esperança

Miriam Leitão: Os brasileiros que vi

Os brasileiros que têm projetos e sonham. Verônica, 17 anos, é aluna de escola técnica pública em Franca. “Você vai entrevistar só homens, ou vai falar também com mulheres na sua série?", perguntou em tom de desafio. E avisou: “sou feminista". O barco deslizava no Rio Negro e eu quis saber de Roberto, o barqueiro, o que ele fazia antes da atual ocupação. “Era madeireiro, meu pai e meu avô também foram. Hoje trabalho pela sustentabilidade."

O ano de 2017 foi todo cheio de conversas marcantes. Passei o ano viajando pelo Brasil para gravar uma série para a GloboNews. Os encontros me protegeram contra o pessimismo natural derivado da crise política e econômica. Hoje é o último dia do ano e eu deveria publicar aqui uma coluna sobre o balanço do que houve na economia em 2017. Escrevi o balanço. O leitor poderá encontrá-lo no meu blog. Mas preferi dedicar o espaço para falar de alguns brasileiros que conheci no ano.

O país visto de perto arrebata e emociona. Marivaldo, jovem, negro, violinista, sentado debaixo de uma árvore, falava com entusiasmo e visível sinceridade. Ele perdeu o irmão em um acidente de moto. O pai morreu logo depois. Está no projeto Neojibá desde o início, há dez anos. O projeto protege jovens e crianças na Bahia através da música clássica. Hoje Marivaldo é um multiplicador, porque além de tocar na orquestra, ele ensina nos núcleos de estudantes mais jovens. Perguntei sobre o futuro.

— Só vejo música, multiplicação. Todo mundo tocando junto. Porque na música não tem diferença, todo mundo é igual. A gente pensa num Brasil em que todo mundo é igual, todo mundo buscando o mesmo objetivo que é um país sem diferença.

Foi assim o meu ano. Uma parte de mim acompanhava a conjuntura, outra se deixava levar pelas conversas sempre surpreendentes com brasileiros de todas as regiões, das mais variadas atividades. Conheci muita gente. Walter, trabalhador de Santa Catarina, que aos 95 anos vai entrar agora em janeiro no livro “Guinness” como a pessoa há mais tempo numa mesma empresa. Sua carteira de trabalho mostra a devastação monetária que o Brasil viveu no século XX: há registros em nove moedas.

No Rio Grande do Norte, conheci um produtor rural que gosta de ser chamado de Zé Peneira. Sua renda aumentou desde que as torres de energia eólica começaram a ser instaladas na região. Ele primeiro forneceu matéria-prima, depois arrendou parte da terra para a empresa de energia. O dinheiro foi investido na propriedade e nos estudos dos netos.

— Tinha uma neta minha estudando pra ser médica. Eu já estava para cansar. Com o dinheiro eu ajudei e ela, daqui a dois meses, já está cortando gente.

A neta cirurgiã, e o avô inventando tecnologias para aumentar a produtividade da sua lavoura. Costuma apontar para a cabeça e dizer “tudo saiu daqui" quando vai contar alguma solução engenhosa. Saía da sua fazenda em Parazinho, já com os equipamentos na van para retomar a estrada, quando José Peneira me convidou:

— Se a “incelência” me der o prazer de voltar, vai encontrar tudo “meorado".

No Acre, a jovem Sarah Evellyn criou uma organização social, o Impacta Jovem, para divulgar informações sobre oportunidades de intercâmbio. Em Belo Horizonte, Laura Leal fez parte do Impacta Jovem e depois criou seu próprio movimento, que quer ampliar as chances das meninas nas ciências exatas. Em Roraima, a jovem estudante Ariene Wapixama quer que seu povo e outros indígenas elejam um representante do estado para o Congresso.

O país mergulhado no pessimismo com que atravessou o ano, e seu Zé Peneira tem certeza de que tudo estará melhor no futuro, Marivaldo sonha com um país sem diferença, Roberto, o barqueiro, ensina a importância de manter em pé as árvores que no passado derrubaria, Verônica quer ser advogada e defender a causa feminista.

Entrevistei tanta gente interessante que não cabe neste espaço. Foi o trabalho de transformar o meu livro “História do Futuro” em uma série de dez episódios para a GloboNews. As reportagens foram sobre as possibilidades e tendências do Brasil, mas fiquei marcada pelas conversas com esses e outros brasileiros. Por isso, neste último dia do ano quis trazê-los a este espaço para falar de esperança. Feliz 2018.

