Eleições EUA

Moisés Naim: Trumpismo sobreviverá

Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome, como Mao Tsé-tung e Chávez

Os seguidores mais entusiasmados de Mao Tsé-tung, Juan Domingo Perón, Charles De Gaulle, Fidel Castro e Hugo Chávez deram lugar a movimentos políticos mais duradouros do que os líderes que os inspiraram.

Donald Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome. O trumpismo – caracterizado por sua retórica combativa contra elites e imigrantes, seu nacionalismo nostálgico, sua tendência autocrática e sua manipulação narcisista da mídia – tem muito em comum com movimentos políticos que adotaram o nome de seu líder. O trumpismo terá, portanto, uma vida longa e transcenderá Trump.

Alguns desses movimentos tiveram influência internacional, como o maoismo, enquanto outros eram predominantemente regionais, como o castrismo cubano, e alguns eram puramente nacionais, como o gaullismo francês e o peronismo argentino.

Esses movimentos têm muitas semelhanças: a transgressão rotineira das normas políticas estabelecidas, o oportunismo descontrolado, a propensão ao autoritarismo, o anti-intelectualismo e a hostilidade a regras e instituições que limitam a concentração de poder no Executivo são apenas algumas. O mesmo ocorre com a feroz inimizade contra rivais que não são vistos como compatriotas de ideias diferentes, mas como inimigos mortais.

As ideologias desses movimentos se revelaram de uma maleabilidade peculiar: o maoismo foi usado para legitimar o totalitarismo comunista de suas origens e, décadas mais tarde, para apoiar a abertura econômica que criou o atual modelo capitalista chinês. Na França, o gaullismo serviu para justificar o nacionalismo espinhoso do general De Gaulle e, posteriormente, o centrismo democrático de Jacques Chirac.

O peronismo argentino tornou-se famoso por sua plasticidade: originalmente justificou o fascismo “light” de Juan Domingo Perón e, décadas depois, as reformas neoliberais de Carlos Menem para, mais tarde, servir de base ao populismo de esquerda de Néstor e Cristina Kirchner. Na Venezuela, o chavismo transformou o país mais rico da América Latina em um dos mais pobres, mas pesquisas de opinião revelam que metade da população apoia Hugo Chávez, morto em 2013.

O trumpismo está prestes a entrar nesta lista, independentemente dos problemas jurídicos e políticos que afetarão Trump nos próximos anos. Com ou sem Trump, o trumpismo continuará. O movimento terá mais ou menos sucesso político, mas suas estratégias, táticas e truques para ganhar e manter o poder perdurarão.

Com suas ações e indiscutíveis sucessos políticos, o 45.º presidente dos EUA revelou ao mundo que é possível chegar ao poder fazendo e dizendo coisas que nenhum político ousou antes. Rotular imigrantes mexicanos como estupradores ou colocar crianças imigrantes em jaulas, insultar seus rivais ou outros chefes de Estado, mentir rotineira e abertamente e fazer o que é necessário para ampliar as divisões sociais existentes ou criar novas fontes de polarização e agitação social são coisas que não tiveram custo político para Trump. Ao contrário: permitiram que ele chegasse à Casa Branca e fosse o candidato mais votado da história dos EUA – depois de Joe Biden.

Inúmeros imitadores de Trump aparecerão nos próximos anos. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, a quem seus seguidores chamam de “Trump dos trópicos”, é um de seus primeiros e mais bem-sucedidos imitadores. E, nos EUA, haverá uma multidão de candidatos que se declararão trumpistas, mas terão o cuidado de evitar as políticas catastróficas.

No curto prazo, o mais importante é o papel que Trump terá como líder da oposição ao governo Biden. Uma vez fora da Casa Branca, o ex-presidente deve se defender da avalanche de ações judiciais. Terá de passar muito tempo com seus advogados, juízes e promotores.

Simultaneamente, estará captando recursos, consolidando a máquina do trumpismo e uma plataforma de mídia semelhante à Fox News. Ao mesmo tempo, estará lutando pelo controle do Partido Republicano. 

A incerteza política continuará a reinar nos EUA. O certo é que Trump tem agora um movimento político de massas que servirá de base para que ele siga lutando para reconquistar o poder. Que seja. / Tradução de Augusto Calil

*É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment


Celso Lafer: Joe Biden e Hannah Arendt

Derrota de Trump foi o choque da realidade do despropósito da sua conduta

Em 28 de maio de 1975 o senador Joe Biden escreveu uma pequena carta a Hannah Arendt para solicitar o envio da conferência que ela pronunciara em Boston em foro voltado para discutir o bicentenário dos Estados Unidos. Indicava que tinha tido notícia da reflexão arendtiana em artigo de Tom Wicker e observava que o conhecimento do texto era de seu interesse como integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

A carta integra os arquivos de Arendt, é de conhecimento público e teve alguma circulação no correr da campanha presidencial deste ano nos Estados Unidos. É, por si só, um exemplo de que Biden desde o início de sua vida pública tinha antenas para os grandes desafios do sistema político americano.

É sem conta o número de motivos que me levam a olhar com simpatia a eleição de Joe Biden, o que significa para os valores e a prática da democracia e o que deverá representar para um papel mais construtivo dos Estados Unidos no mundo. Para um estudioso da obra de Arendt, e sem forçar a mão, é natural buscar no seu texto de 1975, que interessou a Biden, elementos que contribuem para o entendimento do alcance da sua vitória eleitoral.

O texto de Arendt, na versão para o português, intitula-se Tiro pela culatra, para indicar que não se pode escapar da avaliação e das consequências de uma crise da república americana, tema que abordou. Hoje integra a coletânea de seus ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, organizado por Jerome Kohn e publicado em 2003.

O texto de Arendt resulta de suas reflexões sobre um momento de depreciação da vida política americana, que foi o da crise da presidência Richard Nixon e seus antecedentes, que acabou na sequência, observo eu, levando à eleição de Jimmy Carter, com sua dimensão de purgação moral. Tem como pano de fundo o livro de 1972, significativamente intitulado Crises da República, no qual tratou da mentira na política, da desobediência civil e da violência, e como lastro o seu Sobre a Revolução. Neste ela destacou que foi a Revolução Americana que implantou a primeira República moderna, instaurou o governo das leis por meio de uma duradoura Constituição dotada de autoridade que, atenta à pluralidade da condição humana, ensejou a gramática da ação e a sintaxe do poder.

