escola sem partido

Vinicius Torres Freire: Governo e partido sem escola

IBGE mostra a desigualdade escolar no país de paranoias taradas com a educação

Quase um terço dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos não cursa o ensino médio na idade adequada —estão "atrasados", diz a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, divulgada nesta quarta-feira (5).

É muito. É pior se o adolescente não tem dinheiro. No quinto mais pobre da população, a taxa de atraso passa de 45%. No quinto mais rico, é de menos de 10%. No país em que os futuros governantes dizem sandices de gente típica de partidos sem escola, convém ressaltar essas estatísticas.

No Brasil, a educação pré-escolar é obrigatória para crianças de 4 e 5 anos desde 2009. Quase 92% delas estão matriculadas. No caso apenas daquelas de 4 anos, são cerca de 87%, distante da universalização, mas muito longe de ser um desastre quantitativo, pois a média é de 88% na OCDE.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é um grupo de três dúzias de países de renda alta ou média-alta, comprometidos com normas de governança chamadas de "neoliberais" pela esquerda e de "globalistas" pelos aiatolás do bolsonarismo.

Como seria previsível no caso brasileiro, as crianças pequenas mais pobres vão menos à escola. Estão mais sujeitas às adversidades causadas pela falta de estudos dos pais, por ambientes em que ficam mais sujeitas a violências físicas e psicológicas e por falta de recursos rudimentares, como água limpa, comida saudável e livros ou equivalentes, o que vai prejudicar seu desempenho futuro na escola e na vida.

Nas casas em que pelo menos um morador foi à universidade, 62% das crianças de até cinco anos estão em creche adequada ou escola; no caso das residências em que o nível de ensino não passa do fundamental, a proporção cai para 47%.

No quinto mais rico da população, 67% das crianças pequenas vão à escola. No quinto mais pobre, 46%. É uma fábrica de desigualdade, que prejudicará a justiça social e a economia por décadas.

Entre os tantos estudiosos que afirmam tais coisas está JamesHeckman, economista, Nobel, que passou a vida dando aulas na Universidade de Chicago, onde se doutorou Paulo Guedes, o überministro da Economia de Jair Bolsonaro.

Quem sobrevive a uma primeira infância largada à selvageria brasileira, não é assassinado e consegue terminar o ensino médio em uma escola pública, mesmo sendo mãe adolescente ou obrigado a trabalhar, terá provavelmente estigmas duradouros (ainda pior se for pardo ou preto).

Apenas 36% dos secundaristas de escola pública vão para o ensino superior, ante 79% daqueles que cursaram escola privada.

Gente da nova ordem brasileira esnoba o ensino superior por vários motivos e difunde malandra ou estupidamente a ideia de que "nem todo o mundo precisa ou quer ir" para a universidade. Seria um argumento razoável se não fosse conversa de post de rede social, sem contexto.

Entre as pessoas com idade entre 25 e 34 anos, menos de 20% completaram o ensino superior no Brasil. Nos países da OCDE (que inclui Portugal, Grécia, México, Chile, Turquia, Arábia Saudita etc.), quase 37%.

No Brasil, quem fez faculdade ganha 2,5 vezes o salário médio de quem fez ensino médio; na OCDE, 1,6 vez. Como resume o relatório do IBGE: "Essa diferença... é uma característica comum de sociedades extremamente desiguais e a principal maneira pela qual as pessoas dos estratos mais elevados mantêm seus filhos em posições no topo da hierarquia ocupacional".

Aqui, é uma questão de berço. Ou de falta de creche.


The Intercept Brasil: Negócios multimilionários na “Escola sem Partido”

Não há apenas ideologia de ultra-direita por trás da proposta. Se aprovada, ela será um maná de dinheiro para certas escolas e editoras de livros didáticos. “Investidor”, Paulo Guedes será um dos beneficiados

Por Amanda Audi, do The Intercept Brasil

Jair Bolsonaro não poderia ter escolhido um comandante para o Ministério da Educação mais alinhado ao que defende para o setor. O colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodríguez acredita que o sistema de ensino estaria contaminado por uma “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista” e “destinado a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade”.

