Eleições EUA

El País: Departamento de Justiça dos EUA não encontra prova de fraude capaz de alterar o resultado eleitoral

O procurador-geral William Barr, frequentemente apontado por servir aos interesses de Trump, inflige o último revés à ofensiva judicial do republicano

Amanda Mars, El País

Donald Trump sofreu nesta terça-feira sua enésima e provavelmente mais grave derrota até agora na batalha judicial que lançou contra os resultados eleitorais depois de brandir acusações infundadas de fraude. O procurador-geral dos Estados Unidos, William Barr, disse na terça-feira que o Departamento de Justiça não encontrou provas de nenhum caso de irregularidade de importância suficiente para reverter a vitória do democrata Joe Biden. Barr, muitas vezes criticado por servir aos interesses do presidente, frustra a estratégia da campanha de Trump, que continua sem reconhecer o presidente eleito Biden, apesar de ter perdido em todos os tribunais até agora.

“Até o momento, não vimos fraude em uma escala que pudesse ter levado a um resultado diferente na eleição”, disse Barr em declarações à agência Associated Press (AP), dando algo parecido com um tiro de misericórdia para na ofensiva legal do mandatário. Pouco depois da declaração da derrota eleitoral, apesar de se distanciar das teorias da conspiração de Trump e seu círculo, Barr o havia alentado instruindo os procuradores federais de todo o país a investigar acusações que fossem “claramente críveis” e afetassem o resultado. Essa intervenção foi atípica, uma vez que a supervisão do desenrolar das eleições é responsabilidade dos Estados.

Conforme explicou à AP, tais acusações não tinham fundamento. “Foi alegado que poderia haver fraude sistêmica e que algumas máquinas foram programadas para, basicamente, distorcer os resultados eleitorais. O Departamento de Segurança Interna e o Departamento de Justiça analisaram e, até o momento, não viram nada que comprovasse isso”, explicou o promotor.

Trump agitou o fantasma da fraude durante toda a campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio e antecipados, que as autoridades de muitos Estados facilitaram por causa da pandemia, eram um terreno fértil para irregularidades. Quando Biden foi declarado vencedor, uma equipe jurídica liderada por Rudy Giuliani, assessor pessoal de Trump e ex-prefeito de Nova York, entrou com ações em todos os Estados decisivos para a derrota. As teorias da conspiração alcançaram graus insólitos. Giuliani e o advogado Sidney Powell chegaram a dizer que havia servidores alemães com informações sobre eleitores norte-americanos e um software criado na Venezuela “sob a direção de Hugo Chávez”, que morreu em 2013.

Enquanto todo o estratagema legal desmorona como um castelo de cartas, proliferam rumores sobre um futuro político com Trump na linha de frente. Seu círculo mais próximo deixou escapar que planeja voltar à carga e se apresentar como candidato em 2024, embora na ocasião terá adversários do partido que lhe disputarão o próprio trumpismo. Até então, parece que encontraram o relato idôneo de sua nova campanha, a do presidente despojado do cargo por um roubo.

O republicano arrecadou cerca de 170 milhões de dólares (cerca de 885 milhões de reais) desde 3 de novembro, de acordo com vários veículos de comunicação norte-americanos, graças a doações solicitadas para financiar a malsucedida batalha judicial, mas que também estão engrossando um fundo para suas atividades pós-presidenciais.


Luiz Werneck Vianna: Uma nova oportunidade e seus riscos

Em movimentos lentos, mas contínuos, uma nova era afirma seu caminho em meio a uma resistência de desesperados, como a de Donald Trump, que pretendem barrar o passo aos processos que prefiguram passo a passo a aparição de uma nova ordem nas coisas do mundo. Se esse tempo é de esperança ele também conhece riscos, como testemunha a atual onda de assassinatos de fins políticos e do recrudescimento das possibilidades de uma guerra nuclear. O capitalismo vitoriano a que se concedeu novo alento desde os anos 1970, primeiro com Thatcher, depois com Reagan e, na sua forma mais encorpada com Trump, que lhe difundiu em boa parte do mundo escorado pelos recursos vários de que dispunha, parece preferir o dilúvio a qualquer solução sem ele.

Aqui, na periferia, aguarda-se com fôlego preso a transmissão do governo de Trump a Biden, vitorioso nas eleições com larga margem de votos, quando se deve iniciar de fato a retomada do país da sua identidade e melhores tradições, a começar por sua agenda ambiental, ora posta a serviço dos proprietários de terras e dos interesses da mineração em solo amazônico. A partir daí, ter-se-á o ponto de Arquimedes para a regeneração da inscrição do país no cenário internacional aviltada pela figura anacrônica do chanceler que aí está. Como num jogo de dominó, seguem-se o tema crucial das desigualdades sociais tão bem posta pela candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, e sobretudo um largo debate entre as forças democráticas sobre o rumo a que o país deve perseguir na sucessão presidencial de 2022, se chegarmos até lá.