As instituições democráticas republicanas, por mais sólidas que sejam, como as dos Estados Unidos, exigem para a sua durabilidade a prática de costumes democráticos, nisso se incluindo o virtuoso zelo do bem da República.

A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela “alma” dos Estados Unidos. Nessa batalha, Biden personificou uma afirmação de continuidade de valores e das instituições americanas, de suas práticas e seus costumes. Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do soft power de atração dos Estados Unidos. Além do mais, foi um esforço de operar um regime do “governo dos homens”, no caso, ele, em detrimento do “governo das leis”. É, por via de consequência, uma faceta da crise da República. Para essa dimensão o texto de Arendt oferece subsídios relevantes.

São muitos os pontos importantes da análise arendtiana de 1975 que comportam analogia com o deletério que a presidência Trump instalou na “alma” e no espírito das instituições americanas. Destaco: a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e nesse caminho pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados; o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência; o inserir da criminalidade nos processos políticos do país; o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder; o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio; o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (palavras de Arendt em 1975!); o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Em síntese, a fabricação da imagem como política global norteou a presidência Trump, atropelando no seu ímpeto as instituições republicanas dos Estados Unidos e os seus costumes e práticas. A fabricação da imagem como política global, realçou Arendt, se insere “no imenso arsenal da insensatez humana”. A derrota eleitoral de Trump foi o choque da realidade do despropósito de sua conduta.

Recolocar a República americana nos seus trilhos será a tarefa de Biden e de seus colaboradores. Não será tarefa fácil, como é sabido, e não apenas pela impregnação que Trump retém na sociedade americana e no Partido Republicano, mas também pelo radicalismo das polarizações que permeiam a vida do país e a complexidade do desafio da sua pauta. Nesse contexto, no entanto, as lições de Hannah Arendt de 1975 serão úteis a partir de janeiro de 2021.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Marcus Pestana: Sobre conservadores, liberais, progressistas e reacionários

Apesar dos efeitos paralisantes ocasionados pela pandemia da Covid-19, fatos importantes marcaram o cenário internacional em 2020, oferecendo pistas sobre o futuro e as ideias que o presidirão. O mais importante foi a vitória do democrata Joe Biden nos EUA e a derrota de Donald Trump. Parece uma sinalização clara de esvaziamento da onda de crescimento do populismo autoritário. O sentimento anti-globalista, xenófobo, racista, iliberal, antidemocrático, anti-humanista, vai dando lugar novamente a um mundo mais integrado, solidário e comprometido com a liberdade e a tolerância. Também os tropeços da concretização do Brexit, numa complexa negociação entre a Inglaterra e a União Europeia, indicam que a escolha da população inglesa talvez não tenha sido a melhor.

A China continua sua longa marcha rumo à hegemonia econômica, e mesmo servindo de espantalho ideológico para a guerra cultural dos reacionários, nunca esteve tão distante, com seu capitalismo de Estado ou seu socialismo de mercado, da matriz de pensamento marxista-leninista-maoísta. O resíduo que existe de socialismo real agoniza nas experiências de Cuba, Venezuela, Nicarágua e na exótica presença da Coreia do Norte no cenário mundial. Líderes do centro democrático, como Ângela Merkel e Macron, procuram manter posição de equilíbrio, diálogo e defesa da democracia.  A esquerda moderna e democrática procura respostas para o futuro no reposicionamento permanente do PD italiano, do PS português, do PSOE espanhol, dos socialdemocratas alemães em crise e do enfraquecido PS francês.Diante deste quadro assistimos a um embaralhamento desqualificado de conceitos e valores, onde há uma confusão enorme entre conservadorismo, liberalismo, progressismo e reacionarismo. Na polarização ideológica global os reacionários procuram usar o escudo do liberalismo e do conservadorismo contra uma caricatural e inexistente ameaça comunista.

Quando se desce do patamar do debate intelectual para a guerrilha das redes sociais, aí que a confusão se aprofunda e o besteirol ideológico impera. Vejo, no Brasil, um amplo espaço para a necessária convergência entre os verdadeiros conservadores, liberais e progressistas, em torno de uma agenda que articule a defesa da liberdade política, econômica e individual, a eficiência do Estado, o fortalecimento da sociedade civil e o combate às desigualdades. Por isto, é importante separar o joio do trigo.

Dou aqui algumas dicas para aqueles que de boa fé querem travar um debate qualificado sobre as ideias que devem governar nosso futuro. Quem quiser conhecer o verdadeiro pensamento conservador sugiro a leitura do livro “Edmund Burke, redescobrindo um gênio” de seu discípulo Russel Kirk. Para quem quiser ser introduzido no pensamento liberal uma boa dica é “O chamado da tribo, grandes pensadores para nosso tempo” de Mário Vargas Llosa. Os que quiserem se aprofundar numa visão progressista de mundo recomendo os artigos e livros do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora, quem quiser contrastar tudo isso com a visão atrasada e regressiva dos reacionários leia os livros de Olavo de Carvalho e os escritos de nosso chanceler Ernesto Araújo.

A teoria sem prática é estéril. A prática sem boa teoria é cega. Se queremos outro Brasil, o primeiro passo talvez seja colocar as ideias em ordem.         

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


BBC Brasil: Enquanto Bolsonaro patina em se aproximar de Biden, oposição brasileira ganha terreno com democratas

Se o presidente brasileiro Jair Bolsonaro demorou 38 dias para reconhecer a vitória de Joe Biden à Presidência dos Estados Unidos e patina para estabelecer conexões com os democratas, a oposição ao seu governo no Brasil tem se mostrado mais efetiva em construir pontes com a nova administração, que começará oficialmente no dia 20 de janeiro.

Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington

E uma parte importante dessa conexão tem sido operada por meio de lideranças indígenas, com quem Bolsonaro tem acumulado embates.

A última prova disso é o lançamento de uma parceria entre a parlamentar americana democrata Deb Haaland e a deputada federal brasileira Joênia Wapichana (Rede-RR).

