Eleições EUA

Amanda Mars: Trump dinamita o final com o qual sonhava

Até quarta-feira, o presidente republicano imaginava uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate. O ataque ao Congresso o deixa mais isolado e silenciado que nunca

Silenciado nas redes sociais, repudiado pelo establishment republicano, abandonado por uma série de altos funcionários de seu Gabinete e derrotado nas urnas, Donald Trump nunca esteve tão sozinho como agora. Sua última grande batalha contra o sistema dos Estados Unidos, na qual tentou reverter o resultado das eleições presidenciais espalhando acusações infundadas de fraude, serviu de teste final sobre as lealdades, e também sobre as forças democráticas, e o presidente se deu mal.

O secretário de Justiça William Barr, nomeado pelo próprio Trump, não encontrou nenhum fundamento da alegada grande operação fraudulenta; as autoridades republicanas dos Estados cujos resultados eleitorais foram contestados pelo mandatário resistiram às suas pressões; a Suprema Corte, de maioria conservadora e com três dos nove juízes nomeados por ele, decidiu por unanimidade não envolver-se; e no último momento, na quarta-feira, quando o Congresso se reuniu para certificar em Washington a vitória eleitoral do democrata Joe Biden, apenas um punhado de legisladores fiéis ao presidente se animou a torpedear o processo.

Naquele 6 de janeiro, já escrito para sempre nos livros de história, o magnata nova-iorquino resolveu fazer uma nova demonstração de força. Pela manhã, antes que os membros do Congresso se reunissem para ratificar Biden, convocou um comício em frente à Casa Branca, aproveitando a enorme quantidade de seguidores que tinham chegado de todo o país. Depois, incentivou-os a ir protestar diante do Capitólio, a ser fortes, a recuperar o país sem fraquejar.

Até quarta-feira, Donald Trump tinha planejado uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate, pensando em se manter como uma voz destacada do eleitorado conservador. Tinha revelado inclusive sua intenção de voltar a ser candidato nas eleições presidenciais de 2024 e, pelo que seu entorno vazou para a imprensa, pensava em anunciá-la formalmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ninguém gosta tanto de um bom espetáculo como esse empreendedor imobiliário de 74 anos que conquistou a presidência mais poderosa do mundo ao saltar dos reality shows para a política. Irritado com a linha da TV conservadora Fox News —outra que o abandonou, segundo seu ponto de vista—, pensava em lançar uma plataforma própria para continuar conectado com suas bases. A batalha de fundo era o controle do eleitorado republicano. Alguns membros de sua família, como sua filha, Ivanka, e seu filho mais velho, Donald, também consideraram a possibilidade de seguir uma carreira política. Em suma, para a família Trump, a política estava apenas começando.

Todos esses planos se complicaram para Trump depois do violento assalto de seus seguidores radicais ao Congresso, uma revolta — instigada por sua campanha dos últimos meses— na qual morreram cinco pessoas e que pôs a imagem dos Estados Unidos, a democracia mais poderosa do mundo, em uma situação vergonhosa.

Segundo o procurador Ken Kohl, do gabinete do Ministério Público dos EUA em Washington, o Departamento de Justiça não planeja, pelo menos por enquanto, denunciar por crimes de incitação à violência o presidente ou outros que discursaram no comício da manhã de quarta-feira diante da Casa Branca (como seu filho Donald Jr.), onde foi aceso o pavio. No entanto, o Partido Democrata pretende submeter Trump a um processo de impeachment, ou seja, a um julgamento político no Congresso para decidir sobre sua destituição, a não ser que ele renuncie ou seu próprio Gabinete o deponha recorrendo à 25ª emenda da Constituição (estas duas últimas opções são improváveis).

Resta para Trump pouco mais de uma semana na Casa Branca, mas, se for condenado nesse processo, o Senado poderia votar também para incapacitá-lo como candidato no futuro. O impeachment teria caminho livre na Câmara dos Representantes, que iniciaria o processo e tem maioria democrata, mas seria complicado no Senado, onde ocorreria o julgamento político em si, no qual um presidente só pode ser condenado por maioria de dois terços dos votos —o que, atualmente, o partido de Joe Biden não tem.

“É muito difícil que tenham tempo para tudo isso; o que os democratas querem fazer é prejudicá-lo politicamente, evitar que possa se candidatar nas eleições em 2024, e buscam o apoio dos republicanos para isso, mas essa não é sua prerrogativa, é uma prerrogativa dos eleitores”, considera o jurista republicano Robert Ray, que atuou como procurador independente no caso Whitewater, um escândalo imobiliário que atingiu Bill e Hillary Clinton nos anos noventa.

Além dos episódios violentos no Congresso, o que estará à espera de Trump quando ele deixar o Governo é a Justiça. A procuradoria de Manhattan está investigando seu histórico tributário e, graças a uma vitória na Suprema Corte, terá acesso a oito anos de suas declarações, como parte de inquéritos sobre pagamentos a mulheres para ocultar possíveis infidelidades matrimoniais durante a campanha de 2016 e sobre uma possível fraude fiscal. Além disso, a procuradora de Nova York Laetitia James está analisando possíveis acusações contra sua construtora por alterar o valor real de seu ativos para obter empréstimos.

O Departamento de Justiça também terá o caminho livre para reativar o caso de obstrução à Justiça durante a investigação da trama russa —Trump já não terá a imunidade presidencial— e, por outro lado, continuam os processos por sua conduta pessoal: uma ação de sua sobrinha Mary Trump por fraude em uma herança e duas por difamação, uma destas movida pela escritora E. Jean Carroll, que o acusa de uma agressão sexual supostamente cometida nos anos noventa.

Essas questões, porém, já estavam na mesa antes do pleito de novembro e não minaram o apoio ao presidente, que perdeu as eleições, mas obteve 74 milhões de votos, quase 12 milhões a mais do que em 2016. A dúvida é se o magnata conseguirá manter sua capacidade de mobilizar as bases a partir de agora; se realmente, como afirma, poderá continuar sendo o líder dos eleitores conservadores depois de ser expulso do poder político, com menos atenção da mídia e com outros republicanos já pensando em varrê-lo do mapa para entrar na corrida pela Casa Branca.

Para o estrategista político Rick Wilson, um dos fundadores do The Lincoln Project, uma plataforma de republicanos contra Trump, o presidente perdeu “seu superpoder”, ou seja, seu alto-falante nas redes sociais, Twitter e Facebook, “e não poderá se comunicar com seus seguidores tão facilmente quanto antes”.