Não serão tempos fáceis os que temos pela frente, contudo certamente menos amargurados do que acabamos de deixar para trás com a sociedade impondo pela via eleitoral uma indiscutível derrota às forças anti-políticas e ao obscurantismo do governo Bolsonaro.  Em particular, pela crise econômica, patente no desemprego massivo que ameaça as condições de sobrevivência das classes subalternas, já sob os letais riscos da pandemia.

Mas, se as eleições nos trouxeram boas notícias, elas igualmente revelaram as dimensões do nosso primitivismo e atraso políticos. Está aí o Centrão, impando de satisfação, uma nova direita cevada pelo voto, e uma esquerda sem forças próprias e que ainda desconhece o terreno em que pisa, nostálgica do carisma de Lula e imune à autocrítica dos seus graves erros.

Visto do horizonte de hoje, para as forças democráticas que aspiram por reformas sociais o que se tem pela frente não é um cenário estimulante, decerto distante do pesadelo em que vivíamos, percepção contrária da que medra no campo da direita e que descortina o futuro como um campo aberto para a conquista do poder político. Tudo permanecendo constante, como provável, acalenta-se uma solução de centro-direita que marginalize a esquerda. Não é fora de propósito supor que, no caso, se estabeleça um silêncio obsequioso quanto ao descalabro do que tem sido o atual governo, já indicado no telefonema realizado pelo prefeito recém-eleito Eduardo Paes do DEM ao presidente Bolsonaro, cujas ações na presidência seriam estimadas pela limpeza do terreno político da presença da esquerda.

Fora o alívio imediato que as eleições nos trouxeram, evitando a legitimação do atual governo pelo voto, o quadro diante de nós é desalentador quando se pensa em cenários futuros. As forças do mando tradicional demonstraram capacidade de se reproduzirem em cidades abastadas e nos ermos rincões do país, levando de roldão as prefeituras que se vão constituir na plataforma das próximas sucessões, especialmente na presidencial. O travo otimista que nos fica vem principalmente da campanha de Boulos, em São Paulo, de Marta Rocha, de Benedita da Silva e Renata Souza no Rio, com a boa recepção que obtiveram nos redutos periféricos de suas cidades ao denunciarem as alarmantes condições das desigualdades sociais, faltando-lhes compreender a necessidade de uma coalizão entre suas candidaturas.

A sorte futura da esquerda a fim de que seus temas se tornem influentes politicamente no que vem por aí depende de mobilizações dessa natureza. Força própria é a senha para que ela seja ouvida nesse caldeirão de ambições desatadas pelo poder num país que tem a sina de que cada qual que detenha uma nesga de poder queira ser califa no lugar do califa. Por mais que seja verdadeiro o caráter de acidente na eleição de Bolsonaro, ele não pode ocultar o fato do nosso atraso político e da nossa incapacidade de reconhecê-lo, suprindo essa falta com fantasias mesmo que bem intencionadas.

Nessa hora em que se acendem esperanças é preciso cautela com os que procuram nos vender gato por lebre, com candidaturas saídas de suas cartolas sem densidade e tirocínio comprovado. Não há caminhos de ocasião, o que se precisa é pavimentar com segurança a estrada para o futuro na longa caminhada que ora se inicia com espírito de luta que anime a vida popular para a ação e a imaginação aberta para o encontro com os democratas com que marcharemos juntos.

Sem Trump e com Bolsonaro perdido como cego em tiroteio nos dois anos que lhe restam, abre-se uma oportunidade para um esforço bem concertado no sentido de estimular alianças escoradas por baixo pelo apoio popular que traga de volta o que não soubemos conservar.   

Salvo tropeços imprevistos, as coisas do mundo retornam ao leito das instituições e da cultura política forjadas no segundo pós-guerra como a ONU e tantas outras, e não nos faltam nem a tradição e a vocação para desempenharmos no que está por vir um bom papel nesse lugar que ocupamos.

*Luiz Werneck Viannaa, sociólogo, PUC-Rio    


Gustavo H. B. Franco: Um acordo de transição

Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou

Mesmo antes da derrota de Donald Trump parecia que o Brasil passava por uma transição, como se a segunda metade da Presidência Jair Bolsonaro fosse uma mudança de governo, uma sensação curiosa e paradoxal, pois mudança mesmo só teremos mais adiante, depois das eleições de 2022, ou não.

Entretanto, a “sensação de transição” foi se acentuando nas últimas semanas.

O problema começou com dificuldades com (a rolagem de) a dívida pública (os deságios nas LFTs), um clássico sinalizador de problemas em transições (o sujeito não quer comprar um título de um governo que vai ser pago, ou não, pelo próximo). 