 


otimista

Cacá Diegues: O futuro do futuro

Desde adolescente, sempre ouvi dizer que o Brasil era o país do futuro, uma expressão criada pelo austríaco Stefan Zweig, um escritor judeu que, fugindo da perseguição nazista, veio viver por aqui. Ele se suicidou em fevereiro de 1942, às vésperas do carnaval, em Petrópolis. Pela mesma época, o poeta Paul Claudel, então diplomata francês no Brasil, glosando a ideia de Zweig, afirmou que éramos o país do futuro e o seríamos para sempre. O que Claudel queria dizer é que o brasileiro gostava mesmo era da expectativa do futuro, mesmo que ele não lhe chegasse nunca. A esperança era suficiente.

Hoje, vivemos uma atmosfera mítica oposta. Pelo menos para os que têm o poder de influenciar a opinião pública, o Brasil não presta para nada e não tem futuro algum. Somos um país definitivamente fracassado, condenado à rabeira da civilização contemporânea, incapazes de tudo. Nossos jornais e redes sociais são feitos desse pessimismo, onde o país é quase sempre identificado com o que há de pior nele, seja na economia, na administração pública, nos costumes, nos espetáculos, no futebol, onde for. Só é profundamente brasileiro aquilo que for profundamente ruim.

Chega. Não quero mais viver esse flagelo da autoestima, essa satisfação com a autocomiseração, esse sossego da morte em vida. Não quero mais rir de mim mesmo, como quem ri de um monstro grotesco imobilizado pela incompetência, piada do resto do mundo. Não é justo que seja assim, não o merecemos. É preciso voltar a crer que o futuro tem futuro, mesmo que ainda esteja longe de agora. E quem o constrói somos nós mesmos. Não podemos fazer do mito de nossa insuperável impotência a confortável explicação para nosso fracasso pessoal.

Não confundamos esse projeto com a ideia da harmonia universal dos infernos. O senador Renan Calheiros, em seu discurso de despedida da presidência do Senado, declarou que “depois das turbulências, é hora de um pouso suave para o Brasil”. Assim como o deputado Rodrigo Maia, ao assumir a presidência da Câmara, declarou que “a harmonia é a palavra-chave que sintetiza um dos pilares da democracia brasileira”. Nem uma coisa, nem outra. O “pouso suave” do senador e a “harmonia” a que se refere o deputado são justamente duas fantasias que convidam à inação.

A vida, como a política, é o contrário disso — é da crise que o progresso humano se alimenta, é da contradição que se organiza a síntese que construirá o bem-estar do futuro. O que nos falta não é “pouso suave” ou “harmonia”, mas o respeito à opinião do outro que não pensa como nós, o direito que o outro tem de existir. É esse o verdadeiro pilar de qualquer democracia.

No quadro famoso intitulado “Redenção de Caim”, pintado por Modesto Brocos no século XIX, uma negra idosa eleva as mãos aos céus, agradecendo a Deus o neto claro que sua filha mestiça acaba de ter com um branco pobre, todos presentes na tela. Segundo o cineasta e escritor João Carlos Rodrigues, “trata-se de uma ilustração muito bem-sucedida de uma teoria então vigente, segundo a qual os negros brasileiros desapareceriam em algumas décadas, esmaecidos pela miscigenação”. Essa teoria do embranquecimento, defendida até por políticos e pensadores progressistas de então, recusava a origem da civilização brasileira, inventando um destino que não tinha nada a ver conosco, nem com a realidade à nossa volta.

Somos sempre vítimas desses “salvacionismos” inventados que nos desviam de nós mesmos e que nos fazem, além de observadores injustos de nossa própria vida, perder tempo e confiança na tentativa de construção de um futuro impossível. Já invejamos a civilização europeia ocidental e, depois, a contemporaneidade anglo-saxã da América do Norte. Esses projetos acabam por nos produzir um “fatalismo narcisista”, como o nomeou Contardo Calligaris. O que é tão desejado e ao mesmo tempo tão inviável acaba por não merecer que façamos qualquer esforço em outra direção alternativa. Merece apenas a autopredação moral e material que nossa frustração está acostumada a praticar.

Em busca ansiosa por amigos através das poucas palavras permitidas pelo smartphone, vivemos hoje a nostalgia de uma modernidade cheia de esperança, substituída pelo cinismo da pós-modernidade que se ri desse passado. Nossas distopias são hoje formadas pelas ruínas dessa modernidade perdida. Nosso futuro estará comprometido se não nos conhecermos e não nos aceitarmos como somos e, a partir disso, construirmos uma civilização democrática e original, mais fraterna e mais generosa, em que temos o direito de acreditar.

Enquanto isso, o carnaval se aproxima inevitável... Viva a mulata!


* Cacá Diegues é cineasta