Estado de Minas

O Estado de Minas: 'A compreensão do racismo foi tirada da gente', diz a escritora Ijeoma Oluo

Ijeoma Oluo afirma que conquistar espaço na internet é fundamental para a luta antirracista

Nahima Maciel, Correio Braziliense

Quando começou a escrever “Então você quer conversar sobre raça”, Ijeoma Oluo tinha em mente o leitor americano. Filha de nigeriano com americana branca, premiada com o Humanist Feminist Award em 2017 e autora de colunas no “The Guardian”, “Washington Post” e na “New York Magazine”, ela queria produzir um livro capaz de conversar didaticamente com as pessoas sobre questões relativas à raça, mas sem deixar de ser contundente.

A autora norte-americana desejava, sobretudo, que seu livro fosse acessível a muitas pessoas. “Comecei a escrever porque queria encontrar um livro sobre o tema racial que ativistas, escolas e faculdades pudessem usar. Não havia um livro assim. Queria preencher essa lacuna com um livro que realmente ajudasse a entender as questões de raça e racismo, que ajudasse a resolver problemas reais do dia a dia”, conta.

“Então você quer conversar sobre raça”, que acabou na lista de mais vendidos do “The New York Times”, está entre as obras fundamentais na abordagem do racismo e de como ele se projeta sobre a sociedade. Misoginia, justiça social, desigualdade e feminismo, temas sempre presentes nos artigos de Ijeoma Oluo, também permeiam o livro.(foto: Jean-Baptiste Debret/reprodução)

'Não é possível dissociar a escravidão do sistema econômico, político e cultural baseado em um racismo violento. Para manter esses sistemas funcionando, em vez de refazê-los, fomos ensinados que o racismo não está no sistema, que o racismo se foi com o fim da escravidão'

Partindo de situações corriqueiras, muitas vezes com exemplos pautados em experiências próprias ou de pessoas próximas, a autora aprofunda a discussão sobre racismo estrutural, interseccionalidade, diferenças de gênero, ações afirmativas, apropriação cultural e violência policial.

Estimular ações concretas e influenciar a maneira como as pessoas pensam e agem é um dos maiores objetivos de Ijeoma. “O livro desmitifica um monte de coisas, tornando menos difícil e assustador falar de temas relacionados a raça e racismo”, acredita.

Para a autora, que cresceu em ambiente de relativa pobreza e de valorização da educação formal e do conhecimento, um dos pontos deixados de lado quando se discute o racismo é a efetivação de ações concretas para combater o problema.

“Achamos que se nos entendermos melhor, isso vai magicamente consertar o racismo”, diz. “Mas o racismo precisa de ação, de uma solução ativa. Se você não tiver conversas com foco em ações que podem ser realizadas, então não será uma conversa efetiva. Quando pensamos em como o racismo impacta a vida das pessoas, falamos de salário, saúde, bem-estar e coisas precisam de ação”, adverte a autora.

O conteúdo do livro não visa transformar racistas em antirracistas, mas apontar como o racismo sutil e contínuo pode ser violento e destrutivo. “Não existe um país no mundo, mesmo aqueles de maioria negra, que não tenha sido tocado pela supremacia branca. Enquanto pudermos reconhecer isso e construir redes de solidariedade em uma economia globalizada e numa cultura global, podemos trabalhar juntos para dar um fim a isso”.

Formada em ciências políticas, Ijeoma Oluo trabalhou em empresas e instituições antes de começar a viver da escrita. Além de “Então você quer conversar sobre raça”, publicado no Brasil pela editora Best Seller, lançou “Mediocre: the dangerous legacy of white male America” (“Mediocridade: o legado perigoso da América branca masculina”, em tradução livre) e “The badass feminist coloring book” (“O livro de colorir das fodonas feministas”), livro de colorir que reúne importantes feministas negras.

“ENTÃO VOCÊ QUER CONVERSAR SOBRE RAÇA”

De Ijeoma Oluo


Seu livro se tornou best-seller e ocupa a lacuna que, nos últimos 10 anos, tem sido preenchida por novas vozes do feminismo negro. O que mudou na última década em relação a esse ativismo?

