no ano que vem, especialmente no ensino médio, com impacto grande sobre a produtividade do país nas próximas décadas.

Paes de Barros acha que o auxílio emergencial teve pouco foco. Gastou em 10 meses o que seria gasto em 10 anos de Bolsa Família, mas sem fazer nenhum tipo de avaliação sobre a qualidade dessa despesa. Ele está preocupado com o fim do benefício a partir de janeiro, ainda mais com o aumento de casos da pandemia nesta virada de ano, que terá impacto sobre os serviços. Mas avalia que o governo precisaria concentrar esforços e despesas para fazer uma intermediação do trabalho, cruzando informações entre empregadores e empregados que possam gerar novas vagas.

— Precisaríamos chegar em janeiro com ajuda para 25 milhões, que são os desempregados, subempregados e desalentados. Não os 70 milhões do auxílio emergencial. Mas, mais importante do que isso, a gente precisaria criar apoio para que essas pessoas tenham emprego. A forma de fazer isso é com um programa nacional de reinserção do mercado de trabalho. Com uma intermediação eficaz, coordenada pelo governo federal, mas com participação do setor privado e capilaridade pelo país todo — afirma.

O economista defende a agenda de reformas, acha que o governo tem avançado em legislações infralegais, e diz que é crucial o programa de vacinação para superar a pandemia e voltar a ter um mínimo de normalidade na economia. Ainda assim, avalia que será preciso mais do que isso para lidar com o tamanho desta crise.

— É fundamental continuar com as reformas, parte fiscal, tributária, trabalhista, e resolver a crise sanitária. Mas isso só resolve se você acredita na mão invisível. A meu ver esta crise é tão grande que vamos precisar dar uma mãozinha. O teto de gastos é importante, mas o desafio aqui não é de dinheiro, é de organização e coordenação para um programa desse tipo.

Prioridade na educação

Paes de Barros não vê sentido no fechamento de escolas, ao mesmo tempo em que shoppings, bares e restaurantes estão abertos. A educação deveria ter sido a prioridade desde o início durante a pandemia. “Deveríamos estar trabalhando para retomar com a maior segurança possível a educação. Deixar o cérebro dessas crianças com as sinapses não se formando é um prejuízo maior do que o prejuízo econômico. Se for parar tudo, para tudo. Se não for parar, deveria ser a educação aberta. Obviamente com a devida proteção aos professores.”

Bolsas contra evasão

Um dos maiores desafios do setor de educação no ano que vem vai ser combater a evasão, especialmente no ensino médio. Ele defende a criação de bolsas de ensino e diz que será preciso também acolher os alunos, para que eles sejam reavaliados das perdas que tiveram em 2020, mas sem que isso gere um trauma que leve ao abandono escolar. “O esforço gigante é incentivar o aluno a voltar para a sala de aula, mas também será preciso trabalhar o acolhimento desse jovem. Saber receber, para que ele tenha uma sensação de pertencimento.”

Economia mais digital

O comércio chega a este Natal tendo atravessado barreiras que antes pareciam intransponíveis. Várias empresas conseguiram montar em tempo recorde um comércio eletrônico eficiente. As que haviam se preparado para isso, investindo em plataformas digitais eficientes, nadaram de braçada. Boutiques inventaram um modelo híbrido, de levar malas com produtos para seus clientes em isolamento. Houve muita perda, mas também muita criatividade. A economia depois da pandemia será muito mais digital.Essas mudanças, na visão de Paes de Barros, são também uma oportunidade e por isso ele defende a criação de programas para acelerar esse processo.


Ana Carla Abrão Costa e Paulo Hartung: A refundação do Estado brasileiro

Mãos à obra, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros

Francis Fukuyama, em seu livro Ordem Política e Decadência Política (Political Order and Political Decay), faz uma análise do papel do Estado no destino das nações. Nos países onde o patrimonialismo e o clientelismo deram lugar a um Estado voltado para servir o cidadão, o desenvolvimento acelerou-se e foi mais consistente, contribuindo para a consolidação das instituições democráticas e garantindo o bem-estar da população, com níveis inferiores de desigualdade social. Fukuyama, a par de uma ou outra menção ao Brasil, não faz uma análise profunda das bases históricas do Estado brasileiro. Mas sua leitura provoca reflexões que contribuem para um resgate da justiça social e das condições de crescimento por meio da refundação do nosso Estado.