Caberá a ele definir prioridades para um orçamento de mais de R$ 120 bilhões, o terceiro maior da União (atrás de Desenvolvimento Social e Saúde), e discutir temas que são caros ao presidente eleito e seus apoiadores, mas que estão longe de consenso na sociedade e no meio político – como a Escola sem Partido.

Indicado pelo filósofo de extrema direita Olavo de Carvalho, Rodríguez é professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu blog pessoal, ele publicou, antes de ser confirmado no cargo, um “roteiro para o MEC”, no qual defende que a educação seja recolocada “a serviço das pessoas” e não para “perpetuar uma casta que se enquistou no poder”. Ele também chama o golpe militar de 1964 de “intervenção” e acha que o Enem é “instrumento de ideologização”. Em outra postagem, de setembro de 2017, opinou sobre o projeto Escola sem Partido: “uma providência fundamental”.

Mas não é só uma questão ideológica. O projeto Escola sem Partido, uma lei que propõe abordagens “neutras”, como tratar a ditadura militar brasileira como “contra-revolução democrática de 31 de Março de 1964″, e sem educação sexual para livrar salas de aula de “doutrinação de esquerda”, também envolve dinheiro. E alguns dos mais interessados estão justamente na base do presidente eleito.

As propostas de Bolsonaro para a Educação valorizam o ensino privado, em que temas como a Escola Sem Partido acabam tendo mais entrada, já que as instituições ficam mais livres para desenharem seus currículos educacionais ao sabor do mercado. Já foi anunciado que haverá corte de recursos para universidades públicas, e a equipe analisa a cobrança de mensalidade em instituições federais e a distribuição de “vouchers” para alunos de baixa renda estudarem nessas instituições. O próximo governo também quer priorizar o ensino à distância, considerado mais barato que o convencional. Bolsonaro já defendeu o ensino privado e à distância como forma de combater o “marxismo”.

Se for aprovado, além de satisfazer a onda conservadora que varre o país, o Escola Sem Partido também será uma ótima oportunidade de negócio para empresas de educação, sejam elas escolas ou editoras que imprimem livros didáticos. Publicações e currículos terão de ser reescritos, e quem se adiantar ao projeto larga em vantagem.

Um dos principais beneficiados com o projeto é o seu guru da Economia, Paulo Guedes. Nos últimos anos, o Posto Ipiranga do novo presidente teve como foco de investimento justamente o setor de educação particular, que agora deve florescer.

Os negócios em educação de Guedes podem lucrar em duas frentes: com o reforço da educação privada e com as mudanças que podem ocorrer nos próximos anos com o Escola Sem Partido.

Na Bozano Investimentos, ele investiu em grupos de escolas, universidades e editoras de livros escolares, prevendo que o ensino particular iria trazer maior retorno. As empresas que fazem parte da cartela da Bozano reúnem, hoje, centenas de milhares de estudantes. O bom desempenho garantiu retorno financeiro à Bozano (e, por consequência, a Guedes).

Um deles é o autointitulado maior grupo educacional do mundo – o Kroton. Ele alcançou a posição após comprar a Somos Educação. Esta, por sua vez, cresceu vertiginosamente nos últimos anos. Para isso, recebeu ajuda: investimentos da empresa de Guedes.

Não fica claro quanto, exatamente, foi parar no bolso do economista. Os balanços operacionais da Bozano foram retirados do site recentemente. Mas, se as empresas investidas têm lucro, os fundos de Guedes recebem mais dinheiro, e uma parte é dividida entre os sócios.

Para se ter uma ideia, em 2012, quando entrou no fundo BR Educacional, uma gestora de ativos pertencente a Guedes, o grupo Anima projetou que passaria de 42 mil para 100 mil alunos. Foi o que aconteceu. No balanço de resultados deste ano, o grupo apontou ter chegado aos 97,9 mil estudantes. O lucro bruto, no primeiro semestre deste ano, foi de R$ 246 milhões contra R$ 70 milhões no começo de 2012. O MPF está investigando o fundo por suspeita de irregularidades na gestão de dinheiro de fundo de estatais.

