Espaço aberto

Fernando Henrique Cardoso: Crise, não só política

Está nos faltando a mensagem que aponte caminhos de esperança para passos à frente

Há poucas semanas participei de um encontro preparatório de uma conferência que organizarei em Lisboa para a Fundação Champalimaud sobre a crise da democracia representativa. Ao encontro compareceram, ademais dos responsáveis pela fundação, Alain Touraine, Pascal Perrineau, Michel Wieviorka, Ernesto Ottone, Miguel Darcy e Nathan Gardels, entre outros intelectuais. Os debates ressaltaram que a população desconfia da justeza e mesmo da capacidade de gestão dos sistemas político-partidários prevalecentes nas democracias representativas. Um dos presentes citou o abade Sieyès, que afirmava: “Se o poder vem dos que estão em cima, a confiança vem dos que estão em baixo”. Escapam dessa crise, por óbvio, os países onde prevalecem formas autoritárias de mando em que conta a repressão, não o consentimento.

Perrineau chamou a atenção para dados mostrando que não diminuiu a confiança nas famílias, nas instituições comunitárias, no localismo. A crise parece ser mais “política” e quanto mais distante a pessoa está dos centros de poder, mais desconfia deles. Tem inegavelmente uma dimensão territorial: quanto mais afastados estão os núcleos populacionais das novas modalidades de produção e da vida associativa contemporânea “em rede”, maior a probabilidade do seu enraizamento nas tradições, maior o “conservadorismo” e maior temor do “novo”, principalmente da substituição do trabalho humano por máquinas. Pior ainda, por máquinas “inteligentes”.

Há mais: nessa quebra de confiança vão de cambulhada as instituições políticas criadas ao longo dos dois últimos séculos, os partidos e os parlamentos. O analista se surpreende quando vê que na distribuição de voto, tanto nas últimas eleições francesas como nas inglesas do Brexit ou nas norte-americanas que elegeram Trump, o “voto operário” se deslocou para a “direita” e com ele se foi também boa parte do voto proveniente do que se chamava de “pequena burguesia”. O Labour Party inglês, os democratas nos Estados Unidos e os socialistas e comunistas na França foram levados de roldão pelo voto “conservador” ou, quem sabe, pela formação de uma maioria de outro tipo, como fez Macron.

Em resumo, há algo de novo no ar e não apenas nas plagas brasileiras. Uma nova sociedade está se formando e não se vê claramente que instituições políticas poderão corresponder a ela. Dito à moda gramscsciana: o velho já morreu e o novo ainda não se vislumbra; ou, se vislumbrado, não é reconhecido, acrescento.

Que força motora provoca tão generalizadas modificações? Relembrando o assessor de Clinton que dizia sobre o fator-chave nas eleições “é a economia, seu bobo”, poder-se-ia dizer agora: é a globalização (como digo há décadas). Esta surgiu com as novas tecnologias (nanotecnologia, internet, robotização, contêineres, etc.) que revolucionaram as relações produtivas, permitiram a deslocalização das empresas, a substituição de mão de obra por máquinas, a interconexão da produção e dos mercados, etc. Tudo visando a “maximizar os fatores de produção”, ou seja, concentrar os centros de criatividade, dispersar a produção em massa para locais de mão de obra abundante e barata e unificar os mercados, sobretudo financeiros. Criaram-se assim condições para a emergência de sociedades novas.

Novas não quer dizer “boas sociedades”, depende de para quem. Sem dúvida o crescimento exponencial da produtividade e da produção aumentou a massa de capitais no mundo. Sua distribuição, entretanto, não sofreu grande desconcentração. Mais ainda, o “progresso” trouxe, ao lado da diminuição da pobreza no mundo, o aumento do desemprego formal e dificuldades para a empregabilidade, posto que o trabalho humano conta mais, nos dias de hoje, se com ele vier criatividade. Globalmente houve um amortecimento do controle nacional de decisões (pela concentração de poder nos polos criativo-produtivos e bancários) sem haver regras de controle financeiro global. Com isso a ameaça de crises, ou ao menos a percepção da possibilidade delas, aumentou as incertezas.

É inegável que a “nova sociedade” incrementa a mobilidade social (forma-se o que, à falta de melhor nome, se está chamando de “novas classes médias”) e ao mesmo tempo se criam contingentes não desprezíveis de inocupados ou impropriamente ocupados (novas formas de subemprego). Ao mesmo tempo se deslegitimam as formas institucionais anteriores, os partidos, e mesmo as de coesão social (as classes com seus sindicatos e associações). Criam-se sociedades fragmentadas, às que se somam, em situações como a brasileira, a fragmentação dos partidos. Em qualquer caso, dá-se perda de sua credibilidade. Pouco a pouco se dissipam os laços entre “a sociedade” e o “sistema político”. Há, portanto, mais a ser entendido e contextualizado do que uma crise do sistema representativo.

Isso implica novos populismos e leva a “direita” ao poder? Não necessariamente. Alain Touraine, em sua apresentação, referiu-se a um tema que lhe é caro: liberdade, igualdade e dignidade são os motes nos quais há que persistir. Mas como? Trump juntou os cacos da “velha sociedade”, o rustbelt, temerosa dos outros e do futuro (lá vêm os imigrantes, ou os terroristas ou, extremando, os “muçulmanos”) e ganhou. Macron, contudo, ganhou defendendo a liberdade e o progresso (a globalização e a integração da Europa) e combateu as corporações, poderosas na França.