Wilson relativiza o peso dos 74 milhões de votos que Trump recebeu nas eleições, e alerta que metade deles é de “republicanos comportamentais”, ou seja, eleitores que “votarão em republicanos aconteça o que acontecer, porque para eles as eleições são uma alternativa entre socialismo e liberdade, luz e escuridão, bem e mal”. Resta, acrescenta o estrategista, essa outra metade que participa do culto à figura do magnata nova-iorquino. “Mas o grande cisma com que esta nação se defronta é se as pessoas que se dizem republicanas, que acreditam nos princípios conservadores, estão bem servidos com Trump”, assinala. Para o Partido Republicano, diz ele, o que ocorreu quarta-feira foi “devastador”.

Fala-se muito sobre os próximos movimentos de Trump. Renegado como nova-iorquino, espera-se que ele se mude para a Flórida, principalmente por conveniência fiscal. Um personagem tão singular como esse, alérgico às derrotas e orgulhoso até a agonia, não pode ser considerado varrido do mapa. Se vir opções, continuará lutando pelo controle dos eleitores republicanos, mas ninguém acredita mais que ele tenha coragem de convocar outra manifestação para coincidir com a posse de Biden.


Celso Rocha de Barros: Golpismo de Trump animou Bolsonaro

Os dois deveriam ser presos por tentativa de golpe de Estado

invasão do Congresso americano por extremistas de direita inspirou uma nova onda de entusiasmo golpista entre os bolsonaristas, que nunca deixaram de ser inimigos da liberdade por terem se vendido ao centrão.

Jair Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou a invasão liderada por milícias racistas, neonazistas e/ou adeptas da teoria da conspiração QAnon. Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou uma manifestação de gente vestindo a camiseta “Camp Auschwitz”. Enquanto a invasão acontecia, Bolsonaro disse que houve fraude na eleição americana (é mentira) e declarou que “se nós não tivermos o voto impresso em 2022, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.

As instituições deles são mais fortes do que as nossas. Alguns dias antes da tentativa de golpe, os últimos dez secretários de Defesa americanos (tanto republicanos quanto democratas) assinaram um artigo dizendo que “Os militares americanos não têm nenhum papel na determinação do resultado das eleições americanas”. Nenhum foi ao Twitter reclamar do julgamento do Lula, nenhum virou assessor de Toffoli durante a campanha eleitoral. E sem apoio de militar ou policial, cachorrinho de Olavo não se cria.

Ainda não sabemos se a invasão do Congresso americano foi o início de um novo movimento golpista ou o fim do último. A invasão provou que a democracia americana esteve sob ameaça durante o governo Trump e certamente estaria sob grave ameaça se Trump tivesse sido reeleito. Mas ainda não sabemos se o extremismo reacionário sobreviverá bem sem bons resultados eleitorais.

Por um lado, o extremismo racista de Trump ajudou a energizar a base eleitoral democrata e a fez comparecer em massa para eleger os dois novos senadores do estado da Geórgia. Não foram quaisquer dois senadores. Foram os dois que faltavam para que os democratas ganhassem a maioria no Senado. Muita gente no Partido Republicano vai perder a tolerância contra os extremistas de Trump agora que eles começaram a custar votos.

Por outro lado, o momento trumpista deixou um legado de degeneração moral no Partido Republicano. A invasão do Capitólio seria um episódio isolado de violência, facilmente rechaçável por, digamos, a torcida organizada do Volta Redonda, se não tivesse tido apoio de republicanos poderosos antes e depois da ofensiva.

O próprio presidente da República incentivou a radicalização para tentar fraudar a eleição. E, o que é ainda mais incrível, depois da invasão, 139 deputados e 8 senadores republicanos votaram a favor de moções que contestavam a vitória de Biden, sabendo que mentiam. Não há diferença importante entre Trump e os invasores, ou entre esses 147 e os invasores. O que faz de 6 de janeiro uma tentativa de golpe não foi a invasão do Capitólio, foi o fortíssimo encorajamento institucional que os fascistas tiveram.

Se Obama tentasse o que Trump tentou, dormiria em Guantánamo no mesmo dia. Se Lula chamasse o golpe como Bolsonaro chamou, o Exército o enforcaria na Praça dos Três Poderes. Tanto Trump quanto Bolsonaro precisam ser presos por tentativa de golpe de Estado. As Forças Armadas brasileiras precisam denunciar o golpismo de Jair Bolsonaro. Isso, sim, seriam instituições funcionando.

*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Elio Gaspari: Os últimos dias de Trump

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou

Em julho de 2016, o bilionário Michael Bloomberg, disse durante a convenção do partido Democrata: “Eu reconheço um vigarista quando o vejo”. Referia-se a Donald Trump. Passaram-se quatro anos, e a questão da vigarice do doutor foi para a mesa da procuradora-geral do estado de Nova York. Em Washington, a questão tornou-se outra: a eventual aplicação do dispositivo constitucional que permite empossar o vice caso o titular esteja incapacitado. Quando essa emenda foi aprovada, pensava-se num cenário no qual o presidente está sob intensos cuidados médicos. No espetáculo da série “Os últimos dias de Trump”, a invocação do dispositivo nada tem a ver com uma anestesia geral, por exemplo. Trata-se de incapacidade por maluquice.

Trump é visto como um narcisista psicótico por muita gente que não gosta dele. Em julho passado, sua sobrinha Mary (psicóloga) publicou um livro com o subtítulo “O homem mais perigoso do mundo”. Parecia futrica familiar.

Desde novembro, Trump sustenta que venceu a eleição “de lavada”. Na terça-feira, os candidatos republicanos perderam a eleição na Geórgia. No dia seguinte, seus guardiões fizeram o que fizeram. (“We love you”, disse Trump.) Os senadores e deputados americanos foram obrigados a deixar o prédio. Numa decisão histórica, voltaram aos plenários horas depois. Na quinta-feira, confirmaram o resultado eleitoral. A senadora republicana que perdeu a cadeira tirou sua assinatura do pedido de recontagem dos votos da eleição presidencial na Geórgia. Duas integrantes do primeiro escalão de seu governo foram-se embora, e seu fiel ex-procurador-geral acusa-o de ter traído o cargo.

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou. Isso só acontecia em filmes ruins. Desde o dia em que tomou posse, garantindo que ela foi assistida por uma multidão jamais vista, estava no tabuleiro a carta de que se tratava de um mentiroso. Quatro anos depois, com o seu negativismo eleitoral e a mobilização de seus seguidores para a invasão do Capitólio, Trump encarna o personagem do teatrólogo Plínio Marcos em “Dois perdidos numa noite suja”: “Sou o Paco Maluco, o perigoso”.

