entrevista especial

‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

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RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'

As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022

Por Caetano Araújo e Vinicius Müller

O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:

Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?  

José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.  

A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.  

RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?  

JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT.  Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.  

"O bolsonarismo entrou em uma crise que tem a ver com o fato de que ele não tem conteúdo nenhum, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, de uma mentalidade autoritária, de uma visão exagerada em relação à questão da segurança"

À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.

RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?  

JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.  

Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.  

Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.  

Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.  

Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.  

"O grande desafio que eu vejo é se o setor democrático progressista, a esquerda democrática, de alguma maneira não perceber, nós não podemos cair no risco de jogar eventualmente o DEM para o lado do Bolsonaro"

O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.  

RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda -  como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?  

JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.  

RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?  

JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.  

Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.  

"Um dos aspectos do desafio de se constituir ou não essa frente é se a esquerda, inclusive a nova esquerda, insistir na ideia de que pode necessariamente sair sozinha"

Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.  

RPD:  Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?  

JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.  

Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.    

"Ainda não vi, na personalidade destas lideranças que estão aí, nenhum elemento capaz de criar esse consenso que nós tanto necessitamos para enfrentar o bolsonarismo"

RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?  

JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.

No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.    


'Precisamos de coalizão para enfrentar governança das polícias', diz Luiz Eduardo Soares

Em entrevista à Política Democrática Online, ex-secretário Nacional de Segurança Pública afirma que ditadura reordenou instituições

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ex-secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares diz que polícias militares são refratárias à democracia, em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. “Nós precisaríamos de uma grande coalizão e entender a necessidade de enfrentar a questão da governança das polícias e do que eu chamei um enclave institucional, alterando posturas do Ministério Público, da Justiça”, disse.

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Todos os conteúdos da revista são disponibilizados, gratuitamente, no site da FAP. Soares é um dos 579 alvos de um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a partir do monitoramento secreto de um grupo descrito como “militantes antifascistas”. O entrevistado também é escritor, dramaturgo, antropólogo, cientista político e pós-doutor em Filosofia Política.

Soares tem proposto debates sobre segurança pública, polícias e justiça criminal no Brasil há mais de 30 anos. Na opinião dele, a transição para a democracia no Brasil não foi completa porque as polícias militares mantiveram-se no tempo da ditadura e são agentes na desigualdade e no racismo estrutural que ainda assola o país, diariamente.

De acordo com a entrevista concedida à revista Política Democrática Online, há um legado à democracia de estruturas organizacionais forjadas na ditadura. “A ditadura não inventou a violência policial, as práticas conhecidas e nem as instituições como as conhecemos, mas as reordenou, reorganizou e qualificou”, disse. ‘Qualificar aqui tem sentido negativo e problemático. Essas instituições reformadas, reorganizadas e retemperadas pela ditadura, instituições muito problemáticas que têm passado obscurantista, autoritário, que dialogam com o pior da nossa tradição escravagista, foram legadas pela ditadura acriticamente, por assim dizer”, lamentou.

Soares tem vinte livros publicados, como “Elite da Tropa” (com André Batista e Rodrigo Pimentel), editado em 2006 pela Objetiva, “Elite da Tropa II” (com os mesmos coautores e Claudio Ferraz), publicado pela Nova Fronteira, em 2010, “Espírito Santo” (com Rodney Miranda e Carlos Eduardo Ribeiro Lemos), editado pela Objetiva, em 2008, além de “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte”, publicado em 2015 pela Cia. das Letras, e os romances “Experimento de Avelar”, premiado pela Associação de Críticos Brasileiros em 1996, e “Meu Casaco de General”, este, finalista do Prêmio Jabuti em 2000. Foi professor da Unicamp e do IUPERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University.

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RPD || Entrevista Especial: Herança da ditadura, polícias militares são refratárias à democracia, diz Luiz Eduardo Soares

O antropólogo e filósofo Luiz Eduardo Soares, defensor da desmilitarização das polícias militares, avalia que somente uma coalizão pode dar ao país as condições políticas para que se faça uma reforma estrutural nessas corporações policiais

Por Caetano Araujo e Arlindo Fernandes Oliveira

Um dos 579 alvos de um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça do governo do presidente Jair Bolsonaro, a partir do monitoramento secreto de um grupo descrito como “militantes antifascistas”, o escritor, dramaturgo, antropólogo, cientista político e pós-doutor em Filosofia Política Luiz Eduardo Soares é o entrevistado especial desta 25ª edição da revista Política Democrática Online.

Luiz Eduardo Soares, que já foi Secretário Nacional de Segurança Pública, vem propondo debates sobre segurança pública, polícias e justiça criminal no Brasil há mais de 30 anos. Para ele, a transição para a democracia no Brasil não foi completa porque as polícias militares mantiveram-se no tempo da ditadura e são agentes na desigualdade e no racismo estrutural que ainda assola o país, diariamente.

"Nós precisaríamos de uma grande coalizão e entender a necessidade de enfrentar a questão da governança das polícias e do que eu chamei um enclave institucional, alterando posturas do Ministério Público, da Justiça etc…", avalia Soares. "E não me referi à desmilitarização, ao ciclo completo, à carreira única, a todas essas propostas relativas à reforma das próprias instituições policiais. Elas se dariam no contexto de uma grande coalizão reformadora", completa.

Soares tem vinte livros publicados, como “Elite da Tropa” (com André Batista e Rodrigo Pimentel), editado em 2006 pela Objetiva, “Elite da Tropa II” (com os mesmos coautores e Claudio Ferraz), publicado pela Nova Fronteira, em 2010, “Espírito Santo” (com Rodney Miranda e Carlos Eduardo Ribeiro Lemos), editado pela Objetiva, em 2008, além de “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte”, publicado em 2015 pela Cia. das Letras, e os romances “Experimento de Avelar”, premiado pela Associação de Críticos Brasileiros em 1996, e “Meu Casaco de General”, este, finalista do Prêmio Jabuti em 2000. Foi professor da Unicamp e do IUPERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University.

"NÓS TEMOS UM ENCLAVE QUE SE REPRODUZ, QUE É REFRATÁRIO À DEMOCRACIA E AO PODER REPUBLICANO. SE COMPREENDERMOS QUE ISSO ESTÁ NO CENTRO DAS QUESTÕES DEMOCRÁTICAS BRASILEIRAS, NÓS ENTÃO NOS CREDENCIAREMOS A ENFRENTAR"

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Revista Política Democrática Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Sua longa trajetória de estudo e atuação na área da segurança pública assegura-lhe autoridade indiscutível para avaliar como estamos hoje no Brasil. Em uma palavra: temos saída?

Luiz Eduardo Soares (LES): Essa é uma pergunta que exigiria muito mais do que o espaço de uma única entrevista. Em síntese, diria que uma possível saída envolve uma expectativa favorável relativamente à história brasileira e à história da democracia no Brasil. Isto é, se não houver saída para essas questões atinentes à segurança pública e à justiça criminal, não haverá saída para a democracia no Brasil. São duas faces da mesma moeda, mais do que isso, são dimensões interconectadas organicamente, e a incompreensão sobre esses laços, esses nexos, essa articulação profunda entre as problemáticas está no centro das nossas dificuldades, está no centro dos motivos pelos quais nós não fomos capazes como nação, até agora, de produzir uma alternativa.

E por que eu então digo isso? Porque temos um quadro que é, de fato, dantesco. Os qualificativos, os adjetivos não são puramente retóricos. Posso ser mais objetivo: no Rio de Janeiro, no ano passado, registraram-se 1.814 mortes provocadas por ações policiais. Isso corresponde a 40% dos homicídios dolosos perpetrados na cidade do Rio e a 30% daqueles cometidos no Estado. Temos ao longo dos anos um verdadeiro banho de sangue, em que as vítimas são sempre, com raríssimas exceções, negros, jovens habitantes dos territórios vulneráveis etc. E o que ocorre é que a polícia mais numerosa, que está presente em todo o país, 24 horas por dia, com algumas exceções, é a polícia militar. Ela é pressionada por todos os interlocutores, atores sociais – mídia, opinião pública, políticos etc. – a produzir resultados que, em geral, se confundem com prisão. Ocorre que ela é proibida constitucionalmente de investigar; resta-lhe prender em flagrante delito. Quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante? Não são os mais importantes, mas serão eles o foco dos investimentos policiais. Portanto, aos vieses de classe, cor e território, acrescenta-se mais este crivo seletivo. Na prática, o alvo será o varejo das substâncias ilícitas.

Vejam, em vez de prevenir e investigar homicídios, os crimes mais graves, nós estamos lotando o sistema penitenciário com jovens não violentos e não ligados de fato a facções, não envolvidos com práticas criminosas profissionalizadas, com as consequências nefastas em todos os níveis e de todas as ordens, por conta de um casamento perverso entre uma lei de drogas absolutamente irracional e um modelo policial que foi determinado pelo artigo 144. E aí chegamos ao coração da matéria, o porquê dessa vinculação com a questão democrática. Sabemos muito bem que a promulgação da nossa Carta em 19988 foi o fruto histórico e extraordinariamente importante que correspondeu a uma conquista da sociedade brasileira, uma conquista democrática, singular em nossa trajetória; entretanto, ela se deu a partir de negociações, como aliás é típico da história brasileira. As negociações que nos deram o privilégio da liberdade e de um novo horizonte democrático também encontraram limitações oriundas da sua própria natureza.