Em países como o nosso, isso não basta: há que insistir na igualdade (nas políticas sociais, em reformas que combatam os privilégios corporativos). E, principalmente, na “dignidade”, no respeito à pessoa e à ética. O “basta de corrupção!” não é uma palavra de ordem “udenista”. É um requisito para uma sociedade melhor e mais decente.
Em momentos de transição, a palavra conta: só ela junta fragmentos, até que as instituições e suas bases sociais se recomponham. É o que nos está faltando: a mensagem que aponte caminhos de esperança para passos à frente.

* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo. Foi Presidente da República

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,crise-nao-so-politica,70001873312

 


Luiz Sérgio Henriques: Começar de novo

Refazer os cacos requer o emprego da arte da competição e da cooperação

Eis o ponto a que chegamos: todos constatamos, atônitos, as agonias que se acumulam, as hipóteses de saída que surgem e se desfazem como bolhas de sabão, os políticos que de uma hora para outra abandonam a ação parlamentar e passam a integrar tramas judiciárias cujo fim não parece próximo. No tumulto dos dias, a impressão que se firma é a de um enredo mambembe em que os personagens procuram, em vão, uma direção e um sentido para o que fazem. Ou, então, como na imagem conhecida, a sensação é de que os fatos caminham por si sós, assumindo aos trancos e barrancos um protagonismo além da capacidade dos atores, cujos movimentos se esgotam na busca da sobrevivência pura e simples.

No centro de tudo, um sistema partidário que já não se mantém em pé. Desequilibrado desde o início, esse sistema combinava partidos extremamente convencionais e um só com características semelhantes àqueles ditos “de massas”. Entre os primeiros, o partido da resistência democrática – o MDB e, a partir de 1979, o PMDB – aos poucos, e progressivamente, veio a perder a bandeira da “esperança e mudança” sob a qual se tornara uma escola de política, na qual, entre outros fatos admiráveis, uma parcela da esquerda teve contato com os valores do liberalismo, observando sua eficácia na luta contra o regime autoritário e sua relevância permanente em qualquer contexto futuro. A Constituição de 1988, que ainda nos traça o único roteiro possível, terá sido o legado essencial daquela antiga expressão do centro democrático, cujo esfacelamento está muito longe de ser o menor de nossos males.

O partido da social-democracia, nascido de uma “questão moral” – que, aliás, nada tem que ver com o bordão do “moralismo udenista” e, ao contrário, pode constituir-se num elemento positivo para uma moderna força de centro-esquerda –, viveu um paradoxo singular. Condensação de grupos intelectuais significativos, tanto na política quanto na economia, terá refletido pouco ou nada sobre as exigências inerentes ao prestigioso nome de batismo. Acreditou que a autoridade do núcleo dirigente inicial, com Covas, Montoro e Fernando Henrique, somada ao nome social-democrata, dispensaria a obra de autoconstrução e atualização programática constante, oferecendo-se assim à sociedade como um partido nacional, capaz de dar respostas aos problemas de toda a Nação em conjunturas distintas, incluídas as que acaso exigissem reformas liberalizantes.

Esse partido se descuidou, sintomaticamente, de estabelecer conexões flexíveis, mas resistentes, com a sociedade ao redor. Não precisava ser um partido de massas no sentido tradicional do termo, com ideologia definida, enraizamento “de classe” e um sistema de organizações colaterais à maneira de correias de transmissão. Não obstante, a necessidade de vasos comunicantes com o mundo social e de elaboração de novos grupos dirigentes permanecia constante mesmo para os partidos de estrutura mais leve. E a pesada armadura ideológica de tantos partidos de massas poderia ter cedido lugar ao rigor programático e à ação minimamente orgânica segundo a tradição social-democrata.

Nada disso aconteceu: não se atendeu àquela necessidade de comunicação nem se forjaram programas. E, em plano correlato, pouquíssimo foi feito para a projeção externa do partido criado em 1988. Afora a relação com a “terceira via” da década de 1990, seja qual for o juízo que a essa via se dê, nossa social-democracia restou acanhada e provinciana. Os ventos eram globais, as correntes de pensamento ignoravam fronteiras, os problemas adquiriam dimensão mundial – e continuamos sem nada saber de agregações importantes no universo social-democrata, como a Internacional Socialista. Uma inapetência que mostraria todo o seu limite quando, ainda há pouco, enviesadamente se lançaram mundo afora sinais de golpe ou regime de exceção em nosso País, sem que as forças responsáveis pelo impeachment respondessem à altura.

Um esteio do sistema partidário – e, por extensão, da democracia – poderia perfeitamente ter sido o PT. Único partido de massas, ou quase isso, teve nas mãos a possibilidade de liderar a consolidação de uma moderna democracia de partidos, levantando em cada caso ideias relevantes para a solução de problemas espinhosos da vida política após 1988: o financiamento da atividade político-eleitoral, por exemplo, tema que, varrido para debaixo dos tapetes da República, retornaria como força natural destruidora. Ser o partido-guia em tal contexto significaria exercer uma ação hegemônica, palavra que, tomada como capacidade de direção, exclui comportar-se como elefante em loja de louças, cooptando aliados em funções subordinadas na pilhagem do Estado e inaugurando práticas inéditas, como as reveladas no mensalão e no petrolão.