A série “Os últimos dias de Trump” não terminou. Se ele queria ir jogar golfe na Escócia no dia da posse de Joe Biden, deve buscar outro pouso. A primeira-ministra Nicola Sturgeon disse que lá o doutor não entra, pois o país está em lockdown.

Faltam dez dias para o fim da série, e Trump ainda surpreenderá a plateia. A Associação Americana de Psiquiatria continua funcionando, com sede a poucos minutos da Casa Branca. Isso, porque malucos existem.

A poesia de Grant no caos de Trump

Durante as horas em que a anarquia trumpista tomou conta do Capitólio, deu-se um momento de poesia histórica. Sem dar a menor bola, centenas de manifestantes passavam por baixo do monumento ao general Ulysses Grant, comandante das tropas vitoriosas da União durante a Guerra da Secessão (1861-1865).

A estátua equestre é um retrato excepcional da figura de Grant. Enquanto o gênero coloca os homenageados em posições combativas, como o Duque de Caxias de Victor Brecheret, o Grant do escultor Henry Shrady está encolhido, parece um tropeiro com frio. Assim era ele. Teve uma carreira militar medíocre, tentou a vida fora do Exército e faliu. Bebia mal. Ele comandava tropas do Norte quando chegou com o filho a um hotel de Washington e o recepcionista disse-lhe que só tinha quartos no sótão. Tudo bem até a hora em que ele assinou a ficha: “Ulysses S. Grant”.

Na cena da rendição dos rebeldes numa casa de Appomattox havia dois comandantes. Um chegou num bonito cavalo, com faixa na cintura e espada com punho de ouro cinzelado. O outro, com o uniforme amarfanhado (há quatro dias não o trocava) e as botas enlameadas. O bonitão era Robert Lee, que estava se rendendo e pedindo comida para seus soldados.

Desde jovem, quando participou da invasão do México, Grant impressionava pela sua capacidade de manter o sangue frio nos piores momentos de uma batalha e diante do massacre de suas tropas. (Isso numa pessoa que tinha horror a carne mal passada, pelo que viu no curtume de seu pai.)

Quanto maior a confusão, maior era a calma de Grant. Sua figura no meio da anarquia dos guardiões de Trump a foi mais uma homenagem ao general que botou os escravocratas do Sul de joelhos.

Grant foi eleito presidente e governou de 1869 a 1877. Um desastre. O general meteu-se com o papelório, e no fim da vida estava quebrado. Pagou suas contas escrevendo um livro de memórias. Ele e a mulher estão sepultados num mausoléu em Nova York, na altura da rua 122. O balcão de perfumes da Bloomingdale’s recebe mais fregueses num mês do que sua tumba do casal em um século.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, encantado com o legado da Olimpíada de 2016 e com o desenvolvimento imobiliário gerado pelo Porto Maravilha. O cretino adorou a ideia do prefeito Eduardo Paes de convocar um plebiscito para decidir o que fazer com a falecida ciclovia Tim Maia.

Eremildo propõe que no plebiscito sejam feitas mais duas perguntas:

Quem foi o responsável pelo desastre que matou duas pessoas e torrou R$ 45 milhões?

A prefeitura não tem mais o que fazer?

Baleia Rossi

O pelotão palaciano acordou para a possibilidade de o deputado Baleia Rossi ganhar a presidência da Câmara dos Deputados.

Mayrink, um artista

Gustavo Mayrink colocou um tesouro na rede. É o site “Geraldo Mayrink”, com dezenas de textos de seu pai, falecido em 2009, depois de mais de 40 anos de atividade jornalística.

Ele falava calado e escrevia como poucos.

As quatro primeiras frases de seu perfil do jogador Garrincha entraram para a história da maestria jornalística:

“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol.”

Num tempo de más notícias, os textos de Geraldo Mayrink permitem um reencontro com a alegria de seus leitores.

Notas incorretas

No vídeo que mostra os guardiões de Trump no salão que fica debaixo da cúpula do Capitólio, eles se comportaram como respeitosos visitantes de um museu.

O vídeo que mostra o tiro dado por um policial na manifestante que estava do outro lado de uma porta, matando-a, foi coisa de seguidor do ex-governador Wilson Witzel.

(Em tempo: se os trumpistas de Washington fossem negros, os mortos da quarta-feira teriam passado da dezena.)

Macaco fora do galho

No dia em que o Brasil bateu a marca dos 200 mil mortos pela Covid, Bolsonaro avisou que se o Brasil não usar o sistema de voto impresso, terá os mesmos problemas que aqueles criados por Trump nos Estados Unidos.

Tudo bem. Seria o caso de ele combinar que na próxima epidemia o presidente do Tribunal Superior Eleitoral acumulará o cargo com o de ministro da Saúde. Certamente, ele não falará em cloroquina, “gripezinha” nem “conversinha” de segunda onda.


Ruy Castro: Saída para Trump: matar-se

Nós, brasileiros, sabemos que é uma boa ideia

Enquanto não entregar as chaves da Casa Branca no próximo dia 20, Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos em exercício, continua na posse de seus poderes. E isso é o que muitos temem. Trump é hoje um perdedor ainda com o dedo no gatilho. Se quiser jogar uma bomba no Irã, dispõe dos códigos necessários. A esperança é que esteja tão deprimido que não reúna forças nem para se olhar ao espelho. Pois, se for o caso, Trump teria uma saída capaz de fazer dele um herói, um mártir, um ícone eterno para seus seguidores idiotizados. Matar-se.

Nós, brasileiros, sabemos que é uma boa ideia. Ao suicidar-se, em 1954, Getulio Vargas zerou sua antiga imagem de torturador e sanguinário, simpático ao fascismo, e se eternizou como o velhinho bonachão e progressista vítima do capitalismo internacional assassino. Getulio soube fazer --escreveu uma carta-testamento com a frase "Deixo a vida para entrar na história" e deu um tiro no coração. Infalível para produzir milhões de viúvas.

Mas o tiro precisa ser no coração, não na cabeça. Este só faz uma lambança, com sangue, miolos e cacos de osso para todo lado. Já o tiro no peito é clean. Mantém o rosto intacto, apto a servir de modelo para uma máscara mortuária e futuros bustos e estátuas, indispensáveis à lenda. Para Trump, teria também a vantagem de não lhe desfazer o penteado.

No Brasil, Jair Bolsonaro, seu último aliado no mundo, repete como um papagaio que Trump foi roubado nas eleições e já começou a anunciar que, em 2022, o mesmo acontecerá aqui. O falso alarme de Bolsonaro é preventivo --visa justificar sua possível derrota.