"RESSALVADAS AS VARIAÇÕES INTERNAS, AS TENSÕES, AS DIFERENÇAS, AS POLÍCIAS DE MODO GERAL E A CULTURA POLICIAL MILITAR E CIVIL ERAM BOLSONARISTAS AVANT LA LETTRE, ANTES DE BOLSONARO, INDEPENDENTEMENTE DE BOLSONARO"

Uma das limitações – absolutamente estratégica e crucial – foi a imposição, por parte de representantes do antigo regime, de uma reserva estratégica, que se manteria impermeável ao processo de mudança desatado pela dinâmica de democratização. Que reserva é essa? Que área institucional é essa? É a segurança pública. Esse foi o legado à democracia de estruturas organizacionais forjadas na ditadura. A ditadura não inventou a violência policial, as práticas conhecidas e nem as instituições como as conhecemos, mas as reordenou, reorganizou e qualificou. Qualificar aqui tem sentido negativo e problemático. Essas instituições reformadas, reorganizadas e retemperadas pela ditadura, instituições muito problemáticas que têm passado obscurantista, autoritário, que dialoga com o pior da nossa tradição escravagista etc., essas instituições foram legadas pela ditadura acriticamente, por assim dizer.

Ou seja, nós, na democracia, herdamos as estruturas organizacionais. Ora, as estruturas organizacionais não vêm como organogramas vazios, elas vêm carregadas de seres humanos, homens e mulheres, com suas práticas, suas modalidades próprias de composição de identidade, lealdade, seus valores, suas visões de mundo e práticas. O fato é que os valores tradicionais, as visões de mundo cultuadas no período ditatorial permaneceram, foram reiterados e fortalecidos no convívio diário entre gerações, porque é na rua que essa cultura se reproduz, que a socialização se dá.

RPD: Qual seria a estratégia possível para alterar essa situação, ou seja, como é possível falar em desmilitarizar a polícia e descriminalizar o varejo da droga? Quais seriam os passos institucionais? O que o movimento cívico deveria pleitear para caminhar nessa direção?

LES: Algo importante e fundamental. Aprofundo os argumentos anteriores para derivar do diagnóstico mais complexo, digamos, essa resposta que é absolutamente decisiva. Voltamos à velha e sempre indispensável questão: o que fazer? As polícias que constituímos são um universo heterogêneo e dividido internamente por segmentos, perspectivas diferentes. Não dá para falar de uma unidade monolítica com cerca de 800 mil pessoas. Seria uma simplificação grosseira. Mas é necessário reconhecer que segmentos dominantes e perspectivas que predominam nesse enclave são fortemente, sempre foram, refratários à cultura democrática e à Constituição. E mais, à autoridade civil, pública, republicana, política – no sentido amplo da palavra. Nenhum governador do período democrático governou as polícias.

"A DITADURA NÃO INVENTOU A VIOLÊNCIA POLICIAL, AS PRÁTICAS CONHECIDAS E NEM AS INSTITUIÇÕES TAIS QUAIS COMO AS CONHECEMOS, MAS AS REORDENOU, REORGANIZOU E QUALIFICOU MUITAS DAS SUAS PRÁTICAS"

Houve variações, alterações aqui e ali, essa dificuldade evidentemente apresentou oscilações de acordo com contextos, conjunturas, circunstâncias, capacidade de mobilização das lideranças intermediárias etc., mas a governança democrática republicana não se realizou. E isso por conta de um arranjo muito peculiar em que o Ministério Público, que é responsável constitucionalmente pelo controle externo da atividade policial, não cumpriu sua missão constitucional, atitude abençoada pela Justiça por várias razões, o que contribuiu para a rotinização da tragédia. Vivemos uma ameaça para a democracia. Vamos concretizar tudo isso.

As polícias de modo geral e a cultura policial militar e civil – ressalvadas as variações internas, as tensões, as diferenças – eram bolsonaristas avant la lettre, antes de Bolsonaro, independentemente de Bolsonaro. Bolsonaro ocupa o lugar de messias nesse sebastianismo rústico, que deriva dos valores cultivados lá na ponta, na prática, valores que justificam execuções extrajudiciais e que se regem por princípios. Cito aqui palavras que estão sempre presentes nas redes sociais policiais com suas fotos que exaltam a violência, tais como: só há justiça com caos e destruição. Nosso papel é entrar nas favelas e destruir, nosso compromisso é fazer essa guerra. Como disse um coronel comandante da PM fluminense há não muitos anos, as polícias são inseticidas sociais.

Ou seja, a visão é essa: seu papel não é cumprir a lei, a violência policial não decorre do rigor excessivo no cumprimento da legalidade; as polícias não têm compromisso com a legalidade. Nós, os defensores dos direitos humanos é que somos legalistas, nós e aqueles policiais que resistem em nome do Estado Democrático de Direito a esse furor, a esse ímpeto, a esses valores que se apresentam como uma espécie de tsunami, atropelando todas as resistências internas legalistas.

E como isso é possível? Há várias mediações aí; de outra forma, não seria possível. E duas merecem destaque.

A primeira, que está na gênese da corrupção policial e das milícias, é a autorização para matar; não para usar a legítima defesa, evidentemente, mas para matar porque, quando se concede autorização para matar, se concede também ao policial na ponta a liberdade para não matar e vender a vida, negociar a sobrevivência do suspeito. E aí se cria uma moeda que degrada a instituição, suscita articulações entre crime e polícia, diluindo fronteiras. Não raro, policiais, por essa via, vão se associar ao velho esquema dos esquadrões da morte, da pistolagem a soldo ou vão provocar insegurança para vender segurança e daí por diante. Portanto, engana-se quem acredita que liberando as polícias para matar elas serão mais efetivas contra o crime. É justamente o contrário. Tolerar práticas policiais ilegais abre as portas para a degradação institucional e o fortalecimento do crime.

"SÓ UMA COALIZÃO PODE PROTEGER OS GOVERNOS QUE SE DISPONHAM A AGIR E NÃO ADIANTA PENSAR NAS FORÇAS ARMADAS COMO UMA SOLUÇÃO MÁGICA, PORQUE SE NÃO O RIO JÁ TERIA RESOLVIDO, POR EXEMPLO, O PROBLEMA COM AS MILÍCIAS"

A segunda mediação que deve ser entendida é a segurança privada informal e ilegal, um verdadeiro processo metastático absolutamente impune. Os governos lavam as mãos: o segundo emprego suplementa os salários insuficientes, às vezes baixíssimos, pagos à massa policial, e permite que o orçamento seja mantido nos termos pré-definidos sem grandes pressões, vale dizer, sem suscitar movimentos grevistas. É o que eu chamaria de “gato orçamentário”, usando a expressão popular que rotula uma conexão entre o legal e o ilegal. Daí porque os governos, não só do Rio, mas também de outros Estados, acabam tolerando a prática da segurança privada ilegal informal por parte de seus policiais. No fundo, lançam um manto de proteção sobre um conjunto vasto de atividades, as quais incluem desde esforços honestos – embora ilegais – de tantos que apenas buscam oferecer melhores condições às suas famílias, até as milícias. É essencial compreender este ponto: as milícias crescem à sombra dessa negligência sistemática, que atravessa as décadas inalterada.

As polícias são um enclave que se reproduz e que é refratário à democracia e ao poder republicano. Temos de reconhecer esse fenômeno, que está no centro das questões democráticas brasileiras, o que leva a reconhecer também sua magnitude, sua complexidade e, claro, a dificuldade de enfrentá-lo. Não seremos capazes de fazer frente a esse desafio sem a participação da sociedade, do Ministério Público, da Justiça. Em uma palavra: sem uma discussão e uma compreensão aprofundada por parte da sociedade, de maneira que tudo isso se torne não um programa de partido, mas uma questão de Estado. E, para tanto, impõe-se ampla coalizão, para, inclusive, proteger os governos que se disponham a agir. Sabemos que o preço a pagar seria muito caro e sabemos também que não adianta pensar nas Forças Armadas como uma solução mágica. Fosse assim, o Rio já teria resolvido seu problema com as polícias e as milícias. Tivemos a intervenção federal em 2018, nada mudou. Até hoje, os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes não conhecem solução.

RPD: No governo Temer, por iniciativa do ministro Raul Jungmann e de outros, foi aprovado no Congresso o chamado Sistema Nacional de Segurança Pública (SUSP), que teria esse propósito de promover uma articulação. Qual é sua avaliação do modelo proposto e de sua execução?

LES: O SUSP foi apresentado por mim, quando Secretário Nacional, no primeiro mandato de Lula, em 2003. Além de amigo pessoal de Raul Jungmann, velho companheiro, a despeito das enormes divergências que nós tivemos em função do que considero um golpe contra a presidente Dilma e da ilegitimidade do governo Temer, reconheço que ele fez um trabalho respeitabilíssimo, extremamente sério e muito superior ao que nós costumamos ter, e ao que temos hoje. Raul demonstrou quão importante pode ser uma contribuição federal. E tomou a iniciativa de retomar o fio da meada, que estava parado no Congresso Nacional, desfiado e reduzido.

O SUSP foi, por fim, aprovado. Qual é o problema do SUSP? Ele é fundamental como modelo de orientação, mas não pode ser convertido, como foi, em peça legal, infraconstitucional. Por quê? Porque, a qualquer momento, qualquer instituição envolvida pode denunciar inconstitucionalidade por sentir-se coagida a colaborar com outras, uma vez que a autonomia está dada constitucionalmente. Trata-se, portanto, de uma legislação que colide com a institucionalidade, uma espécie de puxadinho, improvisos que nós vamos fazendo porque não temos vontade política ou capacidade de operar mudanças estruturantes e estruturais. Esse puxadinho não pode dar certo.

Mencionei a necessidade de uma grande coalizão para se enfrentar a questão da governança das polícias, do que chamei um enclave institucional, alterando posturas do Ministério Público, da Justiça etc., mas faltou adicionar o tema da desmilitarização e das demais reformas necessárias, relativas à criação de ciclo completo e de carreira única nas instituições policiais. Elas se dariam no contexto de uma grande coalizão reformadora. Insisto nessa conexão entre o macro e o micro, por assim dizer, para mostrar que essas são questões interligadas. Defendo a proposta, que ajudei a elaborar, apresentada pelo então senador Lindbergh Faria, em 2013, a PEC 51, que é também bandeira do movimento policiais antifascismo.

"EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS MOSTRAM QUE AS POLÍCIAS MAIS BEM SUCEDIDAS SÃO AQUELAS QUE OPERAM COM ALGUMA AUTONOMIA NA PONTA, DESCENTRALIZADAS, COM FLEXIBILIDADE ORGANIZACIONAL QUE LHE PERMITAM ADAPTAÇÕES ÀS ESPECIFICIDADES LOCAIS"

Desmilitarização é um conceito que tende a assustar, quando se simplificam seu sentido e seu alcance. Tive sempre muito sucesso na persuasão de oficiais da polícia militar com espírito patriótico e senso de responsabilidade. Para além de ideologias e retóricas, eles reconhecem a imprescindibilidade de cortar o laço que prende a instituição policial ao Exército até hoje. E esse laço se traduz não só em uma dependência em termos de autoridade, propriamente, mas também na necessidade legal de copiar o modelo de organização.

Transpor a organização do Exército para uma polícia só seria razoável se as funções fossem análogas, mas a função da polícia ostensiva, constitucionalmente, não é defender a soberania nacional por meios bélicos, mas impedir, prevenindo e reprimindo, violações a direitos; é garantir direitos, é prestar um serviço público à cidadania. E as experiências internacionais mostram que as polícias mais bem sucedidas são aquelas que operam com alguma autonomia na ponta, de forma descentralizada, dialogando com as comunidades, com flexibilidade organizacional que lhes permita adaptações plásticas às especificidades locais etc. É todo o avesso do que nós temos. O modelo verticalizado e rígido, que faz sentido no Exército, não faz na polícia porque, entre outras razões, subtrai subjetividade, poder decisório dos policiais na ponta. Eles não podem ser definidos como soldados a cumprir ordens que vêm do Estado-Maior, distante das realidades locais. É impossível funcionar dessa maneira.

RPD: Durante a gestão do Presidente Geisel, o Presidente Jimmy Carter teve enorme influência na área dos direitos humanos, no Brasil e no mundo. Diante da vitória de Biden, poderiam os Estados Unidos voltar a exercer influência importante na área dos direitos humanos no Brasil, influência que, decerto, se poderia estender à área do meio ambiente?

LES: Eu diria que sim, sem dúvida, esses contextos produzem impacto. É claro que isso depende de construção política. Fóruns internacionais não têm incidência direta no Brasil, mas, com um jogo geopolítico distinto e algum amparo para o discurso universal dos direitos humanos, talvez se crie algum constrangimento para o governo brasileiro. Como sabemos, a palavra do Presidente, o gesto, as iniciativas do Presidente, mesmo quando não são aprovadas no Congresso, têm efeitos. Os exemplos são graves: a supressão de culpa no caso de mortes provenientes de ações policiais, o excludente de licitude; a flexibilização do acesso às armas e munições; a redução dos controles de rastreamento. Essas posturas incitam a violência, sobretudo a violência policial e tendem a promover as milícias, estimulando sua participação crescente no universo político. A esperança é, portanto, que uma mudança no cenário internacional, no cenário geopolítico, possa facilitar negociações internacionais com fóruns que gerem algum tipo de comoção, como no caso ambiental, por exemplo, e termine influindo nas políticas defendidas pelo governo. Talvez seja um wishful thinking, mas enfim…


Gil Castello Branco critica esvaziamento da Lava Jato no combate à corrupção

Em entrevista exclusiva à Política Democrática Online de outubro, diretor da Contas Aberta compara caso brasileiro ao desmonte de operação italiana

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Com mais de 150 mil brasileiros mortos na pandemia do coronavírus, o Brasil está menos transparente no combate à corrupção, diz o economista Gil Castello Branco, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, entidade que fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país. Em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de outubro, ele também afirma que o desmonte da Lava Jato no país não é muito diferente do que ocorreu com a Operação Mãos Limpas na Itália.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. Entrevistado especial desta 24ª edição da Revista Política Democrática Online, Castello Branco acredita que, em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. "Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese [otimista] de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos", avalia.

Na avaliação de Castello Branco, "é preocupante constatar que, desta vez, as acusações [de desvios] não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário". “A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência", completa.

Em relação ao possível esvaziamento da Lava Jato, ele a compara com a operação italiana, que, ao atingir poderosos, inclusive políticos, começou a ser fragilizada por diversos meios. “E, hoje, dizem, na Itália, que combater a corrupção depois da Mãos Limpas é mais difícil do que era anteriormente. Por quê? Porque justamente a Legislação foi sendo afrouxada de tal maneira que inviabilizou o combate mais acirrado à corrupção. E receio que isso possa acontecer aqui no Brasil, ou, pior, que já esteja acontecendo”, lamenta.

Segundo o entrevistado especial da revista Política Democrática Online de outubro, o trabalho da força tarefa foi extremamente importante para que a sociedade brasileira tivesse a impressão de que a corrupção iria diminuir no país. Pouco depois, surgiram as “10 Medidas Contra a Corrupção”, ampliadas, posteriormente, para as “70 Medidas Contra a Corrupção”, um trabalho coordenado pela Fundação Getúlio Vargas e a Transparência Internacional, que contou com a participação de quase 300 entidades, inclusive a Contas Abertas. 

Gil Castello Branco realiza, frequentemente, palestras em workshops para empresários e cursos em instituições acadêmicas e nos principais veículos brasileiros de comunicação (O Estado de S. Paulo, TV Globo, Folha de S. Paulo, Fundação Getúlio Vargas, USP, UnB, O Globo, entre outros). Foi professor visitante da Unicamp (Universidade de Campinas) e colunista mensal dos jornais O Globo, Correio Braziliense e O Estado de S. Paulo.

Atualmente Castello Branco é o professor de curso EaD "No rastro digital do dinheiro público: como fiscalizar os gastos da União, Estados e Municípios", organizado pela Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, em parceria com a Contas Abertas.

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RPD || Entrevista especial: O Brasil está menos transparente, diz Gil Castello Branco

Economista fundador da Contas Abertas alerta que corrupção pode levar o país a perder no mínimo cerca de R$ 18 bilhões dos recursos federais usados no combate à pandemia

Por Caetano Araújo e Davi Emerich

Com mais de 150 mil brasileiros mortos em plena pandemia do novo coronavírus, o Brasil está menos transparente no combate contra a corrupção. A avaliação é do economista Gil Castello Branco, 68 anos, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, entidade que fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país.

Entrevistado especial desta 24ª edição da Revista Política Democrática Online, Castello Branco acredita que, em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. “Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos”, avalia.

Gil Castello Branco realiza frequentemente palestras em workshops para empresários, e cursos em instituições acadêmicas e nos principais veículos brasileiros de comunicação (O Estado de S. Paulo, TV Globo, Folha de S. Paulo, Fundação Getúlio Vargas, USP, UnB e O Globo, entre outros). Foi professor visitante da Unicamp e colunista mensal dos jornais O Globo, Correio Braziliense e O Estado de S. Paulo.

Para ele, “é preocupante constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário”, lamenta. “A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência”, completa Castelo Branco.

Atualmente Castello Branco é o professor do curso EaD No rastro digital do dinheiro público: como fiscalizar os gastos da União, Estados e Municípios, organizado pela Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, em parceria com a Contas Abertas. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

 
Revista Política Democrática Online (RPD) – Antes das eleições de 2018, o senhor dizia que as propostas dos candidatos estavam ao nível de “lava pé”. Estamos no mesmo nível ou houve alguma variação?    
  

Gil Castello Branco (GCB) – Acho que realmente as propostas tiveram a profundidade de um lava pé. Só que hoje estamos inclusive com dúvidas quanto ao que irá acontecer em relação às propostas. Atualmente estão no ar o Renda Cidadã, o Pró-Brasil e até a intenção de prorrogar o auxílio emergencial. Mas são propostas que esbarram em uma série de dificuldades, a começar pelo teto de gastos. O país está quebrado. Já vinha rachado antes da pandemia, com gastos maiores do que a arrecadação por seis anos seguidos. Já começávamos o ano no vermelho: essa era a realidade reinante de 2014 a 2019. Em 2020 não foi diferente; a meta fiscal antes mesmo da pandemia já era de um déficit de R$ 124,1 bilhões (Tesouro, Previdência e Banco Central). A previsão era um pouco melhor do que no início de 2019, cuja meta era de um déficit de R$ 139 bilhões.  

Acontece que a pandemia chegou e nos pegou, eu diria, em uma situação fiscal que já era bastante difícil. A dívida pública, que era de 51,5% do PIB em 2013, passou para 79% do PIB, em setembro de 2019. Em 2020, com a pandemia, poderá chegar a 95% do PIB, ou mesmo ficar acima de 100% do PIB.  

O governo tem pouca margem de manobra, diante de outro fator marcante no crescimento de nossa despesa pública. No início da década de 2000, exatamente em 2002, nossa despesa obrigatória correspondia a 76,8% da despesa primária (excluídas as despesas financeiras). Na proposta do orçamento para 2021, as despesas obrigatórias representam 93,7% do PIB. Ou seja, a despesa discricionária para 2021, a que o governo poderá eventualmente mexer, é de apenas 6,3% da despesa primária. Chego a achar curioso que o Congresso Nacional passe quatro meses, desde que o orçamento foi entregue, em 31 de agosto, para discutir o que será feito com aproximadamente 6% da despesa não-obrigatória. Esse engessamento restringe as margens de ajuste do governo. O investimento, que é o gasto nobre – obras, compras de equipamentos para hospitais, escolas etc. – vai ficar cada vez mais tendendo a zero. Em 2020, ele é só 0,4% do PIB.    