Na semana passada, as duas conversaram pelo telefone para coordenar esforços interamericanos para avançar em pautas de respeito aos direitos dos povos nativos e proteção ao meio ambiente nos dois países.

"Continuaremos colocando Bolsonaro na fogueira enquanto ele cometer violações dos direitos humanos, seguir no esforço para destruir a Floresta Amazônica e colocar nosso planeta em risco de um desastre climático ainda maior", afirmou Haaland em nota enviada à BBC News Brasil.

Entusiasta da gestão do republicano Donald Trump, que tentou sem sucesso a reeleição, Bolsonaro já havia se posicionado publicamente em favor de um segundo mandato para Trump, de quem se disse fã.

Seu filho e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, que em 2019 acalentou o desejo de ser embaixador em Washington, fez campanha por Trump em suas redes sociais.

Após a divulgação do resultado do pleito, o Itamaraty mergulhou em silêncio enquanto até duas semanas atrás Bolsonaro dizia ter informações sobre "fraude eleitoral". Na terça-feira (15), o presidente enviou "saudações" a Biden", "com meus melhores votos e a esperança de que os EUA sigam sendo "a terra dos livres e o lar dos corajosos".

E acrescentou: "Estarei pronto a trabalhar com o novo governo e dar continuidade à construção de uma aliança Brasil-EUA".

Haaland: crítica a Bolsonaro e cotada para o gabinete de Biden

O caminho dessa cooperação, no entanto, pode ser acidentado. Isso porque existe uma sincronia de movimentos de atores políticos nos legislativos tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos que dificultam a aproximação.

"A gente tem visto um Itamaraty disfuncional, declinante, com o filho do presidente (Eduardo) como uma eminência parda da política externa. Então outros atores políticos passaram a atuar, como o legislativo brasileiro, que geralmente não têm protagonismo no tema. Do lado do Brasil, vemos uma politização histórica da política externa", afirma Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas.

"Ao mesmo tempo, pela primeira vez, o Congresso americano mostrou interesse em se aproximar do legislativo brasileiro e a vitória de Biden empoderou esse grupo de deputados democratas que está na Câmara."

Primeira mulher indígena a ser eleita para o Congresso americano, Haaland é cotada para ser a secretária do Departamento de Interior do presidente-eleito Joe Biden, o que a colocaria no primeiro time da nova administração.

Haaland se tornou uma das principais críticas de Bolsonaro no partido — e na Câmara —, e tem trazido nomes proeminentes da agremiação consigo para as manifestações públicas contra o mandatário brasileiro, como o senador Bernie Sanders e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez. Ela passou a atuar tanto na pressão pública a Bolsonaro, por meio de cartas, quanto na proposição de medidas contra os interesses do governo brasileiro no Congresso americano.

A deputada americana tentou, por exemplo, barrar a aprovação do status do Brasil como aliado militar extra-OTAN, uma das conquistas mais comemoradas pelo Itamaraty sob Bolsonaro.

Nas últimas semanas, ela se empenhava em cortar do Orçamento de Defesa dos EUA a previsão de verba pública para o acordo de salvaguardas tecnológicas entre os países, que deve viabilizar lançamentos de satélites americanos da base de Alcântara, no Maranhão.

Em maio de 2019, pouco depois do anúncio do acordo para uso da base de Alcântara, Haaland conseguiu angariar assinaturas de 54 congressistas americanos para uma carta enviada ao secretário de Estado americano, Mike Pompeo, na qual alertava para "violações dos direitos humanos de comunidades indígenas e quilombolas no Brasil".

Meses antes, além de Wapichana, a política americana recebeu no Congresso dos EUA as parlamentares oposicionistas Erika Kokay (PT-DF) e Fernanda Melchionna (PSOL-RS).

Em junho desse ano, voltou à carga com uma carta enviada ao presidente da Câmara brasileira, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em que pedia a derrubada de um projeto de lei que previa ampla regularização fundiária na Amazônia e que acabou batizado pelos críticos de "PL da Grilagem".

"Entendemos que esse projeto é muito prejudicial para a floresta amazônica, uma vez que legalizará grandes áreas de terras públicas que já foram ocupadas e desmatadas ilegalmente", escrevia Haaland, na carta assinada por 18 de seus colegas.

No mesmo período, seus colegas da Comissão de Orçamento e Tributos da Câmara enviaram comunicação às autoridades comerciais americanas dizendo que se opunham a qualquer avanço em tratados comerciais com o Brasil de Bolsonaro.

E em dezembro, Haaland assinou com outros 21 colegas um pedido de proteção à deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), em que qualificava as políticas de Bolsonaro como "antidemocráticas e xenófobas".

"O que estamos fazendo é expor para o mundo as ações do governo Bolsonaro que precisam parar e teremos intercâmbio de relações legislativas intensas", afirmou à BBC News Brasil a deputada Joênia Wapichana.

Segundo ela, o governo Bolsonaro deveria "ter atuado de forma mais diplomática e menos de acordo com preferência individual" com os democratas. Questionado repetidas vezes sobre o assunto, o embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, afirma manter bom trânsito nos dois partidos.

Mas não para por aí. Em outubro de 2020, enquanto a disputa para a Presidência da Casa Branca chegava à reta final, em Washington D.C., a líder indígena Alessandra Korap Munduruku recebia o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos.

Korap ganhou proeminência ao pedir a expulsão de garimpeiros das terras de seu povo, motivo pelo qual passou a ser ameaçada de morte.

A líder tem denunciado que desde a chegada ao poder de Bolsonaro, a situação das populações nativas se deteriorou.

Bolsonaro já se posicionou publicamente a favor do garimpo em terras indígenas, contra a destruição de maquinário usado por madeireiros para derrubar ilegalmente a floresta na Amazônia e, durante a campanha, prometeu que não demarcaria mais nem "um centímetro quadrado" de área para essas populações.

No evento de homenagem a Korap, coube a John Kerry, recém-nomeado por Biden como enviado especial de mudanças climáticas para o Conselho Nacional de Segurança, fazer o principal discurso da noite. Ali, ele disse à Korap que se comprometia a lutar a seu lado.