Não está claro como reconstruir minimamente os partidos no curto período que nos separa das eleições de 2018. Sabemos que o que nos trouxe até aqui não é ponte que nos conduza ao futuro. O PMDB já não parece ter quadros ou ser portador de ideias-força para sustentar um governo de reformas. A classe política que o viu nascer e lhe insuflou alma não existe mais. O antagonismo entre PSDB e PT, que nas quatro últimas eleições presidenciais favoreceu amplamente este último, mas assinalou afinal o fracasso histórico do petismo, não poderá mais ser a principal linha de clivagem do sistema partidário, a não ser que nossa sociedade se aniquile nas malhas da repetição neurótica.

Sabemos, sobretudo, que o presente cenário de terra arrasada é o mais favorável para aventuras extremadas. Refazer os cacos e ordenar razoavelmente a arena pública requer o emprego da arte da competição e da cooperação, da qual nos temos dissociado. Arte a ser exercida sob o império da Carta de 1988, longe dos fundamentalismos de mercado ou das utopias autoritárias do esquerdismo.

* Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci. Site: www.gramsci.org

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,comecar-de-novo,70001846380

 


Fernando Gabeira: Para chegar a 2018

O caminho é fortalecer a economia e tentar reconciliar a política com a sociedade

Começou o fim do mundo com a delação da Odebrecht. Temer, creio, deu uma resposta adequada, pedindo celeridade nas investigações para poder tocar o barco da reconstrução econômica.

Ele pode não ter sido sincero, porque, segundo a imprensa, no Planalto se falou na anulação do depoimento do diretor da empresa. Mas a celeridade, respeitando simultaneamente direito de defesa e ritmo de uma investigação séria, é a melhor saída para libertar o processo econômico dos sobressaltos políticos. Para almejar essa celeridade, porém, é preciso primeiro responder a uma pergunta: se não existiu até agora, por que passaria a existir de uma hora para outra?

Ela é necessária também para o processo político em 2018. Muitos investigados vão querer se reeleger. Mas nem todos têm êxito em situação pós-escândalo. Lembro-me da CPI dos sanguessugas, deputados que ganhavam propina para emendas de compras de ambulâncias superfaturadas. A maioria foi derrotada nas urnas, em 2006.

Sem julgamento, contudo, o abismo entre sociedade e eleições em 2018 pode se aprofundar ainda mais. As ruas têm se manifestado, mas não se pode esperar delas a solução final do problema. No meu entender, ela está nas mãos do Supremo, que precisa fazer um extraordinário esforço de adaptação às necessidades do momento.

O Supremo parece-me perdido em suas prioridades. As duas últimas intervenções, proibição da vaquejada e descriminalização do aborto, posições com as quais posso concordar, não trilharam o bom caminho.

Existe uma diferença entre uma sentença e uma política para enfrentar os temas. No caso da vaquejada, um processo adequado seria definir o que os americanos chamam de phase out, para que todo o universo econômico que gira em torno da vaquejada se adaptasse. Pelo que vi, seu núcleo central é a criação e o comércio de cavalos de raça. No caso do aborto, o processo político se dá de outra forma. Discussão no Parlamento e referendo popular.

Embora o panorama político seja desolador, quando juízes assumem decisões que deveriam nascer no Parlamento ou nas urnas, eles são obrigados a pensar como categorias políticas. Apesar de ter desaguado no STF, na longa luta política para banir o amianto foi preciso negociar e até formular um projeto de adaptação.

O fim do mundo não é o fim de tudo. Se o Supremo, creio eu, se dedicar integralmente a julgar com rapidez e se reorganizar para a tarefa, pode se queimar menos do que buscando saída para tensões políticas.

As manifestações de rua conseguem fixar alvos. Hoje Cunha, amanhã Renan. Elas não trazem a saída: são contra a corrupção e, em alguns cartazes, pelo fim do cheque em branco dos governos, alusão ao ajuste fiscal.

Mas o nó só pode ser desatado pelas instituições. Agora, por exemplo, o Supremo vai entrar em recesso. Com a situação tão delicada, os responsáveis vão sair de cena. Creio que isso nasce do equívoco de subestimar o alcance da Lava Jato.

Gilmar Mendes, quando esteve no Senado, foi bastante explícito, as operações policiais existem todos os anos. Naquele momento, a Odebrecht fechava o maior acordo de leniência do mundo, pagando cerca de R$ 6, bilhões de multa. E a delação do fim do mundo começava.

Se o Supremo decidir trabalhar a fundo na sua tarefa específica, vai ajudar, indiretamente, a economia e também a política, na tarefa de buscar algum tipo de renovação que a aproxime da sociedade.

É uma difícil travessia. Nela o comandante Temer tem de enfrentar a tempestade e jogar alguns corpos ao mar. E evitar que ele próprio tenha de se jogar na água.