O Tesouro e o BCB têm experiência nesse assunto, sabem trabalhar de forma tópica, mas não são capazes de eliminar as dúvidas ensejadas por uma transição. Só o novo governante é capaz de fazê-lo. 

Bem, como o novo governante é o mesmo, não deveria ser tão complexo. Porém, é fato que estamos experimentando a “sensação de transição” no meio do mandato presidencial. O que pode estar produzindo essa distorção?

Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou:

  1. O ocaso do populismo em escala global, iniciado nos EUA e criando um vento de fim de festa na Hungria como em Brasília;
  2. Uma segunda onda de covid, ou simplesmente o desdobramento da primeira, com amplos impactos em escala global, e impactos relevantes na recuperação que o País vinha experimentando; 
  3. Mudanças nas lideranças das duas Casas legislativas e, consequente, revisão da equação de apoio parlamentar do governo. Talvez mesmo com reforma ministerial para atender ao “Centrão”.
  4. O ministro da Fazenda parece uma sombra de si mesmo, não é mais o “infiltrado liberal”, mas alguém mais organicamente ligado ao projeto de poder da família Bolsonaro. O ministro não vai cair, mas não é mais o mesmo, ou ao menos, não é mais atacante nas pautas reformistas, mas um “meia de contenção”, focado em evitar retrocessos. O casamento arranjado com os liberais terminou, pois as entregas em matéria de privatização, abertura e reformas mais profundas foram pífias;
  5. O fim dos auxílios emergenciais, sem que se saiba o que vem no lugar; 
  6. O fim das linhas especiais, e de outras tantas providências dependentes da vigência do estado de calamidade que se encerra oficialmente em 31 de dezembro;
  7. Novos patamares de déficit primário e de dívida pública, o primeiro ultrapassando R$ 800 bilhões, e a segunda se aproximando de 100% do PIB.
  8. Recrudescimento da inflação que, em novembro, pelo IGPM, alcançou estonteantes 24,52% no acumulado de 12 meses;

Portanto, é como se a segunda metade tivesse se convertido no segundo governo Bolsonaro, e com desafios econômico aterradores.

Bem, o Brasil possui uma larga experiência em transições turbulentas, normalmente de um governo para o outro, não dentro do mesmo, para as quais a receita canônica é um acordo com o FMI. Uma das funções mais importantes, e menos faladas, desse tipo de acordo é a de terceirizar culpas, bem como responsabilidades sobre medidas que precisam ser tomadas, que se tornam imperativos de um tratado internacional, e que seriam inexecutáveis fora disso.

Será que é o caso?

Bem, é claro que o FMI, nesse caso, funciona apenas como um exercício retórico. 

Nosso problema agora é fazer um acordo com o FMI, sem o FMI, um acordo do Brasil com ele mesmo. É fácil em tese, mas dificílimo de fazer, no atual estado de polarização, quando o governo está tão isolado que não consegue fazer acordo nem com ele mesmo.

Há sobre a mesa um desafio gigante e urgente, no terreno fiscal, de conciliar uma versão prática e socialmente aceitável da ideia de responsabilidade fiscal, que compreenda a preservação do teto (uma “última defesa” já bastante combalida), com iniciativas que coíbam um aumento catastrófico do desemprego e a volta da inflação.

O verbo aqui é conciliar, um que o governo não costuma conjugar, e para o qual não estava preparado. 

* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 


Paul Krugman: Com Janet Yellen no Tesouro, política econômica dos EUA será ditada por quem sabe o que está fazendo

Escolha de Joe Biden para o cargo anima economistas não só por ela ter uma carreira notável no serviço público e ter sido uma pesquisadora séria; existe algo de revanche contra Donald Trump

É difícil extrapolar o entusiasmo dos economistas com a escolha de Janet Yellen para próxima secretária do Tesouro. Parte dessa euforia reflete o caráter revolucionário da sua nomeação. Ela não só é a primeira mulher a comandar essa secretaria, mas será a primeira pessoa a assumir todas as três posições de comando da política econômica dos Estados Unidos - como presidente do Conselho de Assessores Econômicos, do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) e do Tesouro.

E, sim, existe algo de revanche contra Donald Trump, que negou a ela um muito merecido segundo mandato como presidente do Fed, ao que consta porque achava que ela era muito baixinha.

Mas a boa notícia sobre Janet Yellen vai além da sua notável carreira no serviço público. Antes de assumir o cargo ela era uma pesquisadora séria. E, em particular, uma das figuras na vanguarda de um movimento intelectual que ajudou a salvar a macroeconomia como uma disciplina útil quando essa utilidade estava sob ataques internos e externos.

Antes de chegar a esse ponto, uma palavra sobre o tempo que ela passou no Federal Reserve, especialmente quando participou do conselho diretor da instituição, no início de 2010, antes de presidi-la.