Quando penso sobre os últimos 10 anos, se melhoramos, diria que, às vezes, avançamos um pouco socialmente, mas institucionalmente, não. Sistemicamente, não. A maneira como pessoas negras e pessoas de cor transitam por nossa sociedade permanece a mesma, sem mudanças. Se falarmos sobre salário, saúde e promoções, quase nada mudou. Infelizmente. Mas a maneira como falamos sobre raça e racismo está mudando parcialmente, porque a internet quebrou várias barreiras e permitiu que escritores negros escrevessem sobre suas experiências. Esse tipo de meio democratiza a fala e estamos falando disso de forma diferente, somos todos parte desse esforço. Mas não acho que isso tenha se traduzido em mudanças sistêmicas.(foto: Roberto Schmidt/AFP)

Quais são as mudanças mais relevantes na discussão sobre racismo desde que a internet se tornou um espaço público de discussão?

A internet é vital, precisamos encará-la como se fosse vida real, porque ela é cada vez mais importante não só para o trabalho antirracista, mas para o racismo. Temos uma espécie de oposição de forças que encontra força na internet. O antirracismo cresce na internet, mas a atividade de brancos supremacistas racistas também, eles conseguem recrutar e espalhar suas propagandas. Por isso é um espaço no qual precisamos prestar atenção. O que vimos no Capitólio em 6 de janeiro (invasão do Congresso por aliados de Donald Trump, com cinco mortos) começou na internet e acabou se tornando uma insurreição real, na vida real. Então precisamos ficar atentos ao fato de que a internet não existe apenas como espaço virtual, ela é muito importante e impacta o que ocorre na vida real.

Por que é tão difícil para países que tiveram economias baseadas na escravidão durante tanto tempo compreender o racismo estrutural?

A razão é deliberada. Não é uma incapacidade de entender, é que a compreensão do racismo foi deliberadamente tirada da gente. Quando você tem uma história de escravidão, sociedades onde pessoas eram vendidas e compradas, você tem um sistema econômico construído em torno de um violento racismo. Não é possível dissociar a escravidão do sistema econômico, político e cultural baseado em um racismo violento. Para manter esses sistemas funcionando, em vez de refazê-los, fomos ensinados que o racismo não está no sistema, que o racismo se foi com o fim da escravidão. Mas as pessoas que faziam dinheiro com a exploração de populações de cor, em especial os corpos indígenas e negros, ainda têm o poder e constroem sistemas que asseguram que tenham lucros. Nós somos as pessoas exploradas para que eles tenham lucro. Mas se você disser que isso acabou com o fim da escravidão, então você não tem que desistir desse poder e reestruturar o sistema. Na escola, somos ensinados que não houve racismo na maneira como se deu a transição da escravidão para o nosso sistema atual, nosso sistema econômico, agrícola. É muito deliberado. Espero que as pessoas entendam que não quer dizer que elas não são espertas se não entendem, e sim que nosso sistema educacional foi desenhado para abrigar essas ideias.(foto: Mauro Pimentel/AFP - 21/6/18)

O Brasil é um país que acredita no mito da democracia racial. Por sermos muito misturados, às custas da violência do estupro durante a escravidão e por acreditarmos que o brasileiro tem natureza pacífica, o que tem se mostrado cada vez menos real, acreditamos também que não há racismo no país. Que conselhos você daria para quem perpetua esse mito?

Uma coisa importante é sempre olhar e categorizar quem tem sido beneficiado pela escravidão. Porque é claro que, no Brasil, as pessoas não foram beneficiadas igualitariamente. Você tem uma população dividida por cor e gênero que não foi beneficiada. Quem cresceu e se enriqueceu e quem não? É preciso quantificar. Uma das coisas que levam as pessoas a dizerem que não existe racismo é que, na verdade, não quantificamos. Mas tudo pode ser medido. Podemos medir quem vive em periferias pobres? Quem tem falta de serviços públicos? Quem mais provavelmente irá para a prisão? É muito importante quantificar isso, olhar para a história e se perguntar por que e como o sistema perpetuou isso. Temos que fazer isso, mas também escutar e entender que se é algo de que não ouço falar, é provável que seja porque as pessoas da minha comunidade não são impactadas por isso, e esse é um sintoma de racismo. Podemos olhar os números no Brasil e em outros lugares, há a estratificação da população: algumas pessoas estão muito bem, outras não. Boa parte disso tem base racial. Se você mora no Brasil e não consegue ver, significa que você é parte de um substrato social que não sofre com isso. Aí você tem de fazer o seu trabalho, tentar entender e se perguntar: quem não estou ouvindo? Porque a verdade é que as pessoas pobres no Brasil, as oprimidas e exploradas, estão falando sobre o que acontece com elas, mas são caladas o máximo possível. Eu diria: procure, ajude essas vozes a serem ouvidas.