Curiosamente, no mesmo texto em que traça um “roteiro para o MEC”, o novo ministro da Educação critica empresas financeiras que, “através de fundos de pensão internacionais, enxergam a educação brasileira como terreno onde se possam cultivar propostas altamente lucrativas para esses fundos”. Resta saber se ele será tão duro assim com os negócios de Guedes, seu colega de primeiro escalão.

Lobby no Congresso

Não é só Paulo Guedes que tem interesse no Escola sem Partido. Um dos autores do projeto de lei sobre o assunto na Câmara, o deputado Izalci Lucas, é um velho defensor do ensino particular. Ele diz, no projeto, que a “ideologia de gênero” estaria sendo usada em sala de aula para destruir famílias. Izalci foi eleito para o Senado e já declarou apoio a Bolsonaro. Ele é presidente do PSDB do Distrito Federal e integrante da bancada da Bíblia.

Izalci ainda consta como sócio de instituições de ensino em Brasília, apesar de alegar que se afastou dos negócios quando entrou na política. Ele também já foi presidente do sindicato do setor duas vezes. Enquanto líder sindical, criou o Cheque Educação, que oferecia descontos de até 50% na mensalidade de universidades particulares para estudantes de baixa renda – proposta muito parecida com o voucher de Guedes. Uma de suas propostas de lei pede isenção de impostos para instituições de ensino privadas.

Em 2014, a sua campanha à Câmara foi financiada por grandes grupos educacionais. As doações somaram R$ 218 mil, cerca de um quarto do total arrecadado por ele na época. A prestação de contas da campanha de 2018 ainda não foi divulgada.

O projeto Escola sem Partido ainda deverá ser aprovado no plenário da Câmara e do Senado. Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal pode decidir sobre uma lei do Alagoas semelhante à Escola sem Partido. Mesmo valendo apenas para o estado, a decisão irá firmar a posição da Corte sobre o assunto.

Se não for à votação este ano, a partir de 2019 o trâmite será facilitado, pois o PSL, partido de Bolsonaro, terá a segunda maior composição da Casa. Foram eleitos notórios apoiadores da medida, como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Kim Kataguiri, que trabalharão para ela ser aprovada.

No ano passado, a ONU manifestou preocupação com a proposta. Relatório enviado ao governo brasileiro diz que a proposição permite “alegar que um professor está violando as regras pelo fato de autoridades ou pais subjetivamente considerarem a prática como propaganda político-partidária”, e poderá retirar das salas de aula “discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como discussões de diversidade e direitos da minorias”.

Dos 45 deputados que integram a comissão especial na Câmara, a maioria (23) pertence à bancada evangélica. O presidente, Marcos Rogério, do PDT de Rondônia, se diz defensor dos “valores da família e princípios cristãos”. Os primeiro e segundo vice-presidentes são pastores evangélicos.

O relator do projeto na comissão, deputado Flavinho, do PSC de São Paulo, diz em seu parecer que é possível que uma criança mude de sexo por influência dos professores. O texto foi chamado de “brilhante” por Miguel Nagib, procurador de São Paulo que criou uma empresa e uma associação com o nome Escola sem Partido. Ele dá palestras sobre o assunto pelo país, e lucra com isso.

A bandeira também é defendida publicamente por grupos neoliberais como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online – este último tem como uma de suas coordenadoras uma cunhada de Nagib.

Sem partido mas com a conta cheia

No mercado editorial, há expectativa entre as editoras de material didático de que sejam aplicadas regras da Escola sem Partido no próximo edital para compra de livros didáticos (o governo é o maior comprador), de acordo com Carlo Carrenha, editor e fundador do Publishnews. Algumas se adiantaram e já estão adaptando os materiais, numa espécie de autocensura. “Tenho ouvido de escritores e ilustradores que não pode mais aparecer criança nua tomando banho, por exemplo. Isso seria pornografia’”, afirma Volnei Canônica, especialista em literatura infantil e diretor do clube de livros Quindim.