"O povo Munduruku no Brasil é guerreiro de muitas formas diferentes. Tem resistido ativamente à pressão constante, violenta, ilegal e, às vezes, patrocinada pelo Estado, de madeireiros e mineradores para explorar suas terras. Alessandra, você falou e continua a falar a verdade ao poder. E é extraordinária a maneira como você luta pelos pulmões do planeta, a maneira como você luta para proteger nossa terra e por todos os bens comuns que precisamos nos esforçar para salvar", disse Kerry, responsável pela formulação das propostas para meio ambiente da campanha de Biden.

Naquele mesmo mês, o democrata surpreendeu o governo brasileiro ao citar o desmatamento na Amazônia como um exemplo de como mudaria sua liderança global em relação à gestão Trump durante um debate televisivo entre os candidatos.

Ao anunciar que pretendia criar um fundo para a preservação do Bioma, Biden afirmou: "Aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas". A fala foi vista pelo governo Bolsonaro como uma ameaça à soberania do país.

O poder da oposição americana a Bolsonaro

Para Casarões, é difícil dimensionar o poder desse grupo de deputados democratas, no qual Haaland é uma liderança. Isso porque, diferente do Brasil, o presidente americano depende essencialmente do legislativo para aprovar medidas centrais e por enquanto a Câmara é a única das duas casas que os democratas controlam por enquanto — a maioria no Senado para o próximo ano ainda está indefinida.

Considerado um moderado e centrista entre os Democratas, Biden terá que fazer concessões à ala mais à esquerda do partido para poder governar.

E um tema no qual seria mais fácil chegar a um consenso é justamente a agenda ambiental, na qual Bolsonaro é visto como um antagonista claro para o partido. Biden já anunciou, por exemplo, que recolocará os EUA no Acordo de Paris, de onde Trump retirou o país, em um movimento que Bolsonaro admitiu ter vontade de copiar.

No final de novembro, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que a Amazônia brasileira perdeu mais de 11 mil quilômetros quadrados de área de floresta no período entre agosto de 2019 e julho de 2020.

É o maior desmatamento registrado nos últimos 12 anos. Nesta quarta, dia 16, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo de países do qual o Brasil quer se tornar membro, divulgou relatório em que aponta que o Brasil tem falhado em coibir a devastação ambiental.

"As discussões políticas enviaram sinais contraditórios sobre o compromisso (do governo) com a estrutura de proteção ambiental existente", afirma o relatório, que exorta o governo a aumentar o orçamento para a fiscalização.

Reservadamente, democratas afirmam não ver condições de interlocução nesses temas com o chanceler Ernesto Araújo, que, em setembro de 2019, deu uma palestra em um think tank conservador na capital americana no qual questionava premissas científicas do aquecimento global.

"O negacionismo climático que uniu Bolsonaro a Trump simplesmente não funcionará com Biden, que priorizará ações climáticas globais ambiciosas, incluindo a proteção da floresta Amazônica. O problema não é apenas dos ministros atuais e seus discursos públicos, mas as políticas destrutivas do governo Bolsonaro no assunto continuarão a isolar o Brasil de governos e investidores internacionais", afirma Andrew Miller, um dos diretores da organização ambiental Amazon Watch.


O Globo: Diplomatas afirmam que contato com equipe de Biden deveria ter começado ainda na campanha

Chanceler disse que momento certo para iniciar relação é depois da posse, mas esta não foi a experiência da diplomacia brasileira em transições anteriores de governo

Camila Zarur, O Globo

RIO — Apesar de o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ter afirmado que “ainda não é o momento” de se aproximar do futuro presidente americano, Joe Biden, pois ele ainda não tomou posse, a história das relações entre Brasil e Estados Unidos mostra o oposto. Em outros períodos de transição de poder em Washington, o contato com a gestão seguinte se dava antes mesmo da definição de quem assumiria a Presidência, segundo contaram ao GLOBO diplomatas que trabalharam na capital americana e especialistas em relações internacionais. Para eles, a demora em estabelecer uma relação com Biden pode dificultar o trato entre os dois países.

Segundo explica o ex-embaixador em Washington Rubens Ricupero, a aproximação é feita durante a corrida eleitoral com ambos os partidos. Além de estabelecer e estreitar os contatos, esta é também uma forma de se manter a par dos acontecimentos e informá-los ao governo brasileiro. Ricupero vivenciou isso em dois momentos: na eleição de Bill Clinton, em 1992, quando foi embaixador na capital americana; e em 1976, quando era chefe do setor político da embaixada e alertava o governo do general Ernesto Geisel de que o democrata Jimmy Carter venceria o pleito daquele ano. 

— Nos Estados Unidos é considerado normal ter relação com os dois partidos, ninguém acha esquisito. Pelo contrário, todo embaixador e todo bom diplomata cultiva contatos com todos os lados políticos, sobretudo num posto em Washington, onde o Congresso tem uma influência grande sobre a política externa — explica Ricupero, que completa: — Em qualquer país no mundo é assim. Aqui no Brasil, não só o embaixador americano, como os cônsules de São Paulo e Rio convivem com pessoas de ambos os lados políticos. O normal é ter um contato permanente, não ficar esperando por uma oficialização.

Assim como Ricupero,  Rubens Barbosa, que também foi embaixador em Washington, acredita que o período de transição é o momento para estreitar a relação com o futuro governo, que já deveria ter sido estabelecida durante a corrida presidencial. Foi o que diplomata fez em 2000, na conturbada eleição de George W. Bush, cujo resultado foi decidido após o julgamento da Suprema Corte sobre a votação na Flórida. Barbosa escreveu sobre isso em seu livro “O Dissenso de Washington”:

“Quando Bush tomou posse, esses contatos estabelecidos ainda no período eleitoral fizeram com que a embaixada brasileira já fosse interlocutora do novo governo e facilitaram muito o acesso à nova administração”, relata o embaixador no livro publicado em 2011.

Imagem negativa

Para Roberto Abdenur, também ex-embaixador nos EUA, durante a campanha americana o presidente Jair Bolsonaro e seu governo só mantiveram contato com o lado republicano, se posicionando explicitamente a favor da reeleição de Donald Trump. Isso, segundo ele, gerou uma imagem negativa do brasileiro entre os democratas, que foi agravada com a postura que Bolsonaro teve após a eleição. 