Pois sua prevenção poderia ser ainda mais radical. Se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo. Mas para que esperar pela derrota na eleição? Por que não fazer isso hoje, já, agora, neste momento? Para o bem do Brasil, nenhum minuto sem Bolsonaro será cedo demais.


El País: Norte-americanos vivem apreensão e ansiedade com os últimos dias de Trump na Casa Branca

Trump não irá à posse de Biden em 20 de janeiro, a primeira vez que isso acontece desde 1869

Donald Trump está cada vez mais sozinho e, ao se sentir quase encurralado, é possível que em vez de lamber as feridas ao final de sua presidência, decida que a melhor defesa diante da enxurrada de críticas é um bom ataque. Trump provou ao longo dos últimos quatro longos anos que pode ser imprevisível e errático em suas decisões. A oposição democrata e um número cada vez maior de republicanos que começam a abandoná-lo vivem com incerteza, ansiedade e até medo os 12 dias que restam até que no próximo dia 20 o presidente Trump deixe definitivamente a Casa Branca.

Ele já deu vários murros no tabuleiro internacional. Há pouco mais de um ano, o mandatário republicano surpreendeu ao ordenar um ataque com drones contra o poderoso general iraniano Qasem Soleimani, desatando tensão máxima no Oriente Médio ao acabar com um dos homens fortes do aiatolá Ali Khamenei, em um golpe duríssimo a Teerã. Além disso, Trump se lançou a desenhar um novo mapa geopolítico acabando com décadas de diplomacia com a China e inaugurando uma nova Guerra Fria com a grande potência em ascensão. Há mais exemplos: como mudar a posição internacional sobre Jerusalém, ao mudar à cidade santa a embaixada dos EUA, e talvez a última mudança drástica da política em Washington, com o apoio ao Marrocos ao reconhecer sua soberania sobre o Saara Ocidental, o que significou ignorar as resoluções da ONU.

Diante das dúvidas sobre o que ainda pode ordenar um presidente ferido, que deixará como legado uma tentativa de insurreição insuflada por ele mesmo contra a democracia dos Estados Unidos, os líderes democratas estão tentando adotar medidas sérias. Além de seu pedido para que seja aplicada a 25° emenda e a realização de um impeachment a toda pressa do mandatário, a presidenta da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, se movimentou no terreno do prático e explicou na sexta-feira que conversou com o chefe do Estado Maior Conjunto, o general Mark Milley, para manter “um presidente instável” longe dos códigos nucleares que controla.

Proteger a população

“A situação desse presidente volátil e instável não poderia ser mais perigosa e devemos fazer todo o possível para proteger a população americana de seu desequilibrado ataque ao nosso país e nossa democracia”, escreveu Pelosi em uma carta. A presidenta da Câmara de Representantes afirmou que recorreria ao julgamento político contra Trump se o vice-presidente, Mike Pence, não iniciasse o processo para que seu Gabinete retirasse Trump do poder com a emenda constitucional por incapacidade.

Enquanto isso, o presidente flerta com a ideia de conceder um perdão a si mesmo para evitar possíveis investigações judiciais quando abandonar a Casa Branca. Um presidente perdoar a si mesmo seria algo inédito na história dos Estados Unidos, mas Trump já falou em público diversas vezes sobre essa opção, defendendo que tem o “direito absoluto” a fazê-lo. O republicano colocou essa opção durante a investigação da chamada trama russa, que verificou as supostas ligações entre a Rússia e sua campanha nas eleições de 2016.

O caso foi fechado sem que Trump fosse acusado por qualquer crime. Mas o promotor especial da investigação, Robert Mueller, afirmou o tempo todo que o mandatário não foi eximido, o que faz com que potencialmente possa ser processado quando deixar a Casa Branca. A maior ameaça legal que Trump enfrenta hoje é uma investigação por fraude do Estado de Nova York relacionada aos seus negócios. Ainda que esse seja um caso de alcance estadual que não estaria protegido por um perdão presidencial, uma vez que Trump é investigado como pessoa particular, sem vínculo com as decisões tomadas desde sua chegada ao poder em 2016.

A agenda diária de Trump até o dia da posse de seu sucessor, o democrata Joe Biden, é uma incógnita. “O presidente trabalhará do começo da manhã até tarde da noite. Fará muitas ligações e muitas reuniões”, disse a mensagem de sexta-feira enviada à imprensa pela Casa Branca.

Apesar de seu pedido para cicatrizar as feridas após o ataque ao Capitólio, Trump estaria supostamente planejando sigilosamente viajar na semana que vem à fronteira sul de seu país para lembrar em seus últimos dias, ao lado do muro que queria ampliar com o México, sua posição de falcão na política migratória. Também estaria pensando, de acordo com o The New York Times, em conceder uma entrevista antes de deixar o poder.

No Twitter, antes de sua conta ser suspensa definitivamente, o mandatário anunciou que não irá à posse de Biden, a primeira vez que isso acontece desde 1869. Quebrando a tradição, a família Trump sairá da Casa Branca rumo a sua residência da Flórida no dia 19, e não no 20. Quase uma saída pela porta dos fundos.


Alon Feuerwerker: Para a defesa de interesses, manobras complexas

Governos que se mantêm apesar das crises induzem a celebrar e elogiar a institucionalidade; já governos que fracassam e caem têm sempre a tentação das teorias conspiratórias. Mas a realidade, em última instância, é uma só: cabe a qualquer governo cuidar de suas bases de sustentação, sem elas está fadado à ruína. Seja qual for a "institucionalidade".

E quando a ruína vem, abre-se a possibilidade de uma ofensiva do inimigo, que costuma ser implacável e brutal. E que só freia quando se estabelece uma nova correlação de forças, mais equilibrada. Ainda não chegamos a esse ponto nos Estados Unidos. A coalizão política, social e cultural organizada pelo Partido Democrata contra Donald Trump só começou seu avanço.

E com a ordem de não fazer prisioneiros.

E a ofensiva ali se espalhará por todos os fronts. A guerra cultural será particularmente cruenta, na tentativa de ajustar as contas com as raízes mesmo da formação nacional norte-americana e daí buscar uma legitimidade de tipo completamente novo. Até chegar o dia em que tudo isso vai cansar e os robespierres de hoje forem encaminhados à guilhotina.

Claro que em pleno século 21 essa é apenas uma figura de linguagem. Mas os precedentes históricos são vários.

E o que temos a ver com isso, tirando o óbvio interesse pelo espetáculo? O que os americanos vão fazer com o país deles é assunto deles, mas o problema é se tratar de uma superpotência, a maior, e com armamento capaz de destruir a civilização algumas vezes. E qual será o melhor meio para os novos detentores do governo ali buscarem mais apoio num país fraturado?