A professora Fernanda Moura, que estudou o Escola sem Partido para a dissertação de mestrado, defende que o movimento é moralista na aparência, mas esconde interesses econômicos. A ideia é criar pânico, como se os estudantes realmente estivessem aprendendo sobre socialismo e educação sexual de forma inadequada. “Assim, aumenta-se o mercado para materiais didáticos e aulas prontas, e também a demanda por matrículas em sistemas particulares de ensino nos quais os professores têm autonomia extremamente restrita”, afirma.


Bernardo Mello Franco: O sequestro da educação

Para ex-ministro, pressão sobre escolas pode agravar três problemas: abusos sexuais, gravidez precoce e transmissão de doenças

Foi a pior experiência de Renato Janine Ribeiro em sua curta passagem pelo Ministério da Educação. Numa manhã de setembro de 2015, o professor recebeu quatro deputados que diziam representar a bancada católica. O grupo foi direto ao assunto: queria banir a educação sexual das escolas. As aulas deveriam se limitar ao funcionamento dos órgãos reprodutores. “Só a biologia!”, resumiu um dos visitantes.

O filósofo tentou convencer os políticos a esquecer a ideia. Argumentou que a censura agravaria três problemas: a gravidez precoce, o abuso sexual e a transmissão de doenças como a Aids. “Se os jovens não tiverem uma educação sexual franca e honesta, ficarão expostos a esses três riscos, que podem arruinar a vida deles”, disse. Por um instante, os deputados pareceram concordar. Logo voltaram ao ponto de partida: “Só a biologia!”.

As guerras culturais sequestraram o debate sobre a educação no Brasil. A ofensiva conservadora desviou os holofotes para as questões de gênero e o projeto Escola Sem Partido. Ficou em segundo plano a tarefa que importa: melhorar o desempenho dos estudantes e a qualidade do ensino no país.

Em “A Pátria Educadora em Colapso” (Três Estrelas), Janine lamenta a cruzada religiosa contra o MEC. Ele diz que o discurso em voga é uma falácia. “É óbvio que a escola não deve ser espaço de doutrinação. Portanto, deve ser sem partido. Mas o grupo que assumiu a defesa da ‘escola sem partido’ é ele próprio partidarizado”, constata.

Para o ex-ministro, os ultraconservadores têm “medo do potencial libertador da educação”. “Querem reduzi-la à doutrinação segundo o que há de mais tradicional e repressivo nos costumes”, afirma. “Quem tem medo da independência dos filhos tem medo da boa educação, porque o que ela faz é exatamente isso: dar a cada um os meios de encontrar seu próprio caminho”.

A nomeação do filósofo foi um dos poucos acertos do segundo mandato de Dilma Rousseff. Respeitado no governo e na oposição, ele durou apenas seis meses no cargo. Foi demitido às vésperas da abertura do processo de impeachment, e ficou sabendo da notícia pela internet. “Para ser sincero, senti até certo alívio”, conta.

O livro de Janine contém dicas valiosas para quem está chegando a Brasília na comitiva do presidente eleito. “Quando as coisas já estão delicadas, com o país à beira do precipício, sempre surge alguém para piorar a situação”, escreve. Sobre a burocracia federal, ele ensina: “Não adianta dar uma ordem. Você precisa averiguar o tempo todo se ela está sendo cumprida”.

O ex-ministro revela duas lições que aprendeu com os cofres vazios. “A primeira: é bom dizer a verdade, em especial quanto aos limites de recursos. A segunda: é preciso que o Brasil aprenda que os recursos são limitados e vêm da sociedade, portanto não pode haver desperdício ou descuido”.

A leitura seria útil ao futuro ministro Ricardo Vélez Rodríguez, que já defendeu a criação de “conselhos de ética” nas escolas para fiscalizar a “reta educação moral dos alunos”. Na sexta-feira, ele disse que será um guardião dos “valores tradicionais ligados à preservação da família”. Assim ainda acaba imitando os deputados: “Só a biologia!”.


Eliane Cantanhêde: Escola sem religião

Nem ‘escola sem partido’ nem religião definindo ministro da Educação

Há quem seja rechaçado pelos seus defeitos e há quem seja pelas suas virtudes. É neste segundo caso que se encaixa o doutor Mozart Neves, educador, engenheiro químico, ex-reitor da UFPE, ex-secretário de Educação de Pernambuco e diretor do Instituo Ayrton Senna, uma das referências em Educação no Brasil.