Na época, a economia dos Estados Unidos vinha lentamente se recuperando da Grande Recessão - uma recuperação impedida, não por acaso, pelos republicanos no Congresso que fingiam se preocupar com a dívida pública impondo cortes de gastos que afetaram de maneira importante o crescimento econômico. Mas a questão dos gastos não era o único tema do debate; também eram ferozes as discussões sobre a política monetária.

Especificamente, muitas pessoas da direita condenavam os esforços do Fed para salvar a economia dos efeitos da crise financeira de 2008. A propósito, entre elas estava Judy Shelton, uma pessoa totalmente desqualificada que Trump ainda tenta colocar no conselho diretor do Fed e que, em 2009, alertou que as políticas adotadas pela instituição resultariam numa “ruinosa inflação” (o que não ocorreu).

Mesmo dentro do Federal Reserve havia uma divisão entre os que preconizavam medidas mais duras em relação à inflação e os defensores de uma política mais leniente permitindo um pequeno aumento da inflação que, no final, incentivaria o crescimento e a criação de empregos, e que o combate à depressão devia ser prioritário. Janet Yellen era um deles e uma análise feita em 2013 pelo The Wall Street Journal concluiu que, entre os articuladores políticos do Fed, ela foi a mais precisa nas previsões.

Por que ela acertou? Parte da resposta, eu diria, remonta ao seu trabalho acadêmico na década de 1980.

Na ocasião, como já afirmei, a macroeconomia útil estava sob ataque. O que quero dizer com “macroeconomia útil” é o entendimento, compartilhado por economistas como John Maynard Keynes e Milton Friedman, de que as políticas fiscal e monetária devem ser usadas para o combate das recessões e reduzir o impacto negativo sobre as pessoas e sobre a economia.

Esse entendimento não falhou quando foi testado na realidade, pelo contrário, a experiência do início dos anos 1980 confirmou vigorosamente os prognósticos da tese macroeconômica básica. Mas estava sob ameaça.

De um lado, políticos de direita defendiam doutrinas excêntricas, especialmente a tese de que os governos podem engendrar um milagroso crescimento reduzindo impostos devidos pelos ricos. De outro lado, um número importante de economistas rejeitava qualquer papel da política no combate das recessões, afirmando que ele era desnecessário se as pessoas agissem racionalmente em seus próprios interesses, e que a análise econômica sempre devia supor que as pessoas são racionais e buscam seus próprios interesses. E mesmo um pouco de realismo sobre o comportamento humano renova a defesa de políticas agressivas para combater as recessões. Em trabalhos posteriores, Yellen mostrou que os resultados para o mercado de mão de obra dependem muito não só dos cálculos de ganhos e lucros, mas também da percepção de equidade.

Tudo isto parece ininteligível, mas posso responder, pela minha própria experiência, que esse trabalho teve um enorme impacto sobre muitos economistas jovens, basicamente dando a eles permissão para serem mais sensatos.

E me parece que existe uma linha direta do realismo disciplinado da pesquisa acadêmica de Janet Yellen para seu sucesso como estrategista econômica. Ela sempre foi alguém que compreendeu o valor dos dados e modelos. E com efeito, a reflexão rigorosa se torna mais, e não menos, importante em tempos como estamos vivendo hoje, quando a experiência passada oferece pouca orientação sobre o que deveríamos estar fazendo. Mas ela também nunca esqueceu que a economia tem a ver com pessoas, que não são as máquinas de calcular insensíveis que os economistas às vezes querem que elas sejam.

Agora, nada disso significa que as coisas necessariamente irão de vento em popa. A corrida não é dos velozes, como o pão não é dos sábios, e tampouco o entendimento dos responsáveis pelas políticas garante o sucesso, mas o tempo e a oportunidade possibilitam tudo isto. O gabinete de governo de Trump foi um show de palhaços - possivelmente o pior gabinete na história dos EUA. Mas foi apenas em 2020 que as consequências da incompetência deste governo ficaram totalmente aparentes.

Mas é imensamente tranquilizador saber que a política econômica será ditada por uma pessoa que sabe o que está fazendo. / Tradução de Terezinha Martino.


William Waack: Falando sozinho

Os principais freios à política externa de Bolsonaro vêm da iniciativa privada

É preciso um pouco de paciência, mas a força dos interesses privados brasileiros está conseguindo impor severos limites aos rompantes de política externa do governo Jair Bolsonaro. A “linha” externa foi basicamente subordinar-se a Donald Trump, um erro grotesco do ponto de vista “técnico” de diplomacia e um exemplo já clássico de como a cegueira ideológica conduz a decisões que são pura estupidez.

O agronegócio foi o primeiro a gritar contra a gratuita hostilização de parceiros comerciais no Oriente Médio e na Ásia, seguido de perto por setores modernos industriais e do mundo financeiro em relação a políticas ambientais. Os mais novos grupos a entrar no “vamos dar uma segurada” são de setores tecnológicos ligados a telecomunicações e infraestrutura, preocupados com o dano que a hostilidade à China possa trazer a investimentos no 5G.

