Escravidão

Cristovam Buarque: Calotes seculares

Não há como pagar dívida com descendentes dos escravos arrancados da África, explorados e maltratados

Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles

É lamentável que sucessivos governos tenham acumulado dívidas financeiras que só serão pagas com atraso de anos e de década, graças aos precatórios; ainda mais lastimável que as dívidas sociais contraídas por todos os governos brasileiros não serão pagas, porque não podem ser transformadas em precatórios. Por causa da irresponsabilidade, ineficiência e descaso de governos, os brasileiros de hoje, pobres ou ricos, vão ter de pagar R$80 bilhões a brasileiros que foram ludibriados pelos governos anteriores. Para pagar pela irresponsabilidade passada dos governos, vão ter de desviar este montante de outras finalidades, que o país precisa para seu desenvolvimento futuro, e que as famílias precisam para a sobrevivência presente. É uma dívida de todos os brasileiros com estes brasileiros credores.

Com exceção dos advogados que, pelo trabalho competente e a paciência, conseguiram o julgamento destas dívidas, não é fácil saber quem são e quanto receberão estes credores depois de anos ou décadas de luta jurídica para receber o que lhes era devido, por culpa das irresponsabilidades de governos passados. Mas, sabe-se perfeitamente quem são os outros brasileiros vítimas de sucessivos governos e que ficarão sem receber as dívidas que o Brasil tem com eles. Não receberão, porque o precatório é uma dívida financeira, julgada com base em leis, enquanto que a dívida social não é julgada, porque não há leis que protejam os credores sociais. O próprio conceito de credores sociais não é reconhecido pelos juristas, economistas, políticos: é uma expressão retórica, moral, não jurídica.

Não há como pagar dívida com descendentes dos escravos arrancados da África, explorados e maltratados ao longo de toda a vida; nem com os 800 mil que foram libertos em 1888 sem qualquer indenização pelos anos de cativeiro e exploração que sofreram. Ficaram sem direito nem ao menos a um pedaço de terra e uma banca escolar. Seus descendentes não têm precatórios, nem um pedido de desculpas; nem mesmo um monumento que permita lembrar o sofrimento deles.

Os 12 milhões de adultos analfabetos – porque sucessivos governos foram descuidados, abandonando-os do direito que tinham a uma escola no momento certo – não receberão indenização pela tortura que sofrem todos os dias por serem incapazes de ler. O direito que têm é moral, não legal; por isto não recebem precatórios, nem mesmo sob a forma de escola com qualidade. Os democratas que lutaram contra a ditadura receberam merecidas indenizações pelo exílio, perda de emprego, tortura, prisão, porque as dívidas contra eles foram legalizadas, julgadas e se transformaram em precatórios. Mas as crianças sem escola, ou em falsas escolas, com seus futuros condenados ao desemprego e à pobreza não serão indenizados.

Como também não serão os 100 milhões sem esgoto, os 35 milhões sem água encanada. Os desempregados por causa de erros e “pedaladas” por governos anteriores ficarão sem precatórios apesar da dívida que o Brasil tem para com eles; os famintos e os moradores nas ruas tampouco serão indenizados. Os familiares dos doentes e mortos devido à estúpida inconsequência de um governo que se negou a aplicar vacinas no momento certo, também não serão indenizados, enquanto não houver uma lei que os beneficie, advogados que os assessore e juizes que reconheça seus direitos. Quando isto ocorrer, muitos não serão beneficiados por falta de endereço. Os precatórios não chegam para quem mora nômade, na rua. Não haverá precatórios para os que não podem contratar advogados que transformem dívida em precatórios.

Felizmente programas como Bolsa Escola, Bolsa Família e agora Auxílio Brasil, tentam pagar parte da dívida com os pobres dos pobres, pagando-lhes R$400 por família por mês, R$ 13 por dia por família, menos de R$ 3 per capita, em famílias com cinco pessoas. Mas, para dar este subsídio sem tirar dinheiro dos privilégios, das mordomias, das rachadinhas, da corrupção, da ostentação, dos subsídios fiscais aos ricos, do fundo partidário, das emendas parlamentares, o governo e o Congresso decidem financiar este auxílio gastando mais do que o Tesouro Nacional arrecada, com isto forçando o povo a pagar o que recebe com a redução do salário real depredado pela inflação. Para pagar os precatórios e os auxílios tiram dinheiro dos próprios beneficiados, ao pagar-lhes com moeda desvalorizada pela inflação, uma espécie de cheque com meio fundo.

O trabalhador receberá seu salário valendo menos do que o valor escrito na cédula ou no contracheque, e esta dívida que se acumulará ao longo de anos não provocará precatórios, porque será um calote fiscal sistemático, diário, constante e aceito, tanto quanto o calote social ao longo dos séculos.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/calotes-seculares-por-cristovam-buarque


Bolívar Lamounier: Dois degraus a mais na escala do horror

A sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar

Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo

Não consigo conceber a humanidade convivendo com um país que submete as mulheres a rigorosa escravidão, impondo-lhes um tratamento atrocíssimo do nascimento à morte. Mas de agora em diante, com o Afeganistão dominado pelo Taleban e disputado pelo Estado Islâmico (EI), a realidade será essa.

O erro político do governo norte-americano foi deveras impressionante, pois não só deixou ao deus-dará um aliado que dele dependeu durante 20 anos, como saiu do país atabalhoadamente, entregando de mão beijada ao radicalismo islâmico grande quantidade de armas. É lógico que o Afeganistão, com sua população de apenas 39 milhões e sua enorme pobreza, não tem, sozinho, condições de se abalançar a uma aventura bélica. Mas aí, paradoxalmente, é que reside o perigo: uma teocracia totalitária, de inspiração claramente fundamentalista, poderá superestimar suas forças, agindo como uma faísca, tentando atiçar conflitos entre outros países, ou se engajando em alguma alucinação terrorista como a empreendida por Bin Laden 20 anos atrás. Nesse quadro, o Irã também precisa ser levado em conta, não obstante ser o seu poder também limitado.

Entendam-me: estou expondo uma hipótese e nem de longe pretendo generalizá-la para todo o universo islâmico. O islamismo não é um conjunto homogêneo. Compreende cerca de 60 países e a maioria não se encaixa no modelo de regimes totalitários. A vertente fundamentalista a que pertencem o Taleban e o EI, essa, sim, é capaz de perpetrar todo tipo de crueldade contra a sociedade e claramente propensa à expansão geográfica. O Estado Islâmico consegue ser muito pior que o Taleban. Destroçado na Síria, transferiu-se para o Afeganistão. A guerra entre ambos é um cenário altamente provável. Com a sobriedade que o caracterizava, o grande historiador Otto Hintze definiu movimentos como o EI como aqueles cujo objetivo último é se tornarem “impérios universais”. Em linguagem caseira, são culturas ou religiões que trazem em seu DNA um afã de ocupar e dominar militarmente outros países, a começar pela unificação de todo o mundo islâmico sob um só governo. Seguindo essa linha de raciocínio, não descabe afirmar que o horizonte do Taleban seja estender seu modelo de teocracia totalitária até o limite do possível.

