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Pelé faleceu em decorrência de falência múltipla dos órgãos | Foto: TV Foco

Revista online | Nunca houve ninguém como Pelé

Henrique Brandão, jornalista e escritor*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)

O dia 29 de dezembro começou todo voltado para o anúncio dos novos ministros que vão compor o governo Lula. Aí chegou a notícia de que Pelé havia morrido. Mesmo sabendo-se há dias de seu estado de saúde precário, do câncer irreversível, da morte iminente, a comoção tomou conta do Brasil e se espalhou pelo mundo na velocidade instantânea das redes sociais.

Nada mais natural, dada a dimensão gigantesca da figura que foi Pelé. Para se ter uma ideia do tamanho do mito, 183 jornais mundo afora trouxeram Pelé na capa de suas edições do dia 30 de dezembro. 

O prestígio imensurável de sua persona foi construído em uma carreira futebolística que começa profissionalmente em 1956, no Santos, e termina em 1977, no Cosmos de Nova York. Foram 21 anos encantando o mundo com jogadas geniais e gols maravilhosos (1.282 no total), marcados de diversas maneiras: de falta, de cabeça, com a perna esquerda, com a direita, de bicicleta, de voleio – fora os dribles desconcertantes que aplicava nos adversários – às vezes mais de um – antes de mandar a bola para o barbante. 

O mundo, estarrecido, submeteu-se ao Rei. Foi uma conquista que se deu não na ponta das baionetas, mas no bico das chuteiras mágicas que calçaram os pés de um garoto nascido em Três Corações, no sul de Minas Gerais, em 1940, filho de dona Celeste e de João Ramos do Nascimento, o Dondinho, jogador de futebol que levava o filho Edson Arantes do Nascimento para acompanhar os treinos. O apelido Pelé veio dessa época, uma corruptela do nome do goleiro do time de seu pai, chamado Bilé, que o garoto Edson insistia em chamar de Pilé. A chacota com o guri acabou gerando o apelido que virou sinônimo de fina realeza.

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Mesmo altas autoridades políticas mundiais, ou personagens que fizeram parte da história nos séculos XX e XXI, se curvaram ao prestígio da majestade negra, nascida pobre, apenas cinco décadas depois do fim da escravidão, em um país marcado pelo racismo e pela extrema desigualdade social.  

 “Eu sou Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos. Mas você não precisa se apresentar, porque Pelé todo mundo sabe quem é", sentenciou Reagan (1911-2004), presidente dos EUA de 1981 a 1989. Andy Wharhol (1928-1987), quando encontrou Pelé em 1978, teve que rever sua profecia: "Você é a única celebridade que, em vez de durar 15 minutos, durará 15 séculos". Pier Paolo Pasolini (1922-1975), cineasta italiano, autor de O Evangelho Segundo São Mateus (1964), disse: "No momento em que a bola chega aos pés de Pelé, o futebol se transforma em poesia".

Seus colegas de profissão corroboraram o que os pobres mortais adoradores do velho esporte bretão já sabiam. Pelé paira, soberano, acima dos demais. O técnico argentino Cesar Luiz Menotti não deixa dúvidas sobre o seu lugar no panteão das glórias esportivas: "Maradona só seria um novo Pelé se ganhasse três Copas do Mundo e marcasse mais de mil gols". Da mesma forma, o craque da seleção húngara de 1954, Ferenk Puskas (1927-2006), decretou: "O maior jogador de futebol do mundo foi Di Stefano. Eu me recuso a classificar Pelé como jogador. Ele está acima de tudo". Johan Cruyff, jogador e técnico holandês, foi na mesma toada"Posso ser um novo Di Stéfano, mas não posso ser um novo Pelé. Ele é o único que ultrapassa os limites da lógica". Sigge Parling (1930-2016), zagueiro sueco que jogou a final da Copa de 58, quando Pelé despontou para o mundo fazendo dois gols na vitória da seleção brasileira por 5 a 2, reconheceu o talento do jovem adversário: "Após o quinto gol, eu queria era aplaudí-lo".

A crônica esportiva tupiniquim, acostumada a vê-lo em ação, sempre teceu loas ao Rei. Armando Nogueira (1927-2010), cronista de mão cheia, afirmou: "Pelé certamente teria nascido bola, se não tivesse nascido gente". Nelson Rodrigues (1912-1980), outro observador perspicaz do futebol e da alma humana, foi contundente sobre sua habilidade em livrar-se dos oponentes:  "Quando ele apanha a bola e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento". João Saldanha (1917-1990), com quem Pelé teve rusgas em 1969, quando Saldanha era o técnico da seleção brasileira que viria a ser campeã em 1970, concorda que, dentro das quatro linhas, não tinha outro igual a ele: "Dentro de campo, Pelé foi um gênio, o maior que conheci. Fora do campo, é um homem comum".

Essa diferença entre o “Rei dos Gramados” e o homem comum Edson Arantes do Nascimento foi alimentada pelo próprio Pelé, que se referia a si na terceira pessoa. Se os feitos em campo são magistrais, o “mortal” Edson teve altos e baixos na vida. Nos negócios, ganhou muito dinheiro, mas perdeu muito também, por escolhas erradas de investimentos e dos eventuais sócios. Na vida privada, teve três casamentos, sete filhos, sendo que dois deles de relacionamentos extraconjugais. A filha Sandra Regina somente foi reconhecida após exames de DNA e por determinação da Justiça. Com ela, Pelé – Edson, no caso – nunca teve uma relação boa. Sandra morreu de câncer, aos 42 anos, sem estabelecer qualquer relação de afeto com ele, que sequer foi ao enterro da filha.