Sérgio Abranches: 'Brumadinho, uma Guernica mineral'

Brumadinho é um espanto. Uma Guernica mineral. Um desalento. Porque não é um só. Antes veio Mariana. Matou um rio, 19 humanos, fraturou a cultura ribeirinha do povo krenak das margens do Rio Doce, destruiu o modo de vida dos pescadores. Soterrou patrimônio natural, cultural, modos de vida e de sobrevivência. Antes ainda que as feridas profundas de Mariana se fechassem e sem reparação à altura das perdas e danos, veio o desastre da Mina Córrego do Feijão. Que vergonha e que indignação!

Mariana e Brumadinho não estão sós. Nem são apenas quatro, como os cavaleiros do Apocalipse. São quatrocentas. Ou mais. Uma delas, dependurada sobre a joia artística que é Congonhas, em Minas Gerais, ameaça com 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama fatal, um extraordinário patrimônio artístico-cultural e a vida inestimável de milhares de pessoas. Ali, a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos coroa o mais espetacular complexo arquitetônico e estatuário do Brasil. Não é exagero. O conjunto paisagístico e artístico representado pelo santuário não tem paralelo no país.

Abaixo da basílica, sob o olhar dos 12 profetas esculpidos pelo gênio Aleijadinho, coreograficamente distribuídos pelo adro, derrama-se a via-sacra, também do artista, em capelas nas quais as cenas talhadas em madeira em tamanho natural encantam e enternecem. Além da beleza das esculturas, os profetas do adro da igreja e as cenas da Paixão de Cristo nas capelas revelam uma cenografia deliberada e expressiva. É o principal legado escultórico de Aleijadinho, tombado e abandonado. A filha de um maestro amigo meu, ao vê-las aos 8 anos de idade, exclamou: “Estão vivas, papai!”. E estão, mas por quanto tempo?
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Esse santuário artístico, que contou com os gênios de Aleijadinho e outros grandes artistas do Brasil colonial, como o insuperável Mestre Ataíde, Francisco de Lima Cerqueira e João Nepomuceno Correia e Castro, está emoldurado por um cenário natural espetacular e cercado por sobrados que não se fazem mais. Sobre esse precioso bem coletivo está uma barragem como essas que se romperam, porém ainda maior. A Casa de Pedra contém 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama tóxica, prontos para soterrar o legado de Aleijadinho, eliminando-o do mundo e da memória. Em Mariana, foram 50 milhões; em Brumadinho, 12 milhões.

Brumadinho pode ter matado mais de duas centenas de seres humanos. Liquidou negócios e criações. Está matando o Rio Paraopeba. O Paraopeba é um rio sertanejo como eu e, enlameado, caminha para minhas paragens curvelanas. Pode enlamear parte do grande sertão e das veredas de Guimarães Rosa, tirando-lhes até o sentido metafísico. O Doce, rio serrano, tem uma de suas nascentes ao lado, Barbacena, cidade de meu pai, de meu irmão e de minha infância. Conheço as vítimas, cresci com elas. E como dói.

Em São Joaquim das Bicas, os pataxós da aldeia Hã-hã-hãe foram evacuados. Estão ameaçados por Brumadinho do mesmo destino dos krenak do Rio Doce. Hoje, nas margens do rio morto, os velhos krenak contam para os jovens sobre os animais e a vida ribeirinha perdidos na lama, para que mantenham suas referências, agora meras abstrações. O canal Futura tem uma série de documentários pungentes sobre o drama dos krenak do Doce morto.