Além de fazer a revolução interna, tentar restabelecer a liderança planetária que vai escorrendo pelo ralo do fantasma da decadência econômica.

A política de Donald Trump para fazer a América grande de novo sustentava-se no resgate das raízes nacionais e, principalmente, no buy american and hire american. Os americanos comprarem produtos americanos e produzirem em casa. Joe Biden repete o buy american, mas a ambição dele é maior: remontar a hegemonia planetária.

Aí cada país, dos maiores aos menores, precisará entrar num jogo de manobras complexas, buscando no todo e em cada situação defender seus próprios interesses, e ao mesmo tempo adaptar-se aos interesses de quem tem a vantagem da força. Porque, novamente, nunca é prudente subestimar a correlação de forças.

E qual o desafio maior do Brasil na nova conjuntura? Talvez saber qual é exatamente o interesse nacional neste momento da nossa história. Dificuldade que aliás começa pela dúvida, espalhada sistematicamente na periferia do sistema global: faz sentido falar em “interesse nacional” já passadas duas décadas deste novo século?

Fazendo um certo reducionismo caricatural, o Brasil parece estar dividido entre quem preferia engatar incondicionalmente nosso vagão na locomotiva trumpista e quem agora está pronto a bater continência à nova ordem, também de modo incondicional, desde que receba de fora o apoio suficiente para fazer aqui dentro seu próprio ajuste de contas.

Não chega a ser animador.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Paulo Fábio Dantas Neto: A República na América

“(...) Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles, embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem(...)”. (Hannah Arendt, “Da Revolução”)

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto. Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a república norte-americana a se defender.

Uso de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados por ações da política externa de seu Estado.  Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.

Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões - como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.

Em contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações revolucionárias, mas da sua derrota.   

Como coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação (a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade política quando a lei - sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da própria República.   Numa palavra, na República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.

É sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante um processo cumulativo de inclusão política.  A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração) como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo, impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd.  A visão dessa floresta é a da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software em constante atualização.

Foi contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6.  O Capitólio é o edifício símbolo do hardware que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram, ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.

Mas eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa, para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de uma “nova” esquerda.  Até porque, conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do país - passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal, enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma tática defensiva motivada pelo fator Trump. 

Para outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris, seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto mais atores políticos relevantes - no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos anti-racistas  se deixarem persuadir por esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a República que há na América segue sendo referência.   

Desdobramento lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna, provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições robustas e atitude política republicana possam domar um populista de extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.

*Cientista político e professor da UFBa.


Demétrio Magnoli: Futuro da democracia nos EUA depende do desenlace da guerra pela alma do Partido Republicano

Trump não é um desequilibrado nem armou um golpe de Estado; a tocha que o presidente acendeu continua a queimar

 “Nunca concederemos”, exclamou Trump diante de uma malta de milicianos e supremacistas brancos reunidos no parque da Elipse, chamando-os a “marchar até o Capitólio”. Quase cem anos atrás, Mussolini deflagrou a marcha sobre Roma, mas ele mesmo não marchou, seguindo para o conforto de Milão. O presidente americano imitou a covardia do Duce, encerrando-se na Casa Branca enquanto seus vândalos percorriam a avenida Pensilvânia. A versão original foi uma sedição triunfante; a cópia, uma encenação que fugiu ao controle do mestre.

Cria corvos e eles te arrancarão os olhos —o provérbio espanhol explica a derrota de Trump. Os corvos violaram o roteiro, invadiram o Congresso e interromperam a sessão de certificação da vitória de Biden, alterando os termos da disputa pela hegemonia no Partido Republicano. No fim, lívidos, os principais líderes republicanos —o vice, Mike Pence, e o líder do Senado, Mitch McConnell— abandonaram o presidente e isolaram a camarilha de congressistas engajados na negação da democracia.

Trump não é um desequilibrado nem armou um golpe de Estado. A tocha que acendeu continua a queimar, apesar do fracasso de 6 de janeiro. O presidente sabe, desde novembro, que carece de meios para impedir a posse de Biden. O grito de fraude difundido pelo país destina-se a submeter o Partido Republicano, prendendo-o na jaula do nacionalismo branco. Trump 2024 —a campanha começou e seu estandarte é a restauração dos “direitos dos colonos”.

No teatro parlamentar de 6 de janeiro, o núcleo de congressistas trumpistas contestou a certificação dos resultados dos estados decisivos, exigindo o descarte dos “votos ilegais”. As recontagens e decisões judiciais confirmaram a legalidade de todos os sufrágios. Mas, na linguagem cifrada do Partido de Trump, ilegais são os votos dos negros que inclinaram o pêndulo para o lado de Biden. O programa Trump 2024 é conferir às legislaturas estaduais a prerrogativa de suprimir o direito de voto dos negros.

A Constituição escrita pela nação de colonos atribuiu aos estados o poder de designar seus delegados ao Colégio Eleitoral. No início do século 19, com a expansão da democracia, leis estaduais transferiram ao sufrágio popular a seleção dos representantes. Depois, entre 1865 e 1869, no rescaldo da Guerra Civil, as emendas 13, 14 e 15 delinearam uma “segunda Constituição”, que estendeu aos negros o direito de voto. Contudo, na prática, a densa trama de leis e regulamentos estaduais esculpida para restringir o voto dos negros perdurou mais um século, até a Lei dos Direitos de Voto, de 1965. O trumpismo almeja retroceder os ponteiros do relógio da história em 60 anos, anulando as conquistas do movimento pelos direitos civis.

No rastro da derrota eleitoral, o presidente articulou com republicanos do Senado de Michigan uma tentativa de invalidar, na legislatura estadual, os delegados eleitos ao Colégio Eleitoral. Frustrada no nascedouro, a operação não chegou a provocar julgamento numa Corte Suprema de maioria conservadora, inclinada à interpretação “originalista” da Constituição. Mas a chama da utopia regressiva não se apagou.