Na política, que nunca foi o seu forte, Pelé sofreu críticas por ter se deixado usar pela ditadura militar, que explorou a conquista da Copa de 1970. Maradona, em 1997, não o perdoou por ter participado dos esquemas da FIFA: “Pelé é um escravo. Vendeu seu coração para a FIFA. Depois, quando a FIFA o chuta, ele quer amizade conosco, os jogadores”, afirmou. 

Veja, a seguir, galeria:

Foto: Agência Brasil
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No entanto, teve o mérito de, quando ministro dos Esportes do governo FHC, ter abolido a lei do passe, antigo instrumento que dava aos clubes o direito sobre os jogadores, mesmo que o contrato entre as partes estivesse sido encerrado. A Lei Pelé, como ficou conhecida, é um marco na profissionalização do jogador de futebol.

É evidente que, na comparação entre o Edson de carne e osso e o ídolo Pelé, o Rei do Futebol se impõe, pela forte simbologia que representa sua trajetória: um jogador negro, de origem humilde, nascido em um país periférico, que, graças ao seu talento, consegue em poucos anos conquistar o mundo para se tornar a pessoa mais conhecida do planeta. 

As manifestações de carinho e as condolências que chegam de todas as partes não deixam dúvida: Pelé é insubstituível.

Sobre o autor

*Henrique Brandão é jornalista e escritor.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Copa do Mundo da FIFA Catar 2022 | Imagem: reprodução twitter/FiFA

Revista online | Copa do Mundo: poder do dinheiro comanda o espetáculo

Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022) 

A Copa do Mundo bate às nossas portas, invade o cotidiano, toma conta das conversas. Em nosso dito “país do futebol”, essa rotina se repete de quatro em quatro anos. Estamos sempre entre as seleções favoritas. Que o digam as casas de apostas londrinas, insuspeitos templos das previsões futuras, onde o Brasil aparece bem cotado a cada campeonato mundial.

Em toda edição da Copa, haverá uma seleção que será lembrada, como ocorreu com a Hungria de Puskas, em 1954; o Brasil do tricampeonato (1958,62,70), com Pelé, Garrincha, Jairzinho e Tostão; a Holanda de 1974, com seu carrossel e o talento de Cruyff; Camarões em 1990, comandada por Roger Milla; a França de 1998, com Zidane & Cia. São várias as referências, ao gosto do freguês. 

Mas o critério esportivo, nos tempos atuais, deixou de ser o único balizador a medir o sucesso de uma Copa. Os indicadores econômicos, hoje, para os burocratas da todo-poderosa Fifa, são tão ou mais importantes do que os legados surgidos em campo. 

Na véspera da abertura da Copa 2022, o Conselho Executivo da Fifa divulgou seu faturamento: US$7,5 bilhões, o melhor resultado da história da entidade. Dentre as propriedades comerciais, os direitos de transmissão televisiva são o filé mignon. Desde a Copa de 1970, a primeira a ser transmitida para o mundo inteiro, os números não param de crescer. No Catar, a história se repete.  

Para se ter uma ideia do volume de dinheiro, no Brasil os direitos da Copa do Catar são exclusivos da Globo para TV aberta e paga. O contrato, fechado na Rússia em 2018, é de US$90 milhões por ano.

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O próximo Mundial será ainda maior que o atual, disputado por 32 seleções. Em 2026, serão 48 equipes e 80 jogos, no total. O gigantismo da Copa começou a ser desenhado em 1974, quando o brasileiro João Havelange (1916-2016) foi eleito presidente com os votos de africanos, latino-americanos e asiáticos, destronando Sir Stanley Rous, o candidato da Europa.

Havelange presidiu a Fifa entre 1974 e 1998, período marcado pela expansão da entidade. Uma das promessas de campanha foi ampliar o número de vagas de África, Ásia e Concacaf – Confederação que engloba a América do Norte e a América Central – na Copa do Mundo. 

Promessa cumprida. Em 1974, quando assumiu a presidência, a Copa era disputada por 16 seleções. Em 1998, quando deixou a entidade, o Mundial tinha o dobro de participantes.

Sob o comando de Havelange, a Fifa inaugurou uma nova maneira de atuar, que perdura até hoje, marcada pela aproximação com o poder político institucional e práticas questionáveis para a manutenção do status quo interno. Desde então, nenhum outro presidente foi eleito como candidato de oposição, como foi o caso do brasileiro.

Bom de negócios, Havelange elevou a Fifa a outro patamar financeiro. Em 1974, a entidade obteve receitas de US$11 milhões. Na Copa de 1994, a última em que esteve na presidência, a arrecadação foi de US$230 milhões. Daí em diante, o volume de dinheiro só aumentou. 

Estava estabelecido o “padrão Fifa de qualidade”. Quando decidiu deixar o cargo, em 1998, Havelange indicou Josef Blatter como sucessor. Blatter, que exercia o cargo de secretário-geral desde 1981, ficou na presidência por mais 17 anos. Tanta longevidade tem explicação: era ele quem negociava todos os contratos comerciais da entidade e organizava as Copas do Mundo.

Em 2015, às vésperas de mais um Congresso para sua reeleição, Blatter foi surpreendido pela prisão, na Suíça, de sete cartolas ligados à Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) e à Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf). Diante de pressões, quatro dias depois, mesmo reconduzido, convocou novas eleições, marcadas para fevereiro de 2016. Sete candidatos se apresentaram. Gianni Infantino, secretário-geral da Uefa, foi eleito. 