O presidente só reconheceu a vitória de Biden após o Colégio Eleitoral confirmá-la, no último dia 14, mais de um mês após o resultado ter sido projetado. Ele também endossou a narrativa de Trump de que houve uma suposta fraude na votação, embora o republicano não tenha apresentado evidências que comprovassem isso e nenhuma das mais de 50 ações impetradas tenha sido bem-sucedida em reverter ou anular votos.

— Entre os democratas, é terrivelmente negativa a imagem de Bolsonaro, seja como pessoa ou de seu governo em geral. Devemos agora correr atrás do prejuízo, procurando abrir pontes com congressistas e com os membros do governo que vêm sendo indicados pelo novo presidente americano. Não faz sentido só entrar em campo depois da posse. Não há tempo a perder — afirma o diplomata. 

Abdenur acrescenta ainda que a demora para estabelecer esse contato não ajuda a melhorar os ânimos com os democratas e pode piorar o estado de espírito em relação ao Brasil por parte da equipe de Biden.

Essa percepção ruim em relação ao presidente brasileiro pode ser um obstáculo ainda maior para a aproximação entre os dois governos, salienta o cientista político e pesquisador de Harvard Hussein Kalout, que foi secretário de Assuntos Estratégicos no governo de Michel Temer.

— Não depende apenas de o Brasil querer se aproximar. Depende se Biden vai querer abrir as portas para o governo Bolsonaro. O governo fez uma grande e única aposta em Trump, queimando todas as pontes com os democratas já na largada. Faltou à política externa brasileira maturidade, realismo e pragmatismo para entender a complexidade dessa eleição. A equipe de Biden pode não querer se aproximar de um governo que questionou o resultado que o elegeu presidente. 

Segundo fontes em Washington, diferentemente do que Araújo afirma, integrantes do governo brasileiro já teriam tentado o contato com a equipe de transição do democrata, mas não foram recebidos. A repórter na Casa Branca da GloboNews, Rachel Krähenbühl, já havia noticiado essa tentativa de aproximação antes da votação, em 3 de novembro. No entanto, o próprio presidente Bolsonaro negou que isso tivesse acontecido.

Posição defensiva

Segundo o embaixador Celso Amorim, que foi chanceler no governo de Itamar Franco e nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, a retórica do atual ministro das Relações Exteriores indica uma posição defensiva do governo brasileiro diante de eventual resistência da equipe de Biden, que já apresenta uma série de divergências com a gestão Bolsonaro em temas como meio ambiente, direitos humanos e questões relativas aos direitos indígenas e quilombolas.

— Eles parecem estar assustados em tentar uma aproximação e receber uma negativa por parte de Biden. Então, para eles não terem esse dissabor, adotam essa narrativa de que não é o momento de ter esse contato — diz o ex-ministro, que vê nesse início um indício de como será difícil a relação entre os dois líderes — Dificilmente Bolsonaro se tornará amigo de Biden. Isso demandaria um esforço que acredito que não será feito. O governo Bolsonaro já tem um compromisso com a extrema direita no Brasil, que é ligada à extrema direita americana. 

Amorim explica também que Biden, por sua vez, terá que fazer concessões em seu mandato para tentar unir um país e o próprio partido divididos e, por isso, deverá adotar uma postura mais dura com Bolsonaro nas questões em que os dois divergem. 


‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

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Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

Em artigo publicado na revista de dezembro da FAP, engenheiro diz que país tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O Brasil deveria buscar inserção positiva na economia mundial através da diversificação e agregação de valor à sua pauta de exportações e do investimento em inovação e tecnologia e nas novas oportunidades que estão surgindo na transição para uma economia de baixo carbono”. A análise é do engenheiro de produção e assessor econômico da liderança da Rede no Senado, Bazileu Margarido, ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com Margarido, há um cardápio extenso de atividades econômicas que deveriam ser incentivadas para a recuperação da economia depois da pandemia da Covid-19.

“O Brasil tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia, das fontes distribuídas de energia renovável e limpa, da agricultura de baixo carbono, da exploração sustentável de florestas nacionais, da universalização do saneamento ambiental, entre outras”, assinala. De 2003 a 2007, ele foi chefe de gabinete da então de meio ambiente, Marina Silva, antes de se tornar presidente do Ibama, de 2007 a 2008.

Segundo Margarido, esses investimentos têm capacidade para gerar milhões de empregos verdes e atrair capital externo ávido por um portfólio de atividades sustentáveis. Isso, segundo ele, para satisfazer as exigências de um novo consumidor, mais consciente dos limites das bases naturais que dão sustentação ao desenvolvimento.  

“Insistir na ocupação da Amazônia pela grilagem de terra, por pastos para criação extensiva de gado e pela mineração ilegal só vai nos levar ao atraso e ao isolamento político e econômico”, alerta o engenheiro. Ele também é mestre em economia e, de 2001 a 2002, foi secretário de Fazenda de São Carlos (SP).

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Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

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‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Em artigo publicado na revista mensal da FAP, professor da Unesp avalia o que chama de ‘Ano 2’ do presidente

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mostra-se “despreparado para o exercício do governo, sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia, empreendendo ‘gestão’ desastrosa que não evitou os mais de 180 mil mortos em menos de 12 meses”. A afirmação é do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Aggio também critica incapacidade do governo diante de “questões mais estruturais como as reformas tributária e administrativa que vão ficando para as calendas”.

“Sem liderança e sem rumo, a filiação de Bolsonaro a algum partido do Centrão tornou-se disputa rasa, quase um leilão, com vistas a um transformismo que garanta ao presidente um ‘novo’ protagonismo em 202’”, diz o professor da Unesp, em outro trecho de sua análise na Política Democrática Online de dezembro. “Num cenário ainda difuso, já se pode divisar, contudo, outros transformismos em projeção, todos visando alcançar o poder nas próximas eleições”, assevera.