O Ocidente demorou a perceber o risco da ascensão de Hitler na Alemanha, mas cumpriu, ao fim e ao cabo, junto com a URSS, seu dever de destruir a máquina de guerra responsável por todo tipo de atrocidades, culminando no frio extermínio de judeus, exemplificado por Auschwitz. Mas as lições da História nem sempre são assimiladas na devida proporção. Finda a 2.ª Guerra Mundial, o mundo acomodou-se à precária paz a que a vitória militar deu ensejo, aceitando-a como relativamente “normal”. Aceitando-a sem atentar para o fato de que ela continuava a se basear numa gigantesca desumanidade – com menos conflitos armados, é certo –, paz que não mantém sequer uma pálida semelhança com a paz perpétua cogitada por toda uma linhagem de filósofos utópicos. No mundo atual, essa desumanidade está corporificada em quase 8 bilhões de seres humanos, a maioria em estado famélico. O desafio de construir uma paz segura, assentada em fatores de realidade é, pois, simplesmente hercúleo. Mas a humanidade não tem como abrir mão sequer desse precário ideal. Os países democráticos e todos os outros que preferem a ordem à desordem e a civilização à barbárie têm o dever de colaborar na construção de uma paz manejável e duradoura, que assegure a cada nação a conservação de sua identidade e a possibilidade de prosperar e se beneficiar comercialmente de suas complementaridades com o resto do mundo.

Como sonhar com tal objetivo, mesmo na escala modesta a que me refiro, num mundo onde bilhões de seres humanos mal e parcamente conseguem resistir a seu miserável cotidiano, mundo no qual o terrorismo e o crime organizado mudaram de escala, mercê do avanço tecnológico, internacionalizando-se e beneficiando-se do efeito surpresa em escala antes impensável?

Empreitada hercúlea, sem dúvida. Muito maior que a visualizada pelos governos ignorantes e corruptos que não cessam de se reproduzir em nossa triste América Latina.

As explosões da última quinta-feira (26/8) no aeroporto de Cabul, provavelmente organizadas pelo Estado Islâmico, que causaram mais de 180 mortes, dão bem a medida do horror a que me refiro. Após o malfadado episódio da tomada da capital pelo Taleban, salta aos olhos que o curso dos acontecimentos será decisivamente determinado pelas grandes potências. Entre estas se inclui a China, cujo regime interno é declaradamente totalitário, mas precisa comerciar com o mundo inteiro, em nada lhe interessando, portanto, um sistema internacional conturbado. Com a Rússia, que nunca se desvestiu sinceramente de seu passado autocrático, a situação é mais ou menos a mesma.

Em resumo, a sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,dois-degraus-a-mais-na-escala-do-horror,70003823602


Laurentino Gomes: 'Escravidão é assunto mais importante da história do país'

Sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, jornalista e escritor fala sobre racismo, desigualdade social e Semana de Arte Moderna

João Rodrigues, da equipe da FAP

O Bicentenário da Independência do Brasil ocorre em 2022. Neste contexto histórico de celebrações, a escravidão – marca perversa e cruel da história brasileira – merece ser analisada de forma ampla, principalmente pelos reflexos que ainda hoje causam em nossa sociedade, sobretudo pela normalização do preconceito, da violência e da desigualdade social.

Para analisar esse importante tema da história nacional, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira desta semana conversa com Laurentino Gomes, escritor, jornalista, sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura. Laurentino acaba de lançar Escravidão - volume II, o segundo livro da premiada série em que faz um profundo relato dessa triste página da história brasileira.

Ouça o podcast!



O episódio conta com áudios do canal Toda Matéria, canção Canto das Três Raças, de Clara Nunes, programa Roda Viva, Superinteressante e CNN Brasil.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.




Carta Capital: ‘Quartinho de empregada é indicador de que a escravidão continua’, diz Laurentino

Para o autor da trilogia ‘Escravidão’, o Brasil não enfrentou e nem resolveu o legado desse período

Alissom Matos, Carta Capital

Às vésperas do lançamento do segundo volume da trilogia Escravidão, Laurentino Gomes vê o Brasil distante de ser uma democracia racial. “O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos”, diz. “Nunca chegamos e estamos muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos.”

O livro concentra-se no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no País. Gomes classifica o período como o ápice do comércio de seres humanos no continente americano. “Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do País.”

O autor faz paralelos entre esse período e o Brasil contemporâneo. “Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.” No lançamento do primeiro volume, em 2019, ganhava os jornais o caso do garoto chicoteado por seguranças de um supermercado da periferia paulistana. A finalização deste segundo ocorreu em meio à morte da jovem Kathlen Romeu, grávida, durante uma operação policial no Rio.

Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes.

Em conversa com CartaCapital, Gomes defende que o Brasil passe agora por essa “segunda abolição “. “O famoso quartinho de empregada é um indicador de que a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciária.

A pedido do autor, a entrevista foi feita por e-mail. Confira os destaques a seguir.

Carta Capital: Da herança escravocrata, o que ficou de mais trágico para o Brasil?
LG:
 A violência e os abusos decorrentes do preconceito racial se repetem com frequência assustadora. Quando lancei o primeiro volume da trilogia, em setembro de 2019, por exemplo, o noticiário era dominado por um episódio grotesco, em que um garoto negro acusado de furtar uma barra de chocolate tinha sido surrado com chicote nas dependências de um supermercado.

Chicotear pessoas negras foi uma das grandes especialidades do Brasil escravista ao longo de mais de 350 anos. Havia manuais que detalhavam como essa punição deveria ser aplicada, de preferência em público, para servir de exemplo aos demais cativos, e em doses bem medidas, para não incapacitar o escravo para o trabalho.

Agora, passados dois anos, no lançamento do segundo volume, outro escândalo estava na pauta dos brasileiros: a história de uma mulher jovem, designer e modelo, grávida de quatro meses, morta por uma bala “perdida”, dispara a esmo em um confronto entre a política e o crime organizada na guerra civil em andamento no Rio de Janeiro. Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.

Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista do que uma concessão

O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes. Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos.

Estatisticamente, a pobreza no Brasil é sinônimo de negritude. No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças.

CC: Você disse, certa vez, que a escravidão é uma tragédia ainda em andamento.
LG:
 A escravidão acabou oficialmente no Brasil com a Lei Áurea, mas os seus efeitos persistem ainda hoje. Portanto, está longe de ser apenas um assunto museu ou livro de história, algo congelado e acabado no passado. É uma realidade presente assustadora no Brasil deste início de século XXI.

Alguns dos grandes abolicionistas do século XIX, como o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Luiz Gama, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez.

A segunda abolição preconizada por Nabuco, Rebouças e Gama é um dos desafios a ser enfrentado por esta e pelas próximas gerações de brasileiros. O famoso quartinho de empregada é um indicador de a escravidão continua a existir entre nós sob formas sutis e disfarçadas, que inclui o preconceito racial e regime de trabalho que, em muitos aspectos, se assemelham ao das antigas senzalas. Da mesma forma, as nossas prisões e penitenciárias em muito se assemelham hoje aos porões dos navios negreiros de antigamente.

CC: A escravidão ajuda a explicar a desigualdade regional brasileira?
LG: 
A escravidão explica quase todas as desigualdades brasileiras. A prosperidade das regiões sul e sudeste foi construída, em grande parte, pela chegada de imigrantes estrangeiros, europeus e católicos em sua maioria, a partir da segunda metade do século XIX. Era parte do projeto de branqueamento da população discutido e implementado durante o Segundo Reinado. Na época, se dizia que o sangue africano havia “corrompido” a índole brasileira e que seria necessário oxigenar a demografia nacional pelo estímulo à imigração europeia, branca e católica. O governo subsidiava passagens, alojamentos e outros benefícios para os recém-chegados. Meus bisavós italianos chegaram ao Brasil, em 1895, nessa condição.