A Copa do Catar é a primeira sob o comando de Infantino. Seu modus operandi não difere muito do de seus sucessores. Quando divulgou os resultados financeiros do Mundial 2022, fez um discurso que Blatter assinaria embaixo: “Arrecadamos mais em patrocínios do que na última Copa, mais em direitos de transmissão e mais em camarotes. Tantas e tantas empresas acreditam nesta Fifa. Acreditamos que limpamos a entidade. Então, quem diz que esta Copa será um fracasso está errado”, disse, exultante.

Confira, a seguir, galeria:

Giovanni Vincenzo Infantino dirige a FIFA desde 2016, sucedendo Joseph Blatter | Foto reprodução REUTERS/ Leonhard Foeger
Cerimônia de abertura da copa 2022 | Foto: reprodução/Creative Commons
O Banco Nubank é um dos apoiadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2022 | Imagem: reprodução/Nubank
João Havelange presidiu a FIFA entre 1974 e 1998
Seleção brasileira tricampeã mundial na copa de 1970, no México | Foto: reprodução/CBF
Giovanni Vincenzo Infantino dirige a FIFA desde 2016, sucedendo Joseph Blatter | Foto reprodução REUTERS/ Leonhard Foeger
Cerimônia de abertura da copa 2022 | Foto: reprodução/Creative Commons
O Banco Nubank é um dos apoiadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2022 | Imagem: reprodução/Nubank
João Havelange presidiu a FIFA entre 1974 e 1998
Seleção brasileira tricampeã mundial na copa de 1970, no México | Foto: reprodução/CBF
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Giovanni Vincenzo Infantino dirige a FIFA desde 2016, sucedendo Joseph Blatter | Foto reprodução REUTERS/ Leonhard Foeger
Cerimônia de abertura da copa 2022 | Foto: reprodução/Creative Commons
O Banco Nubank é um dos apoiadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2022 | Imagem: reprodução/Nubank
João Havelange presidiu a FIFA entre 1974 e 1998
Seleção brasileira tricampeã mundial na copa de 1970, no México | Foto: reprodução/CBF
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Observando o estilo de governança da Fifa, fica a impressão de que a frase dita por Tancredi, um dos personagens de O Leopardo, romance do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1897-1957), adaptado para o cinema (1963) pelo genial Luchino Visconti (1906-1976), é mais atual do que nunca: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”.

Ainda bem que temos, para quem gosta de futebol, jogos que ainda nos dão imensa satisfação, pelo talento exibido em campo pelos jogadores, que, afinal, são os verdadeiros protagonistas do espetáculo. 

Viva o futebol!

Sobre o autor

*Henrique Brandão é jornalista e escritor.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Rebeca Andrade, a exceção em um país que desvaloriza o esporte

Ginasta que conquistou ouro e prata na Olimpíada de Tóquio e virou representante do Brasil no encerramento dos Jogos se consagrou graças a treinadores engajados e a um projeto público eficaz

Felipe Betim / El País

As lembranças de quem viu a ginasta Rebeca Andrade dar seus primeiros saltos são de uma menina “sempre alegre”, de “uma criança muito feliz” que não sofria as oscilações de humor que muitos atletas acabam passando. “O que vimos nos últimos dias é o jeito dela. Sempre foi natural, não é forçado”, explica Oscar Fagundes de Oliveira Júnior, de 56 anos, professor de ginástica artística de Rebeca em 2009. “Ela acabava de almoçar e ficava brincando aqui, nunca parava”, completa. Mas por traz dessa leveza que deu a Rebeca a medalha de ouro no salto e a prata no individual nos Jogos Olímpicos de Tóquio está uma história de muito esforço pessoal e superação, marcas de um país desigual e com poucas oportunidades, mas também de uma política pública que funcionou e guiou a ginasta até o pódio.

Nascida em Guarulhos, Rebeca é uma dos sete filhos de Rosa Santos, que trabalhava de empregada doméstica e os criou sozinha. Quando tinha seis anos, foi levada por uma tia ao ginásio municipal Bonifácio Cardoso, onde a Prefeitura de Guarulhos possui um programa voltado para a formação de novos ginastas. “Cida trabalhava aqui na cozinha e havia trazido Rebeca para brincar. Mas pediu que eu desse uma olhada nela porque achava que tinha jeito”, recorda Mônica Barroso dos Anjos, de 49 anos, técnica da equipe de ginástica de Guarulhos e árbitra internacional. Era o período de inscrição para teste de novos atletas. Mônica logo viu futuro na menina “magra e forte, com a musculatura já definida”. Pediu para ela correr, ir para a barra, dar estrelinha... Era “a futura Daiane dos Santos”.PUBLICIDADE  

Rebeca então passou a fazer parte do programa de Iniciação Esportiva da Prefeitura, que atende gratuitamente cerca de 5.000 jovens entre 6 e 17 anos em diversas modalidades. E Mônica tornou-se a primeira treinadora da “Daianinha de Guarulhos“, que teve de mudar o horário da escola para se adaptar à rotina de treinamento. Foi assim no primeiro ano e meio, até que a pequena, aos 8 anos, fosse encaminhada para a equipe de alto rendimento.

Os treinadores Oscar Fagundes de Oliveira Júnior (à dir.) e Monica Barroso dos Anjos, ambos professores de Rebeca Andrade, além do servidor público Marcos Camargo (à esq.), da área de esporte da Prefeitura de Guarulhos. Foto: TONI PIRES

A família se mobilizou para fazer o sonho da ginasta acontecer. Como morava em um bairro afastado do ginásio, Mônica conta que um dos irmãos de Rebeca andava com ela por cerca de duas horas até o local dos treinos e ficava esperando até o fim. Depois, comprou uma bicicleta para levá-la. Traços de um país em que a população mais pobre precisa fazer um esforço extraordinário para agarrar as poucas oportunidades disponíveis. “A mãe foi um fator chave na vida dela. Essa dificuldade de classe faz com que as pessoas superem esses desafios e isso foi muito importante na vida da Rebeca”, explica o técnico Oscar, conhecido apenas como Júnior.