Especialmente no agro “tecnológico” – aquele que colocou o Brasil como uma superpotência na produção de grãos e proteínas – a postura externa do governo Bolsonaro é vista com consternação e abertamente criticada. O racha já chegou à relação entre entidades que representam os variados grupos desse setor. Aqueles apelidados de “ruralistas”, e identificados com a soja e a pecuária “primitiva”, continuam apegados à noção de que, sendo o Brasil um campeão na produção de alimentos, não importa o que aconteça ou o que se diga, o mundo continuará comprando aqui.

Mas coligação de peso é a que passa pelos bancos, grandes indústrias (química, por exemplo), instituições financeiras (plataformas de investimentos), empresas de ponta no setor digital (aplicação de inovação digital na agricultura, por exemplo), serviços e varejo de massa (por suas ligações com o exterior). Elas se entendem como parte de grandes cadeias internacionais, o que significa levar em grande consideração o que vai pela cabeça de massas de consumidores – e as preocupações de acionistas idem.

Estabeleceram com o presidente do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão, uma espécie de interlocução que se faz notar, por exemplo, na maneira como o vice-presidente reagiu ao anúncio de Biden de que retornaria aos acordos do clima de Paris – mais uma vez, a voz de Mourão é abertamente dissonante em relação à de Bolsonaro. Aliás, na cabeça dos executivos desses grupos a vitória de Joe Biden é vista como uma excelente oportunidade de, pelo menos, restaurar parte das cadeias produtivas globais. E fala-se da China com bem menos hostilidade política.

Nenhum desses dirigentes admite em conversas particulares enxergar qualquer vantagem no isolamento internacional a que as posturas de política externa de Bolsonaro levaram o País, e simplesmente ignoram o que diz o governo. Olham para os acordos de comércio recentemente assinados na Ásia (abrangendo 30% do PIB mundial e alguns países “ocidentais” como a Austrália, por exemplo) e examinam em grupos nutridos de análise da situação internacional como não perder o bonde (mais um).

Nesse sentido, a anunciada adesão do Brasil à iniciativa americana de “rede limpa” (clean network), que exclui a chinesa Huawei do 5G brasileiro, foi considerada prematura e desnecessária também por militares envolvidos em programas de Defesa – e que não viram na dedicação de Bolsonaro a Trump qualquer vantagem prática em termos de acesso a tecnologias sensitivas (notadamente nos setores nucleares e de mísseis) tradicionalmente bloqueadas por governos americanos, democratas ou republicanos.

Qual o resultado de tudo isso: será o retorno às deliberações multilaterais (incluindo o acordo de Paris), a moderação na resposta às críticas à política ambiental, mais cuidado no trato com parceiros comerciais importantes na Ásia e Oriente Médio e a reiteração (bem antiga, já) aos que controlam tecnologias de Defesa de que somos internacionalmente “adultos e responsáveis”. Em outras palavras, é deixar a área externa do governo, incluindo filhos, assessores e alguns ministros de Bolsonaro, falando sozinhos.


Monica De Bolle: A transição

Começo da transição do governo Biden deixa claro que os surtos de anomalia aguda vêm e vão

No fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”, entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera.

O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.

Para falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele – para muitos foi uma delícia –, alguém da equipe apontou e acertou no Four Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a “Ilha da Fantasia”, nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com dizeres variados.

O segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo burlesco.

Na segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo. Antes mesmo de ser “oficializada” a troca de comando, já tinha se reunido com aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado, do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado, escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus filhos, além de seus filhos.

Para o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen. Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama. Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington, tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.

A transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil. Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados pela ascensão de Trump e de Bolsonaro, são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está sempre em transição.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


El País: Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba

Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade

saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.

vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia,Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.

Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.

A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.

Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.

“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.

A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.

Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.

“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.

A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.

“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.

Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.

A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.

Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.

Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.

Revés para Bolsonaro

Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.

A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.

Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.

O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.

Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.

Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.


Fernando Gabeira: Tudo que é estúpido se desmancha no ar

Alívio é anterior à derrota de Trump. Ele começa na prisão de Queiroz

No auge da quarentena, pensei que a última luta de minha vida seria contra um governo que destrói a natureza, a autoestima e a imagem internacional do Brasil. Confesso que dramatizei. Sinto-me aliviado agora e ouso fazer planos mais ambiciosos para depois da chegada da vacina.

O marco temporal dessa sensação de alívio é anterior à importante derrota de Donald Trump. Ele começa na prisão de Fabrício Queiroz. Ali emergiu com clareza o esquema de financiamento de Bolsonaro e seu clã. Ele não teria mais condições de pregar o fechamento do Congresso ou do STF. Os próprios militares, apesar de ambíguos até ali, não o seguiriam na aventura.