Essas tragédias não foram incidentais. Elas tiveram causas e autores humanos. O autor principal chama-se Vale. Uma empresa que se apresenta como verde, mas esse verde é camuflagem de predador. Como disse Drummond, o vale é doce, a Vale, amarga. O autor coadjuvante chama-se Estado. Ambos, empresa e Estado, têm uma característica genética comum: suas ações dependem das escolhas de seus gestores, a diretoria, num caso, o governo, no outro. Escreveram essa tragédia a várias mãos, a empresa, suas subsidiárias, as consultoras, os governos estadual e federal, com más decisões, colocando a taxa de lucro acima do valor das vidas humanas e do patrimônio cultural, ambiental e paisagístico.

Há um outro autor político. O Congresso, que se rendeu ao lobby das mineradoras e seus dinheiros de campanha, afrouxou a fiscalização e engavetou as providências legais apresentadas após Mariana. O ex-deputado (deixou a Câmara demitido pelos eleitores) Leonardo Quintão (MDB-MG), relator do projeto que criava novas regras para a mineração, reescreveu-o à imagem e semelhança dos desejos do lobby mineral. Agora vai para o novo governo, manter-se ativo no Gabinete Civil. Brasil surreal, onde tudo muda para ficar na mesma. Exemplos de irresponsabilidade política e corporativa. Deputados deveriam estar a cuidar do bem público e não dos vícios privados. As mineradoras deveriam estar a corrigir seus vícios e buscando novos modos, para minimizar os riscos que impõem à sociedade, à qual nada retornam, se não magros royalties e buracos, quando não cadáveres e desolação.

Falou-se muito, e nem sempre com precisão, sobre risco. No primeiro dia do curso que costumava oferecer sobre risco político, explicava a meus alunos alguns conceitos básicos, igualdades e diferenças. Começava por dizer que a noção de risco é a mesma, na engenharia, no ambiente, na economia e na política. Os dados e os parâmetros é que se alteram. Usava o quadrinho abaixo para ilustrar essa igualdade e distinguir o que faz parte da matriz de riscos e o que não faz.

Risco
É simples. O conceito básico de risco – ele pode ser sofisticado e ficar mais complexo a partir daí – nasce da interseção entre a probabilidade de ocorrência de um evento e a severidade do dano que pode causar. O quadrante inferior esquerdo – baixa probabilidade e baixo dano – não requer muita atenção. O quadrante superior esquerdo – alta probabilidade e baixo dano – requer providências regulares. O quadrante superior direito – alta probabilidade e dano severo – não faz parte da matriz de risco. Primeiro, antes de uma situação chegar ali, uma empresa responsável já teria tomado providências preventivas, para evitar sua progressão até essa condição quase irremediável. Caso o tivesse feito, não estaria enfrentando um risco, que supõe incerteza, mas um quadro a exigir providências imediatas e radicais. O quadrante inferior direito é o que caracteriza o verdadeiro risco – baixa probabilidade e dano severo — que impõe vigilância permanente.Continua depois da publicidade

Se imaginamos que cada evento pode ser situado em pontos distintos dentro de cada quadrado, indicando variações na probabilidade de ocorrência e severidade do dano, teremos uma escala contínua que irá da probabilidade muito baixa até muito alta e dano de baixa severidade até dano de severidade máxima. As barragens de alteamento a montante, como as de Mariana e Brumadinho, jamais estariam na categoria de baixo risco. A probabilidade de rompimento vai aumentando a cada alçamento, que reduz a resistência estrutural original. Portando, nos dois casos, exigiam monitoramento 24/24, isto é, 24 horas por dia, de segunda a domingo, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com sensores e instrumentação adequados e em permanente manutenção, além de verificações de campo diárias.