Rebeca ainda contou com o apoio irrestrito de professores engajados, como o próprio Júnior, que a acompanhou em Cuba para um torneio pan-americano, e Mônica. Em determinado momento, quando já estava na equipe de alto rendimento, os professores começaram a se revezar para levar e trazer a menina de casa. Depois, passou a morar na casa da professora Ana Cecília durante a semana. “Pra facilitar a vida dela, ela dormia na Ana, tomava café, ia pra escola, almoçava aqui no ginásio, treinava à tarde e voltava pra casa da Ana para dormir”, recorda Mônica. “A gente sempre fez isso, com o apoio financeiro da Prefeitura. Eu mesma já tive ginastas morando na minha casa. Às vezes elas têm muito potencial e é necessário”, acrescenta a professora.

O Brasil possui algumas ilhas de excelência no esporte, como o vôlei, o futebol, o judô, a vela ou, mais recentemente, o boxe, o skate e a própria ginástica artística. Mas a rotina de muitos atletas brasileiros, diante das políticas públicas ainda tímidas, é de ter que superar a falta de apoio técnico e de patrocínio, público ou privado. Foi assim com o surfista e campeão olímpico Ítalo Ferreira quando ele pegava suas primeiras ondas numa tampa de isopor, em Baía Formosa (RN). Foi também assim com Darlan Romani, do arremesso de peso. Durante a pandemia, ele perdeu patrocínio, ficou sem técnico e sem área pra treinar, precisando apelar para um terreno baldio. Contraiu hérnia e covid-19 nesse período, mas ainda assim ficou em 4º lugar na Olimpíada de Tóquio.

O contraste com os Estados Unidos, um país continental como o Brasil e um dos maiores medalhistas de todos os tempos, fica evidente em algumas situações. Nestes Jogos Olímpicos, mesmo após a estrela Simone Biles ficar de fora de provas de ginástica artística, o país ainda assim conseguiu medalha de ouro no individual geral e no solo, a prata no salto e na geral por equipes, e bronze nas barras assimétricas e na trave. Não precisou se apoiar em sua principal ginasta para conquistar medalhas em todas as categorias da ginástica artística feminina. “O que falta é o Brasil ter um um olhar mais específico para o esporte do país. Quando vejo um quadro de 50 medalhas para os Estados Unidos e 10 para o Brasil, vejo política pública acontecendo lá”, argumenta o servidor público Marcos Camargo, de 51 anos, chefe da divisão técnica de esporte da Prefeitura de Guarulhos.

Apesar de todas essas questões, Rebeca e seus treinadores mostram que é possível alcançar o pódio com investimento ao longo de muitos anos. “O Brasil é muito rico em material humano”, afirma a treinadora Mônica, de Guarulhos. O imenso ginásio municipal Bonifácio Cardoso, aonde trabalha, é um dos mais bem equipados do país e celeiro de ginastas, professores e árbitros da ginástica artística. Ele é fruto de um projeto idealizado em 1979 pela professora Rose Cerqueira e foi ganhando músculo nos anos seguintes, em várias gestões de vários partidos políticos, culminando na construção do ginásio em 1992. Hoje são sete treinadores concursados, mas há também um intercâmbio constante de professores de outros lugares e países. Por exemplo, por 10 anos o técnico russo Wladimir Cheiko ajudou a formar o trabalho de excelência que é feito ali. Também passou por lá, entre 2006 e 2009, o professor Francisco Porath Neto, o Chico, técnico de Rebeca até hoje. Foi ele quem levou a ginasta para a Curitiba em 2010 e, um ano depois, ao Flamengo para alçar voos mais altos.

Ginásio de Ginástica Bonifácio Cardoso, da Prefeitura de Guarulhos, onde Rebeca Andrade começou ainda criança sua trajetória no esporte. Foto: TONI PIRES

“Com esse potencial, imagina se o país inteiro conseguisse fazer esse trabalho. Seríamos uma potência, brigaríamos com os Estados Unidos, a Rússia e a China tranquilamente”, afirma Mônica. Ela explica que Rebeca virou um ícone, mas que o trabalho feito ali deu oportunidade para muitas outras crianças que seguiram outras carreiras dentro da ginástica. A própria treinadora é um exemplo disso, já que entrou como aluna aos 12 anos. Outro exemplo é Marcos Goto, técnico do ginasta Arthur Zanetti, ouro em Londres 2012 e prata na Rio 2016 nas argolas. “Não é só esporte de alto rendimento, essas meninas e meninos vão ter outros caminhos, e isso foi fomentado aqui dentro”, explica a professora. “O esporte vira um meio para que tenham uma vida melhor no futuro. Isso é política pública.”

Além de oferecer e manter essa estrutura, a Prefeitura ainda paga cerca de 40.000 reais em taxas federativas e confederativas da ginástica artística. Dentro deste valor estão taxa de anuidade, filiação de atletas e técnicos novos, renovação de carteirinhas, arbitragem, premiação, renovação de técnicos e atletas antigos e inscrição individual e por equipe às competições. A gestão municipal ainda concede 90 bolsas de estudo em universidades para seus atletas. A ginástica artística é o carro-chefe do programa de Iniciação Esportiva, mas ainda há modalidades como futsal, vôlei, basquete, futebol, handebol e natação, entre outras.