Se, no Ano 1, o governo foi uma usina de péssimas ideias, no Ano 2 a imagem é de desolação, de acordo com o artigo do historiador. “2022 já começou e aos brasileiros importa superar a pandemia que nos assola bem como a crise que desorganiza a nação depois da sanha destruidora que se instalou no poder”, afirma Aggio, para acrescentar: “Só assim se poderá conceber em que termos avançaremos para o futuro, depois da breve – assim esperamos – ‘era Bolsonaro’”.

Em seu artigo, o professor da Unesp lembra que, no final do ano passado, publicou um artigo com o título “Bolsonaro, Ano 1”. “Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da ‘Era Fascista’, com início em 1922, ano da tomada do poder com a ‘Marcha sobre Roma’. Como todo aspirante a ‘revolucionário’, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico”, explica.

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Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

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No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

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Folha de S. Paulo: Votação do Colégio Eleitoral deve frear estratégia 'golpista 2.0' de Trump

Envio dos votos dos delegados marca fim do prazo para contestar resultados da apuração

Rafael Balago, Folha de S. Paulo

Nesta segunda (14), as tentativas de Donald Trump de mudar o resultado da eleição americana encontrarão uma espécie de muro: o prazo legal para resolver queixas sobre a apuração e para que os delegados enviem seus votos para Washington. São estes votos, afinal, que decidem o nome do novo presidente dos EUA.

Contagens, recontagens e dezenas de derrotas judiciais apontam que Trump perdeu para Joe Biden na votação popular de 3 de novembro. Mas o republicano não admite isso e segue tentando reverter o placar, em uma atitude que pode ser considerada uma nova forma de golpismo, avaliam vários especialistas ouvidos pela Folha.

Eles apontam que o conceito tradicional de golpe não se aplica plenamente ao caso atual, mas que tentar mudar as regras do jogo para se manter no poder, como Trump vem fazendo, não pode ser considerado algo normal, ou a sensação resumida na frase "as instituições estão funcionando".

"No contexto do populismo do século 21, vemos um novo tipo de ameaça interna, que são lideranças que corroem a democracia de dentro para fora. A democracia morre por meio de novos mecanismos, e Trump contribui para ser visto como um tipo de golpista '2.0', com roupagem diferente do que estávamos habituados", analisa Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de relações internacionais da Faap.

A data de envio dos votos dos delegados é considerada o limite legal para questionamentos da apuração. "Depois do dia 14 de dezembro, não há mais o que fazer fora da institucionalidade", diz Felipe Loureiro, coordenador do curso de relações internacionais da USP.

“Se definirmos que um golpe envolve o desrespeito às leis, estamos caminhando para um cenário golpista, embora o conceito seja heterogêneo”, considera.

Em 2000, quando o resultado da eleição foi parar na Justiça, a Suprema Corte vetou uma nova recontagem na Flórida porque isso faria com que votos do Colégio Eleitoral fossem enviados depois do prazo máximo. Essa decisão, que confirmou a vitória de George W. Bush, foi baseada no Código Eleitoral de 1887, e virou jurisprudência.

Na eleição atual, a Suprema Corte se recusou a julgar um pedido republicano de recontagem. Semanas antes da eleição, Trump nomeou Amy Coney Barrett para aquele tribunal, e disse esperar que a maioria conservadora naquele tribunal pudesse ajudá-lo a vencer processos, caso a apuração fosse judicializada.

Nesta segunda (14), os delegados se reúnem nos estados e, em seguida, enviam seus votos para Washington. No entanto, as cédulas só serão somadas pelo Congresso em 6 de janeiro, em uma sessão conjunta, comandada pelo vice-presidente Mike Pence. Nesta data, Joe Biden será oficialmente proclamado como vencedor da eleição. A posse está marcada para 20 de janeiro.

Biden será eleito porque os votos dos delegados seguem a preferência mostrada nas urnas. Os resultados da apuração, certificados pelos estados, mostram que o democrata obteve 81,3 milhões de votos, contra 74,3 milhões de Trump. Com isso, Biden conquistou 306 delegados no Colégio Eleitoral. Seu rival, 232.

Na sessão de abertura dos votos, há uma brecha para que parlamentares questionem os resultados. Loureiro explica que, para pedir uma revisão da decisão de um estado, é preciso que ao menos um deputado e um senador daquele estado façam uma petição. Em seguida, o pedido é debatido em reuniões separadas da Câmara e do Senado, em até duas horas, e precisa ser aprovado em ambas as Casas para avançar. Como os democratas têm maioria na Câmara, a chance de que um esforço como esse prospere é nula.

No sistema eleitoral dos EUA, não há um órgão federal que centralize a apuração, como no Brasil. Cada um dos 50 estados soma seus votos de forma separada e declara o vencedor local. Assim, um candidato derrotado que se sinta injustiçado precisa reverter o resultado em vários lugares diferentes para obter uma vitória nacional.

O presidente entrou com dezenas de processos, mas não obteve nenhuma vitória significativa, porque não apresentou provas para as denúncias de fraude que fez. E mesmo nos estados onde houve recontagem, as vitórias de Biden foram confirmadas.

O republicano também fazendo tentativas reiteradas de pressionar autoridades estaduais a mudar resultados que apontam vitória de Biden. Segundo o jornal The Washington Post, ele telefonou ao governador da Geórgia, e pediu que ele anulasse a vitória do democrata no estado.

“Com suas ações, o que Trump está pedindo é que haja um golpe de estado, para que ele possa permanecer no poder”, diz Federico Finchelstein, professor da universidade The New School, em Nova York, e especialista em fascismo.

“Mas este é um golpe falido. As ditaduras triunfam quando as instituições, como a Justiça e o Congresso, falham e a população fica apática. Isso não aconteceu agora”, avalia Finchelstein.

"Tecnicamente é um autogolpe, uma tentativa de se manter no poder de forma ilegítima”, considera Jenna Bednar, professora de ciência política na Universidade de Michigan. “Ninguém produziu evidências de fraudes, então a Justiça não tem base para desqualificar os resultados eleitorais. E ele não tem apoio militar para seguir no poder usando a força", prossegue Bednar.

Para Juliana Cesário Alvim, professora de direito na UFMG, o conceito de golpe vem mudando a partir de casos como o da resistência de Trump. “A teoria ainda está correndo atrás de dar conta destes novos fenômenos. Esse cenário não pode ser considerado normal, mas há um uso político da palavra golpe", pondera.