No fatídico 6 de janeiro, Trump pretendia reforçar o teatro parlamentar da contestação eleitoral com a encenação de um levante das ruas. “Vocês nunca recuperarão nosso país com fraqueza”: a meta era usar as hordas de arruaceiros para intimidar os congressistas republicanos recalcitrantes, sujeitando-os à vontade do mestre. A invasão do Capitólio —uma derivação lógica mas imprevista da incitação presidencial— produziu efeito inverso, desorganizando a marcação de cena.Partido conservador e democrático ou partido reacionário do nacionalismo branco? Há uma guerra aberta pela alma do Partido Republicano, que durará quatro anos. Do seu desenlace depende o futuro dademocracia americana.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


O Globo: ‘Populistas autoritários nem sempre ganham’, diz Steven Levitsky

Steven Levitsky afirma que desfecho do governo Trump deve servir de exemplo para oposição a Bolsonaro

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO — Mundialmente famoso por seu livro “Como as Democracias Morrem”, o cientista político e professor de Harvard Steven Levitsky afirmou que o desfecho da invasão ao Capitólio e da tentativa de Donald Trump continuar no poder de qualquer maneira é uma prova que populistas autoritários podem ser parados. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, ele afirma que o fim do governo do republicano deveria inspirar a oposição brasileira e que Trump não conseguiu se manter no poder porque não contou com o apoio dos militares.

O desfecho do governo Trump é marcado pela tentativa de reverter o resultado das urnas com acusações falsas, pressão a funcionários públicos e incentivo à invasão do Capitólio, que fez Trump ficar mais isolado no fim dos eventos. Qual a lição para o mundo?

Bem, talvez a lição seja que os populistas autoritários nem sempre ganham. Eles podem ser parados.

Líderes populistas que copiaram claramente Trump, como Jair Bolsonaro, podem tentar repetir esse caminho e ter sucesso, ao contrário do republicano?

Bolsonaro é talvez o líder que mais claramente copiou Trump. Minha esperança é que o fracasso de Trump os desencoraje, e talvez inspire a oposição brasileira. Os democratas pararam Trump em parte porque uniram a esquerda e o centro. Se a oposição do Brasil não se unir, acho que Bolsonaro pode ter sucesso (na reeleição). A outra grande questão no Brasil são os militares. O exército poderia se recusar a cooperar com uma aventura autoritária, como nos Estados Unidos, ou ajudar Bolsonaro a ter sucesso?

Por que o golpe de Trump, que começou a elaborar maneiras de se manter no poder mesmo perdendo as eleições, não funcionou?

Primeiro, Trump era inepto, desorganizado e indisciplinado. Não houve nenhum esforço coordenado sério, ele foi tímido. Em segundo lugar, muitos funcionários públicos, como autoridades eleitorais, burocratas e  juízes se recusaram a cooperar com o republicano. E, o que é crucial, é muito difícil realizar um golpe sem armas. E Trump nunca teve os militares atrás dele.

Qual é a cumplicidade do Partido Republicano em tudo isso?

O Partido Republicano nomeou Trump, apesar de seu comprometimento limitado com a democracia, permaneceu em silêncio enquanto ele abusava do poder, protegeu-o do impeachment e permaneceu em silêncio enquanto ele mentia sobre a fraude eleitoral e tentava derrubar a eleição. Na verdade, muitos líderes partidários cooperaram no esforço de roubar a eleição. Em suma, o Partido Republicano foi altamente cúmplice. O partido protegeu e habilitou Trump.

Qual foi o papel da Justiça e da Suprema Corte?

O poder judiciário, que permanece poderoso e independente, desempenhou um papel crítico no bloqueio do esforço de Trump para derrubar a eleição. Assim como Trump não podia contar com os militares, ele não podia contar com os tribunais.


Ascânio Seleme: Justiça de um homem só

Nenhuma dúvida. Donald Trump tinha mesmo que ter sido afastado das redes sociais que usou durante todo o seu mandato para organizar a extrema direita em torno de seu projeto pessoal

Nenhuma dúvida. Donald Trump tinha mesmo que ter sido afastado das redes sociais que usou durante todo o seu mandato para organizar a extrema direita em torno de seu projeto pessoal. A turba ignara trumpista nunca se deu conta de que estava seguindo um homem arrogante e ambicioso que jamais pensou nos interesses do seu país. Os terroristas que invadiram o Capitólio na quarta-feira, no ápice da marcha golpista do mais infame presidente que os EUA já tiveram, apenas repetiam com a virulência do líder o discurso falso de que a eleição do adversário democrata havia sido fraudada.

Como Trump, há inúmeros outros líderes globais que abusam dessas plataformas para disseminar medos, mentiras e ameaças, ultrajando seus povos e suas nações. No Brasil, sabemos que Jair Bolsonaro e seu gabinete do ódio manipulam estas ferramentas para mentir e enganar, buscando tão somente confrontação e dividendos políticos. Tanto Trump quanto seu similar nacional, ambos golpistas potenciais, sofreram esporádicas e tardias sanções de Facebook, Twitter, Instagram e outras redes. A certa altura, o manda-chuva Mark Zuckerberg chegou a dizer que não podia se arrogar no direito de definir o que é verdade e que é falso na tormenta antidemocrática que estes canais de comunicação instantânea se transformaram.

Bobagem. Podia pelo menos ter tentado instituir em cada país um sistema de controle formado por membros de entidades civis, como as brasileiras OAB e ABI, e buscar apoio nos grupos de mídia profissionais para estabelecer um sistema eficiente de controle contra mentiras e manipulação no uso das redes. Dinheiro não seria problema para estas gigantes, mas a medida não seria boa para os negócios. Em determinados momentos no passado recente, algumas ações foram tomadas, mas muito mais para dar uma satisfação à opinião pública do que para de fato impedir o mau uso das plataformas. Deixou-se a coisa seguir de maneira solta, com bloqueios aqui e ali, até que se deu a invasão do Congresso americano, seguida de uma comoção mundial.

Aí, Zuckerberg acordou. Do alto de seu poder de dono das mais poderosas plataformas, defenestrou Trump de Face e Insta pelo menos até o fim do seu mandato. O Twitter o tirou do ar por 12 horas, seguido pelo Snapchat, que o suspendeu. Foi atrasado, mas por pouco não foi tarde demais. Imaginem se aquela turba tivesse conseguido empastelar o parlamento do maior país da terra. Suponham que os contrapesos não tivessem funcionado e Trump houvesse vencido a disputa impedindo a certificação da vitória de Joe Biden. A ordem global seria fortemente abalada graças a premissas falsas, ao ódio e a mentiras difundidas sistemática e livremente pelas redes sociais.

Logo depois da eleição de Biden, Trump fez um pronunciamento mentiroso, com as alegações falsas de fraude repletas do seu ódio contumaz. As emissoras de TV que transmitiam a fala ao vivo o tiraram do ar. As redes o mantiveram insuflando suas massas aturdidas. Por que a diferença entre elas? Porque as emissoras são controladas por gente e as redes não têm controle, ou são orientadas por algoritmos que incentivam a desordem, porque dá audiência. Agora, depois do vergonhoso cerco ao Capitólio, no limite de uma disrupção institucional que se espalharia globalmente, se fez a tardia reflexão, ou justiça. Mais grave, foi iniciativa isolada, iniciada por um homem só. Mark Zuckerberg.