RPD – Passamos nos últimos anos por vários processos de avanço no combate às práticas de corrupção. Da Lava Jato sobrou algum avanço? Hoje é mais difícil roubar do que era antes ou não? Houve excessos por parte da Lava Jato, no que ficou conhecido como “Vaza Jato”?    

GCB – O Brasil é historicamente um país corrupto. Vejam, por exemplo, os indicadores da Transparência Internacional, divulgados todos os anos, apresentando os índices de percepção da corrupção, criados em 1995. Nos primeiros anos da série, quando a escala era de 0 a 10, o Brasil nunca chegou sequer a 5. Costumo dizer que nós nunca passamos de ano no que diz respeito à corrupção, porque não obtínhamos sequer a nota 5. Depois, quando a escala passou a ser de 0 a 100, o Brasil de novo não conseguiu chegar à nota 50. Em 2019, com a nota 35, o Brasil ficou em 106º lugar, em um universo de 180 países. Há 5 anos seguidos estamos caindo nesse ranking, o que reflete a percepção de um país cada vez mais corrupto.

A Lava Jato, a meu ver, estava modificando esse quadro. Antes dela não se viam poderosos indo para a cadeia, fossem eles empresários, políticos, banqueiros etc. Tive a ocasião de visitar a força tarefa da Lava Jato em Curitiba logo no início, e vi o quanto era importante a união de diversas pessoas em diversos segmentos para que a corrupção e o crime organizado pudessem ser combatidos. Integravam a força tarefa profissionais especialistas no sistema financeiro, bancário, pessoas que tinham a possibilidade de fazer conexões com o exterior para a colaboração internacional, e conheciam a fundo a Receita Federal. Com esse apoio, os procuradores conseguiram formatar processos com tal consistência que escritórios famosos de advocacia, desta vez, não conseguiram invalidar provas na origem, o que acontecia até então com frequência. Isso não aconteceu com a Lava Jato. Os escritórios de advocacia, inclusive os grandes escritórios criminalistas, passaram a não conseguir inocentar rapidamente os seus clientes. Quando surgiu o instrumento da delação premiada, alguns escritórios tradicionais foram até substituídos por outros mais especializados nessa linha de defesa.  

O excelente trabalho da força-tarefa foi extremamente importante para que tivéssemos a impressão de que a corrupção iria diminuir no país. Pouco depois, surgiram as “10 Medidas Contra a Corrupção” ampliadas posteriormente para as “70 Medidas Contra a Corrupção”, um trabalho coordenado pela Fundação Getúlio Vargas e a Transparência Internacional, que contou com a participação de quase 300 entidades, inclusive a Contas Abertas.  

O que está acontecendo com a Lava Jato no Brasil não é muito diferente do que aconteceu com a Operação Mãos Limpas na Itália. Quando a operação começou a atingir poderosos, dos mais diversos naipes, inclusive políticos, a operação começou a ser fragilizada por diversos meios. E, hoje, dizem na Itália, que combater a corrupção depois da Mãos Limpas é mais difícil do que era anteriormente. Por quê? Porque justamente a Legislação foi sendo afrouxada de tal maneira que inviabilizou o combate mais acirrado à corrupção. E receio que isso possa acontecer aqui no Brasil, ou, pior, que já esteja acontecendo.  

A meu ver, a “Vaza Jato” não trouxe absolutamente informação alguma que pudesse consignar a parcialidade do juiz, a favor ou contra um determinado réu. Meu pai era promotor de Justiça e um de seus grandes amigos era um juiz. Nossas famílias se relacionavam e jamais essa relação afetou a atividade profissional de ambos. O promotor e o juiz representam o Estado. Não vi nas denúncias da “Vaza Jato” qualquer ato ou informação que pudesse configurar prejuízo aos investigados.  

RPD – Haveria, a seu juízo, algum paradoxo entre os resultados políticos colhidos pelo candidato à Presidência em sua campanha em favor do combate à corrupção e a conduta do chefe de Estado, sobre o qual pesam evidências constrangedoras de envolvimento com a baixa corrupção e com o alto crime organizado?  
GCB – Sem dúvida, o presidente da República se elegeu em função da promessa de continuar o trabalho anticorrupção. Hoje, entretanto, sinto-me completamente decepcionado com o que vejo no Brasil, uma espécie de pacto em favor da impunidade, que já vinha sendo desenhado há alguns anos. Basta lembrar aquela frase do Romero Jucá: “Nós precisamos estancar essa sangria”. Essa era e é a opinião de vários políticos, e inclusive de alguns ministros do Supremo, que chegavam a dizer que o combate à corrupção estaria prejudicando o crescimento do país. A meu ver, uma falácia.  

Atualmente, percebo a existência de um pacto entre os Três Poderes. Foram adotadas medidas no Legislativo e no Judiciário que dificultaram o combate à corrupção. Por exemplo, dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, a mudança da interpretação da prisão a partir da condenação em segunda instância. Além disso, o presidente do Tribunal chegou a suspender a troca de informações que existia entre o Coaf, órgãos do Ministério Público e a Polícia Federal, decisão que foi, posteriormente, revista. Foram paralisadas investigações que a Receita Federal vinha fazendo, de forma absolutamente imparcial, em relação a algumas autoridades. No Legislativo, foi aprovado às pressas o projeto de lei de abuso de autoridade e não se tem observado pressa alguma na condução das propostas que podem recompor a prisão a partir de segunda instância. Foram também desidratadas as propostas anticorrupção apresentadas pelo então ministro Sérgio Moro, e engavetadas as 70 Medicas Contra a Corrupção, de iniciativa da sociedade civil.    

Nessa mesma linha, o presidente da República, preocupado com a defesa dos seus familiares atingidos por denúncias e por evidências de irregularidades, tomou várias decisões como rasgar a carta branca que ele tinha dado ao então ministro da Justiça Sérgio Moro, contrariando completamente o discurso de campanha, para influir nas decisões da Polícia Federal, o que na minha percepção, ficou absolutamente caracterizado, qualquer que seja a consequência. Além disso, indicou a dedo um Procurador-Geral da República que, muitas vezes, parece mais um advogado criminalista do que propriamente um membro do Ministério Público. Recentemente, o presidente indicou um novo ministro para o STF com base na opinião de políticos investigados e de atuais ministros da Corte que nunca se caracterizaram pelo enfrentamento rigoroso à corrupção.

Em resumo: creio que os instrumentos de combate à corrupção estão sendo enfraquecidos, tal como ocorreu na Itália. Temo que estejamos retrocedendo décadas no que diz respeito efetivamente ao combate à corrupção, com certa conivência da cúpula dos Três Poderes.    

RPD – Como você avalia a questão da reforma da Previdência, que também não é um privilégio do governo Bolsonaro, até porque várias medidas para reformá-la foram tomadas em governos anteriores, desde Fernando Henrique, passando por Lula e Dilma?    
GCB – A questão da Previdência, de fato, precisava ser novamente enfrentada, o que já vinha sendo discutido há muito tempo, há vários governos. A Previdência é a segunda maior despesa do país, após os juros. Para 2021, mesmo depois da reforma, apenas as despesas com a Previdência e Pessoal corresponderão a mais de R$ 1 trilhão. Dessa forma, de uma despesa primária de aproximadamente R$ 1,5 trilhão, cerca de R$ 1,077 trilhão serão gastos com Pessoal e Previdência. A reforma, porém, manteve privilégios, como por exemplo em relação aos militares que acabaram saindo com vantagens. Em decorrência da pandemia, a economia de R$ 700 bilhões que seria obtida em 10 anos com a reforma foi completamente consumida no combate ao Covid-19. A reforma também não alcançou os Estados e Municípios que continuam em uma situação extremamente difícil.    

RPD – E quanto às privatizações e às outras reformas, como a tributária?  
GCB – As privatizações, realmente, ainda não saíram do papel. Deve ter sido uma enorme frustração para o ministro Paulo Guedes, um liberal da escola de Chicago, como também para muitos do grupo que ele trouxe para o governo. Quanto à reforma tributária, existem, hoje, três propostas: uma na Câmara, uma no Senado, e outra do governo. Em outras palavras, quem tem três, não tem nenhuma. E não acredito que avancem, não só em função da pandemia, mas, também, das eleições. O governo, cada vez mais, vem adotando linha populista, em que a preocupação central é mais a eleitoral do que com a responsabilidade e a austeridade fiscal, fato que já afeta alguns parâmetros da economia.

O real foi a moeda que mais se desvalorizou nos últimos tempos dentre todos os países emergentes. A taxa de juros futuros está subindo e o governo poderá ter dificuldades para rolar a dívida. Já é perceptível a fuga de capitais, com cerca de R$ 88 bilhões deixando a Bolsa de Valores, o dobro do que aconteceu em todo o ano passado. A bolsa opera abaixo de 100 mil pontos, sintoma de insatisfação do mercado financeiro. A inflação está em processo de aceleração, sobretudo no segmento da alimentação. Trata-se, enfim, de uma série de parâmetros que revelam que os agentes econômicos, de uma maneira geral, não estão mais acreditando que o governo irá seguir com reformas e no caminho da responsabilidade fiscal.    

Agora, a cereja desse bolo populista é realmente a situação do Renda Cidadã e do Pró-Brasil. A preocupação maior do governo deixa o mercado de cabelo em pé. Nitidamente, a preocupação do governo não é apenas a de ampliar a base do Bolsa Família e sim fazer com que o valor médio desse novo programa, o Renda Cidadã, chegue o mais perto possível dos R$ 300,00 que está sendo pago como auxílio emergencial e alavancou a popularidade do presidente. Só que sair do atual valor médio de R$ 191,00 do Bolsa Família para valor próximo de R$ 300,00, além do aumento da base, irá significar um aumento relevante da despesa. O orçamento já está combalido e o país quase quebrado.  