Em outras regiões do Brasil, como o Norte e o Nordeste, a imigração foi inexpressiva. Salvador é hoje a maior cidade negra do mundo fora da África. Ali, as desigualdades são assustadoras. Ao olhar o passado, conseguimos ter uma compreensão melhor do presente. Isso inclui, além das desigualdades sociais e regionais, a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influência, o contrabando e a sonegação de impostos, o toma-lá-dá-cá que tanto caracteriza as relações de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. Tudo isso era muito forte já na época do Brasil colonial e escravista. Por isso, decidi fazer um capítulo à parte sobre esse tema.

O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide. Seu funcionamento dependia de suborno, extorsão, malversação dos recursos públicos, contrabando, sonegação de impostos, clientelismo e nepotismo, entre outras contravenções. Como explico na abertura desse capítulo, obviamente havia gente honesta no Brasil colonial. Mas o exemplo que chegava de cima não contribuía para fixar essa imagem. Dois importantes governadores de Minas Gerais na fase inicial da corrida do ouro e dos diamantes voltaram para Lisboa muito mais ricos do que permitiam seus rendimentos. As artimanhas dos traficantes de escravos para burlar o fisco e as leis eram inúmeras e uma mais criativa do que a outra. O desvio de ouro, pedras preciosas e outras riquezas dominavam boa parte do comércio colonial.

CC: O Brasil foi tratado, por muito tempo, como uma “democracia racial “. Nós já estivemos perto disso?
LG: 
Nunca chegamos e estamos ainda muito longe de chegar. Se é que um dia chegaremos. Incapaz de enfrentar o legado da escravidão, o Brasil sempre procurou disfarçá-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. O mito da suposta democracia racial é uma balela desmentida pelos fatos cotidianos. A escravidão é, por natureza, um processo violento, repleto de dor e sofrimento, uma experiência que se perpetua ainda hoje na forma de racismo, pobreza e desigualdade social. A vida no cativeiro no Brasil foi tão cruel e violenta como em qualquer outro território escravista da América. A quebra da identidade e dos direitos dos escravizados era toda baseada na violência. Na África e na chegada às Américas, as pessoas eram capturadas, estocadas, marcadas a ferro quente e leiloadas como se fossem mercadorias.

Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os escravizados não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante

Sua nova existência dependeria por completo do poder do seu dono. O simbolismo dessa nova identidade estaria nos rituais que em geral acompanhavam os processos de escravização, como marcas feitas a ferro quente no corpo do cativo, o uso de colares e pulseiras metálicas indicando quem eram seus donos, o batismo em nova religião, o aprendizado de uma nova língua e de uma nova maneira de se vestir e se comportar e, por fim, a atribuição de um novo nome.

Nas ilhas do Caribe, os ingleses diziam que esse era o momento de “temperar” [ seasoning , em inglês] o cativo, ou seja, mostrar a ele quem, de fato, mandava, quem era o dono e senhor do seu destino. Isso envolvia uma série de torturas, físicas e psicológicas, até que o escravo se “colocasse em seu lugar” – ou seja, o mesmo ocupado por animais domésticos e de trabalho. Segundo o padre jesuíta Manuel Ribeiro da Rocha, que foi missionário na Bahia em meados do século 18, durante essa etapa, muitos senhores de engenho do Recôncavo Baiano tinham o hábito deliberado de surrar os cativos. Era a primeira providência que tomavam depois da compra dos africanos.

CC: Há quem atribua essa ideia a obras como “Casa Grande & Senzala “, que contribuiu para a formação intelectual de muitas gerações.
LG: 
Gilberto Freyre ajudou a forjar a ideia de uma escravidão patriarcal no Brasil, na qual o negro aparece como alguém passivo e apático, bem adaptado ao mundo dos brancos e vivendo sob as ordens da casa senhorial, incapaz de reagir, protestar ou se rebelar. A tão falada democracia racial seria resultado desse sistema peculiar do escravismo brasileiro. Essa visão, felizmente, está superada. Novos estudos apontam os escravos como agentes de seu próprio destino, negociando espaços dentro da sociedade escravista, organizando irmandades religiosas, formando um sistema complexo de apadrinhamento, parentesco e alianças que muitas vezes incluíam participar de milícias ou bandos armados para defender os interesses do senhor contra os de um vizinho ou fazendeiro rival.

O sistema escravista português e brasileiro era corrupto e corrompido, dos alicerces até o topo da pirâmide
Pequenas faltas, fugas rápidas, corpo mole no trabalho, malfeito ou inacabado, fingir não dominar a língua ou as ordens, eram todas formas de resistência que não necessariamente incluíam o enfrentamento direto, como observou a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado. Os escravos lutavam por coisas concretas, como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos. O que nem sempre implicava em fugir, se rebelar ou pegar em armas. Ainda assim, eram atos de resistência.

CC: A solução para o País se tornar, de fato, uma democracia racial passa pelo quê?
LG:
 A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos entender e refletir sobre o que aconteceu. O Brasil, maior território escravista do hemisfério ocidental até meados do século XIX, nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. É uma prova do processo de apagamento da memória africana.

Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. O Brasil abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Abandonou também a própria memória da escravidão. Temos de enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrente do racismo no Brasil. Também por isso eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes.

CC: No primeiro livro, o senhor compara a escravidão no Brasil e nos EUA e diz que aqui se alforriava mais e a expectativa de vida dos escravos era menor. Por quê?
LG: 
Alguns fenômenos diferenciam o escravismo brasileiro. Um deles diz respeito ao nascimento de uma escravidão urbana, de serviços, de características muito diferentes daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar que ainda predominavam na região nordeste, nas ilhas do Caribe ou no sul dos Estados Unidos.

A escravidão urbana deu maior mobilidade aos escravos e gerou uma nova cultura afro-brasileira com profundas influências em todos os aspectos da vida colonial, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos. O trabalho escravo foi responsável pelo surgimento de dezenas de novas vilas e cidades no interior do Brasil. Arquitetos, mestres de obra, pintores, escultores e compositores negros ou mestiços, escravos e libertos, caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, construíram palácios e igrejas barrocas que ainda hoje deslumbram turistas e estudiosos do mundo inteiro em visita às cidades históricas mineiras.

Outro fenômeno característico da escravidão brasileira foram processos de alforria. Em Minas Gerais, o aumento da população negra e mestiça livre foi particularmente acelerado. A alta taxa de alforria é um traço que diferenciou o escravismo brasileiro de todos os demais no continente americano. Havia mais possibilidades de um escravo alcançar a liberdade no Brasil do que no sul dos Estados Unidos ou nas colônias europeias do Caribe.

Essas diferenças levaram muitos estudiosos a defender a ideia de uma escravidão mais branda, paternalista e relaxada no Brasil, que, por sua vez, teria resultado em um País com menos barreiras raciais, particularmente quando comparado aos Estados Unidos. É uma visão equivocada. Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência como em qualquer outro território escravista. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista dos escravos do que uma concessão dos escravizadores.

Os documentos revelam que o sistema sempre cobrava um alto preço pela liberdade. Para comprá-la, literalmente a dinheiro, era necessário trabalhar muitas horas para acumular poupança, contar com a solidariedade de padrinhos, parentes e amigos ou de instituições de apoio mútuo, como as irmandades religiosas. Às vezes, o valor cobrado pela alforria era muito superior ao que os donos tinham pago pelos cativos. Entre as condições impostas, estava continuar a prestar serviços no cativeiro enquanto o senhor ou a senhora fosse vivo.