Bolsonaro não teve outro caminho além de buscar aliados no Congresso, precisamente aqueles para os quais o desvio de dinheiro público não é um pecado capital. E de se aproximar desse tipo de juiz brasileiro que não hesita em absolver quando há excesso de provas contra o acusado.

A eleição de Biden resultou de uma ampla compreensão de que era necessária uma frente para derrotar Donald Trump e o Partido Republicano. A própria esquerda dos democratas, que vive um momento de ascensão, decidiu conceder para que a vitória fosse possível.

Ao término das eleições municipais, comecei a duvidar se era mesmo necessária uma frente para derrotar Bolsonaro. A construção de um instrumento como esse dá muito trabalho. É preciso constantemente se livrar dos caçadores de hereges, como chamava Churchill os que dentro de uma frente ampla estreitam e intoxicam o espaço com uma permanente lavagem de roupa suja.

E se Bolsonaro se derreter com a rapidez com que se derrete Russomanno em suas campanhas? Ou mesmo se for resiliente como Crivella e chegar ao segundo turno com um índice de rejeição tão alto que perca para qualquer adversário?

Não consigo precisar o ritmo, mas acho que Bolsonaro toma decisões estúpidas diariamente e que ele vai se desmanchar no ar. Quando o vi selecionando uma lista de vereadores para apoiar, pensei: perdeu.

Não adianta conferir na urna se Wal do Açaí foi ou não eleita. Um presidente que se dedica a isso de certa forma está apenas dizendo que é pequeno demais para o cargo. Na verdade, essa é sua mensagem cotidiana.

A constatação, no entanto, não pode desmobilizar. Bolsonaro continua à frente de uma política anticientífica que pode nos custar mais vidas no combate ao coronavírus.

A inexistência de uma frente ampla não significa que ela não possa ser erguida em cada momento em que a democracia for claramente ameaçada.

Da mesma maneira, o fracasso de Bolsonaro não significa que possa ser subestimado. A extrema-direita vai ocupar um espaço, embora muito menor do que ocupou nas eleições de 2018. Assim como na França, ela pode também trocar de líder para se modernizar.

O quadro eleitoral na maior cidade do país — Covas/Boulos — nos remeteu à clássica polarização do período democrático. Ilusório também pensar que tudo será como antes.

O primeiro e grande tema de reflexão é este: Bolsonaro dissolve-se no ar, mas as condições que o fizeram ascender ao governo continuam vivas.

Este período dominado pelo discurso e prática da estupidez deveria ser usado para uma profunda crítica do processo de redemocratização. Mesmo sem a construção de uma frente ampla, a proximidade do abismo nos revelou como somos vulneráveis e semelhantes no ocaso da democracia.

Os Estados Unidos abriram o caminho livrando-se do grande pesadelo. Trilhar esse terreno minado será também de grande utilidade para o Brasil.

Afinal, são fenômenos políticos em realidades diferentes, mas partem de alguns pontos convergentes, como a aversão às iniciativas multilaterais.

Imitado por Bolsonaro, o isolamento americano abriu um imenso espaço. Biden representa uma correção de rumos, mas seria bom lembrar o tempo perdido: 15 nações asiáticas e da Oceania, representando um terço do PIB mundial, acabam de celebrar um acordo comercial de grande envergadura.

Aqui Bolsonaro briga com a Europa para defender grileiros, incendiários e contrabandistas de madeira. Aqui a Terra é plana, a hidroxicloroquina fabricada pelo Exército é remédio contra a Covid-19. Até quando não sei. Não passa de 2022, estou seguro.


Paulo Sotero: Biden não hostilizará o Brasil

Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles – um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.

“Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos – sua especialidade –, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam – sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, já há tempo nas cordas.

Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.

*JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON


Eliane Cantanhêde: ‘Não levamos nada’

Mário Villalva: ‘A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?’

Depois de ser alvo de todas as críticas e de o Brasil sofrer todo o desgaste, o presidente Jair Bolsonaro está prestes a reconhecer finalmente, talvez ainda hoje, a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Desta vez, porém, os últimos não serão os primeiros, serão os últimos mesmo, para desconforto de diplomatas, militares, empresários, exportadores e analistas. Mas o “capitão” é o “capitão”, o que fazer?

É agora que vai ficar mais evidente ainda a tragédia da política externa brasileira que, segundo o embaixador Mário Villalva, “jogou todas as fichas numa só cesta, transformou os EUA na única referência”. Isso, destaca, “não combina com o nosso DNA, a nossa índole, a nossa tradição de política externa, que sempre foi ecumênica e universal”.

Diplomata de carreira, ex-embaixador no Chile, Portugal e Alemanha, Villalva presidiu a Apex no início do governo Bolsonaro, mas saiu três meses depois, botando a boca no trombone contra o aparelhamento político. Ainda “na ativa”, está licenciado e se soma a ex-chanceleres e a mentes brilhantes da história do Itamaraty na crítica à atual política externa.