Neste quadro fiscal extremamente difícil, há hipóteses do endividamento chegar ao final deste ano bem perto de 100% do PIB. A Instituição Fiscal Independente, do Senado Federal, trabalha com três cenários. No otimista, a dívida bruta do governo chegará a 92% do PIB; no cenário base atingiria 96,1% do PIB; no cenário pessimista a dívida alcançaria 101,3% do PIB. Quanto ao déficit primário, segundo estimativa do próprio governo, o Brasil só deverá reequilibrar suas finanças, ou seja, equilibrar receita e despesa, em 2026/2027. Mas, no cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente, isso só irá acontecer no início da década de 2030.    

RPD – Com a sua autoridade de dirigir “Contas Abertas”, o Brasil de hoje é mais ou menos transparente em relação a governos anteriores?    
GCB – O Brasil está menos transparente. Lembro que, logo nos primeiros meses do governo, houve a tentativa de fazer com que os documentos secretos pudessem ser declarados como tal por uma quantidade enorme de pessoas. Ao se aprovar a Lei de Acesso à Informação, a ideia era justamente limitar o número de pessoas com essa capacidade, para que fosse possível manter maior controle sobre os documentos secretos e quem decidiria pelo sigilo maior. O Fórum de Acesso às Informações Públicas tem interpelado a Controladoria Geral da União sobre situações de restrição à transparência. Em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos. A Lava Jato de Curitiba conseguiu recuperar efetivamente pouco mais de R$ 4 bilhões, e tem o objetivo de, no médio/longo prazos, recuperar cerca de R$ 14 bilhões. Estamos, portanto, diante da possibilidade de uma fraude enorme, em volume inédito, em tão pouco espaço de tempo, durante a pandemia. Isso supondo o percentual de 3%. Pelo que já tomamos conhecimento de desvios no pagamento de auxílio emergencial, na compra de respiradores, máscaras, álcool em gel, toucas, na construção de hospitais de campanha etc., serão apenas 3%?  O maior antídoto contra a corrupção é a transparência.

Algo preocupante é constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário. A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência, até mesmo porque as medidas de enfrentamento à corrupção tiveram caráter emergencial. Esta emergência, embora indiscutível, pode ter gerado facilidades maiores para os corruptos.  

RPD – Ou seja, a tendência é pessimista.    
CB – Sim. A emergência não revoga os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A emergência não dispensa a fiscalização rigorosa por parte do Ministério Público, Tribunais de Contas e da própria sociedade. Tal como já dizia há um século um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, “a luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. A transparência é essencial para que exista o controle social. Repito, na hipótese de desvio de 3% do montante destinado ao enfrentamento à pandemia, a corrupção atingiria a R$ 18 bilhões. A corrupção no Brasil pode ter-se tornado mais horizontal do que muitos imaginam. 


‘Lista de perdedores é imensa’, diz Everardo Maciel sobre propostas de reforma tributária

Em entrevista à revista online e mensal da FAP, especialista lembra que até o livro pode ser prejudicado

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

As propostas de reforma tributária não são nada animadoras para a população em geral, conforme avalia o consultor jurídico e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. “A lista de perdedores é imensa”, alerta o especialista, em entrevista que concedeu à revista Política Democrática Online de setembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Acesse aqui a edição de setembro da revista Política Democrática Online!

Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional.

“[A lista de perdedores] começa com os mais de 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais”, afirma. “Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médica”, ressalta. 

Na avaliação de Maciel, para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. “De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público”, analisa.

Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. “Desde 1946, o livro é desonerado de tributos. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração”, critica ele. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.

Outro alvo desse aumento de carga tributária, segundo o ex-secretário da Receita Federal, é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. “Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo”, afirma.

No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito. Segundo o consultor jurídico, a indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%. 

“No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável. 

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RPD || Entrevista especial - Ex-secretário da Receita critica reforma tributária: 'Juntar tributos não é simplificar'

Entrevistado especial desta 23ª edição da Revista Política Democrática Online, Everardo Maciel avalia que a proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro tem a intenção de cobrar mais do setor de serviços, que sofrerá com o aumento da carga

Por Caetano Araujo e José Luiz Oreiro

A reforma tributária voltou à pauta do Congresso Nacional neste segundo semestre de 2020. Além das propostas em tramitação na Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) e no Senado Federal (PEC 110/2019), o governo Jair Bolsonaro enviou aos parlamentares um texto próprio para ser analisado. Como essas mudanças podem afetar o cidadão? O ex-secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002 (Governo FHC), Everardo Maciel, responde a essa e a outras questões na entrevista especial desta 23a edição da Revista Política Democrática Online. Everardo Maciel também é consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - A proposta da reforma tributária do governo não promete harmonização de tendências e, menos ainda, horizonte promissor para o contribuinte. Quais são os problemas centrais dessa proposta?  
Everardo Maciel (EM) -
Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional. Logo em seguida esse pedido de urgência foi retirado, alegando-se que ele estava obstruindo a tramitação de um projeto de alterações no Código de Trânsito. A alegação é claramente inverossímil.

O projeto de instituição da CBS, por sua vez, seria acompanhado de outras iniciativas, sempre anunciadas de forma imprecisa e jamais encaminhadas. Definitivamente, não sei qual é a proposta do governo. Por aí, já se pode ver a confusão que envolve o assunto.  
 

O PRINCIPAL PROBLEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO, À LUZ DA MINHA EXPERIÊNCIA, É O PROCESSO TRIBUTÁRIO, QUE COMPROMETE A SEGURANÇA JURÍDICA E INIBE INVESTIMENTOS

RPD: Por que isso?
EM:
A matéria tributária é muito árida, o que faculta muitas especulações, em geral recheadas de chavões e dogmatismos, além de falsas ilações.  

Um chavão recorrente é a pretensão de simplificar o sistema tributário brasileiro. Essa pretensão se traduz, com frequência, em fusão de tributos. Juntar tributos não necessariamente simplifica. Um exemplo disso é a proposta de criação da CBS, a partir da fusão do PIS com a COFINS.  

PIS e COFINS são contribuições regidas por uma mesma legislação e pagas por um mesmo documento de arrecadação. A diferença se dá não no âmbito tributário, mas no da destinação das receitas. O PIS financia o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES, e a COFINS é uma das fontes de financiamento da seguridade social.  

A determinação do valor a pagar na sistemática cumulativa do PIS/COFINS consiste em mera multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo. Já na CBS, proposta pelo governo, é bem diferente.  Veja o que estabelece o artigo 11 do projeto de lei: "É vedada a apropriação de crédito em relação a bens e serviços vinculados a receitas não sujeita a incidência ou isenta da contribuição...Na hipótese de haver bens e serviços vinculados simultaneamente a receitas que permitam e a receitas que não permitam a apropriação de tais credos, a vinculação a cada tipo de receita será feito por meio da aplicação de um dos seguintes métodos. ... Apropriação direta por meio de um sistema de contabilidade de custos integrado e vinculado com a escrituração". Evidente que não há nenhuma simplificação; ao contrário, a apuração se tornaria bem mais complexa.

A propósito, registro que o modelo cumulativo de tributação do PIS/COFINS, que se pretende extinguir, é justamente o que está sendo adotado para taxação dos serviços digitais em países da Europa e até da Ásia. Não é uma é tributação de consumo, mas de renda. No Brasil, ao tempo em que se diz que tributamos demasiadamente o consumo em comparação com a renda, se propõe, na PEC 45, fundir o PIS/COFINS com os impostos de consumo (ICMS, ISS, IPI).  Afirma-se uma coisa e se faz justamente o oposto, em completo desencontro entre o discurso e a ação.

RPD: Qual sua opinião sobre o imposto de bens e serviços, que seria uma espécie de IVA para a economia brasileira, uma das propostas que está no Congresso Nacional, baseada em estudo do Centro de Cidadania Fiscal? Resolve o problema tributário brasileiro? É uma má ideia?  
EM:
Eu acho uma péssima ideia. Repetem-se chavões. Há de se esclarecer que o IVA não é um imposto, é uma forma de extração. Tributação do imposto de renda no regime do real é um imposto sobre o valor agregado. O primeiro país do mundo que adotou no consumo o imposto do valor agregado até o varejo foi o Brasil, com o ICM, imposto que, entretanto, se deformou muito.  

A intenção é fundir PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI, mediante criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que conviveria com um Imposto Seletivo, cuja base de incidência não é clara.  

Brasília - O ex-Secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo de Almeida Maciel, durante audiência pública na CPI do CARF, na Câmara dos Deputados ( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

"O MODELO CUMULATIVO DE TRIBUTAÇÃO DO PIS/COFINS, QUE SE PRETENDE EXTINGUIR, É JUSTAMENTE O QUE ESTÁ SENDO ADOTADO PARA TAXAÇÃO DOS SERVIÇOS DIGITAIS EM PAÍSES DA EUROPA E ATÉ DA ÁSIA. NÃO É UMA É TRIBUTAÇÃO DE CONSUMO, MAS DE RENDA"

Ora, o IPI já é um imposto seletivo. Caso se pretenda reduzir sua base de incidência, basta atribuir alíquota zero aos produtos que se pretenda desonerar por meio de um simples decreto. A única explicação para essa esdrúxula solução seria uma agenda oculta, como, por exemplo, acabar com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio da Amazônia.

A rigor, as propostas de criação do IBS ou da CBS representam monumental redistribuição de carga tributária entre os setores, com inevitável repercussão sobre o preço dos bens e serviços.