CC: No segundo livro, o senhor se concentra entre 1700 e 1800, auge do tráfico negreiro no Atlântico. Por quê?
LG:
 O século XVIII representa o auge da escravidão e do comércio de seres humanos no continente americano, em particular no Brasil. Num intervalo de apenas cem anos, cerca de seis milhões de homens e mulheres ficaram arrancados de suas raízes africanas, marcados a ferro quente e transportados para o Novo Mundo acorrentados no porão dos navios negreiros. O Brasil sozinho recebeu dois milhões, um terço do total. O motor do escravismo nesse século foi a descoberta de ouro e diamantes no Brasil e a disseminação, em outras regiões da América, das lavouras de monocultura, como a do açúcar, do tabaco, do arroz e do algodão, todos de uso intensivo de mão-de-obra cativa.

Por volta de 1750, negros escravizados eram vistos numa sucessão ininterrupta de colônias europeias que se desdobravam do Canadá até o sul da Argentina e do Chile atuais. A desproporção entre brancos e negros era enorme. Na região do Caribe, ocupada por franceses, ingleses, holandeses, espanhóis e dinamarqueses, os negros constituíam mais de 90% da população. Naquela época, Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante.

Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais, especialmente nos três principais portos de entrada dos navios negreiros – Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes.

Ao término desse metódico ritual, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo e o vigor físico dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário. O cultivo de grandes lavouras e a busca por novas riquezas no Brasil e no restante da América produziu uma inflação nos preços dos africanos escravizados. A procura por mão-de-obra cativa disparou. Nada menos do que 85% das 35.000 viagens de navios negreiros para a América documentadas pelo banco de dados slavegoyages.org aconteceram depois de 1.700.

Na África, o impacto do tráfico negreiro foi enorme. A demanda cada vez maior por cativos e os preços crescentes pagos por eles desorganizou a economia do continente. Antigas atividades produtivas, como tecelagem, metalurgia, agricultura e pecuária, foram deixadas de lado sob a pressão do comércio escravista. Em lugar delas, instaurou-se um aumento crescente nas taxas de violência. Aliada aos traficantes, uma nova elite militar africana surgiu à frente de Estados predatórios que, apoiados com armas e recursos europeus, nasceram e se firmaram com o propósito de lucrar com a guerra contra seus vizinhos, vendidos como prisioneiros para capitães de navios negreiros.

CC: Qual Brasil o leitor encontrará neste segundo volume?
LG:
 Talvez o traço mais característico do Brasil do século XVIII tenha sido a banalidade da escravidão. Comprar e vender gente era um fato trivial da vida cotidiana, praticado por todos os brasileiros, sem questionamentos. Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos, uma vez que esse era o costume aceito por todos. Pessoas cativas almejavam a alforria, o que nem sempre era sinônimo de abolicionismo. Uma vez conquistada a liberdade legal, inúmeros ex-escravos se tornaram também donos de escravos. A banalidade da escravidão me levou a fazer a introdução do livro descrevendo um objeto hoje existente no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte. É uma balança de pesar de escravos, usada para definir o valor de seres humanos antes de leilões de praça pública, da mesma forma como, na época, se usavam balanças para pesar bois, porcos, galinhos, queijos, sacos de farinha de trigo, de feijão e de arroz.

Mas esse é também o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. Como explico na abertura de um dos capítulos desse volume da trilogia, os traços estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e costumes; na luta do dia-a-dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem e na arquitetura, cifradas na forma de símbolos e desenhos gravados nas paredes e fachadas das casas e casarões, nos altares e pinturas das igrejas, nos terreiros de umbanda e candomblé.

Começaram ou se consolidaram no século XVIII alguns fenômenos que marcariam profundamente a face do escravismo brasileiro. A escravidão urbana, de serviços, diferente daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar na região Nordeste, deu maior mobilidade aos cativos, acelerou os processos de alforria, ofereceu oportunidades às mulheres e gerou uma nova cultura em que hábitos de origem africana se misturaram a outros, de raiz europeia ou indígena. Isso incluiu a disseminação de festas, danças, rituais, irmandades e práticas religiosas que ainda hoje estão presentes no Brasil.

CC: De tudo apurado, o que mais te impactou?
LC:
 Eu me surpreendi muito ao constatar o quanto as contribuições africanas foram cruciais para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais no final do século XVII. Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está numa passagem do livro Cultura e Opulência do Brasil pelas suas drogas e minas, do padre jesuíta André João Antonil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século XVIII. Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da história do Brasil.

O tráfico negreiro era menos aleatório e irracional do que se imagina. Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os africanos escravizados que chegavam à América não eram uma massa informe de mão-de-obra cativa ignorante, selvagem, bárbara, despreparada para os desafios impostos pelas diferentes atividades econômicas desenvolvidas pelos europeus no Novo Mundo. Novos estudos têm demonstrado o oposto disso. Os africanos escravizados não eram apenas commodities , mercadorias como outras quaisquer, cujo valor e preço dependessem somente do vigor físico ou da força dos músculos definidos pelo sexo, pela idade e pelas condições de saúde. Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, os navios negreiros transportavam em seus porões conhecimentos e habilidades tecnológicas da África que seriam cruciais na ocupação europeia do continente americano. Uma dessas tecnologias era justamente a mineração de ouro e diamantes em Minas Gerais.

Outra surpresa durante as pesquisas está relacionada ao papel das mulheres no Brasil colonial. Mulheres negras foram protagonistas de inúmeras histórias de resiliência e superação que mudaram a paisagem escravista brasileira. Nessa condição agiram ativamente não apenas para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, mas também para transformar a sociedade em que viviam. Ocuparam cargos importantes na direção de irmandades religiosas, fundaram terreiros de candomblé, se elegeram “rainhas” de comunidade negras, lideraram quilombos, administraram fazendas, participaram da mineração de ouro e diamante. O estudo do papel da mulher no Brasil escravista é um dos temas mais fascinantes na disciplina de história. As mulheres desempenharam um papel fundamental na construção da sociedade negra e mestiça do Brasil, embora isso nem sempre seja devidamente reconhecido nos livros didáticos.

CC: E o terceiro volume, quando sai?
LG:
 O terceiro e último livro da trilogia, a ser lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos, o fim (pelo menos do ponto de vista formal e legal) da escravidão no século XIX e ao seu legado atualmente. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrade e Silva.

O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de Treze de Maio de 1888. Mas não enfrentou nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século XIX. Há um projeto de Brasil que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.


NY Times: Comitê da Câmara dos EUA aprova projeto que pode levar a reparações a negros por escravidão

Proposta, porém, pode emperrar, pois nem Câmara nem Senado se comprometeram a levá-la a voto

Nicholas Fandos, THE NEW YORK TIMES

Um comitê da Câmara dos Representantes votou nesta quarta-feira (14) por recomendar, pela primeira vez, a criação de uma comissão para estudar a possibilidade de oferecer reparações a afro-americanos pela escravidão nos Estados Unidos, além de um “pedido nacional de desculpas” por séculos de discriminação.

A votação antecipada no Comitê Judiciário da Câmara representou um marco histórico para os proponentes de reparações, que lutam há décadas para angariar apoio amplo para a proposta de indenizações pelos efeitos persistentes da escravidão. Parlamentares democratas do comitê aprovaram por 25 a 17 votos a legislação que cria a comissão, passando por cima das objeções de republicanos.