Qual o “defeito” de Mozart a impedi-lo de assumir a Educação do governo Jair Bolsonaro? Ele é respeitadíssimo na área, tem foco na alfabetização, na valorização do professor, na igualdade de condições para os brasileiros das diferentes regiões, rendas, etnias. Não tem partido, não é militante de esquerda nem de direita. O negócio dele é educação, educação, educação, como gosta de martelar o senador Cristovam Buarque.

Então, o que há de errado? Resposta: a bancada evangélica acha que ele é bom demais. Tão bom que não quer “politicar” ainda mais a educação com o “escola sem partido”, como certamente discorda também da escola pública com religião. Nem partido nem religião nas escolas brasileiras. E Bolsonaro foi obrigado a optar entre a simbologia do Instituto Ayrton Senna e o desejo de poder da Bancada Evangélica.

É uma área tão sensível como a educação, pois, que provoca o primeiro embate entre o Congresso e o futuro presidente, que desde a campanha despreza as negociações de varejo, partido a partido, e se concentra nas de atacado, com as frentes partidárias. Dá menos trabalho, calculou Bolsonaro, há quase 30 anos na Câmara. Deve entender de política. Ou não?

A deputada Tereza Cristina foi líder do PSB e é do DEM, mas foi lançada à Agricultura pela Frente Parlamentar do Agronegócio. O deputado Luiz Henrique Mandetta, também do DEM, assume com apoio da Frente Parlamentar da Saúde. O fato de serem ambos do mesmo partido e do mesmo estado, Mato Grosso do Sul, é mera coincidência.

Falta contemplar a Frente Evangélica, essa contra uma escola “desideologizada”, e a da Bala, ou melhor, do desarmamento. O deputado Alberto Fraga, derrotado para o Governo do DF, tentou pular no barco, mas não colou. O que será que a turma dele vai reivindicar agora?

A lição que Bolsonaro vai aprendendo, mesmo se tenta resistir a ela, é que a democracia tem suas manhas. Quem tem mais votos ganha a eleição e quem perde respeita o resultado, mantendo o direito de minoria de fazer oposição. Isso vale tanto para os parlamentares quanto para o presidente.

O Congresso extrapolou todos os limites na prática do toma lá, dá cá e nas sucessivas tentativas de mudar leis e regras para garantir a impunidade dos enrolados em suspeitas e denúncias. E Bolsonaro se elegeu com a promessa de mudar o jogo, fazer diferente, não ceder a chantagens. OK. Excelente.

Ele, porém, não pode simplesmente jogar o tabuleiro e as peças fora. Pode até tentar impor o jogo dele, mas vai ter de jogar. O mesmo “povo” que lhe deu o mandato enviou junto os deputados e senadores, essenciais não só para aprovar leis, medidas, emendas, mas para o sucesso ou não do seu governo.

O teste de forças com a Frente Evangélica, uma das principais forças do bolsonarismo, é um aviso do que Bolsonaro vai enfrentar na Presidência, como qualquer presidente. E a corda bamba é a mesma: se cair para um lado, a opinião pública grita; se for para o outro, vai largando náufragos de mau humor, prontos a dar o troco na primeira votação. Não raro, e dependendo da irritação, na primeira, a segunda, na terceira...

Presidentes (assim como crianças, homens, mulheres, patrões e empregados) não fazem tudo o que querem, mas o que podem. A grande sabedoria é poder fazer o máximo do que querem, atraindo atenção, simpatia, boa vontade e sólidas alianças. Depende de talento, personalidade, experiência, vontade e equipe. Ah! E saber perder, quando necessário.


Demétrio Magnoli: Do castrismo ao criacionismo

Escola sem Partido persistirá na sua cruzada enquanto existir uma chama de inteligência nas salas de aula

Qual é o comprimento do segmento de reta que liga o ponto CAS, de castrismo, ao CRI, de criacionismo? A escola descobrirá a resposta nos próximos anos, cortesia do Escola sem Partido.