Mas são essas as circunstância e não é possível enfrentá-las suprimindo pedaços da realidade. A maior investigação da História do Brasil chega ao coração do atual governo, que era apenas a costela do governo petista. Agora, ele tem nas mãos a tarefa de conduzir a economia em frangalhos, sob suspeita e com baixa popularidade.

Temer disse que era preciso coragem para governar o Brasil e que ele teria essa coragem. Talvez seja preciso também um pouco de resignação diante do futuro pessoal.

A tarefa de conduzir a reconstrução econômica é decisiva, sobretudo, para os 12 milhões de desempregados. Temer e o mundo político não têm outro caminho exceto continuar trabalhando, enquanto a terra treme sob os seus pés.

Num mundo ideal, nem o Supremo nem os políticos entrariam em férias neste ano de 2016. Talvez todos nós precisemos de umas férias do Supremo e dos próprios políticos.

Mas assim que voltarem, a realidade pedirá respostas mais rápidas e complexas. Se houvesse um projeto de trânsito para 2018, o ritmo de julgamentos seria mais rápido, os vazamentos seriam evitados e o processo de renovação na política seria posto na agenda.

Existem forças poderosas tentando deter ou deturpar a Lava Jato. Elas se aproveitam da confusão, dos impasses. É uma tática que existe nos mínimos detalhes, como a atuação dos advogados de Lula, discursos no Parlamento, notícias inventadas.

Digam o que quiserem das ruas. Não houve violência nas manifestações contra a corrupção. Elas cumprem o seu papel. No fundo, acreditam nas instituições e na possibilidade de que encontrem uma saída.

Algumas instituições entraram em férias. Durante o recesso poderiam pensar no ano que entra. É possível fazer melhor e mais rápido.

É uma ilusão supor que o Brasil não mudou, que será governável com as mesmas práticas do passado. Hoje será menos doloroso avançar do que recuar no projeto de fortalecer a economia e dar à política uma chance de reconciliação com a sociedade. No meio de tanta confusão, na qual estou também envolvido, é assim que vejo o caminho imediato e os dois objetivos principais.

Deve haver centenas de outras visões. Seria salutar discutir como chegar a 2018, e não apenas o clássico quem comprou quem, quem é a bola da vez... A bola da vez é a ameaça de caos.

*Fernando Gabeira: Jornalista


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Marco Aurélio Nogueira: Os podres da República e a sorte de Moro

*Marco Aurélio Nogueira
Bastou a prisão de Eduardo Cunha para que as nuvens ficassem mais carregadas e os dilemas da República se agigantassem.

Já se sabia de tudo, mas a prisão trouxe à tona uma trajetória que chama atenção pela longevidade, pela desfaçatez e pelo tamanho das ilicitudes. Cunha tem peso próprio, não é um qualquer quando se trata de exploração das brechas existentes na legalidade e na cultura político-administrativa do Estado brasileiro. É um profissional. As acusações contra ele abrangem um leque impressionante de fraudes, negócios escusos, abusos e irregularidades. Vêm lá de trás, mais ou menos do final dos anos 1980. Como foi possível sobreviver durante tanto tempo e seguir uma carreira ascendente que poderia tê-lo levado à Presidência da República? O sistema assistiu impassível à performance, que teria continuado se não houvesse a Lava Jato.

No mínimo por isso, o juiz Sergio Moro merece aplausos. Ele está a desnudar os podres de nossa vida estatal, valendo-se de uma obstinação que o tem ajudado a resistir a intempéries mil, ainda que o levando em certos momentos ao limite da temperança e da moderação.

As vozes mais sensatas e certeiras da República afirmam que a pressão sobre Moro aumentará terrivelmente. A prisão de Cunha fará um tsunami desabar sobre o juiz, impulsionado tanto pelos ventos que sopram do lado dos que não desejam o prosseguimento da Lava Jato, quanto pelos vagalhões produzidos por aqueles que não gostam do estilo de Moro e o veem como autoritário. No governo Temer, no Congresso e na oposição, quem tem o rabo preso está suando frio. A lógica das coisas aponta na direção deles. Decaído o chefe, é de esperar que o restante dos dominós caia também, ou seja ao menos ameaçado. Sobretudo se Cunha der com a língua nos dentes, contar o que sabe, com quem tramou, por que o fez, quanto ganhou e quanto distribuiu. Nitroglicerina pura, que será por ele usada com inteligência estratégica e instinto de sobrevivência, atributos que não lhe faltam.

No day after da prisão, não faltou quem fizesse a ilação apressada: Cunha derrubará Temer ou lhe roubará as bases de apoio a ponto de levar seu governo à asfixia. Setores da direita e sebastianistas de esquerda deram-se as mãos, desavergonhadamente, para atacar as detenções preventivas decretadas por Moro. Alegaram que elas ferem o Estado de Direito, que a prisão de Cunha não passaria de pretexto para prender Lula, que a Lava Jato teria criado a imagem da “corrupção sistêmica” só para justificar o arbítrio da república de Curitiba e “criminalizar o PT”. Cunha seria mais uma vítima desse procedimento judicial que fere a justiça, abusa da autoridade e desrespeita direitos.