Ao longo dos séculos, a máquina pública brasileira garantiu privilégios a classes específicas, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunidades, da inclusão social e do desenvolvimento econômico de forma sustentável. Baseado num modelo operacional arcaico e voltado para sua autoperpetuação, construímos uma engrenagem de reforço de desigualdades que agora chegou ao limite. Exauriu-se e hoje se vê incapaz de servir à população. Esgarçou sua relação com o servidor público, tamanha a ineficiência que deriva de um modelo concentrador de renda e expropriador.

A baixa qualidade dos serviços públicos, o excesso de gastos e sua trajetória inexoravelmente crescente, a desigualdade salarial e as injustiças internas e externas definem uma espiral que serve a poucos, mas tira muito do País. Essa máquina de desigualdades abriu um abismo entre os que têm acesso à educação de qualidade e a bens e serviços básicos, como saneamento, ou sofisticados, como a tecnologia, e a maioria da população, que depende do Estado para ter alguma possibilidade de ascensão social ou ao menos a melhores condições de vida.

Felizmente, a sociedade brasileira tem demonstrado seu profundo descontentamento com a qualidade dos serviços públicos e a forma atual de organização do Estado. Ela não quer mais conviver com um sistema que divide o mercado de trabalho em dois: o público, em que benesses e privilégios vão muito além da estabilidade – em particular para a elite do funcionalismo; e o privado, sujeito a toda sorte de intempéries. Ela não aceita mais ganhos salariais reais contínuos, garantias de promoções, progressões, gratificações e outras vantagens financeiras desconectadas do resultado e presentes mesmo quando a economia afunda e o mercado privado desemprega e corta salários. Tudo isso se traduz em crescimento dos gastos públicos obrigatórios e também numa máquina que se deteriora, comprometendo as condições de trabalho dos servidores e, consequentemente, a qualidade da prestação de serviços para o cidadão.

Mirar um futuro diferente do presente e distanciado do passado é incrementar os passos reformistas. Nesse sentido, o gesto tardio e acanhado do governo federal ao enviar uma proposta de reforma administrativa ao Congresso Nacional abre uma possibilidade de avanço. Embora dependente do recebimento dos projetos de lei necessários ao detalhamento da reforma, caberá ao Parlamento a liderança desse processo. Quiçá menos atado às amarras corporativistas que limitaram a proposta enviada, ele poderá estender ao presente os conceitos que são hoje apenas promessas de futuro e promover a necessária mudança estrutural. Mas nessa caminhada imperativa o futuro precisa começar hoje. Não amanhã.

Nosso Estado é arcaico. Ineficaz e oneroso, investe muito mal e gasta para si. É um Estado anacrônico. Em tempos de avanço tecnológico, continua analógico e cartorial. Nosso Estado é cativo, historicamente capturado e patrimonialista, finca suas bases na defesa de grupos de interesse, sejam eles segmentos sociopolíticos e econômicos ou corporações estatais, que de forma hábil e perversa fazem confundir seus interesses particulares com os da Nação, sustentando uma sociedade inaceitavelmente desigual.

A refundação do Estado é, portanto, a única forma de usar suas potencialidades não mais na promoção de privilégios e desigualdades, mas na indução de prosperidade para todos. Nesse contexto, precisamos de uma reforma que vá além da criação do serviço público do futuro, como propõe o governo de forma teórica, mas também reformule as atuais leis de carreiras. Muito mais do que a esperada e desejada redução e racionalização dos gastos públicos, a prioridade é a busca da eficiência e da qualidade na prestação de serviços, além dos necessários ganhos de produtividade, que são precondição para a retomada do crescimento sustentável e da geração de emprego e renda.