Com o duplo pódio em Tóquio, o ginásio vem recebendo uma enxurrada de busca por vagas. “Agora tem esse fenômeno Rebeca, mas, olhando para trás, parece que foi tudo tão natural e que passou tão rápido”, afirma o técnico Júnior. Sentados no tablado por onde Rebeca passou, ele e Mônica recordam de alguns momentos de sua trajetória. “Aqui no ginásio acontecem muitos treinos ao mesmo tempo. Na hora de perfilar as meninas para começar o aquecimento, cadê a Rebeca? Estava lá na outra ponta olhando as meninas fazendo séries de solo com coreografia”, conta Mônica. “E ela lá dançando. Isso era quase todo dia. Essa menina ficava com os olhos brilhando e eu pensava ‘ela deve estar se imaginando num campeonato, numa Olimpíada’”. Rebeca agora deixa Tóquio duplamente consagrada, com o nome escrito na história do esporte e escolhida para representar o país na cerimônia de encerramento dos Jogos deste domingo. “É um sonho”, declarou, antes de sua temporária despedida dos holofotes.


Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/esportes/jogos-olimpicos/2021-08-08/rebeca-andrade-a-excecao-em-um-pais-que-desvaloriza-o-esporte-e-triunfou-por-meio-de-uma-politica-eficaz.html


Luiz Carlos Azedo: A criminalização da política

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua inelegibilidade exacerbam as tensões entre os políticos e promotores, delegados federais e magistrados que os investigam

A criminalização da política é a outra face da moeda de sua judicialização. São fenômenos que refletem a velha tensão entre a ética da responsabilidade e a ética das convicções, conceitos que ajudam a entender as vicissitudes da Operação Lava-Jato e seus atores, o inferno astral dos políticos às vésperas das eleições e o racha entre “garantistas” e “punitivistas” no Supremo Tribunal federal (STF). Essa bola rola quadrada no debate eleitoral, mais ou menos como aconteceu com a nossa seleção no jogo contra a Bélgica, na sexta-feira, um adversário sem tradição nas finais da Copa do Mundo. Entretanto, quem sentiu o peso da camisa foi a equipe do Brasil, pentacampeã mundial.

Aproveitando o parêntese, não é só na política e na economia que não entendemos a globalização. O Brasil exporta aviões, carne, soja, café, minérios e jogadores de futebol. Com exceção dos aviões, são matérias-primas que serão processadas e beneficiadas, recebendo valor agregado lá fora, o que inclui os jogadores de futebol. O mundo no qual os nossos jogadores surpreendiam os adversários e seus esquemas táticos com a habilidade do drible e a criatividade das jogadas deixou de existir. Na conquista do Penta, no Japão, a maioria dos nossos craques já era globalizada. No futebol, como acontece com a nossa economia, exportamos craques, mas não importamos a expertise organizacional e comercial dos grandes clubes europeus para acompanhar as mudanças em curso no mundo.

Nossos craques são cosmopolitas, nossos dirigentes, provincianos; jogadores como Neymar são estrelas do marketing esportivo mundial, milionários da “sociedade do espetáculo”, que vendem marcas tanto fora quanto dentro de campo. Lobistas e patrimonialistas, nossos principais cartolas de nível internacional entraram em cana. Com a globalização, empresas e instituições estão sendo obrigadas a assumir regras cada vez mais rigorosas de compliance, para respeitar as normas legais e “evitar, detectar e tratar qualquer desvio ou inconformidade” que possa ocorrer.

Marco Polo del Nero, José Maria Marin e Ricardo Teixeira, os três últimos presidentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), montaram um esquema corrupto que arrecadou pelo menos R$ 120 milhões em propinas. Segundo investigações lideradas pelo FBI, cobraram uma espécie de “pedágio” de cada empresa que procurava a entidade com a meta de fechar acordos de transmissão ou de exploração de marketing. O que impressionou os investigadores foi o caráter sistemático das propinas cobradas. “Eles conspiraram de forma intencional para fraudar a CBF”, concluiu o Departamento de Justiça dos EUA.

Lava-Jato
Alguém pode estar imaginando: o que isso tem a ver com a crise ética e a Lava-Jato? Muita coisa. O sucesso da Lava-Jato não se deve apenas às “delações premiadas” de executivos, agentes públicos e políticos, que não estão ocorrendo apenas por causa das longas prisões preventivas, como acusam seus críticos. Deve-se, em grande parte, às regras de compliance de empresas europeias e norte-americanas e dos bancos suíços. Grandes esquemas de lavagem de dinheiro do mercado financeiro internacional, sem os quais as operações de caixa dois não seriam possíveis, foram desmantelados. Com a saída da Inglaterra do Brexit, os paraísos fiscais das ex-colônias britânicas estão sendo devassados. Mesmo que os poderosos doleiros sejam soltos, o “esquema” foi desmantelado.

Retomando o fio da meada: a criminalização da política não foi uma consequência da Lava-Jato, ao contrário; ela é uma decorrência do patrimonialismo e do uso generalizado de caixa dois nas campanhas eleitorais, com recursos desviados de obras e serviços públicos. Em razão de uma legislação frouxa, esse tipo de prática estava incorporado à cultura política tradicional, na qual o que distinguia o político honesto do ladrão era a formação de patrimônio com recursos de campanha e não a origem do dinheiro. Com a Constituição de 1988, legalmente, essa prática estava condenada, mas a ficha não caiu, até o julgamento do mensalão pelo STF. A resposta ao julgamento, porém, não foi a erradicação do caixa dois; foi a sua sofisticação e centralização, conforme nos mostra a Operação Lava-Jato. Mas, subestimou-se o papel dos órgãos de controle do Estado (MPF, PF, Receita etc.) e a cooperação internacional.