Moro respondeu quase de imediato. Em palestra feita em Curitiba para desembargadores e juízes do Paraná, reiterou que a “aplicação vigorosa da lei” é o único meio de conter casos de “corrupção sistêmica”. As detenções cautelares seriam indispensáveis, até para deixar estabelecido que “processos não podem ser um faz de conta”. E explicou: “Jamais e em qualquer momento se defendeu qualquer solução extravagante da lei na decretação das prisões preventivas”. Seria preciso manter viva a “fé das pessoas para que a democracia funcione”, ou seja, impedir que se perca a “fé maior, de que a lei vale para todos”.

Evidenciou-se assim que o juiz sabe que a pressão sobre ele continuará a crescer. A coisa toda, no fundo, pode ser vista de forma mais simples.

Quando gente de direita e de esquerda se une para atacar um juiz, é porque há algo de muito errado no xadrez político. A causa, no mínimo, torna-se suspeita de antemão, especialmente quando estruturada para proteger pessoas que estão a ser investigadas há tempo, com provas que se superpõem e se acumulam.

Um juiz tende a ter atrás de si todo o sistema da Justiça: outros juízes, promotores, procuradores, tribunais, leis, jurisprudências, ritos consagrados, policiais federais. Moro não é, evidentemente, uma unanimidade entre seus pares e há muito conflito entre os órgãos e os aparatos de investigação e penalização. Mas, de algum modo, atacar hoje um juiz como ele pode significar um ataque ao conjunto do sistema.

Afinal, tudo parece indicar que a “corrupção sistêmica” está aí e atingiu níveis graves, que precisam ser contidos não só por uma questão de justiça, mas também por uma questão operacional: o sistema enfartará se não for “purificado” e esvaziado de trambiques e sujeira. Se é assim, em maior ou menor grau, Moro tem razão quando fala que “a condição necessária para superar a corrupção sistêmica é o funcionamento da Justiça”. Não haveria por que propor alguma espécie de “solução autoritária”, mas é preciso que se tenha vontade para que os processos cheguem a bom termo.

Ações judiciais na esfera política são acompanhadas com interesse pela sociedade, especialmente numa época de informações intensivas e protagonismo das opiniões. O cidadão assiste àquilo como parte de uma “limpeza” que ele gostaria de ver realizada. Muitas vezes joga o bebê fora junto com a água do banho: condena todos os políticos sem se esforçar para perceber que há diferenças entre eles, raciocina com o fígado e bate em todos como se fossem farinha do mesmo saco.

Se uma sociedade rejeita a corrupção sistêmica, o enriquecimento ilícito e os políticos “sujos”, com seus empresários a tiracolo, então não será o ataque a um juiz que vai convencê-la do contrário. Tal ataque, porém, se bem-sucedido, poderá fazer com que ela não se mobilize.

Até prova em contrário, se a sociedade assim quiser e souber se manifestar, Moro seguirá em frente, contra o sistema político que deseja seu silêncio, contra o governo e a oposição, contra o histrionismo da direita e as lágrimas de crocodilo da esquerda.

*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Luiz Werneck Vianna: De quando é bom ter uma pinguela segura

Agora não resta solução senão a de atravessar, pé ante pé, essa estreita que se tem à frente...

Para um observador desavisado, inexperiente de como aqui se vivem as coisas da política, diante do cenário que aí está, nada de estapafúrdio que se lhe dê na telha a ideia de estarmos na iminência de uma revolução.

Nas salas de aula das universidades os estudantes exibem adesivos estampando um “fora Temer”, professores das escolas de ensino médio cumprimentam seus alunos com o mesmo bordão, artistas e cantores populares não começam seus espetáculos sem ele, também presente nas salas de cinema e nos teatros. Uma ex-presidente da República que teve seu mandato cassado, num trâmite que passou pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, que decretou o seu impeachment, em julgamento presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, participa de comícios eleitorais de candidatos às eleições municipais, quando se declara vítima de um golpe, todos são sinais que levam nosso observador a ruminar suas impressões.

Contudo se ele resolver testá-las, levantando a vista para a sociedade inteira, logo reconhecerá o despropósito da sua fabulação. No Congresso, em suas duas Casas, o governo detém folgada maioria, couraça sem a qual não há Executivo que se mantenha, fato ilustrado pela nossa experiência, contundentemente confirmada por recentes episódios. Nas chamadas classes fundamentais, fora a agitação de sempre que lhes é própria, não se percebem outras movimentações que não sejam as da defesa de seus interesses e direitos. No mundo agrário, tradicional calcanhar de Aquiles da política brasileira, sopram os mesmos ventos.

Faltaria, ainda, consultar o que se passa nas eleições municipais, termômetro confiável para o registro dos sentimentos da população, e nos quartéis, cuja importância na tradição republicana brasileira dispensa comentários. Nestes últimos reina, há tempos, a reverência ao culto constitucional e ao exercício dos seus papéis profissionais; nas eleições, que transcorrem em clima morno, se valem as pesquisas – e tudo indica que valem –, as candidaturas que se deixaram embair pelo bordão “fora Temer”, principalmente nas grandes capitais, estão longe de obter votações que as levem à vitória. E, como sempre entre nós, não há melhor detergente em horas de crise política do que um processo eleitoral.