A pandemia reforçou essa necessidade ao expor o distanciamento do Estado brasileiro da realidade dos cidadãos, especialmente dos mais empobrecidos. O governo cobra impostos de todos, mas não consegue saber quem são os brasileiros que precisam de apoio.

É preciso refundar o Estado para que ele seja parte e promotor de um novo futuro para o Brasil. Pois, como bem alertou Saint-Exupéry, “o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo”. Mãos à obra na refundação do Estado, para que o sentido de nação seja o mesmo para todas e todos os brasileiros, finalmente!

ECONOMISTAS


Paulo Hartung: Uma agenda de travessia para superação de longo curso

Urge reformar o Estado, hoje disfuncional, caro, analógico, aparelhado e concentrador de renda

A pandemia do novo coronavírus alcançou o Brasil num estado de fragilidade socioeconômica e fiscal. E esse quadro geral de desafios só tem piorado nos últimos meses. O enfrentamento desconcertado aumentou a pobreza, pela primeira vez deixou desempregada mais da metade da população em idade de trabalhar, agravou seriamente a situação das contas públicas e afetou negativamente a perspectiva de crescimento futuro.

O aprofundamento de nossos problemas se deu inicialmente porque desperdiçamos o precioso tempo entre a eclosão da pandemia e a sua chegada até nós. Além disso, políticas públicas cruciais foram desenhadas com graves distorções, comprometendo a sua eficácia.

O auxílio emergencial não chegou a muitos dos que são vulneráveis, ainda que tenha sido embolsado por quem não precisava. O crédito não alcança pequenos e microempreendedores, os mais prejudicados. O repasse de recursos a governos subnacionais foi feito sem as devidas contenções e contrapartidas compatíveis com o tamanho do sacrifício que representam para o Brasil de hoje e de amanhã.

A falta de liderança vem impondo desafios extras à Nação, justamente no momento da maior crise jamais vivida pelas atuais gerações. Desse modo, dos países de destaque na cena global, caminhamos para figurar entre os de pior gestão da pandemia.

Desde o início de nossas análises sobre esta situação mostramos que toda crise tem começo, meio e fim, porta aprendizados e apresenta desafios que criam espaços para reinvenções e avanços, como parte do seu enfrentamento.

Também deixamos evidente que este tempo exige um duplo esforço: atenção máxima ao presente, com sua demanda prioritária por salvar vidas, empregos e atividades econômicas; e foco no futuro, com a necessidade de agirmos desde já para tornarmos viável o Brasil que queremos no pós-pandemia.

Mas como poderíamos mudar a rota, que hoje se mostra bastante errática? A reação robusta da sociedade diante dos ataques à democracia indica que o caminho do engajamento civil é potente para efetivar mudanças necessárias e tornar viáveis as soluções essencialmente colaborativas, tanto as emergenciais quanto as de sustentação da vida nacional.

Por outro lado, a recente aprovação do novo marco regulatório do saneamento básico pelo Congresso Nacional mostra a possibilidade e a relevância de mudanças estruturais para oxigenarmos nossas perspectivas do pós-pandemia, mas já com efeitos positivos no presente.

Nesse sentido, é necessário avançarmos na agenda da modernização do País, mobilizando sociedade e instituições. Precisamos evoluir na reforma tributária, para termos um sistema mais justo para os contribuintes, mais neutro para os investimentos e menos danoso para o ambiente de negócios.

Ambiente esse que, de modo geral, também precisa de mais segurança jurídica, a partir da efetivação de novos paradigmas de regulação, habilitando-se a atrair mais investimentos privados, especialmente no campo das infraestruturas (energia, transmissão de dados, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, entre outros).

É urgente reformar o Estado, hoje disfuncional, caro, analógico, em muitos casos aparelhado por grupos privados e públicos, além de promotor da concentração de renda. Esta crise revelou que os governos não conhecem todos aqueles de quem cobram altos impostos. Enfim, por todos os aspectos, é preciso tornar as máquinas governativas contemporâneas do século 21.