Intitulado HR 40 devido à promessa feita na época da Guerra Civil americana e nunca cumprida de dar “40 acres de terra e uma mula” aos ex-escravos, o projeto de lei ainda não tem grandes chances de virar lei.

Com a oposição de alguns democratas e dos republicanos unificados, que argumentam que os americanos negros não precisam de uma esmola do governo para compensá-los por crimes cometidos no passado distante, nem Câmara nem Senado se comprometeram a levar o projeto de lei a voto.

Mas no momento em que o país volta a encarar o racismo sistêmico exposto pela pandemia de coronavírus e pelas mortes de George Floyd e outros homens negros pela polícia, a medida está recebendo o apoio dos democratas mais poderosos do país, incluindo o presidente Joe Biden, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e o senador Chuck Schumer, líder da maioria democrata na Casa. Pesquisas indicam que o apoio público à proposta também vem crescendo, embora ainda esteja longe de ser amplo.

“Estamos pedindo às pessoas que entendam a dor, a violência, a brutalidade do que sofremos, o modo como fomos tratados como propriedade privada”, disse a deputada democrata Sheila Jackson Lee, do Texas, durante debate do comitê na noite desta quarta. “E, é claro, estamos pedindo harmonia, reconciliação, razões para nos unirmos como americanos.”

O interesse renovado por reparações ocorre enquanto Biden tem posicionado a questão da correção das desigualdades raciais no centro de sua agenda política doméstica, propondo bilhões de dólares de investimentos em agricultores, empresários, bairros, estudantes e pobres afro-americanos. A Casa Branca disse que a agenda de empregos de Biden de US$ 4 trilhões (R$ 22,5 trilhões) tem por objetivo em parte “combater o racismo sistêmico e reconstruir nossa economia e nossa rede de segurança social de modo a possibilitar que todos na América alcancem seu potencial pleno”.

A questão das reparações a antigos escravos e seus descendentes é uma que divide e aflige políticos há gerações, envolvendo questões mais amplas sobre o legado do racismo na América e a negação branca dos efeitos deletérios da economia escravista. Ela também encerra problemas práticos espinhosos, tais como quem deveria se beneficiar, que forma as reparações poderiam assumir e como seriam financiadas.

O general do Exército da União William Tecumseh Sherman fez a primeira tentativa ampla de oferecer reparações em 1865, com uma ordem especial dada no campo de batalha de confiscar 400 mil acres de terras costeiras e doá-la em lotes a antigos escravos. Mas após a morte do presidente Abraham Lincoln, mais tarde nesse ano, seu sucessor, Andrew Jackson, prontamente rescindiu a medida. Nenhum plano subsequente jamais chegou perto de colocá-la em prática.

Parlamentares negros no Congresso começaram a trazer a questão à tona outra vez três décadas atrás, quando primeiro propuseram uma comissão para analisá-la.

O projeto de lei submetido ao Comitê Judiciário nesta quarta propõe a criação de um órgão para estudar os efeitos da escravidão e das décadas de discriminação econômica e social que se seguiram a ela, frequentemente com envolvimento do governo, e sugerir maneiras possíveis de corrigir o abismo de riqueza e oportunidade entre americanos negros e brancos. Também propõe a possibilidade de um “pedido nacional de desculpas” pelo mal causado pela escravidão.

Os proponentes de reparações por parte do governo federal divergem quanto à forma precisa que estas poderiam assumir. Alguns defendem pagamentos diretos de valores diferentes em dinheiro. Outros propõem que o ensino universitário seja gratuito para afro-americanos, e a concessão de empréstimos, sem juros para afro-americanos que querem comprar casa própria.

Evanston, no estado de Illinois, um subúrbio de Chicago, reservou US$ 10 milhões (R$ 56,3 milhões) neste ano para reparações, sob a forma de subsídios habitacionais para afro-americanos que possam comprovar que eles ou seus ancestrais foram vítimas de negação sistemática de bens ou serviços do governo ou setor público ou de discriminação habitacional de outro tipo. Mas qualquer programa nacional seria muito maior, com custos projetados para alcançar bilhões ou trilhões de dólares.

Embora sua administração não use o termo “reparações”, Biden tem abraçado versões de muitas dessas propostas em seus esforços para combater a pandemia de coronavírus e recolocar a economia americana em andamento. Por exemplo, sua lei de estímulo para combater os efeitos do coronavírus, o Plano de Resgate Americano, prevê investimentos de dezenas de bilhões de dólares em programas de assistência alimentar, pagamentos diretos a americanos e ajuda mensal a crianças —programas que se aplicam independentemente da raça dos beneficiados, mas que darão assistência importante a afro-americanos.

O plano também prevê US$ 5 bi (R$ 28,1 bi) em auxílio e alívio de dívida para ajudar agricultores negros para mitigar anos de discriminação nas políticas de crédito agrícola a subsídios a agricultores negros.

“Entendemos que não precisamos de um estudo para adotar ações agora, já, contra o racismo sistêmico”, disse em fevereiro a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki. “Então, enquanto isso, o presidente quer adotar ações dentro do próprio governo.”

As propostas de Biden para os empregos e a infraestutura, que agora estão no topo da pauta do Congresso, preveem ir além, alocando centenas de milhões de dólares para negros, pardos e outras “comunidades carentes” por meio de formação profissional, investimentos em escolas, subsídios a financiamentos imobiliários, crédito a empresas, substituição de tubulações de chumbo e limpeza de resíduos tóxicos.

Uma medida proposta prevê US$ 20 bilhões (R$ 112,5 bilhões) para reconectar bairros, muitos deles historicamente negros, destruídos por rodovias interestaduais; outra prevê a alocação de US$ 20 bilhões para aprimorar as capacidades de pesquisa de faculdades e universidades historicamente negras.

Os republicanos rejeitaram muitos dos programas, tachando-os de desnecessários, impopulares ou caros demais, e parecem estar se mobilizando para fazer oposição direta a eles no Congresso, a não ser que os democratas concordem em reduzi-los substancialmente.

Mesmo que os programas sejam promulgados em lei, acadêmicos que se destacaram na discussão sobre reparações insistem que os planos de Biden não constituem um substituto para reparações. William Darity, da Universidade Duke, professor de políticas públicas e autor de um livro sobre reparações, disse que propostas como as de Biden não enfrentam o problema diretamente.

“Se estamos falando das consequências plenas sobre a riqueza afro-americana, sobre a destruição de empresas ou bairros inteiros, sobre a miséria e a perda de terras, estamos falando em cifras que estão muito além do alcance dessas iniciativas programáticas de âmbito relativamente restrito”, falou Darity.

Sua visão de reparações foca em primeiro lugar a redução da disparidade de renda entre afro-americanos e brancos, algo que ele estima que exigiria US$ 10 trilhões (R$ 56,3 trilhões) ou mais em fundos governamentais —um valor enorme que é rejeitado por parlamentares de ambos os partidos.

“A reparação é divisiva. Ela indica que seríamos uma raça infeliz e sem esperança que nunca fez nada senão esperar que brancos viessem nos ajudar —e isso é uma falsidade”, disse durante o debate nesta quarta o deputado republicano Burgess Owens, de Utah, que é descendente de escravos. “É degradante para a geração dos meus pais.”

Owens comparou a ideia de reparações a “uma redistribuição de riqueza ou socialismo” e argumentou que o que os afro-americanos precisam é que o governo saia de seu caminho enquanto eles se esforçam para subir na vida com seu próprio trabalho, como fizeram gerações anteriores.