Feito esse balanço, nosso observador admite que se equivocou no diagnóstico. Mas se não é de revolução, do que se trata, que bicho é esse que nos aturde com sua presença? A frase é velha, mas nem por isso perde validade: o passado não mais ilumina o futuro, que ainda não começou a nascer. A hora é de transição, de lusco-fusco, não é mais noite e o dia tarda a aparecer, mas a sociedade se inquieta e começa despertar sem saber o que a espera em meio às ruínas que sobraram dos partidos e, em geral, das nossas instituições políticas.

Ela mudou em meio às poderosas transformações demográficas, sociais e ocupacionais que desfiguraram a paisagem reinante em meados do século passado. Encontramo-nos em terra nova, como se estrangeiros a ela, agarrados a um passado que nos foi familiar, com as relações entre gerações, entre gêneros, sobretudo entre as classes sociais e sistema de crenças girando em gonzos fora do nosso controle e da nossa imediata percepção. A sociedade modernizou-se por cima, sujeita a experimentos saídos das pranchetas de uma tecnocracia ilustrada, impostos a ferro e fogo – exemplo mais recente, o da colonização da Amazônia.

Entre nós, a obra dessa modernização persistiu por décadas, ora por vias duramente repressivas, como no Estado Novo de Vargas e no regime militar, ora de forma doce, como nos governos de Juscelino – que criou no centro geográfico do Brasil, nos ermos do Cerrado, uma nova capital para o País – e nos de Lula e Dilma.

Fora de dúvidas que tais esforços em favor da aceleração da modernização foram bem-sucedidos, em que pesem os altos custos políticos e sociais envolvidos, não só pelo aprofundamento das desigualdades já existentes, como pela condenação da sociedade a um estatuto de minoridade sobre a qual deveria incidir a ação modernizadora do Estado. Não à toa as lutas pela democratização do País trouxeram consigo a denúncia dessa modelagem, filha de nossa longa tradição de autoritarismo político, do que foi exemplar a publicação de São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza, sob a iniciativa do cardeal Paulo Evaristo Arns, obra coordenada por Lucio Kovarick e Vinicius Caldeira Brant.

Essa nova agenda, nos anos 1980, encontrou no PT uma de suas mais importantes vocalizações. Com efeito, dele vieram críticas contundentes ao nacional-desenvolvimentismo e à cultura política que enlaçava a sociedade civil ao Estado e às suas agências, como no caso do sindicalismo, objeto de feroz crítica das emergentes lideranças sindicais dos metalúrgicos do ABC, Lula à frente, como seu principal porta-voz. O PT nasceu e cresceu em nome de uma representação da sociedade civil que aspirava por autonomia diante da onipotência de um Estado que fazia dela base passiva para sua manipulação.

Como se sabe, esse partido, por fas ou nefas, se converteu às práticas que combatia; e levou-as à exaustão depois de um curto período de fastígio no seu uso, culminando no episódio melancólico do impeachment do mandato presidencial de Dilma Rousseff sob a acusação de ter atentado contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja inspiração oculta, ao impor limites ao decisionismo do Executivo, consistiu precisamente em interditar caminhos ao processo de modernização autoritária vigente por décadas no País.

Agora, não resta outra solução que não a de atravessar, pé ante pé, a pinguela estreita que se tem à frente, de que falou em entrevista o ex-presidente Fernando Henrique, travessia perigosa que, para ser segura, está a exigir outra bibliografia e uma imaginação bem diversa da que nos trouxe até aqui.

Luiz Werneck Vianna: Sociólogo, PUC-RJ


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Luiz Werneck Vianna: Levantar a poeira e dar volta por cima

O ciclo petista é uma página virada e o impeachment não abre as portas do inferno

Foi bonita a festa, varreu para longe o azedume que nos doía na alma. Pena que logo terminou, mas não dá para afastar da memória a multidão enlevada no ato de ocupação popular do Boulevard Olímpico, as nossas vitórias esportivas, poucas, mas boas, inclusive no Maracanã da Copa perdida em 1950, e até o surpreendente êxito da organização de um evento tão complexo como a Olimpíada. As cerimônias de abertura e de encerramento dos jogos, ambas belíssimas e de pungente simplicidade, souberam narrar o enredo da nossa cultura e da nossa original civilização, tornando patente que 500 anos de História não foram perdidos, como sustenta essa historiografia de butique em moda, e que contamos com uma plataforma segura para seguirmos em frente.

O caminho à frente, ninguém duvida, não será fácil. Processos de impeachment presidenciais são doloridos e deixam marcas, e este aí promete não ser diferente. Venha o que vier, a experiência vivida sob o ciclo petista, especialmente na condução da política e da economia sob o governo Dilma, é uma página virada na nossa vida republicana. O nacionalismo autárquico, o decisionismo sem freios do Poder Executivo, o capitalismo de Estado com sua perversa indistinção entre as esferas do público e do privado, orevival do terceiro-mundismo demonstraram-se práticas desastrosas cujos efeitos são sentidos por todos, sobretudo pelos mais vulneráveis.