A superação da desigualdade é tema absolutamente prioritário. Educação de qualidade acessível a todos é a principal ferramenta para vencermos a iniquidade socioeconômica. Assim como é primordial reorganizar as políticas de inclusão social produtiva e de transferência de renda, alcançando quem realmente precisa, aproveitando a bem-sucedida experiência do Programa Bolsa Família, mantendo o foco nos mais empobrecidos.

Para além de tudo isso, devemos ainda estar atentos às fortes tendências, como, por exemplo, a bioeconomia, que representa oportunidade de criar emprego, renda e proteção à natureza. O Brasil deve investir na capacitação de sua gente para que se integre à floresta de maneira equilibrada. Junto a isso, é preciso manter a reputação duramente conquistada pelo País mundo afora quanto à sustentabilidade. Os últimos acontecimentos na Região Amazônica prejudicam não somente o meio ambiente, mas também a credibilidade construída ao longo do tempo.

Enfim, temos muito a fazer. Seguindo uma agenda de travessia, republicana e suprapartidária, institucionalidades, setores produtivos, cidadãs e cidadãos devem se mobilizar para cruzarmos esta tormenta com zelo pelo presente e responsabilidade com o que virá. Afinal, como alertou Sêneca, não há vento favorável para quem ignora onde está, em que tempo navega e aonde quer chegar.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


O Globo: Pandemia do coronavírus deve mudar a face do capitalismo

Empresas serão cobradas para terem atividades mais voltadas à sociedade, após ajuda oficial de trilhões de dólares recebidas dos governos. Presença do Estado será maior do que nos últimos anos

Vivian Oswald, O Globo

LONDRES - O confinamento inédito de metade da população mundial e o consequente pandemônio que se abateu sobre as economias globais devem mudar a face do capitalismo. A relação entre empresas, sociedade e governos mudou. Dificilmente voltará a ser o que era, na avaliação de especialistas. Fala-se até em um novo contrato social.

Grandes corporações e bancos sobretudo, socorridos com trilhões de dólares na crise financeira global de 2008, serão cobrados. Os mercados terão nova missão. Diante dos esforços para reconstruir as economias — só o Reino Unido já liberou 418 bilhões de libras (mais de R$ 2,5 trilhões) em pacotes de estímulos para minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus —, a fatura começa a ser apresentada. O que se espera é um capitalismo mais benevolente.

— Assim como os contribuintes ajudaram a salvar os bancos em 2008, o governo agora quer trabalhar com os bancos para retribuir o favor e apoiar empresas e pessoas, as que mais precisam no Reino Unido — disse o ministro de Negócios, Energia e Estratégia Industrial, Alok Sharma.

Impostos mais altos
A declaração foi feita nos boletins diários do governo conservador britânico à televisão semana passada. O mesmo partido que, há mais de dez anos no poder, empunhava a bandeira da austeridade fiscal até pouco tempo atrás.

— Será totalmente inaceitável se os bancos rejeitarem empréstimos para as boas empresas — completou Sharma.

A presença do Estado deve ser maior daqui por diante como catalisador da recuperação. Sobretudo depois dos pacotes multibilionários de estímulos. A ajuda é para manter a economia em “hibernação”, diz Abhimay Muthoo, professor de economia e reitor da Universidade de Warwick:

— É preciso saber por quanto tempo os países conseguem manter a economia hibernando. Isso vai determinar o ritmo da retomada. O certo é que haverá nova ordem internacional. Vamos precisar de uma sociedade mais generosa, o que se traduz em redistribuição de renda, impostos mais altos, serviços públicos eficientes e Estados com presença maior do que nos últimos anos.

Espera-se uma recessão global. Itália e Espanha, as nações com o maior número de casos da Europa, devem perder 15% do PIB no primeiro trimestre, segundo a Oxford Economics.