O que o planeta precisa é de imediato e efetivo controle das redes para que atentados como o que vimos esta semana não consigam sequer brotar. Se por um lado as redes têm enorme potencial de difundir ideias e transmitir ensinamentos bons e gratuitos, por outro podem servir a golpistas como Trump e suas cópias mundo afora. Não se trata de um bicho de sete cabeças. É preciso cortar o acesso de quem mente, quem inventa, quem manipula informação. Se isso não for feito imediatamente por determinação inequívoca de governos democráticos, pode haver outras tentativas de golpe apoiadas nas redes sociais. E, se não forem novamente nos EUA, é muito possível que Zuckerberg não as veja ou simplesmente as ignore.

GOLPISTAS UNIDOS

Jair Bolsonaro não abandonou Donald Trump nem depois deste ter admitido que chegaram ao fim suas tentativas de golpear as instituições democráticas americanas. No dia seguinte à invasão do Capitólio pela turba trumpista, nossa excelência ainda nos ameaçou: “No Brasil pode ser pior”. Embora seja um crime de responsabilidade, a bravata não passa de uma bobagem rematada que por ora não se deve temer. Por duas razões. A primeira é que os aloprados de Bolsonaro são como aqueles 300 do ano passado, que não chegam a 30 e não valem dez. Segundo, porque aqui há um outro lado da mesma forma agressivo e disposto ao confronto. Ou vocês acham que os militantes da esquerda barulhenta deixariam a coisa correr solta como em Washington? Aqui o risco é outro, o da violência desmedida entre dois lados.

AINDA DÁ TEMPO

O presidente Jair Bolsonaro cometeu na quinta-feira mais um crime de responsabilidade, pelo qual pode ser afastado das suas funções, ao ameaçar o Brasil depois da invasão do Capitólio nos EUA. Na semana passada já havia perpetrado outro, ao fazer apologia à tortura.

PREVISIBILIDADE

Pelo menos em um ponto deve-se concordar com o candidato de Bolsonaro para a presidência da Câmara. O deputado Arthur Lira (corrupção, lavagem de dinheiro, bens bloqueados, agressão doméstica) diz que sua eleição seria uma vitória da previsibilidade. Exatamente. Com ele no comando da Casa, teríamos dois anos sem vento. O governo nadaria de braçadas e o presidente poderia seguir cometendo seus rotineiros crimes de responsabilidade sem desassossego. Se com Rodrigo Maia já foi aquela moleza, imagina com o Lira amigo do peito.

VOTO VIRTUAL

Lira protestou contra o possível voto virtual para a eleição da Câmara. Perguntou: “Qual a verdadeira intenção por trás disso?”, sugerindo que Rodrigo Maia e seu candidato Baleia Rossi estariam armando alguma. Pode? Só falta ele pedir o voto impresso. O atraso do atraso se manifestou pela boca do parlamentar bolsonarista.

PONTO POSITIVO

Cláudio Castro, o governador que caiu de paraquedas no Palácio das Laranjeiras, ganhou ponto importante ao indicar o mais votado da lista tríplice do Ministério Público para chefiar a entidade. Ele não se dobrou à pressão do zero das rachadinhas. Coragem é uma das qualidades que se espera dos homens públicos, inclusive para tomar decisões que contrariam pressões poderosas.

PONTO NEGATIVO

Em Belo Horizonte, o prefeito Alexandre Kalil, reeleito no primeiro turno com quase 70% dos votos, voltou a fechar o comércio e todos os serviços não essenciais para conter a transmissão de coronavírus. No Rio, cidade que registra mais mortes no país, que tem 2048 leitos do SUS fechados e as pessoas aguardam na fila por vagas em hospitais públicos, o prefeito Eduardo Paes chegou a mandar reabrir as áreas de lazer na orla (depois voltou atrás) e já elabora plano para a volta presencial das aulas nas escolas municipais. Disse não entender porque shoppings estão abertos e escolas fechadas. Melhor fechar os shoppings, não é, prefeito?

FALTA DE CARÁTER

Bater na imprensa já não causa surpresa a ninguém. No Brasil tem sido assim desde a era petista. Bolsonaro disse esta semana que a imprensa “potencializou” a pandemia de coronavírus, chamando-a de “mídia sem caráter”. Em tom próprio, mais virulento, o capitão apenas repetiu o que se ouve desdea Era dos franklins e dos dirceus.

SERINGAS E AGULHAS

A ideia de Jair Bolsonaro de esperar o preço das seringas e agulhas baixar para só então comprá-las é de uma “inteligência” que acomete a poucos. Valendo-se da regra de mercado, o Brasil só compraria os suprimentos e iniciaria a vacinação quando o mundo inteiro já tivesse sido imunizado. O Ministério da Saúde fez de conta que não ouviu o presidente desmiolado e anunciou que as compras serão feitas diretamente pelo governo federal, sugerindo que vai proibir os estados de tomarem iniciativas isoladas. Como se fosse possível este tipo de intervenção. Daí ficou clara a estratégia. O objetivo era tentar atingir o plano de São Paulo de iniciar a vacinação por conta própria, antes da União, seguindo seu próprio calendário.

NOSSOS PREÇOS

Os preços na Europa, mesmo com 1 Euro valendo mais do que 6 Reais, estão em alguns casos mais em conta do que no Brasil. Exemplo: Quatro pessoas podem jantar num bom restaurante em Lisboa, Madri ou Roma pagando alguma coisa como 100 Euros (R$ 660,00). Isso com entradas e uma boa garrafa de vinho. No Rio, um jantar nestas mesmas condições em restaurantes do mesmo padrão no Leblon ou em Ipanema não sai por menos de R$ 800,00.

JÁ ERA

Quem foi a Portugal fazer um bom negócio imobiliário, foi. Não vai mais. O metro quadrado no Bairro Alto, na Graça, no Chiado ou na Alfama, que já foi barato para os padrões cariocas, hoje vale mais do que o do Leblon, o bairro mais caro do Brasil.


Merval Pereira: Autogolpe

A melhor resposta da democracia americana ao autogolpe que o (ainda?) presidente Donald Trump tentou ao incentivar seus militantes a impedir a formalização pelo Congresso da eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos seria utilizar a 25ª emenda para não deixa-lo continuar no cargo por incapacitação física, ou impedi-lo, com o apoio da Câmara, que tem maioria Democrata, e do Senado, com maioria Republicana.