De seguro, temos em mãos uma identidade cultural, tal como a celebramos nas festas olímpicas, e uma arquitetura institucional resistente às adversidades, cuja resiliência tem sido comprovada em meio ao furacão a que fomos expostos. Faltam-nos os partidos e um rumo. Encontrá-los demanda tempo por que diante das ruínas que sobraram da Operação Lava Jato – e não só por ela – não há muito que salvar.

O PT, maior partido da esquerda, logo que se fez governo abandonou a vocação que o trouxe ao mundo, convertendo-se num partido de Estado com todos os vícios inerentes a formações partidárias desse tipo; o PSDB, por sua vez, findos os anos de fastígio dos seus longos anos de governo, acomodou-se aos louros obtidos com a execução bem-sucedida do Plano Real e se reduziu a um partido de quadros sem raízes na vida popular. O PMDB, ao esgotar a agenda das lutas pela redemocratização do País, perverte-se numa agremiação a reunir caciques regionais, com frequência originários de antigas oligarquias, sem alma e luz própria, estrangeiro aos temas emergentes numa sociedade em intenso processo de mutação. Os demais, ancilares, apenas vêm contando para a composição de coalizões governamentais, sem âncoras sociais e de concepções do mundo que lhes prometam melhor destino.

Quanto aos rumos, o horizonte é igualmente sombrio. O anacronismo em que se deixou enlear o pensamento da esquerda, ou embalada pelas promessas do pragmatismo reinante – do qual, reconheça-se, colheu frutos em curto período – ou porque fez ouvidos moucos aos processos que fizeram o mundo passar a girar em outros gonzos a partir da aceleração do chamado fenômeno da globalização e suas profundas repercussões societais e ambientais, fixou-a no tempo em que vigia o primado da categoria Estado-nação.

Sob o governo Dilma Rousseff, mais que no de Lula, essa categoria exerceu papel de centralidade na estratégia governamental, confundindo-se as tendências inexoráveis favorecedoras da mundialização da economia com neoliberalismo. A estatolatria, malsinada marca de origem da nossa formação, tornou-se, então, a referência da política, perdida de vista a enérgica emergência da sociedade civil desde as lutas pela democratização do País e que se atualizou com as manifestações de junho de 2013.

Essa esquerda dá as costas ao Marx que reconhecia na mundialização da economia o momento propício à ultrapassagem do capitalismo; ao Gramsci que bem antes de Habermas já reconhecia o imperativo de se preparar a transição para uma ordem cosmopolita; para não falar da moderna teoria social, Habermas à frente, como nas obras de A. Giddens e U. Beck, entre outros, que têm na auto-organização do social a pedra de toque de suas utopias realistas, oxímoro que abriga, na cena contemporânea, os ideais de igual-liberdade.

Regrediu-se ao universo mental dos anos 1950, alçando-se o populismo centrado no conceito de Estado-nação a uma política de emancipação social de um povo explorado. Não se temeu o exagero, sustentando alguns que o populismo latino-americano, mais do que um fenômeno da periferia do mundo, deveria universalizar-se no Ocidente desenvolvido. A dominação carismática escapou do baú das piores décadas do século passado para se tornar fonte de legitimação do poder de uma personalidade tida como providencial. E isso num momento em que aqui e em boa parte do mundo a sociedade reclama o direito de participação na tomada de decisões na esfera pública.

Na modalidade do populismo praticado pelo PT, longe de ser de mobilização, como noutras experiências vizinhas à nossa que conviveram mal com o sistema da representação política, ele se revestiu, mascarado pelo reconhecido carisma de Lula, de um caráter tecnocrático, insulando-se a tomada de decisões nas agências e nos aparelhos estatais, a serem respaldadas no Poder Legislativo, pelo bizarro presidencialismo de coalizão então adotado. Esse modelo não era fácil de ser seguido, particularmente por quem não detinha carisma e era refratário à vida parlamentar, caso da presidente Dilma, cuja opção de governo foi extremar à outranceo decisionismo do Executivo, com o que selou seu destino político no processo de impeachment ora concluído.

O impeachment não nos abre as portas do inferno, como desejam os que nada entenderam do que se passou. Mas eles são, felizmente, minoria e não terão como resistir ao poder de reflexão da sociedade, que apenas começou, sobre os infaustos acontecimentos que nos trouxeram a ele.


Luiz Werneck Vianna: Sociólogo, PUC-RJ

Fonte: Estadão


Brasilio Sallum Jr.*: Collor e Dilma – abuso de poder e voluntarismo

Confirmando-se em agosto o impedimento de Dilma Rousseff, o Brasil terá experimentado dois impeachments em 28 anos da democracia. O número é elevado: dois em sete períodos de governo.

Mas não há que ver nisso sinal de fragilidade do regime de 1988. Ao contrário, nos dois casos o Congresso interrompeu o mandato de presidentes que abusaram do poder que lhes foi concedido pelas urnas. No caso de Fernando Collor de Mello o estopim foi a acusação de corrupção, de ter recebido recursos das operações suspeitas de PC Farias, tesoureiro de sua campanha. Este teria usado seu vínculo com o presidente para tomar dinheiro de empresas que dependiam de decisões do governo. No caso de Dilma Rousseff, as “pedaladas” de que é acusada constituíram abuso do poder que o Executivo tem sobre os bancos públicos, obrigando-os a conceder à União empréstimos disfarçados para gastar mais do podia. Assim, de uma ou de outra forma, os dois abusaram do poder, cometendo crime de responsabilidade. A frequência do impeachment é, pois, sinal de força da democracia brasileira. Ela tem sabido reagir aos chefes de Estado que ultrapassam os limites da autoridade recebida pela eleição.