Essa redistribuição não é divulgada. Omite-se convenientemente para interditar o debate, obrigando os estudiosos e os próprios contribuintes a fazerem os cálculos das repercussões, para, em seguida, veiculá-los na mídia e no Congresso.

RPD: Quem ganha e quem perde com essas propostas?
EM:
A lista de perdedores é imensa. Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas.  

Para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público.

Outro alvo desse aumento de carga tributária é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo.  

No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito.  

A indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%.  

No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável.  

Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. Desde 1946, o livro é desonerado de tributos, por força de um projeto apresentado por Jorge Amado, deputado constituinte eleito pelo Partido Comunista Brasileiro e integrante da bancada da Bahia. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.  

No projeto do IBS, as instituições financeiras são as principais ganhadoras, que seriam totalmente desoneradas da vigente tributação do PIS/COFINS, cujo montante anual é de 25 a 30 bilhões de reais.  

Acrescente-se que as propostas do IBS e da CBS preveem cobrança com alíquota única, que é a forma mais regressiva de tributação do consumo, como mostra estudo recente produzido pela OCDE. 

RPD: Existem problemas no ICMS e no ISS?  
EM:
Sim, existem, como de resto em todos os lugares do mundo. Por exemplo, as fraudes no IVA europeu, tão elogiado nestas bandas, chegam a 50 bilhões de euros anuais, de acordo com dados divulgados pela Procuradoria Geral da União Europeia no ano passado.  

O ICMS tem problemas relacionados com a grande diversidade de alíquotas nominais e efetivas, devolução de créditos acumulados. O disciplinamento do ISS é claudicante. E ambos carecem de regras para a prática da competição fiscal e prevenção da guerra fiscal.

A solução dos problemas desses impostos é perfeitamente viável pela via infraconstitucional, mantida a atual competência tributária dos Estados e dos Municípios.

Brasília - O ex-Secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo de Almeida Maciel, durante audiência pública na CPI do CARF, na Câmara dos Deputados ( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

"PARA JUSTIFICAR O AUMENTO DA TRIBUTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, ARGUMENTA-SE QUE QUEM FAZ USO DESSES SERVIÇOS SÃO RICOS, DESCONHECENDO A IMENSA DEMANDA DA CLASSE MÉDIA. DE MAIS A MAIS, ESSA ONERAÇÃO HAVERIA DE SOBRECARREGAR O SUS E A REDE PÚBLICA DE ENSINO"

RPD: Como prevenir a guerra fiscal?
EM:
Aqui, se costuma confundir guerra fiscal com competição fiscal, que é algo inerente à história dos tributos em todo o mundo desde sempre. Guerra fiscal é a competição fiscal ilícita, contra a lei.  

A guerra fiscal do ICMS tomou corpo depois da Constituição de 1988, por dois motivos: primeiro, porque inexiste até hoje a lei complementar para disciplinar a concessão e revogação de benefícios fiscais, conforme previra aquela Constituição, preservando-se o regramento previsto na Lei Complementar nº 24, de 1975, cujas sanções pelo seu descumprimento tornaram-se letra morta em razão de mudanças constitucionais posteriores; segundo, porque a União demitiu de si a responsabilidade pela coordenação do ICMS, com a extinção do órgão por isso responsável, na reforma administrativa do governo Collor.  

Exigência sem sanção e tributação de índole nacional sem coordenação criaram as condições propícias para expansão da guerra fiscal do ICMS. O remédio para esse problema é tão somente editar a lei complementar, fixando os critérios para concessão e revogação de benefícios e as sanções pelo descumprimento, bem como restabelecer a coordenação nacional.

A proposta do IBS veda a concessão de benefícios fiscais, substituindo-os por subsídios consignados na proposta orçamentária anual. Isto é de um irrealismo atroz ou é uma forma dissimulada de extinguir a competição fiscal, indispensável à correção das desigualdades regionais de renda, como preconizado na Constituição. Qual investidor que vai fazer um investimento acreditando que durante dez anos os orçamentos anuais irão consignar subsídio para sua atividade, concorrendo com gastos públicos clássicos, como educação, saúde e segurança pública?   

RPD: E quanto à oportunidade do debate sobre a reforma tributário?
EM:
Creio que é um debate completamente inoportuno, que consome a atenção política e a energia política necessárias ao enfrentamento da pandemia e seus graves desdobramentos, em termos econômicos e sociais.

Afora isso, é uma discussão desabastecida de um diagnóstico do sistema tributário brasileiro, alternativas de soluções e mensuração dos impactos sobre contribuintes, preços e entes federativos.  

Se você quer tributar mais a escola e a consulta médica e reduzir a tributação de geladeiras, que o diga e abra a discussão na sociedade. O que não pode é tratar de matéria tão sensível, com agendas ocultas. Não foi apresentada uma página sequer mostrando as repercussões das propostas.

É completamente desarrazoado discutir reformas estruturais em meio a uma pandemia, com base em apresentações em PowerPoint e videoconferências. 

RPD: Qual é, então, o principal problema tributário brasileiro?  
EM:  
O principal problema tributário brasileiro, à luz da minha experiência, é o processo tributário, que compromete a segurança jurídica e inibe investimentos.

Só no âmbito federal, os litígios tributários, no final de 2018, totalizavam R$ 3,44 trilhões. Os processos de execução da dívida ativa representam 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira.

Esses litígios têm três fontes: o fisco, o contribuinte e a indeterminação de alguns conceitos.  

A litigiosidade gerada pelo fisco decorre da inexistência de limites para o lançamento. Autos de infração insubsistentes geram custos financeiros e reputacionais apenas para o contribuinte. Não há sucumbência para o fisco. A solução para esse problema consiste em estabelecer a integração entre o processo administrativo e o judicial, como havia sido proposto por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Sousa, Gilberto Ulhoa Canto e Geraldo Ataliba. Essa integração permitiria que a parte vencida no processo administrativo pudesse requerer revisão da decisão em um tribunal do Judiciário.

A segunda fonte de litígio é o contribuinte. A possibilidade de questionamento da matéria tributária no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, isto é, perante um juiz de primeira instância, pode gerar desequilíbrios concorrenciais entre contribuintes e insegurança jurídica, pois o tempo médio entre o ingresso da ação e o desfecho no STF é de 20 anos.  É nesse contexto que prospera a indústria das teses, pois a matéria tributária na Constituição tem extensão amazônica. Apenas como exemplo, o número de palavras do capítulo tributário da Constituição Brasileira é o dobro do número de palavras de toda a Constituição americana. É, por conseguinte, enorme a possibilidade de questionamento constitucional da matéria tributária.  

A terceira fonte de litígio são conceitos indeterminados que motivam controvérsias administrativas e judiciais, como planejamento tributário abusivo, dedutibilidade do ágio, interposição fraudulenta no comércio exterior.

Há claramente a necessidade de conferir-se nova construção normativa para esses conceitos, promovendo-se a resolução do contencioso atual por meio de transação.

Na pauta de problemas tributários, deve ser acrescentado o burocratismo, completamente esquecido nos projetos de reforma tributária. Por fim, há os problemas específicos dos tributos, como mencionado.   

RPD - Em relação aos perigos de expansão, fortalecimento, dos paraísos fiscais no mundo e o que isso pode trazer muitos problemas para nós, quais seriam as diretrizes do governo de forma a enfrentar esse problema?  
EM -
O Brasil foi o primeiro país do mundo que conceituou, objetivamente, paraíso fiscal. Em legislação de 1996, ficou estabelecido que paraíso fiscal é um país ou dependência que tributa imposto de renda da pessoa jurídica com alíquota igual ou inferior a 20%. Além disso, estabeleceu contramedidas para os negócios com paraísos fiscais, ao elevar de 15 para 25% a retenção na fonte nas operações de remessa e tornar obrigatório o ajuste por preços de transferência ainda que o negócio fosse realizado por empresas não vinculadas.

Somente em 1918, a União Europeia estabeleceu critérios para qualificar uma jurisdição tributária como paraíso fiscal. Ainda que tenha admitido a possibilidade de adoção de contramedidas, nenhum país as implementou, sem que fosse surpreendente, porque, na União Europeia, se encontram vistosos paraísos fiscais, como Luxemburgo e Irlanda.  

A erosão das bases tributárias, como deslocamento de lucros para paraísos fiscais, é seguramente o maior tributário contemporâneo. Dois exemplos dessa patologia: os investimentos diretos em Luxemburgo são equivalentes aos efetivados na China e nos Estados Unidos; os investimentos em empresa de fachada no mundo são maiores que o PIB da Alemanha e da China.

Esse problema é tão grave que, em 2013, o G-20, reunido em Moscou, decidiu conferir mandato à OCDE para desenvolver um programa chamado BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), com o objetivo de indicar soluções para esse problema. Apesar de muito ambicioso, o programa não apresentou, até agora, nenhum resultado concreto.  

"A EROSÃO DAS BASES TRIBUTÁRIAS, COMO DESLOCAMENTO DE LUCROS PARA PARAÍSOS FISCAIS, É SEGURAMENTE O MAIOR TRIBUTÁRIO CONTEMPORÂNEO. DOIS EXEMPLOS DESSA PATOLOGIA: OS INVESTIMENTOS DIRETOS EM LUXEMBURGO SÃO EQUIVALENTES AOS EFETIVADOS NA CHINA E NOS ESTADOS UNIDOS"

RPD: Você considera os problemas da centralização tributária um óbice à reforma? E a progressividade dos nossos tributos é uma outra questão problemática?  
EM
: Começo com a centralização. É difícil falar se há ou não centralização tributária, quando sequer temos um federalismo fiscal bem estruturado. Não se sabe com clareza a repartição de responsabilidades públicas entre os entes federativos. Então como se falar em centralização? A precisa partilha de receitas coexiste com uma imprecisa e lacunosa repartição de encargos públicos.  