"Enquadrar as ações de Trump em 'golpe' e 'não golpe' obscurece muitas das questões sociais e políticas importantes pelas quais os Estados Unidos têm passado nos últimos anos", questiona Celly Inatomi, pesquisadora do INCT-INEU (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA).

Os pesquisadores apontam que a recusa de Trump em aceitar a derrota é parte de uma estratégia de longo prazo, que não começou agora e deverá se estender pelo futuro, para buscar mantê-lo em evidência e manter seus milhões de apoiadores engajados.

“Ele tem um objetivo sub-repitício que é criar uma narrativa para tumultuar a democracia americana. Trump perdeu, mas continua a fazer discursos, no qual o assunto é a fraude na eleição”, diz Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP e colunista da Folha. “E é uma narrativa, um comportamento golpista, que ele vinha preparando bem antes da eleição.”

Durante a campanha, o presidente se recusou a dizer que reconheceria a derrota, caso perdesse. Também afirmou que só seria vencido em caso de fraude. E durante a apuração, houve protestos contra o resultado feitos por seus apoiadores. Em Nevada, foram feitos atos do lado de fora de um centro de contagem de votos, com discursos que chamavam os resultados de "roubo".

Há um consenso entre os pesquisadores de que as ações do presidente colocaram a democracia dos EUA em risco, ao questionar sua legitimidade de forma tão forte. "Ele exacerbou e esgotou as linhas morais e legais para questionar a eleição. Por mais que tenha direito de acionar a Justiça, questionar uma eleição tem uma repercussão muito grave. E ele fez isso com base em fofocas. É abusivo ao extremo", diz Mendes.

O Judiciário, os governos estaduais e o Congresso resistiram às pressões de Trump, mas a postura de parte do Partido Republicano gera preocupações. A legenda se divide entre alguns nomes que apoiam o presidente abertamente, outros que reconheceram a vitória de Biden e um terceiro bloco que prefere guardar silêncio e esperar.

Há também o debate se Trump poderá ser processado por agir desta maneira, após deixar a Presidência. Em seu mandato, o republicano premiou aliados com o perdão presidencial, e surgiu o debate se ele poderia dar um benefício do tipo a si mesmo, algo nunca feito na democracia americana. “Se ele se perdoar, assumirá que houve crimes", aponta Finchelstein.


PRÓXIMOS PASSOS DO CALENDÁRIO ELEITORAL

O que falta para Joe Biden se tornar o próximo presidente

14.dez
Delegados do Colégio Eleitoral se reúnem nos estados e enviam seus votos para Washington. Termina prazo de contestação legal do pleito

6.jan
Votos serão contados em sessão do Congresso, na qual Joe Biden será oficialmente proclamado vencedor

20.jan
Joe Biden tomará posse como novo presidente dos EUA


Fernando Gabeira: Mensagem na garrafa

Quais as fontes de Bolsonaro para dizer que houve fraude na eleição nos EUA? A Abin descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA?

 ‘Minha vida é uma desgraça. É problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel.’

Quando Bolsonaro fez esse discurso, os acólitos aplaudiram. Entendi, no entanto, que estava pedindo socorro, de alguma maneira.

No mesmo discurso, disse que não podia tomar um guaraná, pois era assediado pelos urubus da imprensa. Era uma referência ao guaraná Jesus, que descreveu com uma piada machista ao tomá-lo no Maranhão.

Os sensíveis olhos e lentes da imprensa contam uma história cotidiana de Bolsonaro. E as fotos e relatos que saem de Brasília indicam que Bolsonaro está, no mínimo, descompensado.

Ultimamente, sai das solenidades correndo e olhando para o relógio. Às vezes, para para olhar o céu, cercado de segurança; outras, acena para o vazio da Esplanada. Foi visto falando no ouvido de um dragão da Independência e, quando há mulheres bonitas em solenidade, lança olhares sedutores.

Quando veio ao Rio, fez uma declaração importante: houve fraude nas eleições dos EUA, e ele sabia por fontes próprias.

Ninguém se incomodou com isso. A imprensa considerou apenas mais uma frase de Bolsonaro, o Congresso silenciou, os próprios americanos ignoraram.

Quais foram as fontes de Bolsonaro? A Abin do general Heleno descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA? Ou as fontes seriam agentes do esquema pessoal de Bolsonaro: um sargento na Filadélfia, um delegado em Las Vegas?

Bolsonaro não responde por suas palavras. Isso lhe dá uma sensação de onipotência que atenua, de certa forma, a vida desgraçada de cada dia. Às vezes, ele usa um imenso helicóptero para viajar dois quilômetros do Alvorada ao Planalto. É irracional, mas um brinquedo compensatório.

Na relação com a vacina, o mundo de Bolsonaro é muito cinzento. No mesmo dia em que declarava que não se responsabiliza pelos eventuais danos de uma vacina, anunciava-se algo diferente nos EUA: três ex-presidentes, Obama, Clinton e Bush, vão se vacinar diante das câmeras para estimular os americanos.

São atitudes opostas não apenas sobre a ciência, mas sobre a vida. Preocupa-me também a amargura de Bolsonaro, que se expressa tanto na hostilidade à natureza, na sua compulsão de destruir toda a estrutura legal de proteção ao meio ambiente.

Escrevi artigos mostrando que a destruição da Amazônia, no ritmo de agora, significa queimar dinheiro, perder inúmeras oportunidades econômicas que se abrem num mundo ambientalmente mais atento.

Começam a surgir no exterior, em núcleos militares que estudam o aquecimento global, textos que mostram que, além do desastre econômico, a destruição da Amazônia torna-se ameaça também para a segurança nacional do Brasil.

A dupla negação da Covid-19 e do aquecimento global não pode ser considerada uma reação normal num governante. Alguém dirá que isso aconteceu nos EUA com a passagem de Trump. Mas lá morreram mais de 3 mil pessoas num só dia, e há 100 mil internados. Os resultados são tenebrosos como são no Brasil, em menor escala.