“Autogolpe” é como o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, classifica a invasão do Congresso em entrevista à BBC em espanhol. Consequência de "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump. Também foi um assunto polêmico desde que, na campanha presidencial, o candidato a vice, General Hamilton Mourão, admitiu o ”autogolpe” como uma possibilidade no cenário político brasileiro.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares", e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Essa análise de Levitsky vai ao encontro de diversos estudos acadêmicos sobre a militarização do governo Bolsonaro, ou a “bolsonarizacao” dos quartéis, que estamos discutindo nos últimos dias. Até ontem, podíamos especular sobre a possibilidade de termos aqui os acontecimentos decorrentes da negação de Trump em aceitar a derrota na eleição presidencial. Mas Bolsonaro deixou claro, ao apoiar Trump nas acusações de fraude nas eleições americanas, que pode haver, sim, uma rebelião como a que o presidente americano organizou.

Ao dizer que podemos ter coisa pior, se não houver cédula física nas próximas eleições, ameaça e pressiona a Justiça Eleitoral. Especulamos sobre o assunto quando ele, no início do governo, tentou várias vezes desmoralizar o Congresso, o STF, a imprensa independente, e seus militantes mais radicais atacaram com fogos de artifício o STF. Também quando fez comício contra as instituições em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, numa clara provocação.

A especulação ganha foros de verdade quando ele diz claramente que vai haver problema “mais sério” entre nós. O presidente não convive com a democracia, autoritário, querendo sempre mais poder. Por isso, as instituições da democracia deveriam impedir que essa tendência autoritária se revertesse em influência nas Forças Armadas.

A “transição militar”, que deve ocorrer com a transição política para a democracia segundo Narcís Serra, acadêmico catalão e respeitado ministro da Defesa da Espanha entre 1982 e 1991, é lembrada em um estudo do cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, e Igor Acácio, doutorando em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, sobre o papel político dos militares sob Bolsonaro, publicado na edição em português do Journal of Democracy, editado pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso.

As transições militares têm três etapas: evitar golpes de Estado; remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia; o estabelecimento da supremacia civil.

Para os dois estudiosos, até há pouco o Brasil se encontrava na segunda, e ensaiava ingressar na última etapa. “O primeiro retrocesso decorrente do padrão de relacionamento engendrado por Bolsonaro com as Forças Armadas é óbvio: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa”, diz o estudo.  

Para os autores, “estamos correndo o risco de voltar à primeira etapa da transição militar, pois, no primeiro semestre de 2020, a agenda política brasileira foi marcada por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. O terceiro retrocesso : as tendências recentes do sistema internacional, com crescentes tensões dentro e fora do entorno estratégico brasileiro, podem encontrar o país sem consenso social e político para canalizar recursos para os projetos das Forças Armadas. (Amanhã, sugestões para superar os retrocessos).


Celso Ming: A invasão do Congresso dos EUA e nós aqui

Tentativa de golpe produzirá desdobramentos que ainda não se podem prever

A invasão do Capitólio, em Washington, pelos extremistas seguidores do presidente Trump, nessa quarta-feira, produzirá desdobramentos que ainda não se podem prever.

desfecho desse 6 de janeirosegue a lógica da política isolacionista, xenófoba, populista e antidemocrática adotada pelo governo dos Estados Unidos nestes últimos quatro anos.

Se não pode levar pelo voto, a eleição não serve. É invariavelmente “roubada”, quando os da turma são vencidos nas urnas. Numa primeira tentativa, vale apelar para a guerra judicial e, se não adiantar, a saída é o golpe. Se as forças institucionais, como as polícias e os militares, não aderirem, a solução é apelar para os movimentos de massa, para os agrupamentos armados e, assim, arrancar o poder com a invasão dos centros de exercício da democracia. Foi assim no nazismo, foi assim no fascismo e será assim nos regimes totalitários.

Como não poderá mais agasalhar esses movimentos antidemocráticos, sob pena de se esvaziar, o Partido Republicano dos Estados Unidos, o Great Old Party (GOP, na sigla em inglês), que já foi liderado por Abraham Lincoln, terá de se renovar, tarefa complicada, a ser precedida por expurgos.

Tiraram o megafone do Trump. No meio da confusão, as contas do presidente Trump no Twitter e no Facebook foram bloqueadas. O homem mais poderoso do mundo, que tem o botão da bomba à altura dos seus dedos, não pode mais usar as redes sociais para transmitir ordens e contraordens a seus comandados, como se o alcance à corneta fosse retirado do comandante no campo de batalha.

Desse fato não se conclui apenas que, numa dimensão que importa, há poder maior do que o do presidente dos Estados Unidos. Conclui-se, também, que uma vez bloqueada a comunicação com suas massas de manobra, a capacidade de mobilização de um chefão autoritário perde substância. Questão subsequente consiste em saber quem, em última instância, manda nas redes sociais e como o acesso a elas pode ser controlado democraticamente.

A partir do que houve em Washington, é preciso saber por que o país mais dotado de instituições de segurança no mundo e por que o FBI, a CIA e outros organismos de inteligência que existem para defender as instituições não serviram para prever e prevenir as forças democráticas contra a invasão e a tentativa de golpe. 

A aglomeração começou desde a véspera, no dia 5. O presidente Trump havia feito pronunciamentos desesperados contundentes em que conclamou seus seguidores a agir pela força. E as intenções de invasão foram manifestadas a qualquer interessado. Por que, mesmo assim, tudo aconteceu como se viu?

Finalmente, vamos às implicações para o Brasil. A mesma lógica da política de Trump que desembocou onde desembocou se aplica ao atual governo brasileiro, para quem a democracia só tem serventia se ajudar na tomada do poder para sua turma. Quando as instituições e as regras do jogo se tornam obstáculos, então é preciso desmontá-las. 

Se o Supremo dispara sentenças desfavoráveis, é preciso destituí-lo. Para isso e para outras providências da mesma qualidade, sempre é melhor aproveitar a confusão da hora para “passar a boiada”. 

Se o Congresso atrapalhar, cumpre aliciar segmentos importantes que o compõem, como o Centrão, com benesses e favores políticos. Ao mesmo tempo, convém armar os seguidores e prepará-los para confrontos que possam se tornar inevitáveis. Criar e encorpar as milícias acaba sendo o passo seguinte.

Tudo isso é mera fantasia? Pois, ainda nesta quinta-feira, o presidente Bolsonaro não poderia ter sido mais claro do que foi: “A falta de confiança nas eleições levou a esse problema que aconteceu lá (nos Estados Unidos). Se tivermos voto eletrônico no Brasil em 2022, vai ser a mesma coisa. Ou vamos ter problema pior que nos Estados Unidos” – foi o que disse