O laudo no qual se ampara a Vale para se dar ao direito, que não tem, de dizer que foi pega de surpresa pelo rompimento de Brumadinho é um exemplo de como a atividade tem regulação inadequada. Uma barragem de rejeitos fluidos é dinâmica. O fato de estar estável em setembro de 2018, nada diz sobre sua estabilidade em janeiro de 2019. Mesmo que estivesse desativada – a empresa precisa provar que não aumentou o volume de rejeito desde de 2014 porque em Mariana houve informação inverídica sobre isso –, a chuva, a acomodação progressiva do rejeito ainda liquefeito e sua consolidação progressiva alteram os parâmetros determinantes da estabilidade. Só o monitoramento 24/24 e a inspeção diária podem determinar a estabilidade a cada momento. Barragens não rompem de supetão, avisam. Se não souberam identificar esses avisos, além de negligentes eram incompetentes.

Mais ainda, a trajetória de um possível rompimento deveria ser objeto de simulações, para impedir construções a montante, e, até mesmo, a implantação da barragem. Para toda a área de impacto definida pelos trajetos possíveis da lama, planos de contingência deveriam prever a evacuação, medidas de contenção e proteção. Há áreas em que a remoção é possível e outras, em que ela não é. São investimentos que as empresas evitam, para preservar sua margem de lucros e controlar custos. Como resultado, aumentam os custos públicos. A velha socialização das perdas e privatização dos lucros. Com o progresso rumo a novos materiais de baixo impacto ambiental e climático, o preço dos produtos que vão ficando obsoletos cai e as empresas resistem ainda mais a fazer investimentos de precaução. É ainda pior, porque tentam compensar a perda de valor do produto com a ampliação do volume de venda, aumentando a pressão sobre as barragens, reduzindo as medidas de cautela. Por isso os vícios privados jamais se tornam virtudes públicas. Nessas atividades de risco, não se pode abrir mão da regulação estatal nem terceirizar a palavra final. Por isso o sucateamento e a politização das agências reguladoras, na última década e meia, foram tão lesivos ao interesse público.

Não há outro caminho para a atividade mineral no Brasil se não a proibição do beneficiamento a úmido. Mesmo as barragens de alteamento a jusante, mais seguras, são muito danosas ao ambiente. Além do risco, nunca pequeno, o beneficiamento a úmido causa danos ambientais severos, mesmo em operação normal. Além da devastação que a atividade em si produz, como no Pico do Cauê, tão dolorosamente documentado por Carlos Drummond de Andrade, o consumo de água é absurdo. Só deveriam permanecer em atividade as minas que comportassem beneficiamento a seco.

Isso é o que faria uma sociedade madura, civilizada, que valoriza a vida humana acima de tudo e preza seu patrimônio cultural, artístico e natural. Uma sociedade que não confunde desenvolvimento a qualquer custo com progresso. Um povo que quer transitar para uma vida pessoal e coletiva de mais qualidade, que busca a felicidade, não apenas o prazer fugaz e a alegria passageira.

* Mineiro de Curvelo, o sociólogo e escritor Sérgio Abranches é especialista em ecopolítica


Luiz Carlos Azedo: Febre e pneumonia

“Bolsonaro não seguiu o protocolo médico ao pé da letra, porque não se desligou do cargo para tratar somente da saúde. Insistiu em reassumir a Presidência dois dias depois da operação”

A recuperação do presidente Jair Bolsonaro está mais complicada do que se imaginava. Segundo a equipe médica do Hospital Alberto Einstein, uma tomografia de tórax e abdome mostrou “boa evolução do quadro intestinal e imagem compatível com pneumonia”. O boletim médico também registrou febre na noite de quarta-feira. Bolsonaro passou por uma cirurgia para retirar uma bolsa de colostomia e refazer a ligação entre o intestino delgado e parte do intestino grosso, em 28 de janeiro, sequelas da facada que levou em Juiz de Fora na campanha eleitoral.

Voltamos assim ao tema da necessidade de separação entre o paciente e o presidente, que já abordamos aqui na coluna. A verdade é que Bolsonaro não seguiu o protocolo médico ao pé da letra, porque não se desligou do cargo para tratar somente da saúde. Insistiu em reassumir a Presidência dois dias depois da operação, quando deveria deixar a função a cargo do vice-presidente, Hamilton Mourão, por mais que isso incomode aos seus partidários ciumentos. No fundo, é uma grande bobagem, porque a situação em que se encontra, lutando para restabelecer a saúde, reforça o “mito”; isto é, ao mesmo tempo, deifica e humaniza sua imagem.