— Governos poderão deixar claro às empresas que precisarem de apoio que ele dependerá de certos critérios. Outro ponto que me parece óbvio é que os dias de uso exagerado de recompra de ações para a maximização excessiva de lucros, possivelmente às custas de outros fins, podem ter acabado — disse Jim O’Neill, presidente da Chatham House, um dos centros de pesquisa mais prestigiados da Europa.

Recompra de ações
Ex-economista-chefe do banco Goldman Sachs e criador, em 2001, do acrônimo Brics — grupo de países em desenvolvimento que seriam as locomotivas da economia global: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, O’Neill trabalhou no mercado financeiro por mais de duas décadas. Mas há alguns anos defende um novo propósito para os lucros das empresas.

Segundo ele, em 2018, o total de operações de recompra de ações pelas dez maiores companhias americanas ficou próximo de US$ 1 trilhão. E os maiores compradores eram elas próprias, que teriam se tornado, nas palavras de O’Neill, meras administradoras de balanços, obcecadas por desempenho.

Em 2018, sugeriu taxar mais este tipo de operações, e dar crédito tributário para os gastos das empresas com investimentos. No limite, até mesmo tornar ilegais as operações de recompra em companhias com produtividade baixa. O tema estaria sendo estudado pelo governo britânico.

No ano passado, o Business Roundtable, que reúne presidentes de grandes empresas americanas, já falava no fim da cultura dos “acionistas primeiro”. Para a Social Market Foundation, as companhias têm a oportunidade de criar uma nova relação com a sociedade.

Novo contrato social
O diretor da entidade, James Kirkup, afirma que as empresas “deveriam concordar com um novo contrato social baseado no cumprimento das obrigações tributárias, no tratamento aos trabalhadores e no apoio às comunidades em troca da ajuda recebida durante a crise do coronavírus.

Uma das conclusões de um relatório coordenado por O’Neill para o governo britânico sobre a crescente resistência aos antibióticos era a de que a falta de investimentos para resolver o problema custará ao planeta dez milhões de vidas por ano a partir de 2050 em razão de infecções (e da falta de antibióticos). E causará prejuízo de US$ 100 trilhões à economia global.

O documento defende 29 intervenções que custariam US$ 42 bilhões para resolver a questão. Segundo O'Neill, o valor é menos do que o que as três maiores companhias farmacêuticas destinaram à recompra de suas próprias ações ao longo de uma década:

— Não é nada comparado aos custos de não resolver o problema ou ao colapso causado pela Covid-19 .


Almir Pazzianotto Pinto: A reforma do Estado

Juristas e filósofos não se entendem na vã tentativa de imprimir definição satisfatória ao termo 'Estado'

“Tudo ficará na mesma, embora tudo tenha mudado”
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em Il Gattopardo

Antes de reformá-lo pela nona vez, necessário se faz esclarecer o significado do termo Estado. Diante do desafio, juristas e filósofos não se entendem na vã tentativa de lhe imprimir definição satisfatória. A mais simples, porém obscura, define o Estado como organização jurídica da nação ou sua personificação jurídica.

Segundo Luis Recasens Siches, “que o Estado é um ordenamento normativo coercitivo, ou seja, que consiste em um sistema de Direito positivo, ninguém o negará; muitos, porém, argumentam que, além disso, é uma realidade, um poder efetivo, uma força social. E, em apoio a esta segunda afirmação, muitos autores aduzem a notória existência de realidades estatais, nas quais se manifesta esta dimensão de poder: cárceres, fortalezas, exército, polícia, etc.” (Tratado General de Filosofia del Derecho, Editorial Porrua, México, 1970, pág. 345, tradução livre). Giorgio Del Vecchio critica, de maneira irônica, a definição de Immanuel Kant (1724-1804). Para o filósofo prussiano, Estado é a “reunião de uma multidão de homens conviventes debaixo de leis jurídicas”. Para o italiano Del Vecchio, a definição é inadequada, pois “tanto se aplicaria aos habitantes de um concelho, como de uma província, e mesmo até aos de um cárcere” (Lições de Filosofia do Direito, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1959, vol. II, pág. 229).