Alguns democratas compartilham essa visão. Outros hesitam em apoiar um projeto de lei que temem que os republicanos possam usar como arma contra eles, retratando-o como um esforço radical para usar o governo para implementar uma agenda politicamente correta.

Tradução de Clara Allain


Cristiano Romero: A guerra civil brasileira

Mais de 600 mil negros foram assassinados desde 2000 no Brasil

Uma das mais lamentáveis e equivocadas tentativas de explicar o fracasso do Brasil é a ideia de que o país não deu certo porque não enfrentou guerras. Trata-se de mistificação concebida a partir da história de países como os Estados Unidos, que, além das batalhas travadas com outras nações para conquistar o território que tem hoje, amargou sangrenta guerra civil entre 1861 e 1865, quando se estima que mais de 600 mil pessoas morreram.

Entre 1979, quando a série começou a ser apurada, e 2018, último dado disponível, 1.583.026 brasileiros foram assassinados, segundo o “Atlas da Violência”, elaborado pelo Ipea. A violência não para de crescer. O número de homicídios tem mudado de patamar a cada dez anos - em 1979, 11.217 pessoas foram assassinadas; em 1990, 32.015; no ano 2000, 45.433; em 2010, 53.016; em 2018, 57.956 perderam suas vidas em decorrência do arbítrio de outrem (e ainda há quem defenda a adoção da pena de morte nestes tristes trópicos).

Alguém notará que o ritmo de crescimento de homicídios está diminuindo. Em 2017, 65.602 cidadãos foram mortos de maneira violenta, a maioria, por arma de fogo (71% dos casos). Portanto, houve queda de 11,7% no número de assassinatos no ano seguinte. O problema, mostra o “Atlas da Violência 2020”, é que não se pode mais confiar cegamente no “termômetro” usado para contabilizar as mortes.

O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é a única fonte de dados com abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica sobre a evolução da violência letal desde 1979. Ocorre que o SIM é alimentado por informações repassadas pelos Estados, e a qualidade desses dados tem caído de forma assombrosa.

“Entre 2017 e 2018, o número de MVCI (mortes violentas com causa indeterminada) aumentou 25,6%. A perda de qualidade das informações em alguns estados chega a ser escandalosa, como no caso de São Paulo, que, em 2018, registrou 4.265 MVCI, das quais, 549 pessoas vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos cortantes e 1.428 por objetos contundentes. Nesse estado, a taxa de MVCI foi de 9,4 por 100 mil habitantes, superior à taxa de homicídios, que foi de 8,2”, diz o último “Atlas da Violência 2020”.

No total, 12.310 brasileiros foram assassinados em 2018, mas as autoridades não sabem quem os matou nem o porquê. Estes são os cidadãos invisíveis cuja existência só interessou a quem lhes tirou a vida. São dispensados nas ruas como se faz com o lixo de casa. Na maioria dos casos, são enterrados como indigentes, sem identidade ou o conhecimento da família. Fazem número na estatística MVCI.

Pesquisa feita em 2013 por Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, estima que 73,9% das mortes violentas causa indeterminada são, na verdade, homicídios ocultos. Conclusão: o número de assassinatos cometidos neste gigantesco território pode ser até 20% superior ao número informado.

Definitivamente, no Brasil viver não é preciso. De 2008 a 2018, 628.595 brasileiros foram mortos de forma violenta. Do total, 437.976 eram negros (70%), a maioria, jovem e pobre. Enquanto o número de negros vitimados pela violência vem escalando - em 2018, eles foram 75,7% dos casos de homicídio -, o de não negros está cedendo. Entre 2008 e 2018, houve alta de 11,5% no número de negros vítimas de assassinato e declínio, no caso dos não negros, de 15,4%.

Mais uma estatística aterradora: desde o ano 2000, 660.252 negros foram assassinados no Brasil. Não calcule a média anual do período porque, como o número casos está em franca expansão, o percentual encontrado não refletirá a realidade indisfarçável: vivemos num país onde a maioria da população é negra (56%, segundo o IBGE), mas onde também predomina o racismo estrutural, que, como os números mostram, tem aumentado de forma veloz.

Apenas em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios - taxa de assassinatos por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados.

Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não-negras (ver gráfico).

“Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não negra do que na população negra. Entre não negros a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor”, informa o Atlas da Violência.

O Brasil está promovendo há décadas um verdadeiro genocídio, um crime contra a humanidade. A guerra civil americana foi deflagrada porque os produtores rurais do Sul não aceitavam o fim da escravidão dosa negros. No Brasil, a escravidão chegou bem antes e se tornou a principal característica de nossa sociedade. Aqui, a guerra civil nunca acabou.


Compre na Amazon: Livro Presença Negra no Brasil destaca importância de afrodescendentes para o país

De autoria de Ivan Alves Filho, obra apresenta análise histórica e registra busca de autoafirmação e inclusão social

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O Brasil é um dos países mais expressivos da comunidade internacional e “o segundo país negro do mundo, com dezenas de milhões de afrodescendentes”. A declaração é resultado de uma profunda análise realizada pelo historiador Ivan Alves Filho e integra a apresentação do livro Presença Negra no Brasil: do século XVI ao início do século XXI. À venda no site da Amazon, a mais recente obra do autor carioca é coeditada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e Verbena Editora.

» Clique aqui e adquira já o seu livro no site da Amazon!

Presença Negra no Brasil alinha, ao longo de 200 páginas e em seis partes (cada uma delas referente a um século, especificamente) os fatos historiográficos relacionados à contribuição negra ao Brasil. A ordem cronológica, de acordo com as editoras, tem caráter didático para o leitor.

Em um trecho inicial do livro, Ivan Alves Filho diz que a cronologia do negro no Brasil representa um instrumento útil para o conhecimento e a transformação do país, em particular de sua população afrodescendente. “Certamente, prestará um importante auxílio aos estudantes, professores e pesquisadores da realidade brasileira, aos responsáveis pelas empresas públicas e privadas e aos comunicadores sociais e ativistas sociais e culturais”, escreve.

O autor lembra que, no século XVI, o tráfico de negros se impunha cada vez mais. “As questões relativas a rebeliões negras começavam a vir à baila. Se, em 1570, o cronista português Pero Magalhães de Gandavo afirmava que os escravos negros, contrariamente aos índios, não se arriscavam a se rebelar ‘por não terem para onde ir’, o que se verificaria, em seguida, é que tal situação não se sustentaria por muito tempo”, observa ele.

Escravismo no Brasil

Ivan Alves Filho acrescenta que o século XVII foi o da consolidação do escravismo no Brasil. Já o século XVIII se inicia, segundo ele, com uma notícia surpreendente, ou seja, em 1704, cerca de cinquenta africanos tentam fugir da Bahia e retornar à África. “Trata-se, provavelmente, de uma das primeiras tentativas, nesse sentido, partindo da Colônia. Era uma reação à escravidão. Mas as autoridades coloniais continuavam com seu comportamento obscurantista”, acentua o autor.

Mais adiante no livro, Ivan Alves Filho observa que o século XIX foi “o século revolucionário por excelência no Brasil”. De acordo com ele, o período se iniciou com a chegada da família real ao país, em 1808, e se encerrou com a abolição da escravatura, em 1888. “E entre estas duas grandes datas, deu-se a independência política do país, em 1822. Um século e tanto”, assevera o autor.