Assim como a epidemia me fez reler “A peste”, de Camus, a vida desgraçada de Bolsonaro me arrasta para a peça “Calígula”, do mesmo autor.

Não há espaço nem tempo para analisar as duas trajetórias. Mas o “Calígula” de Camus, longe de fabulações vulgares, é uma excelente reflexão sobre o absurdo e o poder.

“E de que me serve ter as rédeas na mão, de que me serve meu espantoso poder, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com o que o Sol se ponha ao nascente, com que o sofrimento diminua, e os homens não morram?”

Bolsonaro é mais prosaico, não quer que o Sol se ponha ao nascente, apenas tomar um caldo de cana e comer um pastel na rua. Estamos longe do tempo dos imperadores romanos, isso não quer dizer que, numa democracia, a delicada relação entre equilíbrio mental e poder tenha sido superada.

Escrevo isso como se lançasse uma garrafa ao mar, gostaria muito que fosse apenas uma mensagem vazia, e que as suspeitas da loucura se voltassem contra mim nessa etapa crepuscular. Certamente, os estragos seriam menores.


Dorrit Harazim: Natal gordo

O ocupante da Casa Branca nem sequer precisa simular que trabalha

Natal não é para amadores, e poucos percebem os desvios que cometem quando hipnotizados pelo festivo arrastão. Basta citar um único excesso coletivo da vida brasileira a cada dezembro. Desde que as luzinhas de decoração vindas da China passaram a custar uma ninharia, elas engolem prédios, lojas, ruas, interiores de casas, postes e praças. Você acorda de manhã, e as árvores que até a véspera pareciam árvores sumiram. Viraram espantalhos, assombrações. Estão de tronco e galhos estrangulados por fileiras cerradas dessas luzinhas que piscam dia e noite, montadas com diligência para lhes esconder qualquer vestígio de natureza. Poderiam fazer parte de algum sonho natalino do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mas não fazem mal a ninguém. Apenas deveriam ser usadas com mais temperança.

Nos Estados Unidos de Donald Trump, Natal é coisa séria. “Se eu me tornar presidente”, prometeu ao longo da campanha de 2016, “vamos voltar a nos cumprimentar desejando Feliz Natal, e podem esquecer o Boas Festas”. Equiparava esse cumprimento genérico e inclusivo a um ataque contra as tradições cristãs por parte de terroristas politicamente corretos. Também na campanha de 2020, o presidente alertou seus seguidores para o risco de o Natal estar sob ataque. Caso o democrata Joe Biden fosse eleito, ele seria capaz de abolir as festividades em todo o país.

Como se sabe, Biden venceu, será o segundo presidente católico dos EUA a partir de 20 de janeiro (John Kennedy foi o primeiro) e tem problemas concretos para lhe tirar o sono. Na questão natalina, Trump deveria ter olhado com mais afinco à sua volta, pois o perigo morava na própria Casa Branca. Fitas gravadas à sorrelfa em 2018, e vazadas este ano por uma ex- amiga da primeira-dama, atestam a impaciência de Melania com a tarefa que lhe cabia. Como o linguajar usado pela First Lady foi pouco festivo, cabem asteriscos. “Eu ralo pra c*** com essa coisa de Natal, apesar de ninguém dar p* nenhuma pro Natal ou pra decoração natalina. Mas sou obrigada a fazê-lo, certo?”, desabafou em tom de queixa por ter de responder a perguntas sobre crianças enjauladas na fronteira quando seu tempo estava sendo tomado pelo planejamento da decoração.

Naquele Natal, Melania, toda de preto para a filmagem enviada às mídias, inspecionou lentamente a obra finalizada, a começar pela galeria presidencial que decorara com 40 imensas árvores vermelho-sangue, destituídas de qualquer adereço. Em dois outros salões nobres da Presidência, foram instaladas 29 árvores cobertas só de ornamentos escarlates. Foi um auê, com a inevitável enxurrada de memes. Houve quem visse na decoração satânica um quê de Jack Nicholson em “O iluminado”, o clássico de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Stephen King.

Esta semana o presidente e a primeira-dama inauguraram os festejos natalinos de 2020. Teve pompa, circunstância, não teve máscaras nem distanciamento social, e haverá várias recepções para convidados. Na Casa Branca, não é bem-vinda a lembrança de que o país está de joelhos pela Covid. A decoração deste final de feira foi mais convencional, mas nem por isso mais comedida — nada é excessivo, nenhuma exuberância é over para este casal presidencial.

O primeiro reinado de Trump termina em poucas semanas, e já passa da hora de o mundo não descartar como tolas bravatas a verborragia de superlativos do presidente. Eugene R. Fidell, pesquisador sênior da Escola de Direito da Universidade Yale, recomenda levar a sério alguns delírios verbais do comandante-em-chefe, sobretudo quando são repetidos à exaustão. Não raro Trump proclama de antemão exatamente o que pensa em fazer. E faz, pegando no contrapé o senso comum universal.

Em poucas semanas de entrincheiramento na Casa Branca após a derrota de 3 de novembro, ele conseguiu o impensável: emplacou uma narrativa ficcional de uma nota só — a eleição foi roubada — e mantém galvanizados os 74 milhões de americanos que o inundaram de votos. Dessa fantasia não arredará pé, até porque ela lhe permite deletar a realidade. É provável que historiadores do futuro tenham dificuldade em compreender como essa narrativa surrealista tenha durado mais do que cinco segundos na longeva democracia americana.

Mas é por meio dessa ficção que Trump já conseguiu arrecadar mais de US$ 200 milhões desde a derrocada nas urnas — oficialmente as doações se destinam a financiar a blitz judicial de um circo de advogados farsescos, que simulam reverter a alegada fraude. Em breve, porém, o mote “estamos tentando ficar mais quatro anos” precisará ser aposentado. As doações, então, se voltarão a uma hipotética “reeleição triunfal” em 2024.

Embora tudo isso seja ficcional, as doações, essas sim, são em dinheiro de verdade. Assim como são concretos os 75% do total já reservados para uso pessoal de Trump. Natal gordo, apesar da derrota. O ocupante da Casa Branca nem sequer ainda precisa simular que trabalha. Já conseguiu transtornar o país como seu vigarista-em-chefe.