Segundo o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, foram feitos exames viral e bacteriano, e descartaram o viral. “Trata-se de uma causa bacteriana”, disse, ou seja, há uma infecção a ser combatida. Por isso, os médicos trataram de reforçar a dose de antibióticos. Bolsonaro não sente dor, continua com uma sonda nasogástrica e um dreno no abdome. Recebe alimentação parental e líquidos por via oral; faz exercícios respiratórios e caminha pelos corredores. É um paciente que está em recuperação, que precisa de cuidados especiais, mas não corre risco de vida.

Também não corre o menor risco político, apesar das teorias conspiratórias em relação a Mourão. A oposição não tem interesse que o vice substitua Bolsonaro, simplesmente porque prefere um político na Presidência; um general, não. Os demais generais que já mandam no governo não pretendem trocar um ex-capitão com 30 anos de experiência parlamentar e grande popularidade, eleito por voto direto, por um colega eleito de carona. O que existe nos bastidores do governo é uma disputa entre a turma do bom senso, que prefere um ambiente de negociação com o Congresso e diálogo com a sociedade, e a tropa de choque de Bolsonaro, que ascendeu ao governo e ainda não desceu do palanque eleitoral.

Apoio condicionado
Enquanto o presidente permanece hospitalizado, o governo vai bem, obrigado, na relação com o Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), está alinhado com as reformas e mantém diálogo fácil com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Na Presidência do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) é um aliado de primeira hora. A propósito, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, surpreendeu a oposição com o movimento de reaproximação com a ala derrotada do MDB no Senado, ao pedir que Alcolumbre sondasse o senador Fernando Bezerra (MDB-PE) para saber se o político pernambucano aceitaria ser o líder do governo na Casa. Aceitou de pronto.

O reequilíbrio nas relações do Palácio do Planalto com o MDB no Senado segue a velha receita da política de conciliação; o partido já se reposiciona para negociar seu apoio com o Palácio do Planalto. Essa aproximação deve se consolidar com a indicação de um deputado do MDB para a liderança do governo no Congresso. O mais cotado é o deputado Alceu Moreira (RS), gaúcho e líder ruralista.

O ponto fora da curva é o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), que sofre com o fogo amigo. Pisou na bola ao convocar uma reunião de parlamentares do “apoio consistente” e do “apoio condicionado”, ou seja, da oposição. Os grandes partidos da base do governo não foram à reunião. Estreante na Câmara, lida com um problema que não é novo. A negociação da reforma da Previdência está sendo feita diretamente entre o ministro Paulo Guedes e o presidente da Casa, Rodrigo Maia, mais ou menos como aconteceu com o Plano Real, quando o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, passou a negociar diretamente com o presidente da Câmara, Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA).

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Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso

“Enquanto Bolsonaro se recupera da cirurgia, o país acompanha comovido o trabalho de resgate dos corpos das vítima de Brumadinho, na esperança de eventuais sobreviventes”

Foi bem-sucedida cirurgia à qual foi submetido ontem o presidente Jair Bolsonaro, para retirar a bolsa de colostomia e religar o trânsito intestinal. Segundo a Presidência, “o presidente possuía em razão das outras duas cirurgias uma quantidade muito grande de aderências. E essas aderências exigiram do corpo médico uma verdadeira obra de arte em relação à cirurgia”. A operação durou oito horas, mais do que o dobro do previsto. Foi mais complexa do que se imaginava.

Enquanto Bolsonaro se recupera da cirurgia, a vida segue seu perigoso curso, como diria o jagunço Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. O país acompanha comovido o trabalho de resgate dos corpos das vítimas, na esperança de eventuais sobreviventes, do rompimento da represa de rejeitos de minérios de Brumadinho, na Grande Belo Horizonte. Essa é a nossa maior tragédia humana do gênero, que já contabiliza mais de 60 mortos e quase três centenas de pessoas desaparecidas. Foi muito mais grave do que a de Mariana, ocorrida há três anos e dois meses, cujo impacto ambiental no Rio Doce foi maior do que o atual, que transformou num rio de lama de minério o Córrego do Feijão, afluente do Rio Paraopeba, que deságua no São Francisco.