E 1888 é exatamente o ano escolhido por Ivan Alves Filho para detalhar, a partir de então, ano a ano, separadamente, os principais fatos relacionados ao negro no Brasil até 2018. Na prática, funciona como um valioso manual sobre o assunto.

Do ano 2018, por exemplo, ele destaca o assassinato da vereadora negra Marielle Franco (PSol-RJ). “O Brasil todo ficou estarrecido com o assassinato da vereadora Marielle Franco, defensora dos direitos humanos e da população das favelas do Rio de Janeiro”, lembra, para continuar: “O crime que vitimou a representante do Partido do Socialismo e da Liberdade (PSol) ocorreu na noite de 14 de março, no Centro do Rio, e soou como um desafio à intervenção federal no Estado. Socióloga, política, negra, Marielle se transformou em um símbolo das lutas cidadãs no país”.

Com prefácio do advogado Nei Lopes, que também é autor de contos, peças teatrais e romances, o livro destaca que “os descendentes dos antigos escravos buscaram autoafirmação e inclusão social por meio de suas práticas culturais”.

Ainda de acordo com Lopes, que é compositor popular e autor de dicionários e obras históricas, o livro Presença Negra no Brasil é “decisivamente mais um golpe certeiro na derrubada da odiosa parede que recalca e reduz a importância da presença afro originada na construção da hoje solapada civilização brasileira”.

Sobre Ivan Alves Filho

Nascido no Rio de Janeiro, em 1952, é diplomado pela Universidade Paris VIII e pós-graduado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. É autor de livros como Brasil, 500 anos em documentos, Memorial dos Palmares, História dos estados brasileiros, Giocondo Dias – Uma vida na clandestinidade e Velho Chico Mineiro.

Exerceu o jornalismo desde a primeira metade dos anos 1970 e colaborou em cerca de 20 publicações brasileiras. Editou algumas delas, entre as quais suplementos culturais de jornais e publicações como Guia do Terceiro Mundo (posteriormente Guia do Mundo, lançado em português, espanhol e inglês).

Em diferentes momentos, atuou como pesquisador associado de órgãos como o Centro de Memória da Associação Brasileira de Imprensa, o Centro de Memória Social Brasileira, o Núcleo de Pesquisas sobre o Índio Brasileiro, o Comitê Português do projeto Unesco “A Rota do Escravo” e o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos”. Foi professor de história e economia política e ministra conferências histórias no Brasil e no exterior.

Como documentarista, produziu vários filmes no quadro da série Brasileiros e Militantes, da Fundação Astrojildo Pereira. Além disso, dirigiu e apresentou programas sobre cultura brasileira em emissoras de rádio e foi editor do jornal eletrônico Vertente Cultural.

Leia mais:

» Compre na Amazon: Livro Diálogos Gramscianos analisa principais enigmas da política brasileira

» Compre na Amazon: Na Trincheira da Verdade tem riqueza de jornalismo na Amazônia


Vinicius Mota: Esquerda versus esquerda

Velha e jovem guarda disputam o significado histórico da escravidão nos EUA

O debate do significado e dos efeitos sociais do longo período de escravidão negra nas Américas ganhou neste ano a contribuição do projeto 1619, do jornal The New York Times. O nome alude ao ano em que aportou na Virgínia o primeiro navio com cativos africanos.

No texto que abre a coleção, a jornalista Nikole Hannah-Jones estabelece uma das marcas distintivas da iniciativa. A Independência dos EUA, de 1776, não teria passado de contrarrevolução da elite para preservar a escravidão então ameaçada pelos colonizadores britânicos.

Que a provocação não seria tolerada pela direita neocon já se antevia.

Mas a reação mais interessante surge agora da esquerda trotskista americana, que publicou num site da Quarta Internacional Socialista uma série de entrevistas com historiadores de alta reputação acadêmica que, embora ignorados na investigação do Times, formulam críticas substantivas a postulados do trabalho.

Resumindo grosseiramente o que dizem nomes como Gordon Wood e James McPherson, a coisa era bem mais complicada e contraditória do que leva a crer a narrativa do jornal.

É impossível sublimar o fato de o abolicionismo, novidade na trajetória milenar do escravismo, ter realizado a primeira reunião da história na Filadélfia, em 1775. A escravidão foi proibida em territórios do meio-oeste em 1787; a importação, em 1807. No norte, a abolição legal estava encaminhada em 1804.

Não se coloca numa Declaração de Independência a ideia revolucionária de que todos nascemos iguais e livres sem produzir, como consequência, um embaraço enorme para os interesses escravistas e racistas.

Da crítica da velha guarda de historiadores à mais jovem fica a impressão de que a esquerda abandona a boa tradição marxista de considerar as ambivalências, as incertezas e as contradições da sociedade em seus esquemas interpretativos.

O contexto, as nuances e as lacunas de informação vão sendo atropelados e trocados por mensagens de combate que cabem num tuíte.

*Vinicius Mota, Secretário de Redação da Folha


‘Tinha escravos nos Palmares’, diz Antonio Risério à revista Política Democrática online

Em entrevista concedida à publicação da FAP, antropólogo diz saber de história de mulheres da classe dirigente

Cleomar Almeida, da Ascom/FAP

“A história brasileira é muito mal conhecida no Brasil. Às vezes, as pessoas se surpreendem quando você fala que tinha escravos nos Palmares e se surpreendem quando você fala que os Tupinambás eram escravistas”. A afirmação é do antropólogo, poeta, ensaísta e historiador brasileiro Antonio Risério, em entrevista exclusiva concedida à 13ª edição da revista Política Democrática online. Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, de graça, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que produz e edita a publicação.

» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online

A FAP é vinculada ao partido político Cidadania, que tem fortalecido a sua identidade como esquerda democrática. Na entrevista, concedida à revista Política Democrática online, Risério diz que conhece uma história de mulheres da classe dirigente, o que, segundo ele, é completamente diferente das histórias das mulheres da classe dominada. A entrevista foi concedida ao diretor da fundação e consultor político Caetano Araújo com colaboração de Ivan Alves Filho.

“Porque as mulheres da classe dominada têm primazia, dominando, inclusive, o pequeno comércio no Brasil, nas vendas, porque eram mulheres da vida e da rua, ao passo que as sinhás e sinhazinhas ficavam enclausuradas em sobrados na casa grande”, afirma ele à revista Política Democrática online. “A gente tem de pegar cada ponto disso e discutir com conhecimento. Conhecimento acima de tudo, não adianta ficar só ideologizando; ideologizando a gente não vai para lugar nenhum”, acrescenta.

O historiador compara, ainda, que, as histórias dos Estados Unidos e da França, por exemplo, são muito bem conhecidas pelas suas respectivas populações, ao contrário do que ele diz ocorrer no Brasil. “Uma frase de que eu gosto muito que Freud estudava do Leonardo da Vinci: você não pode amar nem odiar nada se primeiro você não souber o que aquilo é, o que aquilo foi, como aconteceu e o que aquilo significa”, pondera, em outro trecho da entrevista publicada pela revista da Fundação Astrojildo Pereira.

De acordo com Antonio Risério, entre os principais líderes do movimento abolicionista, havia três eram negros: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. “Deram-se as mãos e acabaram com a escravidão”, afirma ele, na entrevista publicada na revista Política Democrática online.

Leia mais:

» Nova edição da Política Democrática online analisa desastre do petróleo no litoral brasileiro


Elisa Lucinda: Convocação à luz dos novos tempos!