A teoria da geração espontânea asseverava que a vida nasce da matéria não viva, como os sedimentos dos rios ou o lixo. O Escola sem Partido nasceu do lixo —no caso, a sujeira ideológica acumulada ao longo de duas décadas. Terceira lei de Newton: a escola que conviveu com a cartilha da esquerda de botequim encontra-se, agora, sitiada por uma horda de bárbaros da direita de shopping center.

A Guerra do Paraguai foi arquitetada pela Inglaterra para evitar o surgimento de uma potência sul-americana. Cuba simboliza a esperança de redenção da América Latina. A democracia não passa de um manto protetor da exploração capitalista. Os EUA planejam roubar o pré-sal, as águas superficiais da Amazônia e os recursos subterrâneos do aquífero Guarani.

Israel é um Estado racista que precisa ser abolido. O terror jihadista é uma contraofensiva de povos humilhados pelas potências ocidentais. Os direitos humanos são uma proclamação do Ocidente destinada a destruir as identidades culturais de asiáticos, muçulmanos, africanos e afrodescendentes. O caldo borbulhante de sandices fez seu caminho até os manuais escolares, os vestibulares, o Enem. No fim, originou uma reação destrutiva que pretende converter a escola em anexo do templo.

O Escola sem Partido não identifica o problema real para solucioná-lo, o que exigiria uma reflexão de fundo, especialmente nas universidades e no magistério. O movimento acende uma fogueira, seleciona as bruxas e emite veredictos implacáveis.

Sua verdadeira finalidade é aproveitar as vulnerabilidades para subordinar a escola a uma polícia ideológica e de costumes recrutada entre autoridades locais, políticos, promotores e pastores. Sob o álibi das “convicções da família”, trata-se de submeter o ensino ao dogma, substituindo um discurso ideológico por outro.

Há boas chances de que produza estragos, pois opera como militância profissional organizada e conta com o respaldo do novo governo. Nesse sentido específico, assemelha-se ao movimento racialista, que conseguiu impor sua agenda minoritária de cotas raciais.

A escola ficará à mercê dos Novos Inquisidores se não fizer a lição de casa, traçando uma linha nítida entre o discurso pedagógico e o discurso doutrinário. Num tópico, o Escola sem Partido tem razão: professor e aluno mantêm relação desigual, pois o primeiro concentra tanto o poder intelectual quanto uma série de prerrogativas funcionais. Da desigualdade, resulta uma obrigação de contenção.

A missão dos mestres é ensinar os alunos a pensar, não explicar-lhes o que devem pensar. Na sala de aula não cabem o comício, a persuasão política, a narrativa partidária, que são expressões de autoritarismo disfarçadas sob o rótulo enganoso do “pensamento crítico”.

A lição de casa precisa ser feita não para evitar o espantalho da “doutrinação dos jovens”, algo totalmente ineficaz, nem para apaziguar o Escola sem Partido, que persistirá na sua cruzada enquanto existir uma chama de inteligência nas salas de aula. A escola deve fazê-la porque é a coisa certa a fazer –ou seja, por respeito a si mesma. Daí, ganhará autoridade moral para fechar as portas aos Novos Inquisidores.

Tempos estranhos –e um tanto ridículos. Enquanto nomeia um ministro de Relações Exteriores que anuncia a “confluência da história com o mito” propiciada pelo “Deus de Trump”, o governo promete limpar a sala da aula do veneno da ideologia.

Na escola sob assédio, tudo está em jogo, desde a ciência da evolução biológica até a história do advento dos direitos humanos, passando pelo ensino de saúde e sexualidade. Hoje, para escapar ao ponto CRI, a escola deve apagar o ponto CAS.

*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


O Globo: Senado articula barrar Escola sem Partido e ‘agenda da bala’

Até parlamentares de PT e PSDB admitem se alinhar na votação dos projetos

Amanda Almeida, de  O Globo

BRASÍLIA - Coma perspectiva de um novo governo patrocinando projetos polêmicos — como a liberação do porte de armas, o enquadramento de movimentos sociais na Lei Antiterrorismo e o Escol asem Partido —, parlamentares de diferentes partidos se articulam par atentar fazer do Senado a “casa do equilíbrio” da República. Temendo a radicalização nessas pautas, até senadores de PT e PSDB admitem se alinhar na votação dos projetos.