A definição a que aludi peca pela obscuridade. O que significa, afinal, “personificação jurídica da nação”? Para aceitar tal definição deveremos, antes de prosseguir, especificar o sentido do termo nação? Luis Legas Y Lacambra, catedrático da Universidade Complutense de Madri, escreveu, com raro poder de síntese, que a nação representa “uma unidade de destino na história” (Filosofia del Derecho, Bosch, Casa Editorial, Barcelona, 1972, pág. 803). Paulo Bonavides, citando Mancini e Ernest Renan, refere-se à nação como tecido social, resultante de fatores morais, culturais, psicológicos (Ciência Política, Ed. Forense, RJ, 1976, pág. 75). Giorgio Del Vecchio estabelece nítida diferença entre povo e nação. Povo “indica propriamente a multidão que constitui o Estado. Se, além de tal vínculo, ou, mesmo na falta dele, existem vínculos naturais de comunidade, temos, nesse caso, uma nação”. (ob. cit. pág. 232).

Em livro escrito em 1961, antes, portanto, da sangrenta fragmentação da antiga Iugoslávia, na década de 1990, Raymond Aron afirmou: “Nem todas as nacionalidades – grupos caracterizados por um matiz próprio de língua e de cultura – podem constituir-se como nação, grupo que se considera portador de um Estado e sujeito autônomo no cenário histórico. Na Europa Central e Oriental, nenhum Estado podia ser nacional, a menos que se efetuassem transferências de populações (...). Uma nação é sempre resultado de uma história, uma obra dos séculos, nasce ao longo das provas, a partir de sentimentos vivenciados pelos homens, mas não sem ação da força – força de uma unidade política que destrói unidades preexistentes ou força do Estado que mantém sob controle as regiões ou as províncias” (Paz e Guerra entre as Nações, Ed. Martins Fontes-Universidade de Brasília, DF, 2018, pág. 358).

Quando ouvimos falar em reforma do Estado, devemos pesquisar os objetivos almejados pelos novos reformadores. Desejam remodelar a Constituição, ou seja, reescrever o documento que deveria ser duradoura Lei Orgânica da Nação, como a denominou Rui Barbosa? Ou intentam revolver, de fora para dentro e de cima para baixo, as diferentes camadas sociais, com o propósito de organizar o povo-massa (expressão de Oliveira Vianna), que vive sob o domínio dos três Poderes?

Constituições formais, conceituadas por Pinto Ferreira como “a totalidade de preceitos jurídicos fundamentais delimitados por escrito pelo poder constituinte”, tivemos oito, desde a Carta de Lei de 1824 até a Constituição de 1988. Vigente há 30 anos, a Constituição diferencia-se das anteriores, como registrou o dr. Ulysses Guimarães no preâmbulo desautorizado, encontrado na primeira edição do Senado. Escreveu o presidente da Assembleia Nacional Constituinte: “O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é o seu fim e sua esperança. É a Constituição coragem”.

A alteração topográfica, à qual deu ênfase o saudoso político paulista, colocou os “Direitos e Garantias Fundamentais”, os “Direitos Sociais”, os “Partidos Políticos” à frente da “Organização Político-Administrativa”, “Da Ordem Econômica e Financeira”. Direitos e garantias individuais antecederam a construção do modelo econômico capaz de lhes dar sustentação. É a Constituição coragem, farta de direitos e pobre de obrigações.

No espaço de cinco séculos evoluímos da colônia para a monarquia e para a República, do autoritarismo para a democracia. O povo-massa, entretanto, persiste como o problema da sociedade brasileira. Trinta anos depois da promulgação continuam atuais as palavras do dr. Ulysses, como dão testemunho 50 milhões de desempregados, subempregados e famélicos miseráveis, aos quais se recusa a oportunidade de vida decente.

Algumas vezes tenho a sensação de que a elite política se sente envaidecida do seu atraso, da manifesta incapacidade de entender o País na sua múltipla diversidade e de ser indolente demais para ir a fundo na busca de soluções para velhos problemas que afligem as camadas inferiores da sociedade. Prefere propor a reforma do Estado.