Na sua opinião, Biden tem habilidade política, com 36 anos de Legislativo, e vai restabelecer a liderança dos EUA no mundo, não mudando tudo mecanicamente, nem na base do confronto e da agressão, mas sim conversando, articulando, negociando. E, claro, como qualquer líder que se preze, priorizando o interesse do seu País.

Ele, Biden, em algum momento vai olhar para o Brasil, “não com antagonismo, mas com pressões políticas legítimas para que o País mostre resultados no meio ambiente e volte a valorizar o multilateralismo”. Não será fácil, porque Bolsonaro replica Donald Trump até contra OMS (Saúde), OMC (Comércio) e a própria ONU, mas o Brasil não tem o que perder, já que não ganhou nada com Trump: “o governo brasileiro foi extremamente solícito em tudo, o tempo todo, mas os americanos não cederam nada e extraíram o máximo que puderam”.

Resumindo a longa lista de Villalva: suspensão de visto para americanos (sem reciprocidade), cessão de dados de brasileiros para o “Global Entry”, desistir de um brasileiro para os EUA quebrarem a tradição e presidirem o BID, cota livre de tarifa para o trigo, acesso de carne de porco americano sem contrapartida para a carne bovina brasileira, desequilíbrio em etanol, aço e alumínio, abrir mão do tratamento diferenciado na OMC sem entrar na OCDE. E o Brasil nem mesmo saiu da lista negra dos EUA para propriedade intelectual…

“Não levamos nada”, diz o embaixador, apontando o acordo de facilitação de comércio como repetição “bilaterizada” do que foi feito em bloco pela OMC emu 2017. Além disso, “só serve para diminuir a burocracia, a papelada, e não representa redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, que é o que a gente precisa”. Logo, “é uma política de enxuga-gelo”, diz ele, que é diplomata. E de “engana trouxa”, acrescento eu, que não sou.

Se houve avanço, foi em defesa, mas sem chegar aonde realmente interessa: acesso a financiamento, ou seja, a um naco dos US$ 140 bilhões dos EUA para o setor. E, diante da lista de concessões para lá e nenhum retorno para cá, Mário Villalva pergunta: “A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?” Vale acrescentar: E vai mudar?

Para Villalva, 44 anos de carreira, o Itamaraty “tem uma das melhores burocracias da República, com pessoas bem selecionadas, bem treinadas, que pensam o Brasil 24 horas por dia, mas não é suficiente ter um Boeing, é preciso um bom piloto”. Que tal o atual piloto? Resposta: “Os resultados estão aí…” Não custa lembrar que “o piloto é o executor da política externa, mas o formulador é o presidente”.

Mário Villalva: ‘A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?’

Depois de ser alvo de todas as críticas e de o Brasil sofrer todo o desgaste, o presidente Jair Bolsonaro está prestes a reconhecer finalmente, talvez ainda hoje, a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Desta vez, porém, os últimos não serão os primeiros, serão os últimos mesmo, para desconforto de diplomatas, militares, empresários, exportadores e analistas. Mas o “capitão” é o “capitão”, o que fazer?

É agora que vai ficar mais evidente ainda a tragédia da política externa brasileira que, segundo o embaixador Mário Villalva, “jogou todas as fichas numa só cesta, transformou os EUA na única referência”. Isso, destaca, “não combina com o nosso DNA, a nossa índole, a nossa tradição de política externa, que sempre foi ecumênica e universal”.

Diplomata de carreira, ex-embaixador no Chile, Portugal e Alemanha, Villalva presidiu a Apex no início do governo Bolsonaro, mas saiu três meses depois, botando a boca no trombone contra o aparelhamento político. Ainda “na ativa”, está licenciado e se soma a ex-chanceleres e a mentes brilhantes da história do Itamaraty na crítica à atual política externa.

Na sua opinião, Biden tem habilidade política, com 36 anos de Legislativo, e vai restabelecer a liderança dos EUA no mundo, não mudando tudo mecanicamente, nem na base do confronto e da agressão, mas sim conversando, articulando, negociando. E, claro, como qualquer líder que se preze, priorizando o interesse do seu País.

Ele, Biden, em algum momento vai olhar para o Brasil, “não com antagonismo, mas com pressões políticas legítimas para que o País mostre resultados no meio ambiente e volte a valorizar o multilateralismo”. Não será fácil, porque Bolsonaro replica Donald Trump até contra OMS (Saúde), OMC (Comércio) e a própria ONU, mas o Brasil não tem o que perder, já que não ganhou nada com Trump: “o governo brasileiro foi extremamente solícito em tudo, o tempo todo, mas os americanos não cederam nada e extraíram o máximo que puderam”.