 

Quero reafirmar que à luz dos novos tempos velhas narrativas não mais passarão.Não sobreviverão provérbios retrógados e retóricos e, menos ainda ,tradicionais omissões. Quando eu disse que “ coisa de preto” era subtexto de grande parte da mente nacional e muitas vezes das mentes do mundo, eu não estava fazendo uma hipótese. Estou falando de uma teoria filha da prática de uma experiência de existir numa sociedade racista, sendo muitas vezes a única negra não funcionária daquele ambiente, o que me dá um lugar muito particular que eu faço questão de compartilhar. Inúmeras vezes já ouvi e vi essa legenda gritando no olhar do meu julgador, depois de uma gargalhada, depois de uma coisa mais surpreendente, mais espontânea , de alguma coisa mais “exótica” , mais espalhafatosa, menos “comportada”.

Já vi esse olhar muitas vezes: “Coisa de preto, só podia ser preto”. O olhar sussurra pra si mesmo e eu escuto. É claro que fui criada num país multicolor, é claro que acreditei na democracia racial, mas só até entender a bipolarização fragrante entre brancos e pretos exposta como uma hemorragia atuante e invisível em todos os lugares que frequentei sendo a única negra do colégio de freiras, sendo eu e meus irmãos os únicos negros dos clubes, das colônias de férias dos funcionários da Vale do Rio Doce, e mais tarde , a única negra de muitos elencos. Uma espécie estranha de solidão. Então está posto o que é estrutural, o que é endêmico, o que é constituinte desta educação racista brasileira estendida a todos sob o manto da famosa “democracia racial.”

Balela.

Não sou eu, é o IBGE que afirma por cálculos concretos: da multidão de desempregados que perambula pelas ruas da desesperança no país 66% são negros. Os salários dos brancos são 55% maiores que os salários dos pretos, formando assim enormes corredores de exclusão preenchendo o quesito da subutilização da força de trabalho brasileira.Gerações e gerações de mulheres negras são multiplamente mais assassinadas que as não negras. O Brasil desperdiça seus filhos e têm especial predileção em desperdiçar as filhas e os filhos pretos.

Não os reconhece. Disso tudo sabemos e nos debatemos sem compreender a profundeza da teia racista que, impingida na cabeça de cada brasileiro, produz este estrago ,essa matança. O brasileiro ignorante histórico ,aquele ingênuo que cresceu sem se estarrecer com o ter existido o cruel tráfico humano nos navios carniceiros negreiros, cresceu achando bonito o quadro triste e trágico da primeira missa no Brasil, o retrato da primeira missa jesuíta; o ignorantemente histórico é aquele que aprendeu a gostar daquela Tragédia: índios nus nos cantos da igreja, tomando banho de vergonha, vivendo a violenta catequização, o extermínio de uma cultura , amargando a escrota e danosa fundação da culpa sendo por ela contaminados até não mais reconhecerem mais o que era Liberdade.

Pois é, meus senhores, o pretensioso domínio branco primou por dizimar, por encher de sangue a história do país a partir de sua predatória colonização. Agora, neste momento em que a República está em chamas e os poderes estão de costas para o povo, estamos por nossa conta e precisamos amadurecer como sociedade, lavar os preconceitos das escadarias da alma, uma lavagem forte, uma exigência do Axé.

É de tarde. Entro no carro, o taxista que me aguardava, com um bom desconto de 30% , me disse: “Eu esperava que vc saísse por esse portão aqui”. Era o portão da esquerda que ,na minha casa é o dos fundos, e é igualzinho ao da direita, portanto ele não podia supor, obviamente. Mas mesmo assim brinquei: Não, aquela, meu senhor, é a entrada dos fundos, a entrada dos brancos. Ele então, deu um sorriso muito sem graça, e eu completei : É estranho, né, para o senhor que é branco pensar assim? Ele disse: “É verdade, a gente não tá acostumado a pensar isso não”. E eu: Já pensou na televisão, numa novela , um elenco de 40 atores, 38 serem pretos e só 2 brancos?

E ele: “Já pensou, tudo ao contrário?”. Incrível, “ao contrário”, ele disse. Normatizamos tanto o preconceito que achamos normal uma situação de opressão. O certo perde a referencia. É ao contrário. Esse tema tem que vir para as mesas, tem que ser discutido e estar dentro da educação brasileira como conteúdo. Nem percebe-se que , dos 200 indicados na lava a jato todos os ladrões são brancos.Tem nenhum preto . A maioria infratores reincidentes. Mas nem se repara, nem comentamos.

É hora de lavarmos os olhos .Por isso a importância da disciplina de relações étnico raciais, nas universidades, nas escolas, na formação de professores. Urge.

Toda essa minha conversa, meus queridos, é a base para uma convocação,pois chegamos a um limite. O silêncio dos não racistas brancos tem feito falta nessa luta.

E está pegando mal. Vem constrangendo bons brancos.

José Bonifácio deixou muitos herdeiros, tratava-se de um homem branco, abolicionista, que não admitia escravos, pagava a quem contratava os serviços, um revolucionário. Onde estão seus descentes?

Um amigo louro meu me disse que havia na sua infância um garotinho que morava na rua de trás com quem ele gostava muito de brincar e que era o filho do dono da borracharia onde o pai consertava os pneus. Ainda assim seu pai dizia: “Não quero você brincando com esse menino”. Por que papai?” Quando você crescer entenderá; a gente trata bem, mas não deve se misturar. Você vai entender.”

Perguntei então a esse amigo hoje, se ele, agora que é grande já cresceu ,se ele entendeu. E , se entendeu , que escreva sobre isso, quero ler tais depoimentos. Os que receberam a educação escravagista da Casa Grande e não concordam com ela, não podem mais se calar. Foram proibidos de sonhar com a igualdade, treinados a produzir desigualdades, ensinados à ideia de uma “natural “ supremacia. Foram adestrados profundamente no seu imaginário de modo a não lhes ser permitido amar e casar com uma mulher ou um homem negro.

E aí ? Vai ficar por isso mesmo? Vão passar a mesma educação para as crianças de hoje? Continuará sendo perpetuado o racismo assim, na cara do século 21 e com essa contribuição destes silêncios? Pensará também assim a geração filha da esquerda brasileira, filha dos sociólogos, pesquisadores, antropólogos, engenheiros, ecologistas , médicos e artistas ? Filhos da elite branca e dita de esquerda deste país? Como vai ser isso?

Por isso a minha proposta no mês da Consciência Negra é chamar a todos os não negros que reflitam publicamente sobre a educação racista que receberam.Quando foi que perceberam que havia um plano diabólico e separatista envolvendo suas vidas? E o que vão fazer pra limpar a própria barra?

É isso mesmo,se não se pronunciam ,é natural que pensemos que todos os brancos são racistas ,a não ser que estes mesmos provem que não. Eis a minha proposta, ponham a mão neste vespeiro, contem aquilo que foi passado durante sua educação de forma sistemática , mas também como uma espécie de segredo,como algo do qual não se fala nunca, quase nunca abertamente.Será libertador.

Pela saúde geral , falem meus brancos, contem, libertem ,descubram se houve algum negro ou negra , ou mesmo um branco revolucionário em sua árvore genealógica ,ao qual trataram de esconder na névoa do tempo. Vamos abrir a caixa preta do silêncio branco até aqui.

Que se indague. Se investigue.O que terá ficado oculto nas partes escondidas , historicamente?

Vamos à está reflexão? É urgente. Quem diz é nossa antiga gente: Se posicione pois quem cala consente.