Hoje, a crise ética é um vetor da disputa eleitoral e ameaça levar de roldão a elite política do país. A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua inelegibilidade mostram que ninguém está a salvo de uma condenação. O caso exacerba as tensões entre políticos e promotores, delegados federais e magistrados que os investigam. Às vésperas das eleições, pôs na berlinda os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que substituíram os militares no papel de “poder moderador” na vida nacional, mas se digladiam em público em razão de divergências doutrinárias sobre direitos dos réus, esferas de competência e grau de punibilidade dos envolvidos na Lava-Jato. No Congresso, os políticos envolvidos já articulam uma espécie de anistia para os casos de caixa dois eleitoral e o fim da prisão imediata após condenação em segunda instância, a pretexto de “descriminalizar” a política.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-criminalizacao-da-politica/


Luiz Carlos Azedo: Maia embola o centro

À frente da Câmara, Maia duplicou a bancada do DEM e somente não assumiu a Presidência da República, no ano passado, afastando o presidente Michel Temer, porque não quis

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, lançou-se ontem à Presidência da República, na convenção do DEM que também substituiu o senador Agripino Maia (RN) pelo prefeito de Salvador, ACM Neto, no comando da legenda. Consumou-se assim a renovação do antigo PFL, cujo “rejuvenescimento” político fora iniciado a fórceps pelo ex-senador Jorge Bornhausen, ainda durante o governo Lula. À frente da Câmara, Maia duplicou a bancada do DEM e somente não assumiu a Presidência da República, no ano passado, afastando o presidente Michel Temer, porque não quis. Havia votos suficientes para aceitar a primeira denúncia do então procurador-geral, Rodrigo Janot, contra o emedebista, mas o presidente da Câmara trabalhou para que isso não ocorresse.

Para os aliados, sua candidatura não tem a menor chance de vingar, segundo as pesquisas, mas embola completamente o jogo ao centro do tabuleiro político, tanto para o candidato do PSDB, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, como para o presidente Michel Temer, que acalanta o projeto de uma candidatura própria do MDB — de preferência, a sua própria reeleição — na cozinha do Palácio do Planalto. No lançamento, Maia adotou um discurso moderado, pregou a renovação política e a mudança na economia com base num projeto claramente liberal, com ênfase na reforma da Previdência e no equilíbrio fiscal.

“Há alguns que julgam tarefa impossível construir uma candidatura competitiva para mudar o Brasil. Mas vocês aqui presentes, democratas, me oferecem o desafio de liderar a nossa geração num projeto de renovação política e de reconstrução do Brasil”, afirmou Maia. A candidatura amplia o isolamento de Alckmin no plano nacional e demarca também uma posição de independência em relação ao Palácio do Planalto. Temer está condicionando a reforma ministerial decorrente da desincompatibilização de seus ministros, entre eles o da Educação, Mendonça Filho (DEM-PE), um dos novos caciques da legenda, ao compromisso com uma candidatura do governo. É pagar para ver quem vai indicar o novo ministro.

Candidato a presidente da República, Maia terá uma agenda própria na Câmara, independentemente da proposta pelo governo. O primeiro sinal de que isso ocorrerá foi dado quando Temer retirou de suas prioridades a reforma da Previdência e anunciou uma agenda econômica para substituí-la, o que provocou dura reação de Maia. A resposta do governo foi a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, contra a qual o presidente da Câmara ameaçou se insurgir, mas recuou devido à grande aprovação popular à decisão de Temer.

A conta

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), remeteu a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, os ex-ministros Antônio Palocci e Guido Mantega e o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, por organização criminosa, à Justiça Federal do Distrito Federal. Os processos da senadora Gleisi Hoffmann e do ex-ministro Paulo Bernardo, seu marido, continuarão no Supremo. A senadora possui foro privilegiado, só pode ser investigada e julgada no Supremo. O marido pegou carona no foro porque seu caso está diretamente interligado ao da senadora.

Segundo a denúncia, derivada das investigações da Lava-Jato, o esquema envolveu propinas no valor de R$ 1,485 bilhão por meio da utilização da Petrobras, do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) e do Ministério do Planejamento. O Ministério Público afirma que o PT formou uma organização criminosa para desviar dinheiro da Petrobras. Lula e Dilma são suspeitos, como os demais denunciados, de “promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa”, cuja pena é de 3 a 8 anos de prisão, além de multa. Chegou a conta da farra do pré-sal nas eleições de 2010 e 2014.

Para remeter o caso à primeira instância da Justiça Federal, Fachin levou em consideração decisão do Supremo que determinou o fatiamento de inquéritos para o Distrito Federal no caso que envolve o presidente Michel Temer e os líderes do MDB. O ex-tesoureiro do PT Edinho Silva, ex-ministro e atual prefeito de Araraquara (SP), porém, será julgado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com sede em São Paulo.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-maia-embola-o-centro/


Luiz Carlos Azedo: Justiça seja feita

A taxa de resolução dos casos de homicídio é baixíssima; começa na hora de preencher o atestado de óbito e fazer a autópsia, sem os quais não existe sequer investigação

Uma das dificuldades para compreender o fenômeno da violência nas cidades brasileiras decorre da inversão do senso de Justiça. A noção positiva, do ponto de vista do cotidiano dos moradores das favelas e periferias urbanas, é o senso de “injustiça”, porque a Justiça passa ao largo de suas vidas, serve para proteger os interesses das camadas mais favorecidas e criminaliza transgressões que poderiam ser tratadas de outra maneira, como, por exemplo, a produção, comercialização e consumo de maconha ou aborto de adolescentes nos casos de gravidez involuntária ou indesejável, para entrar em temas muito polêmicos, que deveriam estar sendo discutidos e varridos para debaixo da tapete.