O impeachment de Fernando Collor e o que atingirá Dilma Rousseff não decorreram, porém, apenas dos abusos mencionados. As crises que atingiram seus governos, embora bem diversas, resultaram em parte do seu extremovoluntarismo. O abuso de poder foi apenas uma das manifestações desse voluntarismo, normalmente obediente à ordem legal. Claro que os voluntarismos dos dois tiveram orientações políticas muito diversas: Collor orientou-se pela crença no valor do mercado e Dilma, pela crença nas virtudes da intervenção estatal.

O voluntarismo de Collor expressou-se, por exemplo, na edição de mais de uma centena de medidas provisórias no seu primeiro ano de governo e na tentativa, posterior, de forçar reformas liberalizantes que exigiam mudanças na Constituição e, portanto, grande maioria parlamentar, quando mal conseguia maioria simples no Congresso. Assim, o presidente buscou, com sucesso variável, impor sua vontade graças ao uso intenso dos poderes do Executivo, mas desconhecendo ou menosprezando os interesses políticos sediados nos partidos e no Congresso. Atuava como se os votos recebidos na eleição de 1989 lhe tivessem dado superior legitimidade em relação aos demais Poderes de Estado. Isso até o início de 1992, quando foi obrigado a recuar e tomar em conta a força e a legitimidade dos demais Poderes. Mas não o fez na medida necessária para retomar o controle da situação.

O voluntarismo de Dilma está mais à flor da nossa memória. Todos se lembram da dádiva maravilhosa de 20% na conta da luz, anunciada em setembro de 2012 juntamente com a renovação antecipada de todas as concessões no setor elétrico. A vontade presidencial foi feita, a despeito dos protestos das empresas do segmento de eletricidade e da desorganização do setor, mas teve de ser paga depois pelo consumidor, cujos gastos em 2015 aumentaram em cerca de 50% para compensar a benesse antes recebida. Caso similar foi a contenção dos preços dos combustíveis abaixo do nível internacional desde 2007 e, especialmente, a partir do início de 2011. Em nome do controle da inflação, esse voluntarismo presidencial trouxe prejuízos elevadíssimos à Petrobrás (US$ 50 bilhões até o final de 2014) e ao setor produtor de álcool combustível. Esses e outros casos de imposição da vontade se expressaram em formas de intervenção estatal que fizeram pouco da lógica própria dos mercados, incluídos aqueles em que empresas estatais tinham e têm parte relevante.

Contudo talvez tenham sido as decisões políticas que Dilma Rousseff tomou depois da vitória eleitoral de 2014 que mais corroeram sua capacidade de governar. A mais relevante foi a decisão de adotar o “ajuste fiscal” como diretriz da política econômica do novo governo e convidar um banqueiro para conduzi-la, desdizendo tudo o que afirmara na campanha eleitoral. Além de contrariar o seu partido, que vivia na ilusão de que gasto é sempre igual a desenvolvimento, transformou a tristeza da derrota oposicionista em revolta contra o estelionato eleitoral sofrido. A mentira indiretamente revelada e reconhecida reduziu, antes mesmo da posse, a legitimidade não da democracia, mas da presidente recém-eleita.

Na sequência, ela escolheu uma equipe ministerial que a afastou mais ainda da corrente majoritária do PT. E decidiu disputar, com candidato do PT, o comando da Câmara dos Deputados (para o qual se vinha preparando o deputado Eduardo Cunha), corroendo a já precária aliança com o PMDB, que lhe dera o vice, votos e um bom naco de tempo no rádio e na televisão. A derrota fragorosa nessa disputa evidencia, mais que tudo, o voluntarismo político da presidente. Ela se inclinou quase sempre a tomar pouco em conta os interesses de partidos e lideranças com os quais interagia, como se eles tivessem de curvar-se à vontade presidencial por terem menos legitimidade. É verdade que o sistema presidencial brasileiro dá ao chefe de Estado um poder muito grande. Mas o impeachment de Collor demonstrou que para governar o presidente precisa manter liderança sobre uma coalizão partidária majoritária. Se não consegue fazê-lo, perde condições de bem exercer o cargo.

Seguramente abuso de poder e voluntarismo presidenciais não explicam, por si sós, a crise política atual. Mas sublinham que a democracia não exige apenas eleições; demanda também responsabilidade no exercício do poder, tanto pelo respeito aos limites da lei como por levar em consideração os interesses legítimos dos demais atores. Infelizmente, Collor e Dilma, não se mostraram capazes disso.


* BRASILIO SALLUM JR. É PROFESSOR DE SOCIOLOGIA DA USP, AUTOR DE ‘O IMPEACHMENT DE FERNANDO COLLOR – SOCIOLOGIA DE UMA CRISE’

Fonte: Estadão