Resumindo a longa lista de Villalva: suspensão de visto para americanos (sem reciprocidade), cessão de dados de brasileiros para o “Global Entry”, desistir de um brasileiro para os EUA quebrarem a tradição e presidirem o BID, cota livre de tarifa para o trigo, acesso de carne de porco americano sem contrapartida para a carne bovina brasileira, desequilíbrio em etanol, aço e alumínio, abrir mão do tratamento diferenciado na OMC sem entrar na OCDE. E o Brasil nem mesmo saiu da lista negra dos EUA para propriedade intelectual…

“Não levamos nada”, diz o embaixador, apontando o acordo de facilitação de comércio como repetição “bilaterizada” do que foi feito em bloco pela OMC emu 2017. Além disso, “só serve para diminuir a burocracia, a papelada, e não representa redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, que é o que a gente precisa”. Logo, “é uma política de enxuga-gelo”, diz ele, que é diplomata. E de “engana trouxa”, acrescento eu, que não sou.

Se houve avanço, foi em defesa, mas sem chegar aonde realmente interessa: acesso a financiamento, ou seja, a um naco dos US$ 140 bilhões dos EUA para o setor. E, diante da lista de concessões para lá e nenhum retorno para cá, Mário Villalva pergunta: “A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?” Vale acrescentar: E vai mudar?

Para Villalva, 44 anos de carreira, o Itamaraty “tem uma das melhores burocracias da República, com pessoas bem selecionadas, bem treinadas, que pensam o Brasil 24 horas por dia, mas não é suficiente ter um Boeing, é preciso um bom piloto”. Que tal o atual piloto? Resposta: “Os resultados estão aí…” Não custa lembrar que “o piloto é o executor da política externa, mas o formulador é o presidente”.


‘Trump nega regras democráticas que funcionam há séculos’, afirma Paulo Baía

Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, sociólogo diz que comportamento de Bolsonaro é ‘espelho’ de presidente dos EUA

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Eleição norte-americana escancarou o negacionismo de Donald Trump e, por tabela, do presidente Jair Bolsonaro, avalia o sociólogo e cientista político Paulo Baía, em seu artigo na revista Política Democrática Online de novembro, em que analisa o bolsonarismo na visão de Jairo Nicolau, autor do livro O Brasil dobrou à Direita. “Em tempos de negacionismo, a maior democracia mundial vive momentos em que o poder nas mãos de um populista de extrema-direita questiona o sistema eleitoral, negando as regras democráticas do país, que funcionam da mesma forma há séculos”, criticou o autor do artigo.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!

A revista Política Democrática Online é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em sua análise, Baía chamou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de “espelho ao Sul da América do Sul” de Trump. “[Bolsonaro] deixa de ser representante de uma nação para virar cabo eleitoral e torcedor fervoroso daquele que acredita ser seu amigo”, observou.

Na avaliação do cientista político, o interessante é que o atual presidente da República do país representante da liberdade, garantidor dos valores liberais e iluministas é aquele que deseja ser reeleito no tapetão, suspendendo a contagem de votos dos que não votaram nele. “É o retrato da negação. Nas terras de cá, negam-se os mais de 14 milhões de desempregados, o aumento da pobreza extrema, a crise fiscal por causa da pandemia, a inflação nos produtos da cesta básica por conta do aumento do dólar e o empresariado preferindo vender para o mercado externo do que o interno, diminuindo a oferta e aumentando a procura”, afirmou Baía.

O sociólogo disse, ainda, que “todos os graves problemas por que passa o Brasil são reflexos de uma disputa partidária, criados pelos adversários para roubar seu poder”. No artigo, ele lembrou que o professor de ciência política Jairo Nicolau acabou de lançar o livro O Brasil dobrou à Direita. Nesta obra, ele compila uma série de dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

“Cruzando dados como idade, gênero, religião, educação etc., o pesquisador chega a conclusões muito interessantes sobre os eleitores de Bolsonaro”, afirmou, para continuar: “Ele foi o primeiro candidato que rompeu a ideia de que, para vencer, o presidente precisa de uma máquina eleitoral. Bolsonaro foi o preferido nas três faixas de ensino: fundamental, médio e ensino superior. Em 2018, foi a primeira vez em que o fator gênero se fez presente”.

Bolsonaro também foi o preferido de 2 a cada 3 homens, batendo o adversário em 10% a mais. E teve, respectivamente, 53% votos das mulheres e 64% dos homens; já Haddad obteve 47% dos votos dos homens e 36% das mulheres. “Outro fator diz respeito ao cruzamento entre dados de homens e instrução: Bolsonaro ganhou em todos os níveis de ensino, todavia, quanto maior a instrução, menor a aceitação”, acentuou.

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Monica De Bolle: Estupidez brutal

Brutal e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso

Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.

Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos.

As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.

Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.

Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas.

Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.

É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada.

Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.

Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University