É daí que nasce a ética popular na hora de “julgar” as ações da polícia, das milícias e dos traficantes. Por exemplo, na “lei do morro”, quando um traficante corta o dedo de um assaltante que roubou alguém da própria comunidade, fez-se “justiça”; quando a polícia faz um “baculejo” num cidadão que ganha a vida honestamente, há humilhação e “injustiça”. As milícias transitam entre a “injustiça” e a “justiça”, respectivamente, quando arrocham comerciantes ou expulsam os traficantes de seus territórios.

Essas ética e moral próprias não são características apenas das comunidades pobres, porque há outras manifestações do gênero nas camadas mais favorecidas, nas quais o jeitinho, a propina, os privilégios e a busca de favores são parte do dia a dia. O mesmo sujeito que apoia a pena de morte contra os traficantes não hesita em subornar um servidor público para se livrar das multas de trânsito. A mesma família de classe média que defende a eliminação dos traficantes tolera que seus jovens fumem maconha e não vacila em providenciar um aborto seguro para a filha que engravidou por descuido. Muitos não veem problema na falsificação da carteira de estudante pelos filhos, para que frequentem ambientes de risco nos quais é proibida a entrada de menores.

É nessa fronteira que transita a discussão provocada pelo novo ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, ao criticar os que “durante o dia, clamam contra a violência e, à noite, financiam esse mesmo crime por causa do consumo de drogas”. O ministro acerta ao criticar a hipocrisia, mas peca pelo reducionismo ao tratar da questão. Na guerra das drogas, a criminalização generalizada e o endurecimento das penas estão mais ou menos como as tropas norte-americanas no Vietnã. Não têm a menor chance de vencê-la. Essa estratégia está sendo derrotada; é comprovado pela ampliação do tráfico. Em todo o mundo, o que tem provocado é o aumento da população carcerária e o fortalecimento do lobby da bala.

Dever de casa
Em contrapartida, estatisticamente falando, em Nova York, a legalização do aborto teve muito mais impacto na redução dos indicadores de violência do que a política de tolerância zero. Simplesmente porque reduziu a população de risco, possibilitando às famílias de baixa renda evitar que suas adolescentes fossem incorporadas à cadeia da violência pela desestruturação familiar. Mas há alternativas menos polêmicas para reduzir a população de risco, como a massificação de atividades esportivas entre os jovens, com melhor aproveitamento de espaços urbanos degradados, como praças e viadutos ocupados por consumidores de drogas, principalmente em horários noturnos, nos quais a iluminação é a chave para aumentar a sensação de segurança. O esporte é uma atividade estruturante do caráter e do espírito, de baixo custo e alto impacto, com efeitos imediatos para a saúde e o desempenho escolar. O problema da “territorialidade” não se resolve apenas com a presença coercitiva do Estado, indispensável neste momento, mas com a ocupação dos espaços públicos pelas famílias.

Mas há que se destacar: o dever de casa do sistema de segurança pública está ao largo da discussão. O principal indicador da violência são as mortes por causas externas, principalmente os homicídios. Esses são o tipo de crime mais cruel a ser combatido, é nele que a impunidade revela sua face mais perversa. A taxa de resolução dos casos de homicídio é baixíssima; começa na hora de preencher o atestado de óbito e fazer a autópsia, sem os quais não existe sequer investigação. Na economia informal das favelas e periferias, não existe título protestado em cartório. A cobrança é feita à bala, tanto pelos traficantes como pelas milícias. Não pagou, vai para o “micro-ondas”. A fronteira sinuosa entre o tráfico de drogas e o comércio das milícias é demarcada por esse ajuste de contas, que quase sempre envolve a banda podre da polícia.


Luiz Carlos Azedo: O mundo de Neymar  

As democracias do Ocidente precisam reduzir a pressão sobre os orçamentos, reduzir suas dívidas e os impostos, investir em infraestrutura, combater a corrupção e renovar a política.

O Paris Saint-Germain contratou o atacante Neymar Júnior no maior negócio da história do futebol. A rescisão com o Barcelona custou € 222 milhões (R$ 812 milhões). O dono do clube é Nasser Ghanim Al-Khelaifi, de 43 anos, cuja ambição é ganhar a Liga dos Campeões. O dinheiro vem do fundo de investimentos Catar Sports, controlado pelo emir do Catar, Tamim ben Hamad Al Thani, ex-dirigente da Autoridade de Investimento do Catar, o fundo soberano do país. Antes de investir no clube parisiense, Al-Khelaifi era presidente do grupo de mídia “beIN”, canal esportivo que arrebatou os direitos de transmissão de grandes torneios. Chegou ao comando do PSG em 2011, após a compra do clube francês.

O Catar é um emirato absolutista, comandado pelos Thani desde o século XIX. Foi um protetorado britânico até conquistar a independência, em 1971. Desde então, tornou-se um dos estados mais ricos da região, devido às receitas do petróleo e gá. Tem uma população de 1,9 milhão de habitantes, dos quais apenas 250 mil são árabes. Os demais são trabalhadores estrangeiros: indianos, nepaleses, paquistaneses e filipinos, principalmente. Chanceler supremo, o emir possui o poder exclusivo de nomear e destituir o primeiro-ministro e o Conselho de Ministros, que é a autoridade executiva suprema no país. Doha, a capital do Catar, sede da rede de televisão Al Jazeera, é um paradigma da moderna arquitetura urbana do Oriente e um dos principais centros financeiros do mundo. O pequeno e rico Catar quer ser um polo da economia do conhecimento no mundo.