* Advogado, Ex-Ministro do Trabalho e Ex-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor do livro 30 anos de crise, 1988-2018.


Cristovam Buarque: As curvas da história

A história da humanidade e de cada país segue rumo, com avanços e retrocessos, em direção à eficiência e à justiça. O papel dos políticos conservadores é dificultar essa marcha, como fizeram adiando a Abolição da Escravatura. O papel dos políticos progressistas é apressar a marcha em direção ao futuro. Mas a história faz curvas, independentemente da vontade dos políticos. Nos últimos anos, o avanço técnico forçou uma curva com o surgimento do computador, da inteligência artificial, da robótica e das comunicações instantâneas. Outros movimentos fizeram o mundo ficar global na economia e a sociedade ficar corporativizada na defesa de interesses individuais; o cidadão virou consumidor; o crescimento econômico ficou limitado pela ecologia. Mas, apesar da clareza dessas mudanças na realidade, muitos ainda não percebem a curva feita pela história; continuam prisioneiros de ideias anteriores, querem o avanço em uma linha reta que já não existe.

Não entendem, por exemplo, que o Estado gigante defendido pela esquerda soviética e social-democrata ficou ineficiente na gestão e insensível às necessidades do povo, criou uma classe privilegiada entre seus dirigentes; e tem custo que rouba recursos da sociedade obrigada a pagar impostos elevados; e, ainda, incentiva a corrupção. A curva da história fez o Estado gigante ser um dinossauro político, apesar disso, muitos dos que se dizem progressistas continuam presos à ideia do Estado burocrático, caro e divorciado do povo.

Tampouco entendem que a justiça social e o bem-estar só podem ser construídos sobre economia eficiente. Até recentemente, a justiça se fazia dentro da economia, na repartição entre salário e lucro. Hoje a maior parte da população está fora da chance de ser incluída na economia formal, porque a curva da história eliminou empregos e exige formação profissional dos empregados. O desafio dos que buscam justiça social é desfazer a apartação, que separa de um lado os incluídos e, de outro, os excluídos. O caminho para isto está na educação de qualidade igual para todos, o filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Mas os que não perceberam a curva da história esquecem os analfabetos e os que não terminam o ensino médio com qualidade, defendem a ilusão de universidade para todos, sem lutar pela erradicação do analfabetismo, pela educação de base de qualidade igual para todos e por uma reforma na universidade para que seus formandos estejam preparados para o dinâmico mundo do conhecimento em marcha.

A curva na história, que reduziu drasticamente a taxa de natalidade e aumentou a esperança de vida, exige reforma no sistema previdenciário; a velocidade do avanço técnico exige reforma nas regras das relações entre o capital e o trabalho. Mas os progressistas amarrados nostalgicamente às ideias do passado, no lugar de propostas progressistas que construam sustentabilidade para as próximas gerações, que eliminem privilégios de alguns grupos e colaborem para dinamizar a economia, preferem ficar contra as reformas que a curva da história exige. Estes progressistas não entendem ainda a verdade dos limites ecológicos que impedem a promessa de igualdade com alto consumo para todos.

O socialismo soviético acabou porque o Partido Comunista não entendeu a curva na história, ficou prisioneiro de ideias que se divorciaram da realidade na segunda metade do século XX. O mesmo acontece com a velha e tradicional esquerda brasileira, que não percebeu ainda a nova revolução tecnológica e social do mundo global e informatizado, com o agravante de se comportarem assim pelo reacionarismo de ideias superadas, mas também pela forte atração oportunista pelos votos dos eleitores seduzidos com falsas promessas. Neste ponto, esquerda e direita se unem, caindo na tentação populista, por oportunismo eleitoral ou por falta de conhecimento e de percepção da história e suas curvas. Foram muitos os erros que levaram os democratas-progressistas brasileiros a sofrerem a derrota na última eleição, mas o maior foi não perceber a curva da história nas últimas décadas no mundo.