A previsão constitucional (art. 23, parágrafo único) para regulamentar por lei complementar o federalismo cooperativo jamais prosperou.  

Quanto à progressividade no sistema tributário, a verdade é que não existe estudo consistente sobre a matéria no Brasil. Os trabalhos divulgados estão assentados em hipóteses frágeis e juízos de valor questionável.

Cada vez se fortalece a convicção de que a progressividade melhor se efetiva pelo lado do gasto público.  

A despeito disso, há situações específicas de evidente regressividade no sistema tributário, como a extinta dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido das empresas no âmbito do IRPJ. Por conta dessa regra, grandes empresas em circunstâncias de inflação elevada praticamente não recolhiam aquele imposto.  

A eliminação dessa dedutibilidade, em 1995, abriu espaço para adoção de inúmeras medidas, como a redução das alíquotas nominais do IRPJ, a adoção dos juros remuneratórios do capital próprio, a isenção na distribuição de resultados, a ampliação do limiar do lucro presumido, a instituição do Simples para as pequenas e microempresas, etc. Como consequência dessa reforma, entre 1996 e 2002, o IRPJ, como proporção do PIB, cresceu, 50% e a arrecadação teve um aumento de 117% acima do IPCA. Portanto, funcionou, deu certo.  


‘Falta tudo à educação brasileira’, diz Arnaldo Niskier à Política Democrática Online

Em entrevista à revista mensal da FAP, professor alerta para o apagão educacional no país

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Membro da Academia Brasileira de Letras e ex-membro do Conselho Nacional de Educação, o professor Arnaldo Niskier avalia que o país sofre sem um plano nacional de educação e com o principal órgão – o Ministério da Educação – minado por uma gestão precária que mistura ideologia com gestão escolar. "Essa mistura não é saudável: prejudica os beneficiários do processo – os estudantes", avalia, em entrevista concedida ao ex-senador Cristovam Buarque e ao sociólogo Caetano Araújo, publicada na revista Política Democrática Online de agosto. “Falta tudo à educação brasileira”, diz.

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A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todas as edições podem ser acessadas, gratuitamente, no site da instituição. Niskier é autor de mais de 100 livros, especialmente sobre educação, professor aposentado de História e Filosofia da Educação da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e doutor em Educação pela mesma instituição. Foi membro do Conselho Federal de Educação, do Conselho Estadual de Educação e do Conselho Nacional de Educação e secretário de Estado do Rio de Janeiro por quatro vezes.

Na entrevista exclusiva, Niskier lembra que o Brasil tem 60 milhões de estudantes nas escolas do país, os quais, na opinião do especialista, estão mal servidos. “Não estão tendo a cobertura devida para suas necessidades, e isso é, sem dúvida, negativo”, lamenta.

De acordo com Niskier, “o país precisa que o Ministério da Educação acorde definitivamente” para montar uma equipe positiva, que se preocupe com os verdadeiros problemas da educação, e não faça da ideologia um procedimento prioritário. “Porque não é essa a prioridade do nosso país", avalia.

Em outro trecho, ele critica à falta de estrutura de tecnologia nas escolas. “"A grande maioria de nossas escolas, de um total de 190 mil escolas em todo o Brasil, ainda não tem condições operacionais legítimas, diante da ausência da internet. E como funcionar sem internet? Não dá", afirma.

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Falta de liderança é um dos ‘fatores muito graves’ para combate à Covid-19, diz Luiz Antonio Santini

Em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de julho, ex-diretor do Inca acredita que até o fim do ano a doença possa ser controlada

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ex-diretor do Inca (Instituto Nacional do Câncer), o pesquisador Luiz Antonio Santini alerta para os erros que o governo federal tem cometido na luta contra a pandemia do novo coronavírus e ressalta o importante papel do SUS (Sistema Único de Saúde), que, segundo ele, está sendo subutilizado. “A falta de conhecimento estruturado sobre a doença, a ausência de organização, a falta de liderança, uma disposição permanente de questionar a própria ciência, são fatores muito graves para a implementação de uma política pública eficaz”, afirmou, em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de julho.

A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todas edições podem ser acessadas, gratuitamente, no site da entidade, que também faz ampla divulgação em seus perfis no Instagram e no Twitter e em sua página no Facebook. Na avaliação do médico, que atuou como diretor do Inca por 10 anos, a estratégia de guerra implica a normalização do dano colateral. “Torna-se aceitável a morte de várias pessoas, a começar pelos profissionais de saúde. Isso precisa ser revisto. A conclusão de ‘vamos todos morrer um dia’ não edifica"”, criticou ele.

Santini acredita no controle da doença no Brasil antes mesma de uma vacina contra a Covid-19. "Acho possível imaginar que, até o final do ano, mesmo antes do surgimento de uma vacina, essa doença possa estar controlada no Brasil”, disse. “Ainda mais porque temos tem grande vantagem sobre vários outros países, que é um sistema de saúde robusto, o SUS, mesmo não tendo sido até o momento adequadamente aproveitado", acrescentou.

O médico faz duras críticas à falta de liderança por parte do governo federal diante da pandemia do coronavírus no país. "Quanto à questão política, mantida essa atitude governamental de ausência de uma liderança, e, portanto, falta de confiança no que está sendo implementado, acredito que a tendência é não se conseguir equacionar esse problema até o fim do ano, vale dizer o aparecimento de uma vacina", lamentou.

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RPD || Entrevista especial: País precisa de uma estratégia articulada contra a pandemia, diz Luiz Santini

Ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca) por 10 anos, o médico e pesquisador Luiz Santini avalia que o governo federal erra na luta contra o novo coronavírus por subutilizar o Sistema Único de Saúde (SUS) e pela ausência de uma liderança nacional, o que implica a falta de confiança no que está sendo implementado, entre outros fatores

Por Caetano Araujo e Paulo Santa Rosa

“A comunidade dos índios Yanomamis não está, digamos, preparada imunologicamente para responder a medidas destinadas a controlar ou reduzir os danos possíveis de uma epidemia. Em segundo lugar, a distribuição de medicamentos que até hoje não contam com a devida comprovação de sua eficácia concreta, do ponto de vista médico-sanitário, para conter um surto epidêmico constitui, a meu ver, uma atitude irresponsável, de parte do Ministério da Saúde, do Ministério da Defesa, do governo de um modo geral", alerta o médico Luiz Antonio Santini, pesquisador do CEE-Fiocruz, que, por dez anos (2005-2015), dirigiu o Instituto Nacional do Câncer (Inca).

O pesquisador do CEE-Fiocruz, que vem estudando há algum tempo a questão da metáfora da guerra aplicada à área da saúde, como atualmente muitos governos – inclusive o brasileiro – tratam o combate à pandemia do novo coronavírus, critica tal forma de enfrentamento. “Imaginar que se possa recorrer a um enfrentamento, tipo belicoso, contra uma pandemia, é totalmente inadequado”, avalia. No caso brasileiro, fica ainda pior, pondera. “Agora, para o nosso caso aqui, para o Brasil, o mais importante seria haver uma estratégia articulada. Poderemos evitar mortes, como poderíamos ter feito no passado, ao invés de seguir vivendo esse processo caótico que ainda nos levará a um número maior de mortes evitáveis. Isso é trágico, merecíamos uma situação diferente dessa, sem dúvida alguma”, completa.

O envolvimento das Forças Armadas na gestão da saúde pública do país e a tentativa do governo federal de tentar se eximir de responsabilidade na pandemia estão no centro da mais nova polêmica envolvendo o Governo Bolsonaro, após críticas feitas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que citou o genocídio de índios por conta das ações do Ministério da Saúde, além de ter criticado o excesso de militares na Pasta. “De qualquer forma, concordo com que, caso se confirme a notícia de distribuição da cloroquina aos índios de Roraima, poderá haver risco de dano irreparável àquelas populações”, alerta Santini.

Santini é o entrevistado especial desta 21ª edição da Revista Política Democrática Online. Na entrevista, o pesquisador do CEE-Fiocruz acredita ser possível imaginar que, até o final do ano, mesmo antes do surgimento de uma vacina, essa doença possa estar controlada no Brasil. “Temos uma grande vantagem sobre vários outros países, que é um sistema de saúde robusto, o SUS, mesmo não tendo sido até o momento adequadamente aproveitado”, afirma Santini.


“Na minha condição de diretor do Instituto Nacional de Câncer por dez anos, aprofundei estudos sobre o tema, aproveitando um período de grande impulso no campo do conhecimento a respeito da doença. Pude, então, verificar com toda clareza que a referida metáfora (guerra) era inadequada, para explicar a origem ou propor estratégia eficaz para se enfrentar o problema”

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD): Foto divulgada por matéria de jornal de Roraima registra a chegada de carregamento de cloroquina para ser distribuído aos índios Yanomamis. A notícia, posteriormente reproduzida por outros órgãos de imprensa no país, pode ter embasado a recriminação do Ministro Gilmar Mendes de ausência de uma política sanitária responsável de parte do governo, de combate à pandemia do coronavírus, com menção inclusive a eventual genocídio?

Luiz Santini (LS): Eu creio que sim. À margem da polêmica criada em torno da expressão usada pelo ministro, destaco, em primeiro lugar, que a comunidade dos índios Yanomamis não está, digamos, preparada imunologicamente para responder a medidas destinadas a controlar ou reduzir os danos possíveis de uma epidemia. Em segundo lugar, a distribuição de medicamentos que até hoje não contam com a devida comprovação de sua eficácia concreta, do ponto de vista médico-sanitário, para conter um surto epidêmico constitui, a meu ver, atitude irresponsável, de parte do Ministério da Saúde, do Ministério da Defesa, do governo de um modo geral. Se isso vier a se configurar como um genocídio ou não, caberá aos órgãos da Justiça, até aos tribunais internacionais, avaliarem. De qualquer forma, concordo com que, caso se confirme a notícia de distribuição da cloroquina aos índios de Roraima, poderá haver risco de dano irreparável àquelas populações.