Recentemente, a Arábia Saudita, Egito, Barein, Emirados Árabes Unidos, Líbia, Iêmen e Maldivas cortaram os laços diplomáticos com o Catar. A justificativa dos países é que o emirato daria suposto apoio ao terrorismo, devido às relações do emir com a Irmandade Muçulmana e o Hamas, considerados uma ameaça às demais monarquias do Golfo Pérsico. O emir do Catar usa a mesma estratégia do rei Addulla II, da Jordânia, que mantém boas relações com o Hamas para os palestinos não desestabilizarem seu próprio regime. A compra do Paris Saaint-Germain e sua transformação na maior potência esportiva da Europa é uma grande jogada de marketing. Curiosamente, a camisa do clube é patrocinada pela Emirates Airlines, que chegou a cancelar seus voos na crise, e não pela Catar Airways, uma das companhias aéreas que mais cresce no mundo.

Corrida mundial
O Catar é um dos paradigmas de gestão para a nova escola de formação de dirigentes partidários, administradores públicos e executivos de empresas estatais da China. Outro paradigma é Cingapura, a cidade-estado da península da Malásia, com 5 milhões de habitantes, que tem um governo forte, experiente e altamente qualificado, apoiado por um serviço especializado civil e um sistema de educação com ênfase na realização e na meritocracia. O parlamento é controlado pelo Partido da Ação Popular, que governa o país com mão de ferro desde a independência. Catar e Cingapura participam da corrida mundial para reinventar o Estado, da qual a China pretende fazer parte, em meio à disputa com os Estados Unidos pelo controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Levam a vantagem de não terem que lidar com a crise da democracia representativa e o colapso do Estado de bem-estar social do Ocidente.

Não é o caso da França, de Emmanuel Mácron. O presidente francês rompeu a bipolaridade da política francesa do pós-guerra, derrotando a esquerda e a direita, com um discurso no qual propõe a reforma democrática do Estado e a reinvenção da economia francesa. “Parabéns, soube que trouxe boas notícias”, disse o presidente francês a Al-Khelaifi, o presidente do PSG, referindo-se à chegada do craque brasileiro. O ministro francês das Contas Públicas, Gérald Darmanin, celebrou a fortuna do jogador, por causa dos impostos que vai pagar na França: “É melhor que pague aqui em vez de pagar em outro lugar”, afirmou.

Neymar deixou o Barcelona num momento em que cresce a campanha pela independência da Catalunha, de forte tradição republicana. Há um plebiscito convocado pelo parlamento local para 1º de outubro, mas que não é reconhecido pelo governo da Espanha, que atravessa um dos seus piores momentos. As democracias do Ocidente precisam reduzir a pressão sobre os orçamentos governamentais, reduzir suas dívidas e os impostos, investir em infraestrutura, combater a corrupção e, principalmente, renovar a política. Como no Brasil de Neymar.


Nova plataforma da Rede Esporte pela Mudança Social facilitará o acesso de informações sobre esporte

Algumas áreas de destaque da nova plataforma são “Conhecimento em rede”, “Eventos”e “Notícias”.

Em parceria com PNUD, a Rede Esporte pela Mudança Social (REMS) lança nesta quarta-feira (25) sua nova plataforma, que dará mais visibilidade ao trabalho das organizações da sociedade civil que trabalham com esporte como fator de desenvolvimento humano, bem como oferecerá mais informações sobre o tema.

Algumas áreas de destaque da nova plataforma são: “Conhecimento em rede”, que conterá pesquisas, estudos e casos práticos referentes ao esporte e aos temas transversais da REMS, como educação, pessoas com deficiência, saúde e outros; “Eventos”, com datas e atividades interessantes em território nacional e internacional e “Notícias”, onde serão divulgadas novidades sobre a REMS, seus membros e assuntos relevantes para o setor do esporte para a mudança social. Acesse tudo isso e muito mais em rems.org

A REMS e o PNUD acreditam que o direito de acesso ao esporte e à atividade física, previsto na Constituição brasileira, deve ser assegurado a toda a população. Contribuir para esse acesso é uma das missões da REMS. As 77 organizações, que atualmente compõem a rede, trabalham com o esporte como fator de desenvolvimento humano e social e reúnem conhecimento sobre o tema do esporte para a mudança social.

Como o PNUD está empenhado em atingir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável por meio de ações focadas e coerentes, e entendendo que o esporte é ferramenta importante e poderosa para combater os desafios dos ODS, o lançamento da plataforma contribui para aproximar ainda mais os novos Objetivos Globais da realidade.

O esporte e a atividade física se relacionam com todos os ODS. Por exemplo, atividade física e esporte são componentes-chave para um estilo de vida ativo e para a saúde mental em todas as idades e, além disso, podem contribuir na prevenção de doenças. Os programas baseados no esporte oferecem oportunidades de aprendizagem além do ambiente escolar, proporcionando a aquisição de habilidades que podem ser transferidas para o ambiente de trabalho e da vida social. Inciativas e programas baseados no esporte têm o potencial para fornecer conhecimentos e habilidades às meninas e mulheres, contribuindo para o empoderamento feminino.

Fonte: pnud.org.br