As costuras passam pela escolha do presidente do Senado, no ano que vem. Diferentes lideranças defendem um senador de perfil moderado, sem alinhamento direto com o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), mas que não faça parte da oposição a ele. Por trás desse discurso, a articulação é para encontrar um nome com força para pôr freio a eventuais propostas na agenda do governo que provoquem tensão social.

— Há muitos senadores novos cuja opinião não conhecemos, mas o consenso entre os partidos é a favor de uma Casa moderada, que não faça oposição sistemática. O governo foi eleito e o Brasil tem de ir para frente. Tudo aquilo que for de interesse do país, vamos votar a favor. Mas, também agiremos para que questões mais radicais sejam contidas aqui e a gente mantenha o equilíbrio — diz o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).

Assessores dos partidos na Casa calculam que, entre os 81 senadores, Bolsonaro tem, por ora, uma bancada de cerca de 20 parlamentares de partidos como o PSL, PSC, PTB e Podemos alinhados a ele.

A tentativa da legenda do presidente eleito é aumentar esse número. A intenção das lideranças que defendem a necessidade deter um Senado capaz de barrar uma agenda muito conservadora é formar maioria junto com a “oposição ferrenha” a Bolsonaro, além dos senadores independentes, que admitem apoiar o presidente eleito em parte da agenda econômica, mas não nos projetos com maior apelo ideológico.

OPOSIÇÃO DIVIDIDA
Com pretensão de se diferenciar do PT, o bloco em gestação liderado pelo PDT, que reúne PPS, PSB e Rede, pretende fazer uma “oposição propositiva”.

— Vamos ter de aceitar a agenda do Executivo, porque ele foi referendado pelas urnas. Obviamente, não faremos uma aprovação automática. Vamos aprimorar, questionar pontos e, com certeza, evitar essas maluquices — diz o senador eleito Cid Gomes (PDT-CE).

O PSDB deve se reunir até o fim do ano para decidir sua posição sobre o governo. Independentemente disso, Tasso diz que senadores do partido admitem conversas até com o PT em pautas com radicalismos:

— Com o PT, temos visões bastante diferentes na linha econômica. Mas, em matéria de comportamento, é bem possível e provável que haja alinhamento. Os petistas também estão abertos a esse diálogo. O senador Humberto Costa (PTPE) disse à revista ÉPOCA que “não vê problema de termos as mesmas posições (de senadores de partidos como PSDB e DEM) num enfrentamento a Bolsonaro”.

A tentativa de dar ao Senado a feição de “poder moderador” passa pelas articulações em torno do comando da Casa. A preferência é por um nome que chegue com o discurso de que não atrapalhará o governo em pautas importantes para o país, mas que dê aos senadores a segurança de que enfrentará o grupo de Bolsonaro quando necessário. Um dos nomes cotados por esses senadores contrários às pautas radicais é o de Renan Calheiros (MDB-AL).

Publicamente, ele já tenta se colocar como um agregador. Questionado pelo GLOBO sobre a agenda conservadora, ele desconversou, dizendo que “é preciso esperar os novos senadores” e que a Casa pode colaborar com as propostas que “façam mudanças que o Brasil quer”.

— O papel do novo governo é preponderante. O Parlamento deve fazer um planejamento das matérias que devem ser votadas. Isso amadurece o Parlamento. Quando necessário, é possível recorrer a referendos, como fiz (como presidente do Senado, em 2005) sobre a vendas de armas.

JUDICIÁRIO PREOCUPADO
Senadores relatam que, alarmados com essas propostas, representantes do Judiciário têm manifestado a eles a necessidade de que o Senado seja uma “casa de contenção”. O temor é de que o Judiciário se fragilize caso tenha de assumir o papel de derrubar projetos aprovados. Composto por políticos mais experientes do que os deputados, o Senado tradicionalmente atua como uma casa demais moderação. Sob a presidência do próprio Renan, entre 2013 e 2016, deixou na gaveta projetos polêmicos pautados pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ), como a redução da maioridade penal e a terceirização irrestrita. O atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), manteve a mesma linha.