RPD: Em artigo recentemente veiculado pela Fundação Oswaldo Cruz, o senhor recorreu à metáfora de uma guerra para descrever o combate à epidemia. Considerando o efeito colateral de mortes no caso da guerra, poderia ampliar esse seu comentário?

LS: Há algum tempo, venho estudando essa questão da metáfora da guerra aplicada à área da saúde. Desde quando se identificou, lá no final do século passado, um micro-organismo que produzia doença, uma consequência natural e até compreensível, dentro do paradigma pasteuriano, foi gerar a ideia do combate, como metáfora principal e organizadora do pensamento médico. Ao longo dos anos, porém, a ciência tem demonstrado que, na verdade, o agente causal de uma doença é composto por múltiplos fatores, entre os sociais, ambientais e, até, os relacionados à capacidade de reação do próprio indivíduo. A metáfora da guerra foi, assim, totalmente desautorizada do ponto de vista da ciência, ainda que, no imaginário coletivo, continue popular. Na minha condição de diretor do Instituto Nacional de Câncer por dez anos, aprofundei estudos sobre o tema, aproveitando um período de grande impulso no campo do conhecimento a respeito da doença. Pude, então, verificar com toda clareza que a referida metáfora era inadequada, para explicar a origem ou propor estratégia eficaz para se enfrentar o problema. Por exemplo, o Presidente Richard Nixon lançou, ainda nos anos 1960, o que chamou literalmente de “guerra” contra o câncer. Destinou recursos expressivos para alcançar o objetivo no espaço de cinco anos, inversão que fez história na luta contra o câncer, permitindo, inclusive, a criação do Instituto Nacional de Câncer americano, um dos maiores centros financiadores de pesquisa, de pesquisa básica, no setor. Mas, se de guerra se tratava, ela foi perdida. A doença continua grassando. Imaginar que se possa recorrer a um enfrentamento, de tipo belicoso, contra uma pandemia, é totalmente inadequado.

“Além de transferir a culpa pelos óbitos, a estratégia da guerra implica a normalização do dano colateral. Torna-se aceitável a morte de várias pessoas, a começar pelos profissionais de saúde. Isso precisa ser revisto. A conclusão de ‘vamos todos morrer um dia’ não edifica”

Restringindo-me à pandemia em curso e simplificando a questão, aponto duas características principais. A primeira, comum na origem das pandemias, é a humanização de um vírus animal, como foram os casos da gripe aviária, da febre suína, da síndrome da vaca louca E por que acontece isso? Porque ocorre, frequentemente, certo desequilíbrio ambiental, em que as situações que excluíam o contato entre os animais e as pessoas têm lugar, devido a uma possível maior exposição. A febre amarela é um bom exemplo disso no Brasil. A reurbanização da febre amarela foi consequência da expansão da fronteira agrícola, da expansão da utilização de florestas e das áreas de florestas, o que reforça a tese da inadequação da metáfora bélica no controle de pandemias.

Há, ainda, outros ângulos a serem considerados nessa discussão. Além de transferir a culpa pelos óbitos, a estratégia da guerra implica a normalização do dano colateral. Torna-se aceitável a morte de várias pessoas, a começar pelos profissionais de saúde, expostos, em grande escala no país, à doença, muitas vezes sem a devida proteção. Isso precisa ser revisto. A conclusão de “vamos todos morrer um dia” não edifica. É verdade que há mais registros de morte por câncer e doenças cardiovasculares do que por Covid-19, mas em um intervalo temporal completamente diferente da atual pandemia.

RPD: Não obstante o fato de que são insuficientes as informações de que dispomos sobre a pandemia, para a angústia dos pesquisadores, pode-se, com seriedade, arriscar alguma previsão quanto ao seu desenvolvimento, no Brasil, nos próximos meses? E que implicações políticas, extraídas dessa conjuntura, afetará a popularidade dos governantes?

LS: Esclareço, de início, que não sou um especialista em epidemiologia, mas tenho conversado com epidemiologistas e lido bastante sobre a doença. De fato, estamos ainda aprendendo com essa doença. Tudo se dificulta ante a desorganização de uma possível estratégia nacional de enfrentamento, bem como o tempo perdido com discussões adjetivas, em claro prejuízo para todos. A falta de conhecimento estruturado sobre a doença; a ausência de organização; a falta de liderança; e uma disposição permanente de questionar a própria ciência são fatores muito graves para a implementação de uma política pública eficaz. Fica, assim, muito difícil ensaiar previsão do que possa acontecer em função da história natural da pandemia.

De qualquer forma, tem-se observado, em experiências ainda recentes, certa redução dos indicadores clássicos da pandemia, como a utilização de leitos de UTI, cifras da mortalidade diária ou semanal e o número de novos casos. Talvez esse cenário, a se manter firme, possa indicar um eventual achatamento da curva de contaminação e óbitos, desde que se intensifique a testagem, para, entre outros, evitar maiores consequências em caso de uma temida segunda onda de contágios.

Em resumo, acho possível imaginar que, até o final do ano, mesmo antes do surgimento de uma vacina, essa doença possa estar controlada no Brasil. Ainda mais porque temos grande vantagem sobre vários outros países, que é um sistema de saúde robusto, o SUS, mesmo não tendo sido até o momento adequadamente aproveitado. Por exemplo, toda a estrutura de atenção básica, de atenção primária, do SUS, que é de vital importância, não foi utilizada, ou foi mal utilizada. Os agentes comunitários de saúde, o Programa Saúde da Família, nada disso foi mobilizado de forma adequada, para enfrentar o problema, o que também dificulta eventual previsão.

Quanto à questão política, mantida essa atitude governamental de ausência de uma liderança, e, portanto, de falta de confiança no que está sendo implementado, acredito que a tendência é não se conseguir equacionar esse problema até o fim do ano, vale dizer, o aparecimento de uma vacina, e, quando aparecer, isso só será significativo para o próximo episódio da pandemia. Para esse cenário, a vacina que existe é a estratégia do isolamento, da lavagem de mãos, ou seja, é a mesma estratégia que foi seguida há mais de 100 anos no combate à Gripe Espanhola.

“Acho possível imaginar que, até o final do ano, mesmo antes do surgimento de uma vacina, essa doença possa estar controlada no Brasil. Ainda mais porque temos tem grande vantagem sobre vários outros países, que é um sistema de saúde robusto, o SUS, mesmo não tendo sido até o momento adequadamente aproveitado”

RPD: Considerando que vírus preocupantes, como o HPV, por exemplo, até hoje são tratados com algum êxito via remédios e não, ainda, com vacinas, pergunto se, nessa linha, é possível algum otimismo interino para se combater a Covid-9 com o apoio preliminar de medicamentos?

LS: Eu acredito nas vacinas que estão sendo pesquisadas no Brasil, tanto a que se desenvolve com o Butantã, como a da parceria com a Fiocruz, que é da Universidade Oxford e outras instituições internacionais. As duas instituições brasileiras têm não só experiência reconhecida na produção de vacinas – uma questão tecnológica necessária para etapa seguinte, a produção em escala –, mas também capacidade de avaliar o potencial das vacinas e dos medicamentos. São instituições que têm larga tradição nesse tipo de ciências, de conhecimento científico e produção tecnológica, produção até industrial. Por isso, acho que são projetos promissores.

Acrescento outro dado positivo. O Brasil tem larga experiência no setor da vacinação, mais um traço reconhecido do Sistema Único de Saúde. Desde os anos 1980, desenvolvemos programa nacional de imunização, que é considerado exemplar, pela eficiência e amplitude com que foi implementado.

Temos de reconhecer um problema recente, ligado a um movimento antivacina, por enquanto basicamente circunscrito aos Estados Unido, vale dizer, a grupos religiosos extremados, que defendem a tese de que há vacinas destinadas a imunizar meninas contra um vírus transmissível pela relação sexual, mensagem inequívoca, segundo eles, de incentivo à liberação sexual das jovens. Uma maluquice total, compreensível, entretanto, dentro daquela cultura de setores negacionistas da sociedade americana. Mas de minha parte, considero a vacina algo promissor.

Quanto aos medicamentos, recordemos que já existem linhas de produção muito ativas, desde o surgimento do HIV e da AIDS, com avanços significativos no campo de medicamentos antivirais, que podem nos trazer boas notícias em curto prazo. Acredito que isso vá acontecer.

Agora, para o nosso caso aqui, para o Brasil, o mais importante seria haver uma estratégia articulada. Poderemos evitar mortes, como poderíamos ter feito no passado, ao invés de seguir vivendo esse processo caótico que ainda nos poderá levar a um número maior de mortes evitáveis. Isso é trágico, merecíamos uma situação diferente dessa, sem dúvida alguma.


“Quanto à questão política, mantida essa atitude governamental de ausência de uma liderança, e, portanto, da falta de confiança no que está sendo implementado, acredito que a tendência é não se conseguir equacionar esse problema até o fim do ano, vale dizer o aparecimento de uma vacina”


‘Não creio que Bolsonaro produzirá conflito que leve à ruptura’, diz Nelson Jobim

Ex-ministro da Defesa concedeu entrevista à revista Política Democrática Online e diz que horizonte de solução da crise política passa pelas eleições de 2022

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em entrevista exclusiva concedida à revista Política Democrática Online, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República. “É equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores”, afirma. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo”, diz, em outro trecho.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. “Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo”, afirma.

Jobim foi ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do governo Dilma. Ele também foi deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto.

O horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente, segundo Jobim, passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.

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