Equipes de resgate do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil do governo de Minas foram reforçadas por tropa especializada de militares israelenses, enquanto efetivos e equipamentos do Exército, disponíveis em Juiz de Fora e Belo Horizonte, não foram mobilizados ainda, aparentemente por entraves burocráticos. É muita tolice criticar a presença dos israelenses, que têm equipes treinadas para resgates em escombros. Embora nunca tenham passado por uma situação igual no seu país, os especialistas israelenses também se destacaram no México, socorrendo vítimas de terremotos.

Há muito mais do que marketing político na operação. Israel quer estreitar relações com o Brasil e vender sua alta tecnologia. Há empresas brasileiras que também desejam fazer isso, mas foram desconsideradas pela Vale, que optou por economizar naquilo que não deveria, principalmente depois da tragédia de Mariana. Como se sabe, metade da Samarco, empresa responsável pela tragédia de Mariana, é da Vale que, por sua vez, também não assume a responsabilidade pelo que aconteceu em Brumadinho. Não devemos demonizar a mineração, mas isso não significa passar a mão na cabeça da diretoria da Vale, cujo presidente, se fosse japonês, já teria feito harariqui.

Meio ambiente
O governo federal também está sendo obrigado a rever suas posições em relação à questão das licenças e fiscalização ambientais, como fez com o Acordo de Paris. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, faz malabarismos conceituais para explicar a mudança de posição em relação aos controles dos órgãos ambientais. A demonização do Ibama e o ICMBio, discurso fácil até agora, está diante do outro lado da moeda das licenças ambientais. A diferença é que em outras áreas, que o ministro chama de baixo risco, populações ribeirinhas e indígenas são afetadas sem a mesma letalidade, como no caso de Belo Monte. Mas o drama humano também existe, com o desenraizamento, a favelização, o banditismo e a prostituição.

“Viver é muito perigo, seu moço!”A frase antológica do jagunço mineiro é verdadeira. Vale para as tragédias e para a política. Em menos de 30 dias, o novo governo do país está de cara com essa realidade. Rapidamente está descobrindo que boa parte dos problemas que enfrenta não decorre de ideologias, mas da realidade objetiva e das contingências do nosso desenvolvimento. Por isso, são muito importantes os projetos e estratégias; há problemas que não se resolvem na canetada, mas no esforço continuado e na mobilização permanente do Estado, dos agentes econômicos e da sociedade. Isso não se consegue com bravatas e frases de efeito, requer a construção de amplos consensos e a participação dos demais atores políticos.

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Luiz Carlos Azedo: O paciente

Bolsonaro quer abreviar o período de repouso, após cirurgia de retirada de colostomia, o que não é recomendado pelos médicos; pretende montar um “gabinete presidencial” no próprio hospital

Inspirado no livro de investigação médica O paciente (Editora Cultura), do historiador Luís Mir, o filme de Sérgio Rezende sobre a morte de Tancredo Neves, o presidente da República que não chegou a tomar posse na redemocratização do país, é uma boa pedida para o fim de semana. Mostra o que não deve ser feito com um paciente quando ele é o mandatário da nação. Isto é, dar mais relevo às contingências políticas e ao seu papel na História do que ao tratamento médico adequado para a enfermidade que o acomete.

É óbvio que a referência ao filme decorre do fato de que o presidente Jair Bolsonaro será internado hoje, no Hospital Alberto Einstein, em São Paulo, para ser operado amanhã bem cedo. O objetivo é a retirada da bolsa de colostomia implantada devido à complexa cirurgia pela qual passou em setembro, depois de ser esfaqueado durante ato de campanha eleitoral em Juiz de Fora. O episódio dramático comoveu o país e teve um papel decisivo na eleição. A cirurgia está programada desde dezembro, quando deveria ter sido realizada. Durante dois dias, o vice-presidente, Hamilton Mourão, assumirá o comando do Palácio do Planalto. Sua interinidade durante a recente viagem de Bolsonaro a Davos, na Suíça, mostrou que está muito à vontade no cargo.