O discurso de uma nova esquerda deve aceitar a desigualdade dentro de limites que ofereçam o mínimo para uma vida digna a todos, impeça o consumo que destrói o meio ambiente; aceite os limites do Estado e da Natureza, entenda a realidade da globalização e do potencial do avanço técnico; e adote o compromisso com a educação de máxima qualidade e igual para todos. (Correio Braziliense – 12/02/2019)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e ex-senador

http://www.pps.org.br/2019/02/12/cristovam-buarque-as-curvas-da-historia/


Paulo Sérgio Pinheiro: Licença para matar

Segue-se à risca a via pautada pela fantasia do Estado vingador

O sr. Moro, com esse pacote, se comportou como elefante em loja de louças. Atirou para todos os lados.

Quer alterar nada menos que 14 leis, investe com sofreguidão sobre propostas já consideradas inconstitucionais pelo Supremo, como a vedação do regime de progressão da pena e a impossibilidade de concessão de liberdade provisória. E bota abaixo o princípio constitucional do trânsito em julgado da pena.

Não há surpresas. O pacote segue à risca o método pautado pela manipulação permanente do medo e pela fantasia de um Estado vingador que o sr. Moro tem personificado com maestria nos últimos anos.

O duo Bolsonaro-Moro vai consolidando sua política de segurança modelo bangue-bangue. O mesmo governo que duas semanas atrás, contra todas as evidencias existentes em matéria de violência no planeta, ampliou o acesso a armas de fogo.

Na ocasião, o sr. Moro concedeu, do alto de sua ínclita sabedoria: "Essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido".

Agora, ele cava espaço para as polícias ampliarem as justificativas pelo uso de suas armas.

Para que fundamentar cientificamente? Como perder tempo com diálogos com a sociedade civil, centros de pesquisa ou mesmo corporações? Basta o clássico showzinho de Power Point. Adorei ouvir o sr. Moro dizer que a "ideia principal" ( sic) do novo projeto é melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, que desejam "viver em um país mais seguro".

Pois podem os compatriotas tirar o cavalinho da chuva. Esse pacote não vai trazer melhoria na segurança pública para ninguém, em especial para a população tradicionalmente mais vulnerável à violência: jovens negros nas periferias, indígenas, mulheres, trabalhadores rurais, LGBTs. Enfim, grupos vítimas de formas estruturais de discriminação, compreendidas como "coitadismos que têm que acabar" pelo líder maior do sr. Moro.

Afinal, qual é a evidência apresentada para a alteração do escopo legal para a letalidade das polícias?
Estamos cansados de saber que as polícias intervêm por razões de segurança --em inúmeras situações onde não há nenhuma situação legal-- sem a menor relação com os fins legais.

Assim, numa guerra contra o crime, as polícias militares continuam a se comportar como se estivessem enfrentando um "inimigo interno" a ser abatido.

A história da guerra contra o crime no Brasil é uma crônica de demagogia e fracasso, de resultados imprevistos e muitas vezes na direção oposta daquelas pretendidas. Em 2017 foram 63.880 mortes violentas, 5.144 mortes pelas polícias (14 por dia), 367 policiais mortos (um por dia).

Nesse contexto, as propostas para a atuação das polícias são a exacerbação da impunidade de fato que tradicionalmente beneficia suas execuções extrajudiciais e da consequente insegurança que esse modus operandi constitui para os próprios policiais.

Nos planos do sr. Moro, quando envolvidos em homicídios, policiais podem ter quase como certo responder aos inquéritos em liberdade, carta branca para ameaçar testemunhas e cometer mais mortes.

E, como brinde, terão a redução pela metade da pena , que deixará de ser aplicada se "decorrer de escusável medo( sic), surpresa ou violenta emoção", uma delirante exclusão de criminalidade.

Todas essas chorumelas são para dourar a pílula, no caso a doutrina do governo "policial que não mata não é policial". Missão cumprida, sr. Moro, parabéns.

*Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos (2001-02, gestão FHC), ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade (2013) e presidente da Comissão Independente Internacional de Investigação da ONU sobre a Síria