Bolsonaro goza de excelente situação clínica. Tem demonstrado até grande vigor físico, apesar das limitações impostas pelo colostomia, haja vista a sua carregada agenda presidencial. Segundo o porta-voz da Presidência, general Otávio Rego Barros, após a cirurgia, “os médicos indicam e iluminam a necessidade de restrito descanso de 48 horas”. Mourão já anunciou que deverá comandar uma reunião do conselho de governo na próxima terça-feira, no Palácio do Planalto. Bolsonaro viaja acompanhado da primeira-dama, Michelle, do ministro Augusto Heleno (GSI) e do próprio Rêgo Barros. Vai direto do aeroporto para o hospital.

Bolsonaro e seus assessores mais próximos tentaram abreviar o período de repouso absoluto, o que não é recomendado pelos médicos, e ainda pretendem montar um “gabinete presidencial” no próprio hospital. Ao contrário de Tancredo, que escondeu a doença enquanto pôde, Bolsonaro sempre tratou com transparência a sua real situação de saúde. Além disso, o contexto é completamente diferente: Tancredo se elegeu num colégio eleitoral, desafiando o regime militar; Bolsonaro foi vítima de uma tentativa de homicídio em plena campanha eleitoral, por muito pouco não morreu, e foi eleito pelo voto direto.

Caso Tancredo
O filme, como o livro de Mir, é pedagógico. O drama de Tancredo começou três dias antes da posse, quando sua saúde se tornou muito frágil e a capacidade de sobreviver até a cerimônia de posse ficou ameaçada. Othon Bastos faz uma interpretação esplendorosa, com a grande atriz Esther Góes no papel da primeira-dama Risoleta. Os atores Otávio Müller, Leonardo Medeiros, Eucir de Souza e Paulo Betti interpretam a confusa equipe médica, que se deixa pressionar pelos políticos, pela fogueira de vaidades e pelo estrelismo individual.

A grande contradição exposta no filme é o tratamento dado ao Tancredo paciente versus o dedicado ao Tancredo presidente, dois pesos e duas medidas que fazem a diferença. O Paciente denuncia erros de diagnóstico, picuinhas e muito ego à margem da ética profissional. Instala-se uma tremenda crise no centro cirúrgico, com desfecho trágico. Nada a ver com a condução dada ao caso de Bolsonaro até agora, com destaque para a equipe médica da Santa Casa de Juiz de Fora, que o salvou da morte. Os médicos dizem que o período de recuperação deve durar dez dias. A Presidência montou uma estrutura em São Paulo para que Bolsonaro receba seus ministros e possa “estabelecer governo efetivo e eficaz”, a partir do terceiro dia de pós-operatório. É aí que está o problema: o mais sensato seria Mourão permanecer como presidente interino até a alta hospitalar. Durante a viagem a Davos, o vice-presidente provou que pode exercer a interinidade sem provocar abalos sísmicos no governo.

Renan e Simone
Líder do MDB, Simone Tebet (MS) conta apenas com os votos dos senadores Jarbas Vasconcelos (PE) e Dario Berger (SC) na sua bancada, de um total de 13 senadores, para disputar a Presidência do Senado. Os demais estão com o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ainda dissimula o jogo, mas é candidatíssimo ao cargo, pela quinta vez. Simone anunciou, porém, que pretende disputar o comando da Casa mesmo que seu nome não seja apoiado pela maioria dos emedebistas. Dos 54 senadores recém-eleitos — de um total de 81 —, apenas 14 são novatos; os demais são políticos escolados. Além de Renan e Simone, Álvaro Dias (Pode-PR), Ângelo Coronel (PSD-BA), Davi Alcolumbre (DEM-AP), Esperidião Amin (PP-SC), Major Olímpio (PSL-SP) e Tasso Jereissati (PSDB-CE) sonham com o comando da Casa. Hoje, Renan teria mais de 45 votos entre os pares. Para enfrentá-lo e reverter a situação, a oposição teria que chegar a um candidato único. A aposta do chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é Davi Alcolumbre, não é Simone. Meteu a mão nessa cumbuca como um macaco novo.

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